terça-feira, 2 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14691: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (6): Chegada a Nhala

1. Em mensagem do dia 29 de Maio de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

6 - CHEGADA A NHALA

29 de Abril de 1973 (domingo) 

NHALA – É o nome de uma das palmeiras de onde se extrai sura (o célebre vinho de palmeira). 
Mia Couto, in “Pensageiro Frequente”.

À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia. Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.

Nhala, 1973 – Pórtico de entrada na tabanca.

E cantavam acompanhando com palmas:
Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!.

Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné. E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:

"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"

E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc.

Desembarcados com armas e bagagens, havia que distribuir o pessoal pelas acomodações previamente preparadas pelo comando da Companhia que iríamos render, (após um longo período de sobreposição das duas companhias para o nosso treino operacional e para conhecimento da nossa área de acção).

Verificámos que o aquartelamento estava ainda em obras, com alguns edifícios inabitáveis e valas a rasgar o chão. Mas em vias de conclusão. Não foi fácil acomodar duas companhias numa área pensada para apenas uma e em vias de conclusão. Parte de nós fomos distribuídos por pequenas palhotas na tabanca. Apesar disso foi com satisfação que constatámos que iríamos ter condições condignas de alojamento. Eu, confiante, imaginava já os melhoramentos de conforto a introduzir, o arranjo e embelezamento dos exteriores que tornassem a nossa estadia mais agradável, sobretudo no regresso das saídas para o mato. Até lá, havia que desenrascar. A mim também foi destinada uma pequena palhota mesmo no início da tabanca, portanto, fora da área militar. Cabiam apenas, lado a lado, duas camas de ferro e aí fiquei com outro camarada até à conclusão das obras no aquartelamento. Nalguns casos foi até ao fim da comissão dos “velhinhos”. Pouco espaço nos restava dentro da palhota, mas era um abrigo e, além disso, tinha qualquer coisa de exótico a condizer com os cheiros, o pó e o calor de África. Pessoalmente, gostei da experiência.

Nhala, 1973 – Panorâmica (fotomontagem). 
Cortesia do meu amigo J. Roque, ex-Fur Mil Trms, a quem agradeço. Editada por mim.

Nós, a 2.ª Companhia do BCAÇ 4513, por ora estamos instalados com a companhia anfitriã 3400 do Batalhão 3852. A 1.ª CCAÇ do nosso batalhão, que chegou a Buba connosco, ficará aí instalada. Ontem (28-04-1973) a 3.ª CCAÇ e a Companhia de Comandos e Serviços (CCS) já tinham chegado a Aldeia Formosa, sede do Batalhão. Tal como a nossa 2.ª CCAÇ, todas as outras ficarão em sobreposição para treino operacional com as companhias que mais tarde renderão.

A CCAÇ 3400 que viemos render, já tem 22 meses de comissão. Não se apercebem bem mas estão todos muito “apanhados do clima”, desde o soldado ao mais graduado, às vezes com reflexos na disciplina. Dizem-nos que nunca tiveram problemas nem dentro nem fora do aquartelamento. Julgam que isso se deve à proximidade de vários “carreiros” – ou trilhos – dos turras que cruzam a sua área de intervenção. É uma teoria. Mas a informação que nos dão do resto do Sector, (por onde passam alguns destes “carreiros”), é preocupante. Os problemas têm acontecido um pouco por todo o lado: Cumbijã, (ocupada recentemente (03-04-1973) pela CCAV 8351), Colibuia, Mampatá e, até, Aldeia Formosa.

Mais grave que tudo isto, para mim, é que a nossa chegada à Guiné em Março, coincide com a introdução no território, dos mísseis antiaéreos STRELA de origem soviética. O que parece significar que os voos, principalmente os militares, vão ficar condicionados. Perante estas perspectivas, num cenário de guerra que já é muito cinzento, o capitão “velhinho” da CCAÇ 3400, que me pareceu muito afectado pela longa comissão, muito pessimista e sombrio, disse, a certa altura referindo-se a nós: ... Se ficarem muito tempo por cá, vai acontecer-vos como aconteceu na Índia: serão empurrados até ao mar e atirados à forquilha para dentro dos barcos. Animador!

Nhala em 30-06-1973, vendo-se viaturas e máquinas da Engenharia que estão em trânsito.

Já noite, (primeira noite em Nhala), deu-se o primeiro acidente dentro do aquartelamento: um soldado que transportava um garrafão de vidro desempalhado de dez litros, com o vinho, caiu numa vala que atravessava o aquartelamento, completamente às escuras. Tendo-se partido o garrafão, fez um corte na parte interior do antebraço que ia do cotovelo até ao pulso. Eu nunca tinha visto nada assim. Assustador. O corte não era muito profundo, mas como era longo, a pele, muito elástica, contraiu-se e ficou toda, como uma tira, do lado oposto do braço deixando-o completamente à mostra. Já na enfermaria, quando o enfermeiro começou a coser, sem qualquer anestesia, foi um espectáculo medonho. (...).

A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam.

Nhala, 1973. Centro do aquartelamento com mulheres que vem da fonte.

Fonte de Nhala, 1973. 
Fotografia cedida pelo meu amigo J. Roque, ex-Fur Mil Trms, a quem agradeço.

As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente. E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas. Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:
- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão, apalpou minha mama!
E eu perguntava:
- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?
E estava o caso resolvido.

Logo nos primeiros dias após a nossa chegada, realizou-se um encontro de futebol entre “velhinhos” e “periquitos”, que era simultaneamente uma forma de boa recepção e de integração de todos os militares. Tudo foi organizado a preceito para o grande embate: equipamentos a rigor; marcação das áreas do campo; escolha da equipa de arbitragem; colocação de viaturas ao longo do campo para a assistência; enfim..., tudo indicava que ia ser uma tarde bem passada em sã camaradagem. Mas não foi, pois ainda na primeira parte, devido a qualquer desentendimento que não recordo e que originou algumas agressões, fez com que tudo descambasse numa violenta e generalizada batalha campal. Mais grave, é que envolveu parte da assistência constituída por militares e numerosos nativos. Ora, estes, que no decorrer da partida tinham tomado partido pelos “periquitos” mas de forma muito agressiva e exaltada, saltaram para o campo e usaram de toda a brutalidade na refrega, a que os “velhinhos” responderam de igual modo. Eu, que estava a assistir, ainda tentei intervir aos berros, separando aqui e ali mas, quando vi um “branco” bater com toda a violência com um barrote na cabeça de um “preto” que estava deitado no chão, percebi que aquilo estava fora de controle e desatei acorrer para ir avisar o capitão dos “velhinhos” e o da minha companhia para que tomassem medidas. Ainda corria para o aquartelamento e já alguns nativos corriam para a tabanca aos gritos:
- Traz morteiro! Traz morteiro!
À entrada do aquartelamento também um soldado se agachava virado para a população a tentar montar uma HK-21.

