segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15633: Inquérito 'on line' (29): "A tropa fez de mim um homem"... Em 100 respostas, 34 dizem Sim, 21 dizem Não, 42 dizem Nim... Comentários de A. Sousa de Castro, António Carvalho [de Mampatá], Leão Varela, Alcides Silva, Juvenal Amado e Hélder Sousa...

Motoqueiros de Alcobaça > 1965, Foto: © Juvenal Amado (2016). 
Todos os direitos reservados
A. Mais alguns comentários de camaradas  nossos, relativamente ao tema que está a serobjeto de inquérito de opinião, no nosso blogue, esta semana (*):



Sousa de Castro:

Não sei se a tropa fez de mim um homem!... A educação que me deram fez de mim uma pessoa responsável, no entanto admito que na tropa me tornei mais maduro, acho também que no tempo de hoje a tropa obrigatória seria muito bom para muita juventude dos 20, tornavam-nos mais responsáveis, mais calmos...

Hoje rapaziada não valoriza aqueles que obrigatoriamente tiveram que ir à tropa. Recordo-me aquando da minha inspecção ainda se valorizava ser ou não apurado, era... como dizer, sinónimo de pessoa saudável, prestável. 

Para mim a minha maior preocupação era não ir para a Guiné, Angola ou Moçambique tudo bem. No final senti-me satisfeito com a minha prestação e nunca me arrependi de ter participado na guerra colonial. Naquele tempo muitos mancebos pensavam que era obrigação um dever de todos servir e defender a Pátria, nomeadamente os menos informados, como eu por exemplo.

Carvalho de Mampatá:

Fez de mim um homem?

Como posso saber o homem que seria se por lá não tivesse passado ! Sim, se não tivesse passado pela Guiné, hoje, eu seria uma outra pessoa. De facto a Guiné mudou-me, mas o mesmo não direi da simples incorporação e permanência nos quarteis de cá, que pouco me marcou. 

Motoqueiros de Alcobaça > 1965
Foto: © Juvenal Amado (2016).
Todos os direitos reservados.  
Na Guiné, no confronto com culturas distintas da minha, durante mais de dois anos no meio de um conflito sem fim, ao serviço de uma causa cada vez mais notavelmente perdida, assistindo a mortes na Primavera da vida, longe do afecto da família, abandonado no meio de uma selva traiçoeira... esta Guiné mudou-me, se não fez de mim um homem, fez de mim um homem diferente,fez-me mal.


Leão Varela:

Já respondi ao Inquérito com um "Falso",  pois, para mim, quem me ajudou a ser um homem foi o meu saudoso pai.

Contudo, acrescentei que a tropa no seu todo me beneficiou em alguns aspetos que ainda hoje completam o meu "eu":

- Sentido de responsabilidade;
- Capacidade de organização pessoal;
- Capacidade de comando na minha vida profissional;
- Espírito de solidariedade e de camaradagem.


Alcides Silva

Camaradas, para mim a tropa só atrapalhou a minha vida mas adquiri alguns ensinamentos, por exemplo, não confiar tanto no outro.

Eu, com 15/16 anos,  sabia bem a minha posição na sociedade, com 14 anos passei a trabalhar com o meu pai, ele era bastante rígido no trabalho, comecei a programar sair para outro lado, com 16 anos fui trabalhar para uma empresa em trabalho diferente. 

Sempre me adaptei as situações, desde jovem sempre soube gerir a minha vida, apesar de entregar sempre o meu ordenado em casa. Trabalhando horas extras,  esse valor ficava para mim, fui juntando o possível para quando chegasse o tempo de tropa não pedir nada ao meu pai.

Andei 41 meses na tropa, fui para a Guiné, já tinha cumprido cá 18 meses, estava na Guiné hà 7 meses recebia a noticia de que o meu pai tinha falecido, resultante de um cancro, que era desconhecido e, assim fui ultrapassando as dificuldades, nunca fiz gastos desnecessários, hoje estou reformado como bancário, oportunidade que surgiu depois de chegar do Ultramar e assim se vai vivendo.

Cavaleiros de Sabugal em dia de ir às sortes, 1968
Foto © José Corceiro (2011).
Todos os direitos reservados. 
Juvenal Amado:

Se não foi à tropa será menos homem?

Penso que não.
Na minha família todos os homens foram militares, eu fui o terceiro a participar na guerra colonial. o meu irmão foi em 1966 para Moçambique, o meu primo Mário um ano mais tarde para Angola (um dos motoqueiros da fotografia; penso que é o único de óculos). 

Mas conheço muitos homens bons que não foram há tropa e são homens de corpo inteiro na cidadania e profissionais exemplares. Dito isto, penso que a tropa não faz de ninguém um homem, até porque hoje também há milhares de mulheres fazem serviço militar por este Mundo, fora o que não faz delas homens ou mulheres .

No caso dos homens que participaram na guerra colonial, alguma coisa mudou neles obrigatoriamente, mas não foi isso que fez deles uns homens.


Hélder Sousa:

Não me parece haver uma resposta simples para esta questão.

Que ela é pertinente, disso não tenho dúvidas. Aliás,  essa era uma frase muitas vezes ouvida: uma vezes soava como ameaça, outras como premonitória, outras esperançosa.
E, afinal, a 'tropa' faria ou não de nós uns 'homens'?
Sim. E não!
Dependo do ponto de vista e do que se estiver a referir.
Não falo do 'crescimento' físico, pois isso seria resultado natural da evolução humana. Nem é a esse aspecto que a frase [que o Juvenal colocou muito bem como título do seu livro, que vai ser lançado no dia 23, sábado, às 16h30, em Lisboa] se refere.  A(s) intenção(ões) da frase dizem mais respeito ao 'crescimento' interior, ao amadurecimento, portanto à maturidade.
Claro que não é obrigatório que tal só possa ser conseguido através da 'tropa', mas que, no 'nosso tempo' isso contribuiu para muitas coisas boas, sou da opinião que sim.

Disciplina alimentar, regras básicas de higiene, procura de autonomia e autosuficiência, etc. foram coisas que, no 'nosso tempo', repito, muito contribuíram para um maior e melhor conhecimento do País e suas realidades gerais, com jovens do interior a terem a visão do litoral e vice-versa e com isso a tomarem consciência.

Se a isso se acrescer o que se veio a revelar como a entreajuda, a solidariedade, a partilha, etc. temos, por aí, uma pista para se poder dizer que "se não nos fez ser 'um homem' contribuiu bastante para um 'crescimento' mais acelerado".


2. INQUÉRITO DE OPINIÃO: "SIM, A TROPA FEZ DE MIM UM HOMEM"


1. Totalmente verdadeiro  > 6 (6%)

2. Verdadeiro  > 28 (28%)

3. Nem verdadeiro nem falso  > 42 (42%)

4. Falso  > 14 (14%)

5. Totalmente falso  > 7 (7%)

6. Não sei responder  > 3 (3%)

Total de respostas: 100 (100,0%)

Prazo para responder: 21 de janeiro de 2016, 10h06
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de janeiro de  2016 > Guiné 63/74 - P15622: Inquérito 'on line' (28): "A tropa fez de mim um homem"?... Nem sim nem não, metade da malta (12 em 24) responde "nim", "nem verdadeiro nem falso"... Inquérito em curso até 5ª feira...

Guiné 63/74 - P15632: Notas de leitura (798): “La Découverte de L'Áfrique", por Catherine Coquery (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Esta obra tem o condão de nos dar uma sequência histórica de África até à conquista colonial, descrevendo os exploradores romanos, os relatos de geógrafos árabes e destacando os importantes documentos deixados pelos portugueses. Não será seguramente a melhor antologia desses comerciantes e navegadores que abriram uma nova era para o conhecimento do interior africano e da geografia do continente, basta dizer que a autora preferiu Azurara a André Álvares de Almada, mas o que está em causa é que se trata de um interessante livro de divulgação que não esconde ou ilude a probidade dos factos, estávamos em 1965 e o vigor ideológico e a denúncia anticolonial sobrepunham-se muitas vezes ao facto histórico.
Para que conste.

Um abraço do
Mário


À descoberta de África, por Catherine Coquery (1)

Beja Santos

A Coleção Arquivos Julliard foi de grande notoriedade cultural nos anos 1960 e 1970. O livro que vamos falar conheceu a sua publicação em 1965, a sua autora era investigadora da École Patrique des Hautes Études e especializada em história africana. Que singularizava esta coleção? Para o tempo aparecia como um compromisso entre a erudição científica e a literatura histórica, era como se fosse um género novo, mostrando as fontes e pondo o leitor em contacto direto com os documentos cuja montagem era confiada aos melhores especialistas.

Na contextualização desta obra, procura-se entender os porquês da África misteriosa. Primeiro os constrangimentos: a barreira do deserto do Sahara, que fez temer as incursões a partir do Norte de África, segundo, o desconhecimento das mais antigas culturas negras, basta dizer que as “figuras de Nok”, que se desenvolveram no planalto da Nigéria central, no princípio da era cristã, só foram conhecidas em 1931, tratou-se de uma civilização de transição entre a pedra e os metais; na sua sequência, ainda hoje são bastante controvertidas as informações sobre impérios africanos, apesar das descrições dos geógrafos árabes, os impérios do Gana, do Mali, o reino de Tombuctu, o reino de Futa Djalon; e, não menos importante, mesmo com os descobrimentos só esporadicamente se avançou para o interior de África, temia-se o clima insalubre, a floresta impenetrável, mesmo que os mais audazes se sentissem tentados pela desmesura das distâncias ou a majestade dos grandes rios; tudo conjugado, os primeiros e importantes relatos vêm dos reinos da Costa da Guiné, e devem-se a registos assombrosos como o de André Álvares de Almada ou mesmo o de Duarte Pacheco Pereira, para já não falar em Alvise Cadamosto e Filipo Pigafetta. Quando os portuguses chegam à costa da Guiné no século XV existia o reino de Ifé, herdeiro da civilização de Nok, centro de dispersão das cidades Yoruba em que a mais célebre era o Benim, que os portugueses bem conheceram e de que há testemunhos esplendorosos.