Depois de ter comunicado a situação aos superiores ainda corri ao campo mas, o que vi, fez-me desistir e voltar para trás. Foi então que assisti, incrédulo, à situação mais insólita da minha comissão: a meio caminho e a marchar na direcção do campo, passa um pelotão de velhinhos, talvez uns dez, formados dois a dois e comandados por um furriel, todos muito sérios e cadenciados, com a G3 ao ombro como se fossem arrear a bandeira. Mas o que me deixou perplexo e me fez parar para os ver passar, foi que todos usavam um capacete feito de cabaças cortadas ao meio tendo na frente pintadas as letras PM.

À noite na messe de oficiais todos comentámos os incidentes que poderiam ter tido um desfecho irremediável. O capitão anfitrião foi peremptório: os ânimos foram acirrados pelos elementos da população que, desde o início, estavam a tomar partido pelos “periquitos”. Era a forma deles colherem as simpatias da nova tropa, de quem iriam depender no futuro. Disse, ainda, que já conhecia a “receita” de experiências anteriores, para além das suas alianças interesseiras. Já não precisavam dos “velhinhos” que estavam de saída! Era uma opinião. Que carecia de confirmação. Mas, a ser assim, estava explicada a calorosa recepção que nos fizeram no dia da nossa chegada a Nhala.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14637: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (5): A caminho de Nhala

Guiné 63/74 - P14690: Cartas de amor e guerra (Renato Monteiro, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970) (Parte II): anti-herói





Guiné, 28 de agosto de 1970, teu [Re]Nato... [Nesta altura, já em Quinhamel, na CART 220, ou no Hospital Militar, em Bissau, o HM  241]




"Para Guidita, Piche, 6 de agosto de 1969. Renato José"





"Para Guidita, Piche, 6 de agosto de 1969. Renato José"





"Para Guidita, Piche, 6 de agosto de 1969. Renato José"





Local ilegível [Piche, ] 6 [?] de agosto de 1969...[Folha 2]


Fotos: © Renato Monteiro (2015). Todos os direitos reservados (Edição: LG]


1. Segundo (e última parte) do pequeno lote de cartas (*) que recebi, para publicação, do nosso grã-tabanqueiro, o Renato Monteiro. o "homem da piroga", ex-fur mil, CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70); e CART 2520 (Xime e Quinhamel, 1970) (**); natural do Porto (n. 1946), vive em Lisboa; é professor do ensino secundário, reformado... Publicou, juntamente com Luís Farinha, uma pioneira Fotobiografia da Guerra Colonial (Lisboa: D. Quixote, 1998). 

E um homem do(s) olhar(es) e da(s) palavra(s). A sua grande paixão, hoje, é a fotografia (a preto e branco). É um talentoso, compulsivo e apaixonado fotógrafo da vida, do quotidiano, do trabalho, dos lugares, de Lisboa e do Tejo, do seu país, das suas gentes... Tem vários blogues de fotografia que merecem uma visita: (i)  Fotografares; (ii) Quero Lisboa; e (iii) Fotografares do Tejo... Tem publicado livros e feito exposições de fotografia.


Como ele me explicou, são "cartas destinadas à namorada [Margarida, hoje esposa], pouco convencionais, a dispensarem o aparo da Pelikan, compostas na sua maior parte por colagens de palavras e frases curtas de jornais e revistas encontrados casualmente nos aquartelamentos de Contuboel (...) e de Pitche. (...) Mensagens que, recorrendo ao nonsense através de expressões fragmentadas e sentidos descontínuos, nem por isso deixavam de traduzir uma certa amargura, ironia, desespero; momentos de medo e de calados desejos; surdas revoltas causadas pela forçada expatriação que nos obrigara à separação do outro amado." (*)




Espinho > c. 1968 > CART 2479 (futura CART 11 e depois CCAÇ 11)  > ainda em Espinho, na IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional > 

Na 4ª fila, fila. de pé o Valdemar Queiroz (1) e á sua direita o Bento (4).

O Cândido Cunha está no centro da foto (3) [, "na segunda fila, de pé, facilmente identificado por ser o que se está a rir, se calhar por todos os outros estarem tão sérios". 

Na 3ª fila.  à esquerda do Cunha, o Renato Monteiro (2). O segundo, a contar da direita, na 1ª fila é Abílio Duarte (5). O Renato, o Valdemar e o Abílio são membros da nossa Tabanca Grande.  (***)

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. L.G.]




Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > c. 1970 >  "No regresso de uma operação no subsetor do Xime" (RM) (**)... 

Uma máscaraa de sofrimento... Esta foto também vem reproduzida na pág. 215 do livro de que é coautor (Renato Monteiro e Luís Farinha: Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: Círculo de Leitores / Publicações D. Quixote. 1990. 307 pp). (LG).


Foto (e legenda): © Renato Monteiro (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: L.G.]

(**) Vd. poste de 6 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12684: Memória dos lugares (263): O Xime, ao tempo da CART 2520 (1969/71), comandada pelo cap mil António dos Santos Maltez, natural de Aveiro (Renato Monteiro)

Guiné 63/74 - P14689: In memoriam (221): Ex-Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, CMDT da CCAÇ 3327 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73) (José Câmara)

1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 1 de Junho de 2015:

Carlos:
Fui apanhado com esta desagradável surpresa ao princípio da noite.
Se puderes e for a tempo, agradecia que publicasses a seguinte mensagem:

Meus caros amigos,
Ao longo dos nossos anos encontramos pessoas que nos marcaram para uma vida. O Capitão Rogério Rebocho Alves foi uma delas. Comandou a CCaç 3327 numa situação difícil de guerra, agravada que foi pelo simples facto de ela ser de intervenção.
O seu carácter humanista granjeou-lhe a simpatia e a amizade de todos os militares da CCaç 3327.