Na primeira parte da obra, a autora fala-nos da Antiguidade, destaca os egípcios, depois os cartagineses, os etíopes, os romanos. Temos depois o Islão com os seus mercadores e geógrafos. Depois da morte de Maomé, em 632, a conquista árabe progrediu com uma extraordinária rapidez. A expansão dirigiu-se em primeiro lugar para o Oriente (conquista da Síria e da Pérsia), mas logo a seguir iniciou-se a expansão para o Este, a começar pelo Egipto e a Cirenaica. Sustidos em Poitiers, em 732, os árabes não se sentem imediatamente tentados em alcançar a África negra, mas as caravanas ganharam regularidade. Com a redescoberta de Ptolemeu no século IX, os geógrafos árabes, com o apoio dos melhores astrónomos e matemáticos do tempo, começaram a estudar África e orientaram-se para o oceano Índico. O ouro do Sudão passou a ser altamente cobiçado. A autora recorda como o ouro africano esteve na base da grandeza dos Omíadas em Espanha, no século IX, e dos Fatimidas que ocuparam Sijilmassa após a conquista do Egipto.

Os enigmas do interior africano permaneciam, cedo houve a atração do rio Nilo. A partir de Sijilmassa, no Sul de Marrocos, à entrada do deserto, estabeleceram-se contactos com os nómadas e fizeram-se as primeiras travessias do Sahara descritas por geógrafos eminentes como Al-Bakri e Ibn Battuta. Assim se chegou ao conhecimento de reinos e impérios.

Primeiro, o Gana, país de ouro conhecido pelos muçulmanos desde o século VIII, e que teve o seu apogeu no século X, a capital era Bamako, entre o Níger e o Senegal, desapareceu com as conquistas dos almorávidas. Al-Bakri descreve o Gana com imenso pormenor, o poder real e a sua imensa riqueza. Para lá do Gana, era tudo praticamente um mistério. Com a queda do Gana, foi surgindo o império do Mali, nele professava-se o islamismo. As tradições orais dos negros no Sudão guardaram memória dos êxitos de Sundiata, o verdadeiro fundador do Mali, que os árabes conheciam pela designação de Mansa-Moussa, que se distinguiu pelo seu poderio e santidade de vida. Ibn Khaldun e Ibn Battuta deixarão descrições sobre o esplendor da corte do Mali.

No momento em que Ibn Battuta percorria o Mali, este império caminhava para o declínio suplantado por outro, o império de Songhai de Gao, é neste tempo que se fala na prosperidade lendária de Tombuctu, que excitava os descobridores europeus mas também a cobiça árabe, foram estes que a conquistaram em 1591. Estes viajantes árabes descrevem a riqueza do Sudão, o comércio de troca e destacam o comércio internacional que fez a prosperidade do Sudão e que não exigia o uso do dinheiro, o que ali funcionava era o cobre, o sal e o ouro.

Toda esta situação se irá modificar com o aparecimento dos portugueses. Até ao fim do século XIV, África parece dominada pelo Islão, senhora do Mediterrânio Meridional e do oceano Índico, as duas artérias vitais do comércio marítimo. O projeto henriquino e a excelente oportunidade que cabe aos portugueses numa Europa em tumulto, constituem um novo dado para a descoberta de África.

(Continua)

Juntam-se reproduções de gravuras do século XVII incluindo a apanha do ouro, a corte de um rei africano e a confluência entre o Níger e o Senegal imaginada por um missionário do século XVII.




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Nota do editor

Último poste da série de 15 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15621: Notas de leitura (797): "Motorizadas portuguesas de 50 cc", de Pedro Pinto, edição dos CTT, 2015 (José Colaço)

Guiné 63/74 - P15631: Blogues da nossa blogosfera (72): Uma aventura em África: em 14 de novembro de 1980, eu estava em Bissau... Depois do jantar, no Hotel 24 de Setembro, fui surpreendido pelo golpe de Estado do 'Nino' Vieira (Francisco George, antigo represente da OMS - Organização Mundial da Saúde na Guiné-Bissau)

1. O dr. Francisco George é uma figura pública, enquanto diretor-geral de saúde (*), e como tal conhecido da generalidade dos portugueses, pelas suas amiudadas intervenções na comunicação social e, em especial, na televisão. 

O que é menos sabido a seu respeito é a sua forte ligação à Guiné-Bissau e o seu grande carinho pelo povo guineense. O Francisco George, meu colega e amigo da saúde pública, é também um grande contador de histórias. Conheci-o em Beja, depois do seu regresso de África, no início da década de 1990. Tem uma página na Net, "Dossier de Lutas", que merece uma visita.  Foi de lá, e esperando contar com a sua compreensão e benevolência, que retirei esta história: acho que os amigos e camaradas da Guiné vão gostar de a ler e comentar... Eu depois peço-lhe a devida autorização... e dou-lhe o nosso "feedback" (**). (LG)




Em 1980 fui colocado em Bissau, no âmbito do recrutamento como novo membro do staff da OMS, depois de terminados os procedimentos administrativos e de informação técnica na Sede Regional em Brazzaville.

A chegada à Guiné-Bissau foi tranquila. O escritório da OMS tinha como Representante o médico de nacionalidade espanhola Garcia Morilla. A correspondência quer com Genebra quer com Brazzaville era assegurada pelo serviço semanal de Mala Diplomática. Para além disso, só telegramas através dos Correios garantiam ligações rápidas, uma vez que, na altura, não se podia contar com telefones.

Garcia Morilla estava muito perto de atingir a idade da aposentação,  que era de 62 anos. O calendário de folhas soltas em cima da sua secretária tinha a enumeração decrescente até ao seu último dia de trabalho. Quando o encontrei pela primeira vez faltavam 421 dias, no dia a seguir diminuiu para 420, depois 419 e assim por diante. Invariavelmente, todos os dias pela manhã, mostrava-me a folha correspondente com assinalável satisfação ao verificar que a distância ia ficando cada vez mais encurtada. Ausentava-se com frequência para se deslocar a Cabo Verde, visto que a Representação assegurava a cobertura dos dois Estados, politicamente ligados desde o tempo da Luta de Libertação conduzida pelo PAIGC.

O dia 14 de Novembro de 1980 foi igual aos anteriores até à hora do jantar. Depois, foi bem diferente como se verá. Julgo que Morilla estaria em Cabo Verde.

Como habitualmente, jantei no “Hotel 24 de Setembro” (antiga messe de oficiais do Quartel General do tempo colonial). Muitos cooperantes, mesmo os que não ficavam nem jantavam no Hotel, concentravam-se na magnífica esplanada a fim de tomarem café ao ar livre e, sobretudo,  para a conversa. Discutiam-se temas sobre o desenvolvimento, sobre política Africana e, naturalmente, sobre Portugal da AD de Sá Carneiro.

Ora, pelas nove da noite, repentinamente, ouvem-se uns ruídos, percebem-se correrias, pessoas espantadas, muito assustadas e, de forma inesperada, surgem grupos de militares rebeldes que montam uma metralhadora pesada no centro da esplanada. Logo de seguida, o Comandante dá ordem para todos levantarem as mãos. Momentos depois estavam todos os guineenses e cooperantes, incluindo eu, com mãos ao alto, surpreendidos, sem sabermos o que se seguia.

Todos nós compreendemos, rapidamente, que eram manobras integradas num golpe para derrubar o Presidente Luís Cabral. No meio deste cenário, surge o gerente do hotel a pedir ao chefe dos revoltosos para os clientes pagarem as respectivas contas. É então que é dada nova ordem: “Todos pagam primeiro as dívidas do café e logo depois voltam a levantar as mãos”…

A situação, apesar de caricata, foi apagada pelo medo generalizado. Medo misturado com a esperança de um futuro melhor.

Era o Movimento de Nino Vieira. Afinal, o grande herói da Luta que todos admiravam e respeitavam. A confiança era imensa. Julgavam que a pobreza podia ser combatida como Nino fizera contra o exército de Spínola. Era agora que o País iria para a frente, pensaram muitos.

Voltando à esplanada. Depois das contas pagas, todos ergueram de novo os braços. Cerca de meia hora depois, os soldados rebeldes às ordens de Nino Vieira mandam todos para os quartos. Acontece que muitos dos que ali estavam não tinham alojamento no hotel. Era essa, aliás, a minha situação. Olhei em redor para ver se conhecia alguém. Resolvi, então, pedir a um cooperante português que me deixasse ficar no quarto dele. Nada levava comigo. Já no quarto do António Manuel Reis, que eu acabara de conhecer, resolvemos proteger as janelas com almofadas. Durante a noite os sons de tiros de canhão que tudo faziam estremecer, aumentavam a nossa ansiedade.

A manhã seguinte foi, pelo contrário, de alegria generalizada perante a confirmação do sucesso da operação rebelde. Luís Cabral, deposto e expulso, deu lugar a um Conselho da Revolução. O próprio Nino Vieira apresentou os membros do Conselho num grande comício que promoveu na Praça do Império cinco dias depois. Assisti a esta manifestação, genuinamente popular, a lembrar-me do nosso Primeiro de Maio em 1974.

Hoje, trinta anos passados, temos que reconhecer, a construção de um Estado de Direito, regido por princípios democráticos, é um processo ainda inacabado.

Francisco George
Verão de 2011


Guiné-Bissau > Bissau  > 2010 > Hotel Azalai > "Foi piscina dos oficiais, dos hóspedes do Hotel 24 de Setembro, aparece agora retocada para a inauguração do Hotel Azalai. Tem beleza e quem organizou este espaço foi feliz com o traçado do meio envolvente." (Foto e legenda de Mário Beja Santos, aqui).