Esse homem bom, que nos últimos tempos tinha alguns problemas de saúde, partiu hoje em patrulha sem regresso. Tinha 79 anos de idade.

Sem poder precisar os pormenores, o seu corpo estará na Casa Mortuária junto da Igreja São Luís que fica na área do Estádio São Luís, em Faro.

O cortejo fúnebre realiza-se hoje, Terça-Feira, pelas 11 horas, em direcção ao Cemitério da Quinta do Conde, Setúbal.

Descanse em paz meu Capitão.
Que Deus o tenha em bom regaço. 

José Câmara


Setembro de 2012 - Tropa especial na Mealhada: Cap. Rogério Alves, Furs. J. Cruz, L. Pinto, J. Câmara, Alf. Almeida e Fur. C. Vinhal e na frente o Cabo Isolino Picanço

26 de Julho de 2014 - Quinta do Paúl em Ortigosa - Carlos Vinhal, José Câmara, Luís Pinto, Dina Vinhal, João Cruz e Cap. Mil Rogério Alves
 
26 de Julho de 2014 - Quinta do Paúl em Ortigosa - O Cap Mil Art.ª Rogério Rebocho Alves no uso da palavra. Na mesa, da esquerda para a direita, são reconhecidos o Alf. Mil Almeida, os Furriéis Leite e Caseiro e ainda o Alf. Mil Agostinho Neves. Encoberto, o Alf. Francisco Magalhães.

26 de Julho de 2014 - Quinta do Paúl em Ortigosa - O Fur Mil José Leite, o Cap. Rogério Alves e o Sold Cozinheiro Joaquim Rodrigues que veio de França

26 de Julho de 2014 - Quinta do Paúl em Ortigosa - Fernanda Cruz e o Cap. Rogério Alves

Fotos e legendas: © José da Câmara

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À família do nosso malogrado camarada ex-Cap Mil Rogério Alves, a tertúlia deste Blogue deixa os seus mais sentidos pêsames
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14281: In memoriam (220): O último adeus ao Amadu Bailo Jaló (1940-2015), na presença de filhos, neta, sobrinho e camaradas, ontem na mesquita de Lisboa (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P14688: Ser solidário (184): O Mês da Criança na Guiné Bissau: "Mininesa i no dritu" [O nosso direito de sermos crainças]... Concerto de Karyna Gomes e convidados. na Praça Che Guevara, em Bissau, no dia 12



Programa de atividades do "Mês  Criança", que tem a presernça especial da cantora guineense Karyna Gomes, madrinha do Observatório dos Direitos da Criança. Karyna Gomes lançou ainda recentemente o seu primeiro álbum, "Mindjer". Ver aqui, no You Tube,  "Amor Livre", o single de estreia desse álum, edição da Get!Records.

Karyna Gomes é uma das revelações da música urbana da Guiné-Bissau. Mas já canta desde pequenina, e  trabalhou com outros grandes músicos...É uma mulher socialmente empenhada... É filha de pai guineense, que andou na lutou de libertação, e de mãe caboverdiana.  Estudou jornalismo no Brasil. Canta exclusivamente em crioulo. Tem página no Facebook.



Karyna Gomes, cortesia da editora Get!Records
1. Junho de 2015: Mês da Criança 
na Guiné-Bissau


A Caritas Guiné-Bissau e a FEC [, Fundação para a Fé e a Cooperação] promovem no mês de junho atividades direcionadas a crianças, pais e encarregados de educação, e público em geral com o intuito de celebrar os direitos da criança e formalizar o Observatório Nacional dos Direitos da Criança na Guiné-Bissau.

Sob o lema “Mininesa i no dritu”,  pretende-se, alertar a sociedade civil guineense para a situação atual das crianças, valorizando-as e informando sobre as suas necessidades e desafios de desenvolvimento.

As atividades, areaklizar em Bissau,  são apadrinhadas pela cantora Karyna Gomes, madrinha do Observatório dos Direitos da Criança.

Destaque  para o  o dia 12 de junho, Dia Mundial da Luta contra o Trabalho Infantil, para o Concerto de Karyna Gomes & Convidados. pelas 20h, na praça Che Guevara. Para mais detalhes, vd. o programa acima.

A celebração do mês do Mês da criança "Mininesa i no dritu " enquadra-se no âmbito do projeto "Bambaram di Mininu", é implementado pela Caritas em parceria com a FEC. É financiado pela União Europeia, tendo ainda o apoio do BAO,  Petromar e do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua.

 [Fonte: Adapt livre de notícia divulgada no sítio da FEC - Fundação Fé e Cooperação].


Capa do álbum "Mindjer", o primeiro CD de Karyna Gomes, 2014, Get!Records.  


2. Resposta de Karyna Gomes à pergunta "Por fim, como gostaria de ver a sua Guiné-Bissau daqui a 20 anos?", no âmbito de um entrevista recente,  publicada no sítio da FEC - Fundação Fé e  Cooperação


Karyna: Politicamente e socialmente estável com infraestruturas que permitam o guineense viver no seu país sem ter que imigrar. Isso significa que temos de estar bem posicionados, cada um no seu setor a contribuir de maneira substancial para o tão almejado desenvolvimento. 

Aqui não falo de arranha-céus, nem de viadutos ou de hotéis de cinco estrelas nas ilhas Bijagós, mas de um serviço público organizado com jovens competentes, bons sistemas de educação e saúde, transportes. Quero ver acabada a impunidade, quero ver a criação e a implementação de políticas e diretivas claras para orientar todos os setores de desenvolvimento.

O setor cultural é um desses setores que eu gostaria de ver desenvolvidos como ferramenta importante para o reforço da educação e do posicionamento estratégico do país a nível mundial, através da música, literatura, cinema, dança, artes plásticas, teatro, moda, etc., mas também temos outros setores como o da pesca, da agricultura e das indústrias extrativas que têm muito que desenvolver. 

Gostava de ver o crioulo oficializado, de pessoas a ler nos cafés e nas escolas. Quero ouvir que não se pratica mais a mutilação genital feminina e que não mais enviam crianças para serem mendigos na rua escondidos na capa da religião... 

Tanta coisa!!! Sim, podemos!´


Fonte: Sítio da FEC - Fundação Fé e Cooperação >  A Guiné-Bissau de Karyna Gomes [Entrevista]

Guiné 63/74 - P14687: Parabéns a você (914): António Barbosa, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Osvaldo Colaço Pimenta, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1973/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14681: Parabéns a você (913): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14686: Cartas de amor e guerra (Renato Monteiro, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970) (Parte I): Os nossos romances deviam ter um final feliz!...


Carta enviada pelo Renato Monteiro, à Guida [, Margarida]. Tem duas datas: 

(i) Contuboel, 18 (?) de abril de 1969, data provável em que fez a montagem com recortes de jornal: uma foto de um casal, um punho fechado, dois títulos em francês ("Ils esperent encore"", eles ainda esperam; "chez vous, enfim", finalmente em pé de você ou em vossa casa)... Ele abril de 1969 o Renato estava no centro de instrução militar de Contuboel, onde estavam a tirar a recruta mais de duas centenas de guineenses que irão constituir as futuras CART 11/CCAÇ 11 e a CCAÇ 12.

(ii) A data posterior, é de 26/8/1969, já ele estava em Piche, com a sua CART 11. Tudo indica que a carta tenha sido reenviada da Metrópole. Vem assinada pela Margarida (ao canto superior direito): "Para que nas horas tristes haja sempre um ideal que nos ajude. Com coração. Margarida".




Carta, datada de Piche, 6 de julho de 1969. É assinada pelo Renato José, tem recortes de uma banda desenhada em espanhol. A mensagem, manuscrita, diz:

"Querida: todos os nossos romances deviam ser como os folhetins comuns. Chegam depressa ao fim e têm um fim feliz. Mas a vida é diferente..."

Fotos: © Renato Monteiro (2015). Todos os direitos reservados (Edição: LG]


O Renato Monteiro, já no Xime, na CART 2520,
Aqui junto a uma LDG, no cais do Xime.
A foto deve ser de 1970.
1. Mensagem com data de sexta-feira, 29 de maio de 2015,  22h35, do Renato Monteiro [ o "homem da piroga",  ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970):

Assunto: Depois do telefonema, a carta e os...anexos!

Grande Luís!

À vida, já longa, vão faltando páginas para completar a leitura definitiva e arrumá-la na prateleira dos velhos livros cheios de pó. Foi isto que passou pela minha cabeça e me levou a fazer-te chegar às mãos umas poucas cartas que conservo desde o meu involuntário exílio na Guiné.

Cartas destinadas à namorada, pouco convencionais, a dispensarem o aparo da Pelikan, compostas na sua maior parte por colagens de palavras e frases curtas de jornais e revistas encontrados casualmente nos aquartelamentos de Contuboel, (a tua Capri, c'est fini!) (*) e de Pitche.

Mensagens que, recorrendo ao nonsense através de expressões fragmentadas e sentidos descontínuos, nem por isso deixavam de traduzir uma certa amargura, ironia, desespero; momentos de medo e
de calados desejos; surdas revoltas causadas pela forçada expatriação que nos obrigara à separação do outro amado.

Esta forma de dar sinais de mim foi, porém, episódica, acabando em pouco tempo por retornar às repetidas notícias manuscritas, fixando-me na descrição de breves estórias quotidianas e na
exteriorização de sentimentos, sempre demasiado insuficientes porque desoladoramente aquém dos sentidos...

Sim, as cartas não passavam de péssimas cópias do que se pretendia veicular nelas!

E são ou foram estas cartas que serviram de pretexto para voltar, também, a dar-te sinais de mim e a perguntar por ti!

Com um grande abraço!|
Renato Monteiro


2. Comentário de LG.:

Quando o Renato me telefonou na sexta feira à noite, estava feliz por que ia reencontrar,  45 ou 46 anos depois, os camaradas da sua CART 2479, "Os Lacraus", mais tarde CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche, 1969/70), que se iam encontrar no Vimeiro, Lourinhã (, ainda pensei lá poder dar um salto, para  um alfabravo e dois dedos de conversa com os meus amigos e camaradas de Contuboel, mas não deu mesmo...):

Renato: A "carta chegou a Garcia"... Mas que bela surpresa"!... Pois as tuas cartas para a Guida são uma originalidade para a época... Direi mais: são belos poemas. E documentos muitos valiosos para se perceber a nossa geração a quem coube, na lotaria da história, fazer aquela maldita guerra (**)...

Eras já um tipo especial!... Que sorte ter-te conhecido e ser hoje teu camarada e amigo... Sorte também tiveste em ter uma Guida que te aturou e ajudou a manter a saúde mental... Se mo permites, vou publicar este material no blogue... Já tenho publicado outras, mas as tuas são as mais orginais que conheço...

Eu não escrevia cartas de amor, não tinha namorada nem madrinhas de guerra... Tenho cartas que nunca pus no correio, por receio de poderem ser apanhadas pela PIDE/DGS... Fobias!... Prometo também fazer-te uma surpresa. 


Mando um abraço para os nossos camaradas de Contuboel, Cândido Cunha, Abílio Duarte, Valdemar Queiroz... Destes dois últimos temos publicado coisas no blogue... E vamos falando de ti [que já tens trinta referências... Podes ver aqui ver nos links...

 
Xicoração. 
Luis



3. Resposta do Renato Monteiro, logo a seguir, ainda no dia 30:

Amigo Graça!

É tarde, e amanhã vou rever os Lacraus, 46 anos depois (?)... Uma  sensação estranha, que espero não venha a tirar-me o sono!

És um homem sempre a exagerar as minhas qualidades que, acabam por  contar-se pelos dedos. Podes crer!

Um grande abraço e até a uma próxima, de verdade: dentro ou fora de Lisboa.

Renato Monteiro



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > Contuboel > Junho de 1969: Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o rio Geba. Descontraídos, sem armas... A guerra ainda estava longe para nós... Contuboel era um centro de instrução militar... Na  foto, furriéis milicianos Luís Manuel da Graça Henriques (CCAÇ 2590, mais tarde, CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479, mais tarde CART 11.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


4. Na Guiné nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, de resto, ia morrendo afogado, num mergulho junto à estrutura da ponte, em madeira, num dos dias em que costumávamos andar por ali e dar uns mergulhos (,ele, que era muito mais afoito do que eu; mas não se lembra de nada, nem se lembrava do meu nome, nem desta foto acima...). (**)

E no entanto eu fiz operações com a CART 2520, do Xime, onde ele acabou a sua comissão, em 1970. Uma das possíveis razões para o nosso desencontro no Xime pode dever-se ao facto de ele ter sido depois colocado no Enxalé, com o seu grupo de combate. O Enxalé é um destacamento do Xime.