Foto (e legenda); © Mário Beja Santos (2010). Todos os direitos reservados

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Notas do editor:



Francisco George. Foto: Cortesia
de Direção Geral de Saúde

(i) nasceu em Lisboa, em 1947;

(ii) licenciado em Medicina (1973);

(iii) diplomado com  o Curso de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (Lisboa) (1977);

(iv) especialista em saúde pública, foi delegado de saúde a partir de 1976 (em Cuba e depois Beja);
 (v) funcionário da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 1980 e 1991;

(vi) para além de Bissau e Harare, foi consultor em missões da OMS nas mais diversas partes do mundo (Pequim, Xangai, Brazzaville, Genebra, Rio de Janeiro, Maputo, Praia, São Tomé, Luanda, Bamako, Antananarivo, Maseru e Lusaka);

(vii) ainda no âmbito da OMS, foi designado: chefe do projecto da OMS para o desenvolvimento dos serviços de saúde, na República da Guiné-Bissau (1980); representante da OMS na República da Guiné-Bissau (1986); epidemiologista do Programa Mundial de Luta Contra a SIDA da OMS (coordenador deste programa na África Austral) (1990):

(viii) tendo regressado à carreira nacional de saúde púiblica,   é chefe de serviço de saúde pública desde 1992;

(ix) nomeado subdirector-geral da saúde em 2001 e reconduzido em 2004;

(x) nomeado director-Geral da Saúde, em 2005, cargo que mantém até hoje;   

(xi) é professor auxiliar convidado da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL);

(xii)  foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique, Grande-Oficial, pelo Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio (2006).

Guiné 63/74 - P15630: O que é feito de ti, camarada ? (5): C. Martins, o último artilheiro de Gadamael, cmdt do 23º Pel Art, 1973/74


Monte Real, Palace Hotel > 4 de Junho de 2011 > 
VI Encontro Nacional da Tabanca Grande > J. Casimiro Carvalho, 
à esquerda,  com  o C. Martins, dois homens de Gadamael... Uma das
raras foto do cmdt do 23º Pel Art (Gadamael, 1973/74). 
Foto: LG (2011)
1. Não sabemos o que se passa com o nosso leitor (e camarada) C. Martins, ex-comandante do 23º Pel Art de Gadamael (1973/74)... 

Deixou de mandar sinais à navegação, ou seja, deixou de fazer comentários no nosso blogue... 

Ele era relativamente assíduo, e tem pelo menos 20 referências no nosso blogue... Nunca quis aceitar o nosso convite para integrar a Tabanca  Grande, por razões da sua vida pessoal e profissional que respeitamos. 

É médico.  Mas já tivemos ocasião, por várias vezes, de estar  e de conviver com ele, nomeadamente nos últimos encontros nacionais da Tabanca Grande. Esteve, inclusive, no último, o X Encontro Nacional, que se realizou em 18 de abril de 2015... Lá está ele na lista, mas sempre avesso à fotografia... 

Apetece-nos perguntar: o que é feito de ti, camarada, C. Martins  ? (*)... 

Esta série é justamente para relembrar alguns de nós que temos andado mais arredados do convívio bloguístico... E vamos começar a perguntar por esses... Devagarinho, como quem não quer a coisa... Naturalmente que respeitamos o silêncio voluntários dos camaradas e amigos/as que, por esta ou aquela, andam mais arredios... Afinal, o blogue vai fazer 12 anos, o que na Net é já uma eternidade...

C. Martins, querido camarada, espero que estejas bem, de saúde. E que a vida profissional esteja a correr o melhor possível, tanto quanto te deixam. Temos saudades das tuas "lições de artilharia para os infantes",  da tua boa disposição, do teu sentido de humor de caserna, da tua saudável irreverência, enfim,  dos teus comentários, por vezes desconcertantes mas sempre certeiros, ou não fosses tu um artilheiro e, para mais, o último artilheiro de Gadamael!...Sei que alguns não te perdoam esse pequeno detalhe do teu currículo, mas a verdade é que alguém tinha que fechar a porta... E em Gadamael coube-te a ti, que nem sequer foste voluntário para a tropa...

Aproveitamos para reproduzir aqui uma das tuas histórias que na altura nos deliciou e que os mais novos, os "piras", nunca leram... Desconfiamos que esta "cena"  passou-se mesmo contigo, que tens um grande sentido de justiça,  e és um camarada de cinco estrelas, um beirão dos quatro costados, mas a verdade é que tu nunca te descoseste. Fica para o teu livro de memórias.

Dá notícias, camarada, se puderes!.. E promete que estás bem...


2. Lições de artilharia para os infantes: quando o oficial de dia fez uma levantamento de rancho (**)

por C. Martins



 (...) A propósito de rancho... Lembro-me de um caso passado num regimento de uma cidade alentejana. O oficial de dia fez um levantamento de rancho !!!

Este tinha por hábito não se limitar a provar a comidinha da bandeja, mas verificar as pesagens dos géneros segundo as NEP. Era vitela à jardineira: tanto de ervilhas, cenouras, batatas e a carne da dita.

Iniciado o repasto, que a bem da verdade o pessoal comia com sofreguidão, o dito oficial, olhando de soslaio para pratos e travessas, repara que havia ervilhas, cenouras, grande quantidade de batatas e, surpresa, a carne praticamente tinha-se evaporado!.
– NINGUÉM COME MAIS, CAR...!!! – berra o gajo com um galãozito transversal no ombro, e enceta uma corrida frenética até à cozinha onde se depara com grandes nacos de carne sobre a bancada.

Transtornado, enfia uma cabeçada no 1º sargento vago-mestre ou lá o que era:
–  Você está preso, seu f... da p...!. E estão todos presos, seus cabr...f...das p..., bandidos, gatunos! ...

Mais calmo, tenta contactar o comandante que não estava, o 2.º também não... Bem, a alternativa era o contacto com o QG da região militar. Atende o oficial de dia da respectiva:
–  ... Fez o quê ?!! Você já desgraçou a sua vida!

Nesse dia almoçou-se só às cinco da tarde.

O sorja f... da p... tinha por hábito gamar a carne e outros géneros que vendia a talhos e estabelecimentos civis, com a conivência dum cabo RD... Os outros elementos da cozinha eram ameaçados para se calarem. A justiça militar atuou com penas exemplares... O aspiranteco teve um elogio verbal e foi mobilizado para o CTIG.

Qualquer coincidência com a realidade não foi mera ficção. (**)

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Notas do editor:

(*) Postes da série > 

23 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11140: O que é feito de ti, camarada ? (1): Jorge Canhão, Oeiras (ex-fur mil at inf da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74)


26 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11870: O que é feitio de ti, camarada ? (2): Afonso M. F. Sousa, residente em Maceda, Ovar, ex-fur mil, trms, CART 2412 (Bigene, Binta, Guidaje, Barro, 1968/70)

2 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12535: O que é feito de ti, camarada ? (3): "Agora estou na trajetória do vôo livre da borboleta, seguindo outros horizontes da memória, despreocupadamente ! Felizmente com saúde"... (Afonso M.F. Sousa, a residir em Ovar, ex-fur mil trms, CART 2412, Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70)

Guiné 63/74 - P15629: Parabéns a você (1019): Luís Rainha, ex-Alf Mil CMD, CMDT Grupo Centuriões (Guiné, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15612: Parabéns a você (1018): Enfermeira Maria Ivone Reis, ex-Cap. Enf.ª Paraquedista (1961/74)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15628: (Ex)citações (304): O que fez de mim um homem ? Sei lá!... Quando entrei para a tropa, aos 22 anos, já era um homem: trabalhava há 10 anos... Quem me dera agora ter 12 anos! (Valdemar Queiroz)

Valdemar Queiroz

1. Comentário do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; , foto à esquerda, em Contuboel, 1969] ao poste P15622 (*)


O que fez de mim um homem ?....

Sei lá!

Com doze anos já era paquete de escritório numa grande empresa, nos Restauradores, em Lisboa. 

(Quem me dera ter agora doze anos!).

Julgo ter sido o mais jovem empregado descontar prá Caixa: em 1 de abril de 1957, tinha feito doze anos em 30 de março. 

(Quem me dera ter agora doze anos!|).

Na grande empresa, onde trabalhei, o meu chefe de secção era familiar de militares e de comportamentos 'não se pode fazer isso'. O paquete, 'EU', era o primeiro a entrar e o último a sair. 

(Quem me dera ter agora doze anos!).

Depois, com o tempo a passar, fui prá Veiga Beirão, no Carmo, à noite, fazer o Curso Comercial. 

(Quem me dera ter agora aqueles extraordinários anos!).

Quando entrei prá tropa já era um homem. Em Santarém, em 16 de julho de 1967, quando fui prá tropa (não sei porquê, chamaram-me com 22 anos), já trabalhava há 10 anos.

Quem me dera estar, agora, em 1957, tinha doze anos de idade!

Quem me dera, agora, começar!...

Quem me dera!|...

Valdemar Queiroz

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Guiné 63/74 - P15627: Agenda cultural (457): Apresentação dos livros "Guerra na Bolanha, de Estudante a Militar e Diplomata", da autoria de Francisco Henriques da Silva e "Cartas do Mato", da autoria de Daniel Gouveia, levado a efeito no passado dia 14 de Janeiro de 2016, na Messe do Militar do Porto (Carlos Vinhal)

Na passada quinta-feira, dia 14 de Janeiro, na Messe Militar do Porto, integrado no 14.º Ciclo das Tertúlias Fim do Império, foram apresentados dois livros, um sobre a guerra na Guiné e o outro em Angola. 

O primeiro, "Guerra na Bolanha - De Estudante a Militar e Diplomata", da autoria no nosso camarada e tertuliano Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70 e ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999) e prefácio de Mario Beja Santos; e o segundo, "Cartas do Mato", da autoria do editor e ex-Alf Mil, combatente em Angola, Daniel Gouveia. 

No acto estiveram presentes muitos ex-combatentes, entre os quais pontificavam: António Pimentel, Francisco Allen, Francisco Baptista e Carlos Vinhal.

Mal chegado, o editor logo deparou com o Pimentel e o Xico Allen. O Pimentel, camarada de Batalhão do Francisco Henriques da Silva, fez as apresentações da ordem. Pouco depois juntou-se o nosso camarada Francisco Baptista. Logo ali se travou conversa amistosa, tanto mais que nada mais nada menos que quatro dos presentes tinham em comum o terem passado por Mansabá. Por sua vez o Xico Allen conhece a Guiné-Bissau como poucos.

Chegado momento de se passar para a sala das sessões, cada um ocupou os seus lugares.

Na ausência do Coronel Cav Barão da Cunha, que desta vez não se deslocou ao Porto, a coordenação ficou a cargo do Coronel CMD José Belchior, Presidente do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes.

A Mesa era composta pelos autores dos livros: Editor e Combatente em Angola, Daniel Gouveia e Embaixador Francisco Henriques da Silva, Combatente da Guiné; também pelo Ten-General Luís Medeiros; pelo Ten-General  Sousa Pinto e pelo Coronel CMD José Belchior, Presidente da Direcção do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes.

Abriu a sessão o Coronel José Belchior que deu as boas-vindas aos presentes, apresentando de imediato o Embaixador Francisco Henriques da Silva.

Vista parcial da Sala

O Embaixador Francisco Henriques da Silva falando do seu livro "Guerra na Bolanha"

Francisco Henrique da Silva falou sobre o seu livro que tem a particularidade de abordar as memórias de antes da sua incorporação no serviço militar obrigatório, com todas as dúvidas que se punham aos jovens de então quanto ao futuro, passando pela experiência em África como combatente, regresso à Tugalândia (palavras suas) e a sempre complicada reintegração. Encetou a carreira diplomática, tendo exercido o cargo de Embaixador de Portugal na Guiné-Bissau entre 1997-1999. Quis o destino que a Guiné se lhe atravessasse outra vez na sua vida. Saiu-se bem em ambas as situações, cada uma delas vivida em tempos de guerra diferentes mas igualmente violentos e incertos.

Finda a explanação, seguiu-se uma animada tertúlia entre o autor e os combatentes presentes, principalmente os da Guiné, aos quais o livro dizia mais. O tema mais abordado foi a manipulação de minas, o mais temível e traiçoeiro meio de guerra.

Um camarada da Guiné dialogando com Francisco Henriques da Silva. Na foto distinguem-se ainda os camaradas António Pimentel e Xico Allen.


Finalmente foi a vez de o Editor/Autor e ex-Alf Mil em Angola, Daniel Gouveia, apresentar o seu já conhecido livro "Cartas do Mato", nas suas palavras, um livro também diferente porque foge ao que é normal, escrever sobre os acontecimentos de guerra. Aqui fala-se de memórias menos bélicas, algumas bem engraçadas, que só África nos pode proporcionar.
Seguiram-se mais uns momentos de troca de palavras e experiências.
Uma curiosidade, Daniel Gouveia é um velho companheiro e amigo de Francisco Henriques da Silva. Conhecem-se dos tempos em que militavam nos conjuntos de música pop dos anos 60. Foram ainda camaradas na Recruta e na Especialidade. 

A tertúlia terminou com uma sessão de autógrafos, tão rápida que o editor/repórter, interpelado pelo Coronel José Belchior, deixou escapar a oportunidade de tirar mais uma ou duas "chapas".
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15626: Agenda cultural (456): Integrado no 14.º Ciclo das Tertúlias Fim do Império, comemoração do 7.º aniversário do Programa Fim do Império, com assinatura de protocolo entre as entidades zeladoras do Programa (CMO, LC e CPHM), apresentação do caderno Programa Fim do Império, "Sete anos!" e presença de patrocinadores, editores e autores, dia 19 de Janeiro de 2016, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney/Colecção Neves e Sousa, Oeiras (Manuel Barão da Cunha)

Guiné 63/74 - P15626: Agenda cultural (456): Integrado no 14.º Ciclo das Tertúlias Fim do Império, comemoração do 7.º aniversário do Programa Fim do Império, com assinatura de protocolo entre as entidades zeladoras do Programa (CMO, LC e CPHM), apresentação do caderno Programa Fim do Império, "Sete anos!" e presença de patrocinadores, editores e autores, dia 19 de Janeiro de 2016, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney/Colecção Neves e Sousa, Oeiras (Manuel Barão da Cunha)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704/BCAV 705, Guiné, 1964/66, com data de 14 de Janeiro de 2016:

14.º CICLO DAS TERTÚLIAS FIM DO IMPÉRIO

Livraria/Galeria Municipal Verney
 

Dia 19 de Janeiro de 2016

Integrado no 14.º Ciclo das Tertúlias Fim do Império, comemoração do 7.º aniversário do Programa Fim do Império, com assinatura de protocolo entre as entidades zeladoras do Programa (CMO, LC e CPHM), apresentação do caderno Programa Fim do Império, "Sete anos!" e presença de patrocinadores, editores e autores, dia 19 de Janeiro de 2016, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney/Colecção Neves e Sousa, Oeiras. 

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15608: Agenda cultural (455): Sessão de lançamento do livro do Juvenal Amado, "A tropa vai fazer de ti um homem": Lisboa, Chiado Clube Literário & Bar, Av da Liberdade, sábado, 23 de janeiro, 16h30, com a presença em força da malta tabanqueira

Guiné 63/74 - P15625: Atlanticando-me (Tony Borié) (2): Nunca é tarde (2)

Segundo episódio da nova série "Atlanticando-me" do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66).




Nunca é tarde - 2 

Nesta viajem que fizemos à Califórnia não pudemos ouvir o nosso interlocutor, mas prosseguimos com a história, não sei se estão lembrados, o Nico regressa da segunda safra, lá na Terra Nova, cá vai a continuação.

Depois de mais esta “safra”, regressa de novo, a Dina e os pais esperam-no na entrada da barra, mais beijos, lágrimas e risos de contentamento, em terra continua aprendendo inglês no liceu da cidade de Aveiro, namorando com a Dina e exercendo funções no seu trabalho temporário. Embarca para a terceira “safra”, o mesmo se segue, abraços à Dina, com beijos e promessas de fidelidade até à morte, a bordo, todos o conhecem, qualquer coisa que não funcione bem, é ao Nico que se dirigem, às vezes ignorando o capitão. Vêm de novo a terra, ao porto de St. John’s, no mar da Terra Nova, abastecerem-se, entre outras coisas, de água fresca e isca, o Nico já fala inglês com alguma facilidade, conhece outros mecânicos, pessoal de outros barcos, de outras nacionalidades. Há um capitão de um barco, de nacionalidade americana, que falando com ele, tomando conhecimento da sua especialidade a bordo, vendo nele um homem robusto e novo, oferece-lhe um contrato para trabalhar num barco de pesca nos Estados Unidos, no sul da Califórnia. O Nico, não lhe diz que sim, nem que não, mas ficam com o contacto um do outro. Regressa a bordo, é quase meia noite, mas no lugar do globo onde se encontra, ainda é dia, cá fora, no convés, escreve mais uma carta apaixonada à Dina, com promessas de amor que, quem sabe, talvez nunca virá a cumprir. Põe essa carta no correio, no porto de St. John’s, no mar da Terra Nova.

Quando veio pôr a carta no correio para a Dina, vai de novo ao local onde se encontrava o tal capitão que lhe tinha feito a oferta, falam de novo, vão ao barco desse tal capitão, acertam tudo, quanto iria ganhar, quais as condições, como ia decorrer o processo, assina algumas folhas que eram só futuras promessas. Regressa a bordo, não sabe porquê, está confiante, sente-se um homem, apesar de ser um jovem ainda, pensa só para si: Há um ditado que diz que o comboio não passa duas vezes, portanto vou apanhar este, pode ser que seja o meu.

Regressou de mais uma “safra”, lá estava a Dina e os pais a espera na entrada da barra, mais beijos, abraços e lágrimas, no regresso a casa, o pai diz-lhe:
- Ó Nico, chegou há dias uma carta dos Estados Unidos para ti, está lá em casa para tu veres.

O Nico, fazendo-se despercebido, disse:
- Deve de ser algum amigo que eu conheci no porto de St. John’s, lá no mar da Terra Nova.

Depois disto chegaram mais cinco cartas, o Nico, abriu-as, algumas continham documentos para preencher e assinar, outras eram pedidos de diversos certificados. Deu aviamento a tudo, sempre com desculpas de que eram amigos a escreverem-lhe, como ninguém compreendia inglês, a não ser ele, foi fácil enganar os pais e a Dina. A sua vida continuou a correr normalmente em terra, os beijos à Dina, o liceu, continuando a aprender inglês e o trabalho temporário na cidade de Aveiro.

Embarca para uma quarta safra, tudo normal, a bordo continua a ser uma pessoa popular, mesmo o capitão João o chama muitas vezes para que lhe traduza algumas cartas em inglês ou para ouvir e responder às pessoas que avisam naquela zona do globo como está o tempo. Pouco a pouco vai-se inteirando de todas as tarefas a bordo, ganha experiência, vai resolvendo muitos problemas. Quando vêm meter isca a terra, fala e convive com pessoas de outras nacionalidades, em inglês, quase sem dificuldade, escreve cartas à luz do dia, embora seja meia-noite, com juras de amor eterno à Dina que, mais uma vez, não sabe se vai cumprir.


Regressa, lá está a Dina e os pais, acenando-lhe na entrada da barra, mais beijos, lágrimas e risos de alegria, no regresso a casa, o pai diz-lhe:

Ó Nico, estão lá, mais umas tantas cartas para ti. E o Nico, fazendo-se despercebido, disse:
- Deve de ser de algum amigo que eu conheci, no porto de St. John’s, lá no mar da Terra Nova.