Enfim, perdi, infelizmente o rastro ao "homem da piroga"... Saí de Contuboel em 18 de julho de 1969, tendo a minha companhia (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) sido colocada em Bambadinca... E ele segui para Piche... Um das cartas que  hoje publicamos  é de Piche, 6/7/1969. Mas a primeira é de Contuboel, 18/4/1969.

Já muito depois do 25 de Abril, descobri que o Monteiro era coautor de um livro que li e apreciei sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha: Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1990. 307 pp).

Entretanto, apareceu o blogue e, entre outras, publico esta foto... Em 4 de Julho de 2005, recebo uma mensagem assinada pelo Renato Monteiro (*). Reatámos desde então os nossos contactos e a nossa amizade... Mas até hoje ainda não descobrimos quem foi o fotógrafo... Mas é provável que tenha sido o Cândido Cunha... É uma das poucas fotos que eu tenho da Guiné. Mandei para a minha irmã do meio, Maria do Rosário, no início do verão de 1969.  No verso pode ler-se:

"Contuboel. Passeio de canoa pelo Rio Geba (que passa por Contuboel, Bafatá, Bambadinca e vai desaguar em Bissau). Com um xi-coração a Rosairinha e parabéns pelo seu brilhante exame. Luís Manuel, da Guiné com amizade  fraterna". 
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)

(**) No início da nossa tertúlia, quando ainda éramos poucos (o Sousa de Castro, o Humberto Reis, o A. Marques Lopes, o David Guimarães,  ...) eu mandei-lhes esta foto, com o seguinte pedido, em e-mail datada do dia 1 de Maio de 2005, na secreta esperança de um dia dar de caras com ele numa esquina da cidade do Porto (....Afinal, ele vivia e trabalhava perto de mim, em Lisboa, no Lumiar!):

"Amigos: quem conhece este gajo? Não o que vai sentado na canoa (que sou eu, ou era eu… ), mas o homem que está na popa, de remo na mão… Esta foto foi tirada em Contuboel, Guiné, no 2º trimestre de 1969,em junho ou julho… O fulano chama-se Renato Monteiro, ex-furriel miliciano Monteiro, pertencente à CART 2479/CART 11… Conhecemo-nos em Contuboel, e convivemos durante pouco mais de mês e meio, no período em que estávamos a formar as nossas companhias (eu, a CCAÇ 12; ele, a CART 11). 

"Sei que nasceu no Porto, em Dezembro de 1946, que fez mais tarde o curso de licenciatura em história e que hoje deve ser professor do ensino secundário. Publicou, juntamente com Luís Farinha, uma Fotobiografia da Guerra Colonial (Lisboa: D. Quixote, 1998; há também uma edição do Círculo de Leitores). 

"Se é o mesmo que eu penso, também esteve ligado ao movimento das rádio locais. Há um fotógrafo com o mesmo nome, não sei se é o mesmo. Já não me lembro do seu 1º nome… A ponte que vocês vêem ao fundo era a de Contuboel, uma ponte em madeira e que na base fazia uma espécie de represa… Um dia o Monteiro mergulhou perto dela e estava a ver que o gajo nunca mais vinha ao de cima… 

"Gostava de o encontrar para lhe mandar esta chapa… Tínhamos muitas afinidades (políticas, culturais, humanas…). A companhia dele foi para Nova Lamego, e perdemos definitivamente o contacto. Sei que voltou da Guiné ainda em 1970, uns meses mais cedo do que eu (que vim em Março de 1971)". 

Passado uns tempos, o Renato deu de caras com a foto, inserida na nossa página na Net (Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (1963/74) > Memória dos lugares > Bambadinca)...

Em julho de 2005, ele escreveu-me o seguinte:

"Amigo Luís, muito surpreendido por me rever numa piroga no rio Geba. Na verdade, não me lembrava desse episódio. Não menos espantado por rever a picada do Xime e outros locais que, passado tanto tempo, ainda se encontram bem presentes na minha memória... Lamento, ao contrário, não ter reconhecido ninguém nas fotos nem, sequer, te referenciar. Não sei a explicação.

Sou, na realidade, co-autor do livro que referes. Fico ao teu dispor para o caso de quereres comunicar, e feliz pela Internet ter possibilitado este reencontro. Um abraço, Renato Monteiro"
...

.A partir daqui mantivemos algum contacto regular, mas cedo percebi que o Renato tinha voltado a fechar o baú das memórias da Guiné e estava noutra... (A sua paixão era então, e continua a ser, a fotografia) (...)

Guiné 63/74 - P14685: Notas de leitura (721): “Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
Gérard de Villiers escreveu centenas de quilómetros de uma literatura de aventuras e de espionagem que tinha a sua singularidade: o autor explorava as atmosferas de golpes de Estado, guerras civis, máfias das armas, tentativas da CIA em depor líderes políticos inconvenientes, documentava-se minuciosamente e enviava o seu herói Malko Linge para dentro do furação, de onde airosamente se desembaraçava das missões mais espinhosas.
Isto vem a talhe de foice por causa da Guiné-Bissau onde decorre “Féroce Guinée”, com muita violência, uma beldade e descrições de sexo com pornografia suave.
Espero que gostem… E espero que esta Guiné vá desaparecendo com o regresso ao Estado de direito.