Uma dessas cartas era do consulado dos Estados Unidos, para tratar de uns tantos documentos e apresentar-se para receber um visto e ir trabalhar para uma empresa marítima na Califórnia. Arranjou todos os documentos, o governo de Portugal, nesses tempos, depois de cumprir quatro anos na safra do bacalhau, não lhe pôs qualquer dificuldade.

Vai ao consulado, é entrevistado, recebe um visto para emigrar para os Estados Unidos, regressando a casa, com alguma coragem, diz ao pai e à mãe:
- Vou emigrar para os Estados Unidos.

Contando-lhes toda a história desde o princípio, agora tinha que dizer à Dina. Foi vê-la, olhando-a nos olhos, explicou-lhe:
- Dina, meu amor, não podemos perder esta oportunidade... Explicou-lhe tudo desde o princípio, com a promessa de que iria na frente para ver como as coisas iriam correr, logo viria casar, levando-a para junto de si. Outra promessa, que não sabia se iria cumprir. O Nico, mais uma vez se despede com beijos, abraços e algumas lágrimas e embarca num navio de origem italiana, rumo aos Estados Unidos, desembarcando em Nova Iorque. Recebe nova documentação, toma o comboio, ao fim de uns dias sai na estação de caminhos de ferro “Santa Fé”, na cidade de São Diego, no estado da Califórnia, dirigindo-se à empresa marítima que lhe ofereceu emprego, que imediatamente lhe proporcionou alojamento, sendo uns dias depois, colocado em determinado barco de pesca, começando o seu trabalho.

Sabendo o idioma inglês, conhecendo todo o sistema das máquinas da embarcação melhor do que ninguém, novo e sempre disponível para ajudar, em pouco tempo começou a ganhar a confiança dos colegas, que o convidavam para frequentes festas, que se realizavam nas redondezas. Numa dessas festas conhece uma rapariga que falava algumas palavras em português, pois os avós eram oriundos dos Açores, mas tanto ela como os pais já tinham nascido na Califórnia, chamava-se Diane, já era a segunda vez que se cruzava com ela, pois a primeira foi no parque de estacionamento da empresa marítima, viu-a chegar de carro, ele ia entrando para o barco, pois iriam sair para o mar dentro de minutos, viu-a, despertou-lhe a atenção, pois ela fechou a porta do carro, com o pé, quase com um pontapé.

E pensou para si, na altura: Porra, mulher duma figa. Só na América.

Este foi tema de começarem a conversar, entendiam-se, ela queria falar português, ele não se importava da companhia dela, tinha cabelo preto, um pouco acastanhado, era da altura dele, usava saia curta, um pouco abaixo dos joelhos, quando ela se movimentava, podia mesmo ver-lhe os joelhos, para ele, ela parecia-lhe bonita, falava com alguma desenvoltura, como já se conhecessem há anos. Ao Nico, dava-lhe a impressão que a Diane não tinha preconceitos, tratava-o por tu, tocava-lhe nos braços ao falar com ele, pedia-lhe para falar em português e, quando o Nico falava, ela ouvia-o com atenção, não sabendo se era para aprender português ou porque estava interessada nele, enfim, deixava-o confuso e, ao mesmo tempo, ficava a pensar nela.

Quando ficava a pensar na Diane, pegava na caneta e escrevia cartas apaixonadas à Dina. Ao fim de algum tempo, já não sabia se escrevia à Dina pensando na Diane, ou se pensava na Dina e queria ver a Diane. O certo é que já não sentia tanto a necessidade de escrever à Dina.

Primeiro, começaram por encontrar-se por acaso no bar que havia junto à empresa marítima, onde em geral, todos os trabalhadores do mar se encontravam, depois já marcavam encontro, dizendo um ao outro:
- Amanhã, à mesma hora.

(continua)

Tony Borie, Julho de 2015
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 10 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15602: Atlanticando-me (Tony Borié) (1): Nunca é tarde (1)

Guiné 63/74 - P15624: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2ª versão, 2010, 99 pp.) - II Parte: I - Os putos (pp.7-16)



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [ Fitas Ralhete], o nosso querido camarada Mário Fitas, ex-fur mil inf, op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67, e cofundador e "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora,  alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.

Esta edição é uma segunda versão, reformulada, aumentada e melhorada,  do livro "Putos, gandulos e guerra" (edição de autor, 2000). A sua pré-publicação, no nosso blogue, em formato digital, está devidamente autorizada pelo autor.

Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.


ÍNDICE

I          Putos

II         Putos, Gandulos e o Padre

III        Metamorfose

IV        Cepa do Zé de Varche

V         Vagabundo

VI        Por Terras de Portugal

VII       Guerra 1

VIII      Brincadeira no Mato

IX        Guerra II

X         Miriam

XI        Como se  Constrói uma Capela

XII       Guerra 3

XIII      Mamadu em Férias no Hospital Militar

XIV      Regresso à Guerra

XV       Adeus à Guerra




Elvas > Vila Fernando > s/d> c. 1950 > Calças de Palanco, Marquês e Picolo (p. 10)


Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > I PUTOS (pp. 7 - 16)

por Mário Vicente

A sideral abóbada negra com milhões de estrelas florescentes encantaram-no quando pisou a calçada. Com a forte excitação do momento, nem do medo da noite se recordou, o que seria normal a qualquer criança. Uma alegria interior dava-lhe um alento e uma curiosidade extrema para o seu temperamento calmo e introvertido. Seriam por volta das quatro da manhã! Calças de Palanco nunca se tinha levantado tão cedo.

No Rossio, em frente e por debaixo dos cedros, o rebanho ruminava deitado,  esperando o romper da aurora que, naquele dia, apareceria já com uma hora e pouco de caminho em direcção a terras do lado Norte.

Francisca, encostada na ombreira da porta, os olhos húmidos,  deixando cair uma tímida lágrima, desejou boa sorte e que tudo corresse bem.

António, com um nó na garganta, respondeu um até logo quase inaudível, e com seu filho e o companheiro Jolim dirigiram-se para o rebanho. Acossados por Jolim, o cão, os ovinos foram-se levantando e tomando rumo tocados por António e seu filho, enquanto Francisca,  agora com os olhos rasos de água,  se recolhia ao lar, rodando a chave a avançar na lingueta de segurança da fechadura.

A aurora rompeu a meia légua passada, não era longo o caminho. António embrenhado nos seus pensamentos e o miúdo sonhando com a Feira e como seriam as terras para o lado do Norte. Foram tocando o gado, incapaz de entender porque é que o seu dono os obrigara àquela caminhada a desoras.

Mas era assim!... António ia mudar de vida. Mais certo e seguro sempre seria ter um emprego do Estado do que a errante e incerta dúvida do amanhã da vida que até ali levara. Teria ainda a vantagem de estar junto da mulher, filhas e filho,  que agora saltitava radiante campo fora, rodeando os olivais que davam acesso ao recinto da Feira de Gado nas terras do lado do Norte.

Já no recinto da Feira, enquanto brincava com um pauzinho, fazendo Jolim saltar na esperança de o abocanhar, Calças de Palanco foi ouvindo atento a conversa de seu pai, com aquele sujeito de casaco de bombazina e boné aos quadrados, até que o dito homem pronun­ciou:
– Pronto! Está certo, são minhas!

Apercebeu-se então o puto que voltaria a sua casa ape­nas com o pai e o companheiro Jolim porque as “lanudas” e os cordeiros já eram propriedade de outrem. António ficou duplamente satisfeito. Tinha feito bom negócio, o seu gado ficava em boas mãos e continuaria a ser bem tratado. Últimos acertos quanto a contas e forma de pagamento.

O homem de boné aos quadrados chamou o seu pastor, que começou a encaminhar o gado para o seu novo destino, o qual não seria muito longe, conforme a conversa trocada.

António chamou o filho e com o fiel Jolim seguindo-os, dirigiram-se para a rua onde de um lado e outro se encontravam barracas de quinquilharia, e de comes e bebes. Parou na barraca das farturas e pediu dois pedaços com açúcar e canela, e dois copos de café de cevada. Encostados ao balcão, pai e filho saborearam o pitéu, tendo António de esperar pelo miúdo porque a cevada se encontrava muito quente.

Enquanto tomava o café, quase a queimar a língua, Calças de Palanco ia deitando o olho para as pessoas que iam e vinham, naquele característico movimento de terra em festa, contemplando o céu, onde, de quando em vez estalavam os foguetes anunciando o dia de festa em honra de Nossa Senhora do Paço e da respectiva Feira de Gado, este ano bastante concorrida.

Após ter terminado o improvisado pequeno-almoço, o pai tirou um lenço do bolso e, carinhosamente, limpou a boca suja de melaço gordo açucarado e os bigodes de café do seu filho. Levou-o à frente de uma barraca de brinquedos, e perguntou­-lhe:
– Então, que brinquedo queres?

Calças de Palanco ficou maravilhado e corou pela introvertida admiração e indecisão de tantos brinquedos lindos. Uns de madeira, outros de lata!... Ficou um pouco confuso, mas um ficou gravado no seu olhar encantado, enquanto atento percorria aquele mundo maravilhoso. Era aquele carrinho de lata pintada puxado por um cavalo, com cocheiro e tudo. Seria que o pai lho compraria? Mais uma segunda, e uma terceira volta de olhar mirando tudo ao pormenor, até que o pai o interrompeu no seu maravilhoso vaguear:
–  Como é, filho, não dizes nada? Querias tudo, não era? Pois!... Mas tudo não pode ser! Escolhe lá o que mais gostas!

O indicador do miúdo disparou ágil como seta, e pronunciou:
–  Aquele!

Era o carrinho do cavalo. António pagou e a mulher gorda,  de lenço castanho com flores amarelas amarrado à cabeça, agradeceu o pagamento e entre­gou o brinquedo ao contemplado.