Um abraço do
Mário


Gérard de Villiers e a Guiné-Bissau (1)

Beja Santos

Gérard de Villiers (1929-2013) vendeu milhões de exemplares, foi um dos mais populares autores franceses dos anos 1960 à atualidade. Tinha um herói recorrente: Malko Linge, também conhecido por S.A.S. Descrevia-se como “declaradamente à direita, liberal, anticomunista, anti-islâmico, anti-comunitário, antissocialista”. Desdenhado pela classe bem-pensante seria lido pelos diplomatas, na medida em que frequentava os palcos onde se desenrolavam os seus romances, era claramente um autor bem documentado e um hábil narrador de ambientes. Aqui há uns tempos, o embaixador Francisco Seixas da Costa assinalou o seu óbito: “Durante anos, usei os seus livros para antecipar a visita a alguns países mais bizarros, onde ele ia situando as façanhas do seu herói intemporal, o agente da CIA, o príncipe austríce Malko Linge. Já aqui falei do seu curioso livro sobre a Lisboa revolucionária de 1975. Em Angola, recordo-me de ter lido, divertido, as descrições dos salões do Hotel Trópico nas páginas de um thriller sobre a guerra civil local onde, como era seu hábito, sempre havia muita violência e sexo. Não sei se recomende, o talvez o faça apenas pela curiosidade que representa o seu livro sobre a Guiné-Bissau intitulado “Féroce Guinée”, centrado nos militares e no tráfico da droga (Villiers trabalhava com a realidade…), como habitualmente com belas mulheres à mistura, de que as capas dos volumes sempre destacavam as qualidades mais salientes”.

Vamos então falar de “Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014, custa no mercado francês 7,50 €, na Livraria Francesa em Lisboa, por encomenda, 9 €. O agente da CIA Fred Lemon está em Bissau e dirige-se ao aparthotel Jordani (onde jantei em 30 de Novembro de 2010, era uma noite de calor abrasador, saboreava um peixe e via neve em Bragança, pelo televisor). Bissau cai aos bocados, as velhas fachadas nos tempos coloniais estão roídas pela humidade, o alcatrão das ruas desaparece. A Guiné-Bissau caminha para uma não-existência. Em 2006, surgiu uma nova receita a complementar as castanhas de caju: a cocaína proveniente da Venezuela e da Colômbia. A partir desse momento, o país tornou-se uma placa-giratória nos narcotraficantes colombianos. É no hotel Jordani que está previsto o encontro com o seu elemento de ligação local Djallo Samdu, que trabalha nos serviços de informação militar, é um Fula vigiado pelos Balantas, é a etnia maioritária no exército. A CIA não tinha elementos em Bissau, mesmo a DEA (Drug Enforcement Administration) ignorava Bissau, partindo do pressuposto que esta cocaína ia diretamente para a Europa. Mas surgira um dado novo, um comando mauritano de islâmicos radicais do AQMI (Al Qaeda no Magreb Islâmico) apresentara-se em Bissau, fora detido e depois todos se evadiram. A CIA pretendia uma resposta: que tramavam os radicais em Bissau?

Enquanto Fred Lemon aguarda a chegada do seu pivô, é “assaltado” por três beldades e temos sexo escaldante. Chega Djallo, põe as meninas na rua, entra-se nos assuntos da espionagem. O aliado guineense dos narcotraficantes é o contra-almirante José Américo Bubo Na Tchuto, trata-se de um delinquente que aterroriza a sociedade civil e política da Guiné. Djallo informa o agente de que os farmacêuticos são mauritanos, um dos três radicais evadidos, Sidi Oulm Sidina tem um encontro aprazado na farmácia Yacine. Lemon vigia a manobra, vê sair o radical islâmico que transporta uma encomenda debaixo do braço, provavelmente dinheiro para entregar a alguém, é transportado para casa do contra-almirante, o agente segue-os, foi referenciado, é detido, tenta fugir, depois de ter conseguido enviar uma mensagem para a embaixada norte-americana, é horrivelmente esquartejado.

É agora que Malko entra em ação. O chefe da estação da CIA em Dakar informa-o do que se passou, explica-lhe que os Balantas esquartejam os seus inimigos, já o tinham feito com Nino Vieira, mas há algo nesta mutilação que só pode ter sido feito por alguém vindo da Argélia ou Mauritânia, Lemon aparecera com a cabeça fendida à catanada. O autor aproveita para explicar que a Guiné-Bissau é o quinto país mais pobre do mundo com um rendimento anual por habitante de 700 dólares, um território que se degrada ano após ano, desapareceu energia elétrica, o saneamento, os serviços de saúde só funcionam com a cooperação internacional, o mesmo se passa com a educação, não há polícia, não há correios, ninguém sabe o que é segurança social.

Malko tem várias questões para resolver: vingar a morte de Lemon, saber o que os radicais islâmicos tramam com Bubo Na Tchuto, se inclusivamente se prepara um golpe de Estado efetivo, quem são os colombianos que com ele negoceiam e como atuam. Os seus elementos de ligação em Bissau serão Djallo Samdu, Frank Martal, o concessionário da Rover que lhe cederá um motorista bem informado, Yahia. Começa a exploração de Bissau num Range Rover, Yahia vai-lhe mostrando os pontos principais. Frank esclarece o agente acerca do poder desmesurado do contra-almirante, patrão do arquipélago dos Bijagós, já liquidou os seus principais rivais, o primeiro-ministro Carlos Gomes Junior foi intimado a não regressar à Guiné-Bissau, já conseguiu neutralizar o novo Chefe do Estado-Maior Zamora Induta. É nisto que chega a namorada do temível Bubo Na Tchuto, uma mestiça de rara beleza, vem pedir uma reparação do seu leitor de CD, Malko vai discretamente atrás dela e encontram-se na piscina do hotel Bissau Palace. Entabula conversa com Agustinha, esta cria distância, lembra-lhe que o contra-almirante é um ciumento perigoso. É nisto que chega ao hotel o traficante colombiano Luís Miguel Carrera que conduz Agustinha à sua casa e temos mais sexo escaldante. Carrera envia mensagens a Bubo, está a chegar um carregamento impressionante.

Frank Martal prepara um encontro entre o agente da CIA e um importante informador guineense, de nome Lamine, num restaurante da Praça Che Guevara. Lamine é um homem untuoso, tem que se questionado a saca-rolhas, Malko procura esclarecimento sobre o peso real de Bubo e qual o nível dos seus negócios. Malko pede para ser apresentado a Bubo. Marcam novo encontro para breve. Lamine dirige-se a Bubo que lhe fala num representante da União Europeia que lhe pediu uma entrevista.

Nessa mesma noite, Djallo interpela à sorrelfa Malko, deve partir imediatamente, tem a cabeça a prémio, sabe que Lemon foi assassinado em casa de Bubo, um dos seus mercenários pretende vender o seu relógio, um Breitling, Djallo adianta que Lemon sabia da operação do levantamento de dinheiro a partir de uma farmácia, a partir daí perdeu-lhe o rasto. Malko quer que ele investigue a pista dos islamitas mauritanos.

Em casa de Bubo, Agustinha revela-lhe que um branco lhe faz a corte, vive no Bissau Palace. Em estado de fúria, Bubo veste-se, rodeia-se de um contingente de mercenários, anuncia a Agustinha que vai retalhar o atrevido.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14679: Notas de leitura (720): "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial" (autor: João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de A. Marques Lopes): Excertos (Parte II): "Você, alferes Aiveca, está muito mole para esta guerra, disse o major, zombateiramente"...

domingo, 31 de maio de 2015

Guiné 63/74 - 14684: Blogpoesia (415): Dunquerque, Calais, St. Omer, La Lys, Verdun... O cemitério militar português de Richebourg (António Graça de Abreu)




França > Cemitério militar português de Richebourg  L'Avoué, perto de La Lys com os túmulos de 1.831 compatriotas nossos, mortos na I Grande Guerra.


Fotos. © António Graça de Aberu (2015). Todos os direitos reservados 



1. Mensaqgem do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu [ex-alf mil,  CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74,  poeta, escritor e conhecido sinólogo:

Neste mês de Maio de 2015 tive a ventura de viajar um pouco por uma Europa que conhecia mal. Tenho um filho na Comunidade Europeia, a trabalhar em Bruxelas, e foi altura de abalar para terras belgas, da Valónia e flamengas, mais terras francesas, luxemburguesas, alemãs e holandesas. Tudo em pouco mais de uma semana, 1.400 quilómetros num carro alugado em Bruxelas.

Tinha fisgada a ideia de ir aos locais do desembarque na Normandia, o dia D de Junho 1944. Acabei por entrar em França por Dunquerque e depois Calais. Não cheguei mais a sul, a Caen, mas atravessei todo o norte da França, em direcção ao Luxemburgo. Dormi numa cidadezinha chamada St. Omer e segui viagem, sempre por estradas secundárias.

Impressionantes as centenas de “jardins de pedra”, os cemitérios das centenas de milhares, ou milhões de homens mortos em combate, em toda esta região, na 1ª e na 2ª Guerra Mundial, homens de tantas nacionalidades, franceses, alemães, norte-americanos, canadianos, checos e também portugueses, os nossos quase todos mortos na batalha de La Lys, em 1918. 

Perto de La Lys fica o cemitério português de Richebourg com os túmulos de 1.831 compatriotas nossos. Vejam as fotos Também podem procurar no Google em “imagens”, “cemitério português de Richebourg”. Fui lá pesquisar e tive a surpresa de ver a foto de um primeiro-ministro português a visitar este cemitério. Não digo quem é o homem, vão à net e procurem, creio que também terão uma surpresa.

Entretanto escrevi cerca de sessenta poemas, ao sabor das paragens viajadas e visitadas. Os poemas que têm a ver com a guerra, guerras onde morreram tantos “meninos de sua mãe”, guerras diferentes mas por onde nós também passámos, são estes:

Nunca ouvi nada tão bonito, tão dilacerante, tão profundamente triste, ecoando, até ao fundo do meu sangue, a dor do mundo.

António Lobo Antunes


Dunquerque, Calais, St. Omer, La Lys, Verdun 

por António Graça de Abreu

Setenta anos depois,
ainda o sangue a embeber
a memória e as areias de Dunquerque.

Nas terras de Pas de Calais,
à sombra dos jardins de pedra,
milhões de mortos na insânia da guerra.
Meus irmãos mais velhos.

La Lys, apenas um ribeiro
entre vergeis e o nada.
As margens ainda embebidas em sangue.

Cemitério em Richebourg,
mais de mil e oitocentos portugueses mortos.
1918. Nas lápides, as quinas,
um nosso nome,
“um menino de sua mãe.”
Tulipas rubras
crescem entre estelas de pedra,
não murcham as flores da memória.

Meninos como eu, tão jovens,
franceses, americanos, ingleses, alemães,
dilacerados pela metralha, pela loucura.
Recolhimento, uma prece.

Outrora, a floresta encharcada em sangue.
Hoje, incontáveis jardins de pedra,
tudo verde, branco de mármore
e o silêncio.

Heróis quase esquecidos
pela passagem dos anos,
mas o rosto da memória
caminhando, com a luz do sol.

Aqui em Verdun, há quase um século
caíram, trespassados pelas balas,
mais de meio milhão de homens,
também “ meninos de sua mãe”.
Hoje, nestes cemitérios da guerra,
os ossos, as cruzes infindáveis,
memórias do inferno na terra.

Em África, 1972/74
também fui soldado.
Um regresso com mágoa,
mas de coração aberto para o mundo.
Tantos anos depois,
na distância e no tempo.
meus olhos perdem-se
no ondular verde e amarelo
dos campos de França,
Lágrimas e chuva inundam a paisagem.


 _______________

Guiné 63/74 - P14683: Libertando-me (Tony Borié) (19): ...É o destino

Décimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




As pessoas mais ou menos da nossa idade, quando as coisas não correm em conformidade com os seus desejos, normalmente dizem: “É o destino”.

Neste caso, ”O Destino” foi termos nascido nesse “cantinho à beira-mar plantado”, foi termos idade adulta naqueles anos para sermos militares, participando na “Guerra do Ultramar”, que Portugal manteve “orgulhosamente só”, foi sermos perseguidos pela então “Polícia do Estado”, foi vermos alguma oportunidade de vida, de liberdade, podendo criar uma família, na emigração, no outro lado do Atlântico, muito longe desse sol radiante, onde às vezes fazia geada pela manhã, a que os nossos vizinhos chamavam “orvalho”, foi ter havido uma greve, na companhia aérea que viaja pelo mundo com a bandeira de Portugal, houve atrasos, ainda os há, mas nós, não pedíamos mais nada, só adquirir dois normais bilhetes para ter lugar nos aviões, daqui de New Jersey para onde nos queríamos deslocar, mais exactamente para atravessar o Atlântico, usando como destino a cidade de Lisboa.