Caminho de retorno, saltitante de alegria, o miúdo ia brincando com Jolim. Ficaram, pela primeira vez, visitadas as ter­ras para o lado do Norte, por onde mais tarde várias vezes passaria com sua mãe, quando iam visitar os primos de Fonte Clara.

Setembro passado, o Outono veio com muita água. Era Natal e ninguém podia entrar nos campos, que se encontravam completamente alaga­dos. Quando a mãe Natureza se distrai, são sempre os mesmos a sofrerem as consequências. Os lavradores mandaram os seus ga­nhões de férias sem vencimento. Claro! Que aguardassem pelo fim da invernia…

Zé do Barrocal, o filho mais velho do ti Manel, viu acabar-se-lhe o último naco de toucinho, pois já eram quatro bocas a comer e de trabalho não havia esperanças. Uma noite, resolveu fazer uma asneira e perder a honra com que era considerado em todas as abegoarias. Escondeu um saco de serapilheira debaixo do coçado casaco, e dirigiu-se sozinho ao mato, pois a vergonha não lhe permitia arranjar companhia, como outros que o mesmo faziam. Mãos geladas, por entre a erva molhada, foi apanhando bolota ou lande, azinho ou sobro, não importava, pois o impor­tante era juntar o suficiente que as costas aguentassem para carrego no regresso.

Madrugada, completamente molhado, escondeu o saco por entre as medas de lenha, dirigindo-se para casa. Tirou as botas de chumbo, com três dedos de barro verme­lho pegado, deixou a roupa enlameada no canto da chaminé e, vestindo umas ceroulas de baetilha enxutas, assim se deitou junto da mulher, que consigo tinha o filho mais pequenino para,  com seu corpo, lhe transmitir o calor e sossegado dormir. Sen­tindo o corpo gelado do marido, ajeitou as costas, até ficarem coladas com as dele, transmitindo-lhe assim um pouco de con­forto e, baixinho, segredou-lhe:
–  Tu dás cabo de ti, homem! E o pior é se te apanham! Já viste? Ai que vida esta!

Ajeitando-se melhor, colou o fraco corpo aos dois com­panheiros de cama tentando numa doação total a sua última rés­tia de calor. Mas, não havia sossego naquela cama. O filho do ti Manel dava voltas e revoltas! A cabeça, num fervilhar insano, não lhe deixava pegar no sono. Quem lhe compraria aquilo? Só quem tivesse um porco para engordar. A mulher,  não dormindo e adivinhando o atormentado pensamento do inquieto marido, como só as mulheres sabem adivinhar, voltou a segredar-lhe:
–  Oh, homem, agora descansa. Amanhã vais falar com a prima Chica, e vais ver que ela é capaz de querer a bolota!

Aí o homem esperançado acalmou e o sono tomou posse daquela mente escaldante e corpo amassado.

De manhã, na sua casa, Calças de Palanco, junto à lareira crepitante, comia uma torrada barrada de banha e polvilhada de açúcar, tomava uma caneca de café com leite, quando alguém, abrindo a porta, entrou dizendo:
–  Prima Chica, posso entrar?

Francisca, dando uma olhadela pela porta do meio, verificou quem era e respondeu:
– És tu, Zé?! Entra, assenta-te aqui ao lume, que está muito frio.
– Prima Chica, eu não me assento, queria era... nem sei como hei-de dizer! ...

Francisca olhou para o Zé do Barrocal e achou-o triste e um pouco nervoso.
– Diz lá Zé, há algum problema? Está algum miúdo mal?
– Não!... Não é isso! É que eu não tenho tido trabalho e esta noite tive de ir arranjar um saco de bolota!

Os olhos do homem estavam húmidos e uma vergonhosa lágrima rolou naquele magro rosto. O puto, no seu cantinho, gravava na mente aqueles dolorosos momentos e raciocinava:
– O primo Zé a roubar bolota para dar de comer aos filhos?! Ele tão considerado e respeitado por todos quantos consigo trabalham!...

Havia qualquer coisa que não entendia. O primo Zé está a chorar de vergonha, não por os filhos não terem de comer, mas por ter apanhado a bolota no mato, não sendo dele!

Instantes confusos. Mais tarde, retendo esta cena na mente e já com entendimento completo, compreendeu não só o problema do primo Zé mas todo o drama do povo da Planície. É que tudo isto acontecia em plena Europa, após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo artigo 25° diz: "Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistên­cia médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invali­dez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua von­tade."

A proclamação foi assinada a 10 de Dezembro de 1948.

As coincidências do destino! Calças de Palanco comia a torrada a 17 de Dezembro do ano seguinte. Francisca acalmou o filho do ti Manel e disse:
– Não te preocupes, diz lá quanto é? Levas já, pois de certeza que te faz falta. Logo, quando vires que podes trazer o saco, trá-lo. Se tiveres de fazer o mesmo, tem cuidado, não sejas apanhado, e escusas de andar à procura de quem fique com a bolota, pois eu só mato o porco lá “p´rós” fins de Janeiro.
– Obrigado, prima Chica! Nem sabe o bem que me está a fazer.

Tinha que saber! Não era favor nenhum, era obrigação, era um dever de solidariedade. Seria um acto de revolta contra todos os que exploravam e amarfanhavam os mais honestos e melhores filhos da Planície. Infelizmente nem sempre assim foi.

Calças de Palanco analisou isto tudo mais tarde e tam­bém os olhos lhe ficaram húmidos. Talvez por vergonha, quem sabe?

Ambos se foram cedo desta vida e com grande sofrimento, apesar da grande ajuda da improvisada enfermeira, a samaritana Xan­dra que muita dor aliviou. Tanto o Zé, filho do ti Manel,  como sua mulher partiram, mas com H e M bem grandes.

O fim de Janeiro chegou, e a matança do porco teve de ser adiada para o primeiro domingo de Fevereiro, por causa do pessoal da cidade, pois era só nessa data que o trem do quartel estava disponível. Mas uma semana passava rápido, menos para Calças de Palanco que estava desejoso de rever os primos da cidade.

Chegou a véspera da matança. António avisou Francisca para nesse dia não dar comida ao porco. À noite, Calças de Palanco não dormiu e manhã cedo, dia da matança, enquanto seu pai ia afiando facas e preparando a banca e todos os apetrechos, mais era satisfeita a sua curiosidade. Saltitava no quintal para ver os preparativos e assistir à chegada dos primos, enquanto seu avô, velhote,  ia atazanando a cabeça do paciente António. Até que o trem puxado por mulas e não cavalos, coisas esquisitas as dos militares, apontou ao portão da Colónia e,  contornando o Rossio, veio parar, em frente da casa de fachada azul e porta castanha. Grande alegria entre miúdos e graúdos!

Comeram-se as fatias paridas ao pequeno-almoço e matou-se o porco. Não era tão fácil assim,  pois havia tarefas complicadas, era necessária força e saber. Teria de se colocar o animal deitado sobre a banca – uma mesa forte –   e posteriormente amarrar-lhe a boca com arame ou corda para não utilizar os fortes dentes e ferrar em alguém.  Depois seria a mão certeira e experiente para aplicar o golpe seguro de forma que o animal tivesse boa sangria para feitura dos enchidos, e não sofresse muito.

Após o porco morto, era chamuscada a pele para empolar e retirar. Interessante para a miudagem era a abertura do porco, pois era satisfeita a curiosidade de verificar os órgãos internos do animal, confirmando o ditado popular “se queres conhecer o teu corpo,  mata um porco”.

A lavagem das tripas, que seriam utilizadas nos enchidos, foi feita no tanque de três bicos no eucaliptal, um pouco abaixo da nora. Toda a miudagem foi assistir, apesar do frio intenso. Fez-se uma fogueira e, enquanto Francisca e Rosária lavavam, a malandragem brincava e corria a mata de eucaliptos, desde a nora até à ribeira.

Almoçadas as sopas de cachola, a tarde correu tão rápida que não se deu por ela. Eram horas de voltar para a cidade! António e o compadre Zé Joaquim, já com um grãozinho na asa, iam-se num despedimento que não tinha fim, enquanto o pessoal.  todo acomodado no carroça, sonhava já com a nova vinda à aldeia. Os compadres fizeram a última despedida, e o trem arrancou com o sol já posto e as velas das lanternas acesas.

Veloz é o tempo quando se brinca e não há obrigações para cumprir! A miudagem, sem dar pela passagem dos anos, viu-se envolvida na vida escolar. Foram assim reduzidas as horas de brincadeira no casão do Baixa com Nanicha, e à noite as tenta­tivas de apanhar mamíferos voadores com Faty e Kinkas levan­tando as canas e gritando:
 – “Morcego, morcego vem à cana que tem sebo!”

Sacola às costas, caderno e lousa dentro, ei-los, no novo ciclo de existência, percorrendo a fase ainda muito incompleta de putos, para tentar alcançar a graduação de gandulos.

Com a cabeça quase rapada, pelo mestre Algêncio que era exímio, um verdadeiro perito na arte de tosquiar os pequenos crânios, e primava quando se lhe pedia um corte como devia, assim circulavam. Metia o pente mais grosso na máquina, e rapava a malta que era uma beleza. Vantagens? Livrava-se a malta dos "selos" ou "caldos" da gandulagem, "cuspinhadela" na mão e uma valente cachaçada.

Assim, geralmente, se apresentava Carrulho. Naquele dia, apressou-se ele a levantar o arame farpado mesmo juntinho à acácia enraizada no valado que dava acesso à eira da Colónia Correccional.

Imediatamente a canalha passou de gatas, não havia tempo a perder, para quê dar a volta pelo portão? Depois do Pato Marreco passar o último, como era cos­tume, o batalhão formou. A malta da Aldeia tinha ganho aos do Rossio de Cima. Braços sobre os ombros uns dos outros, todos engancha­dos, fazendo dos braços cangalhas, começou a lenga lenga do festim:

"Na quero trabalhar!
Porquê na quero!
A malta d´Aldeia ganhô ò Rossio!
Por três a zero!"


Eram comandados por Alacrau, incontestado capitão e chefe de muitas aleluias, a “tradição Pascal”. Não era brincadeira! Doze voltas à Igreja correndo, finalizando com a entrada na mesma, subida até ao altar, ostentando e badalando uma manga ou outra espécie de chocalho ao pescoço, geralmente cedidos pelo Zé da Defesa para o evento.

Desceram direito ao Joaquim dos Vinagres que, como di­ria meu avô, era seu vizinho. Cada voz com seu timbre, todos queriam berrar mais alto que o companheiro, numa desafinação total, tornando o "chinfrim" maior. Por cima da algazarra, sobressaia trombeteira a voz de Alacrau, pregoeiro-mor da aldeia, também incontestado, fosse qual fosse o produto.

Torreca seguia ladeado por Carrulho e Calças de Palan­co, Alacrau por Malhado e Binito. Na segunda linha seguia uma confusão de Ramada Curta, Narciso, Pegado, Laroso, Cabeçudo, Nanicha, Papo-seco, e outros de idades diferentes. Por último Pato Marreco, como habitualmente.

Não se compreendia bem! Havia coisas que não eram entendíveis. Calças de Palanco e Torreca, sendo do Rossio (de baixo),  alinhavam pelos da aldeia. O Narciso do Rossio (de cima) gritava também pelos da aldeia.

Confuso não era!... Calças de Palanco, mais tarde no sul Guiné, já vagabundo mas não ainda maltês,  compreenderia então perfeitamente, enterrado na lama, bolanhas e tarrafo dos rios Cumbijã, Manterunga e Quaiquebam. Enrolado e cheirando a morte no emaranhado das matas de Camaiupa, Afiá, Cabolol, Cadique e Cantanhez aprenderia como os homens se tramam uns aos outros, transformando o "amai-vos uns aos outros" em "mamai-vos e matai-vos”.

Era mesmo assim! Ricos, pobres ou remediados, os homens delimitavam as suas próprias fronteiras, as relações e a vida. Eram as castas exactamente: fulas, futa-fulas, fulas-pretos, fula­-forros, mandingas, balantas, papéis, manjacos, bijagós, felupes, beafadas, nalus e mais a puta que os pariu com estas divisões todas.

Todos um dia morrerão e voltarão a ser terra. Regressemos então, aos gloriosos que aplicaram três "secos" aos do Rossio.

A meio da rua do Monte  – assim se chamava nos tempos que a Duquesa de Bragança, dona e senhora daquelas terras, por ali passava no seu coche a caminho do Monte de Vila Fernando quando a aldeia ainda era conhecida por Conceição –, Kinkas,  por entre o postigo semiaberto, viu o pessoal passar e não resistiu a um olhar mais prolongado a Calças de Palanco. Tão embevecida estava, que nem reparou que também ele ia descalço e não só, a cabeça do dedo grande do pé direito deitada abaixo. Que impor­tava? Os do Rossio tinham levado três "secos"!...

“Na quero trabalhar!
Porquê na quero!”


A ladainha continuou até todos se abraçarem nos degraus do adro em frente ao Cruzeiro de granito, comemorativo e recordante de Guerras,  é claro, da Independência e Restauração, ali colocado em 1940.

Sentaram-se e descansaram um pouco as cordas vocais. Fez-se por momentos, silêncio apenas perturbado pelo ralhar da ti Marilopes contra aquela canalha toda.

Joaquim acabou de dar a ração às mulas. Saindo pelo portal grande do cabanão, ao passar pelo chafariz, deu uma lava­dela nas mãos e tirando o lenço das calças de bombazina casta­nha, as foi limpando, dirigindo-se para a vereda que dava aces­so ao caminho mais curto para casa. Bamboleante na sua manei­ra pesada de andar, olhou em frente e parou. Firmou bem a vista e confirmou:
– Uns sapatos! Malandragem!

Andaram aqui toda a tarde e nem se lembraram dos sapatos. Pegou neles, chegou a casa e gritou à entrada:
– Marizabel!
– Que queres, homem?

Respondeu-lhe a esposa.
–Toma lá!

Entregando os sapatos á mulher, sentou-se à chaminé, um sorriso malandro surgiu-lhe no rosto. Deve andar algum à rasca a saber deles, pensou consigo. Torreca tinha a quem sair!

Maria Isabel mirou os sapatos e reconheceu-os imediatamente. Desceu a rua cem metros e, ao chegar à casa de fachada azul e porta castanha, abriu o postigo e chamou:
– Chica! Ó prima Chica!
– Já vou! – respondeu Francisca do fundo do quintal, pedindo desculpa a Ti Catrina, pela interrupção da conversa.

Quando se aproximou da porta de entrada, Maria Isabel estendeu o braço pelo postigo mostrando os sapatos, e disse:
– Olha, toma lá que devem ser do teu, foi o meu Jaquim que os encontrou na "êra."
– Pois são, prima Marizabel! Deixa estar que ele vai levar uma sova!... Mas deixa-o andar , ele há-de aparecer descalço!

Abandonando os degraus do adro, Calças de Palanco correu até à fonte e molhou o dedo que agora lhe ardia com in­tensidade. Imediatamente lembrou-se dos sapatos e, numa cor­rida louca, voltou à eira. Os ditos cujos tinham ficado a servir de poste da baliza, mas… de sapatos nada, tinham-se evaporado!...

Já estava a ficar desorientado, quando de repente olhou para as eiras de baixo, e viu o acampamento de ciganos.
– Foram eles!

Tinha de ser! Tudo o que aparecia e acontecia de mau,  era obra de ciganos, não era?!. .. A cabeça de Calças de Palanco entrou em confusão. Porquê? Mas há coisas que aparecem feitas e não são eles?,,,
Tão estranho!.... E voltou a aflição dos sapatos:
– Como posso entrar?

Os ciganos? Não era má ideia. Mas... e se não tivessem sido eles!? Com a cabeça ardendo em louca confusão voltou ao Rossio. Sorrateiro, foi até ao pinheiro mais próximo de casa, esperou uns momentos para se certificar que a porta estava aberta e que ninguém se encontraria na sala de fora. Mal calculado! Assim que pôs os pés descalços em casa, aparecendo milagrosamente, dona Francisca gritou:
– Descalço? Então os sapatos!?

A cabeça de Calças de Palanco ficou como se lhe tivesse caído em cima um calhau do tamanho do sino da igreja. Os ombros mirraram-se-lhe num encolher ignorante, mais parecendo frango acabado de depenar. Um "glu glu" saiu-lhe da garganta como engasgamento de migalha no goto.
– Ai meu Deus! Como tens o pé filho!  – pronunciou Francisca, ao verificar o dedo do pé de seu filho. 

Oh! divina topada na pedra em vez da bola! Oh bom Deus que fizeste o milagre de plantares pedras na eira!. .. Estava assim salvo! Os sapatos passaram à história. A grande priorida­de era tratar daquele dedo. Que alívio, que sorte!

Calças de Palanco cantou de novo interiormente: 
– Não quero trabalhar, porque eu não quero!

Dona Francisca pôs no chão os sapatos que mantinha escondidos no avental, e foi procurar mercurocromo para tratar do pé de seu filho, esquecendo a sova que tinha para lhe dar. O pensamento de Calças de Palanco voou para as eiras de baixo e saiu-lhe:
– E os ciganos?
– Quais ciganos, filho?

Calou-se, viu que tinha sido injusto. Era verdade. Nem tudo era obra dos ciganos. Mais tarde compreenderia a perseguição que os seres humanos se movem uns aos outros como bárbaros. Compreenderia melhor quando seu pai lhe contou as atrocidades da guerra de Espanha por ele presenciadas. Ainda hoje, a visão do momento e palavras se mantêm intactas nos olhos, cérebro e ouvidos de Calças de Palanco.

Subiam os dois a estrada que dava acesso ao Monte do Lago, lá bem em cima no alto onde funcionava a queijaria. Cá em baixo, encoberto pelos silvados, choupos e salgueiros, corria o fio de água da ribeira das Espadas. Os contornos do Forte da Graça bem definidos, com um céu azul aveludado como pano de fundo, forneciam uma tela de beleza extraordinária. Já quase no cimo junto ao Monte, António parou! Passou docemente a mão pela cabeça do miúdo e disse:
– Olha filho, a besta humana é capaz de tudo!
– Vi-os! Mãos amarradas com arames em torniquete!
– Desses dos fardos, pai?
– Sim,  filho, desses com que vocês fazem carrinhos para brincar.
– Homens e mulheres,  até crianças como tu, mãos amarradas atrás das costas, direitos à praça de touros de Badajoz. (**)

António dizia isto e os olhos húmidos transmitiam a realidade do passado, agora bem presente. A metralha martela­va-lhe a cabeça. A Ribeira das Espadas e os seus silvados, onde escondidos, lhe distribuía as “perrumas” (pão de farelo cozido para cães), pequena dádiva por vezes para tanta gente. Uma atrevida e sentida lágrima rolou por aquele rosto seco, tisnado pelo sol.

O pensamento de António regrediu no sofrimento e na dor.  E Soledade!?... Seria viva?... E se estivesse grávida, como desconfiava!? Fizeram amor por gosto, em emaranhados de angústia.

Mais tarde, já homem, Calças de Palanco sonhou uma noite que tinha um irmão, chamado António, do outro lado da fronteira.

Voltando aos sapatos! Foram os ciganos perdoados, mas não só, a partir dessa data a maneira de pensar do puto mudou radicalmente. Prometeu a si próprio que havia de falar com ciganos, tendeiros e malteses.

Malteses!...  Gostava de ser maltês. Deveria ser bom, sem ter nin­guém a mandar e andar por montes e vales!... Ser dono dos dias e das noites, de estradas e caminhos. Que bom!...

Não seria maltês! Mas na Guiné, o seu grupo de combate seriam "Os Vagabundos" e ele próprio "O vagabundo", como que fruto de se ter armado em herói e em maluco quando andou a aprender a matar nos “Rangers”, em Lamego. Saberemos mais tarde coisas tristes desta louca história.

O tempo voava, corcel alado, eternidade para os putos, cegos na ânsia de se tomarem gandulos. Seria tarde já, quando compreenderiam que aqueles eram os tempos mais puros e belos da sua existência.

Era vê-los nos invernos: pés descalços, mãos e, por vezes, até as orelhas sangrando cheias de frieiras, por causa daquele vento leste, frio, trespassante que varre a Planície. Sem desistirem, na terra barrenta em água gelada. Aí brincavam desco­brindo as suas nascentes, dando asas à sua extraordinária engenharia, construindo barragens, albufeiras e rios.

Aos inver­nos seguiam-se os "pós de Maio" que os livrava das frieiras e lhes dava azo a iniciarem-se como predadores armando laços nos ninhos às "pardalas" e tentando meter em gaiola (prisão) quem nasceu com asas livre para sulcar os céus.

Seguindo o ciclo da mãe natureza, viria o Verão com a sua canícula. A Planície, transformada em braseiro, obrigava à procura de uma sombra amiga. Divergiam então os putos da engenharia civil para a mecânica agrícola e outras da sua universidade imagina­tiva. Tudo servia para construção das suas fabulosas máquinas. À sombra dos pinheiros do Rossio, o arame, matéria-prima mais utilizada e roubada aos fardos de palha ou de enfardadeiras exis­tentes nas proximidades, era trabalhado por hábeis mãos, de onde saíam os mais maravilhosos brinquedos. Mulas, bois, arados e charruas, tractores e respectivos atrelados, fazia-se tudo. A criação inventiva levava a tudo aproveitar: latas de conserva para atrelados e comboios; as latas de graxa dos sapa­tos davam para rodas, telefones e outros engenhos; a cortiça para carroças, rodas e barcos. O Rossio transformava-se num Instituto Superior de Sabedoria. Brincava-se ruidosamente até se ter a certeza que toda gente dormia a sesta.

Esse seria o momento de lançar o golpe dos putos, uma escapadela até à Ribeira Velha para dar uns mergulhos no pego Salgueiro. Isto se o Sombra Negra não andasse por perto, pois, caso contrário, lá teria a malta de enrolar a trouxa debaixo do braço e todos nus, fugirem como setas pelo eucaliptal direito à nora ou ribeira acima até à ponte, conforme ele aparecesse e não fosse o gajo soltar o “Alsácia Andaluz”.

No Rossio a ciência tomava-se livre. Era a pura liberda­de! Liberdade?!... Quem falou nisso?  Risco azul imediato sobre essa palavra.  A palavra liberdade nem lhes era comunicada, não fossem mais tarde fazerem uso dela e trazer perigo para a Ordem e Progresso do (velho) Estado Novo. Era uma causa gravíssima,  esta da Liberdade, constando-se até que tal palavra não era conhecida pela própria Guarda Republicana, por não constar nos dicioná­rios existentes nos respectivos Postos.

Puto, mas gostando de ouvir o que as pessoas mais velhas diziam, Calças de Palanco ouviu um dia comentar ao tio Catorze aquele caso bastante falado de proibirem as mulheres de cantar quando, madrugada bem escura, seguiam para as ceifas. E foi triste este verdadeiro acontecimento!...

Madrugada fora, as manageiras de porta em porta, iam chamando o pessoal. Batida na porta e a normal pergunta e resposta:
– Quinita? Sim! Vá, rapariga, vamos lá!...

Alzira, Amélia, Catrina, Antónia, Felizbela, Chica Rosa, Elvirica, etc. etc etc.  Assim, sucessivamente, Chica ou Cipriana ou outras, todas as madrugadas funcionavam como despertadores humanos, até se ter o rancho todo avisado, e que começava a juntar-se à esquina do Vinagre ou da Requêta ou outro local, conforme fosse o destino.

Como seria este sistema doloroso aliviado? Como?
– Olha, mulheres, vamos mas é cantar!

Rouxinóis da madrugada. Elvirica, voz certinha e bem timbrada, dava o tom e todo o rancho começava a subir a ladeira cantando as "Saias":

“Mesmo agora aqui cheguei,
Mais cedo não pude vir,
Ainda cheguei a horas
Da tua linda voz ouvir.

Oh, lua não dês luar
Na campa da minha amada,
Não vá ela acordar
Na sua triste morada.

Adeus, ó Vila Fernando,
Colónia Correccional,
Prenderam o meu amor
C'uma fita cardinal."



Nunca ficou definido o sentido deste último verso. Alguns diziam por ser da fita cardinal, que era de cor vermelha; outros opinavam ser por incomodar uma excelência que passava as manhãs na cama. O certo é que um dia, ainda madruga­da, o cabo e uma praça da Guarda Republicana interromperam a alegria daquelas mulheres escravas, cujo crime era única e sim­plesmente cantar para suas tristezas afastar.
– Ficam avisadas que daqui p'rá frente acabou a cantoria, e não há mais avisos, senão for com multa, vai com prisão.

Palavras certas as do tio Catorze a bailarem na cabeça de Calças de Palanco:
– É um crime! Até o canto tiram ao Povo!
– E o padre?

Nestes assuntos não se metia ele! Falaremos ainda do padre e dos problemas existentes, à sua vol­ta, com os putos, gandulos e não só.

Quando Abril abriu, da terra prenhe deste Alentejo brota­ram as mais lindas e belas cantigas. Mulheres e homens alente­janos voltaram a sentir a força da sua terra,  cantando-a. Vitorino, Janita, Paco, "Oh, Elvas, Oh, Elvas". Quantas vezes me cruzei e falei desta bela cidade com meu irmão Picolo!

Havia agitação nos putos. D. Maria Alice aos rapazes e D. Maria Amélia às raparigas, já tinham avisado a data das provas de passagem e dos exames. Estes seriam na Direcção Escolar na sede do Concelho. Haveria explicações extras para as provas de admissão dos que continuassem a estudar. Grandes senhoras estas, que bem souberam fazer a esta terra!... Graças a elas muitos miúdos de então virão a ser homens e mulheres de muito saber. A outras, ou outros que, antes ou depois delas, tive­ram o mesmo comportamento, o meu agradecimento pela sua obra e desculpa por os não nomear, apenas por desconheci­mento.

Como ia dizendo, os putos da agitação passaram às dores de barriga dos exames. Estava prestes a primeira separação,  tendo só o tempo suficiente para, sentados nas pedras à sombra da mimosa na esquina da Requêta, ouvir as histórias do ti Russo.

Pequeno, cabelo aloirado (daí a alcunha).  olho azul, um já coberto de névoa catarata que não definia a cor, ar ladino, grande contador de histórias e “cascarrilhos”, lá ia desfiando o que a malta mais gostava.

Na sua voz calma começava então:
–Naquele dia o Arronches ia a atravessar a ribeira quando lhe apareceu o diabo.
– Pára lá!

Disse o diabo ao Arronches.
– Só passas se me deres um cigarro dos fortes!

O Arronches era homem sem medo! Ia dizendo, olhando e mirando com ar maroto, a reacção dos putos. Mas o diabo sempre era o diabo! Lembrou-se então o Arronches que levava a espingarda e gritou para o diabo:
– Ó diabo, abre lá a boca!

O diabo abriu a boca, o Arronches  puxou da escopeta, dedo no gatilho, e pum! Uma chumbada em cheio na boca do diabo!

Com a sua calma habitual o ti Russo continuava:
– O diabo engoliu o chumbo, deu um arroto, deitou uma fumarada pelas ventas e disse: "Ó Arronches podes passar, este é do forte, é do bom!!"

Assim passava as horas o velhote, contando histórias, mudando o tema conforme a reacção provocada nos putos. Seguia-se a do Ti Cagaporras, no tempo em que os homens se procuravam como os bois para lutar. Depois lá vinha mais uma de bruxas e lobisomens, etc. etc. etc...

Passaram as férias, as últimas da instrução primária. Para alguns, o tempo de criança acabaria aqui, pois rumariam para os campos onde já buliam irmãos e pais. Outros, mais afortunados,  bafejados pela sorte e sacrifício dos pais, continuariam tentando subir mais um degrau na vida.

Calças de Palanco rumou à cidade onde encetou nova etapa, agora na companhia de seus primos irmãos Auta, Picolo e Marquês. Aos fins-de-semana regressava à sua aldeia para a compa­nhia de seus pais e irmãs Adelaide e Amália.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 10 de janeiro de  2016 >  Guiné 63/74 - P15603: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2ª versão, 2010, 99 pp.) - Parte I: capa, dedicatória, introdução e prefácio (, este com a assinatura de António Graça de Abreu)

(**) Vd. Fundação Mário Soares > Guerra Civil de Espanha > Mário Neves e a guerra civil de Espanha > A chacina de Badajoz

(...) Quando Mário Neves [, 1912-1999], com apenas 24 anos, e ainda estudante de Direito, foi incumbido da sua primeira e derradeira prova como repórter do Diário de Lisboa, nunca iria imaginar as repercussões internacionais que iria ter o seu testemunho da tomada violenta de Badajoz por parte das tropas nacionalistas. (...)

(...) A “Matança de Badajoz” foi presenciada em primeira mão por três jornalistas: Reynolds Packard, da United Press, Jacques Berthet, do Temps, acompanhados por Mário Neves. Estes jornalistas, e mais tarde Jay Allen, correspondente do Chicago Tribune, foram os primeiros a denunciar a violência e a “inflexível justiça militar” realizada pelo Exército de África, comandado pelo tenente-coronel Yagüe. (...)