Não era nossa intenção ir para uma aventura em qualquer floresta no Bali, numa perspectiva diferente desta incrível ilha, onde os arrozais podem cobrir cerca de vinte por cento de toda a ilha, com densas florestas do interior, mas nas áreas mais secas, podemos esperar um matagal, com algumas savanas, onde os cones vulcânicos nos surpreendem com paisagens estéreis.

Não era nossa intenção ir para as “Cataratas de Iguaçu”, na fronteira do Brasil com a Argentina, onde chamam “Cataratas del Iguazú”, onde existe um conjunto de cerca de 275 quedas de água, localizado na bacia hidrográfica do rio Paraná, com cerca de 250 mil hectares de floresta subtropical, que já é considerada Património Natural de Humanidade.

Não era nossa intenção ir conhecer uma qualquer Igreja perdida na Ilha de Lewis, no mar da Escócia, ou ver a cidade arqueológica Maya, de “Chichén Itzá” cujo nome tem raiz Maya, que significa "pessoas que vivem na beira da água", no norte no México, localizada no estado de Lucatã, que funcionou como centro político e económico da civilização Maya, onde ainda hoje se encontram várias estruturas como a Pirâmide de Kukulkán, o Templo de Chac Mool, a Praça das Mil Colunas ou o Campo de Jogos dos Prisioneiros, que podem ainda ser admiradas e são demonstrativas de um extraordinário compromisso para com a composição e espaço arquitetónico, e claro, também foi declarada Património Mundial da Unesco.

Não era nossa intenção ir visitar o “Monte Merapi” na Indonésia, (Merapi, em indonésio significa “Gunung Merapi”), que por sua vez significa Montanha do Fogo, que é um vulcão localizado na ilha indonésia de Jawa, que atinge os 2968 metros de altitude, e que tem a particularidade de ser o vulcão mais activo da Indonésia, país que tem a maior densidade de vulcões do mundo.

Não era nossa intenção ir de visita à cidade perdida “Machu Picchu” também chamada "cidade perdida dos Incas”, que é uma cidade pré-colombiana, bem conservada, localizada no topo de uma montanha, a cerca de 2400 metros de altitude, no vale do rio Urabamba, no actual País, chamado Peru, que é provavelmente o símbolo mais típico do Império Inca, quer devido à sua original localização e características geológicas, quer devido à sua descoberta tardia, somente no ano de 1911, onde apenas cerca de 30% da cidade é de construção original, o restante foi reconstruído. As áreas reconstruídas são facilmente reconhecidas pelo encaixe entre as pedras, mas a construção original é formada por pedras maiores, com encaixes com pouco espaço entre as rochas, dividindo-se em duas grandes áreas, a agrícola, formada principalmente por terraços e recintos de armazenagem de alimentos, e a outra, a urbana, na qual se destaca a zona sagrada, com templos, praças e mausoléus reais.

Estava longe do nosso pensamento ir até às dunas de areia, no deserto da Austrália, que por lá chamam “Kurnell Dunas”, está estimado em cerca de 15.000 anos de idade, sendo formadas quando o mar atingiu o seu nível actual, começando por se estabilizar onde uns rios que por lá existiam fluíram para o sul-leste sob o actual sistema de dunas e, se juntou ao oceano, claro, isto resultou no isolamento de Kurnell, que era uma ilha do continente, e os rios, eventualmente, ficaram bloqueados com o acumular da areia e sedimentos, e é fácil compreender, com os rios assoreados gradualmente, foram forçados a mudar seu curso.

Também não era nossa intenção ir ao “Palácio de Jaipur”, na Índia, que inclui os palácios Chandra Mahal e Mubarak Mahal e outros edifícios que formam o complexo do Palácio em Jaipur, a capital do Estado de Rajasthan, que foi residência do marajá de Jaipur, o chefe do clã Kachwaha Rajput, onde hoje se abriga um museu, mas a maior parte deste complexo ainda é uma residência real, onde se incorpora um conjunto impressionante de pátios, jardins e edifícios, onde os seus arquitetos conseguiram uma fusão do Shilpa Shastra da arquitetura indiana com Rajput, Mughal e, alguns estilos europeus de arquitectura.

Longe do nosso pensamento estava ver as “Cataratas Vitória” a que também chamam “Quedas Vitória”, que são das mais espectaculares do mundo, situando-se no Rio Zambeze, mais propriamente na fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwé, que têm cerca de 1,5 km de largura e uma altura máxima de 128 metros, vistas em 1855 por um explorador escocês, que foi o primeiro ocidental a vê-las, e que lhes deu o nome em honra da rainha Vitória, mas o nome do local é Mosi-oa-Tunya, que quer dizer "fumo que troveja". Diz-se que o explorador português Serpa Pinto também contribuiu para que aquela zona ficasse mais acessível o que ocorreu por volta do ano de 1905, com a construção de uma linha do caminho de ferro.

Não queríamos ir ao Curral das Freiras na nossa Ilha da Madeira, onde no princípio da colonização possuía apenas a designação de Curral, ou Curral da Serra, derivando esta do facto de ser este local um centro de pastagens, mas a passagem da denominação de Curral ou Curral da Serra para a de Curral das Freiras terá acontecido segundo uns autores entre 1492 e 1497, aquando da passagem da propriedade dos terrenos para a posse das freiras do convento de Santa Clara, segundo outros, dizem, só se tenha verificado mais tarde, em 1566 aquando do saque da cidade do Funchal por corsários franceses, o que fez com que as religiosas do convento de Santa Clara se refugiassem ali, nas suas propriedades, talvez para não serem violadas.

Não vamos dizer que não queríamos ir à Ilha de Kiribati na Micronésia, que é o primeiro país do mundo a mudar de ano, na ilha de Kiritimati, devido ao fuso horário, pois Kiribati é o país mais adiantado em questão de horário e, como consequência das mudanças climáticas em curso no planeta, especula-se que a existência do país esteja ameaçada, estando as ilhas de Kiribati condenadas a desaparecer.





Porque o texto já vai longo, não vamos dizer que não queríamos ir até à Patagónia, onde existe uma grande concentração de “pinguins”, pois na verdade o queríamos era que todos chegassem a um acordo, não houvesse greves, não houvesse atrasos, era podermos adquirir dois bilhetes normais, numa data normal, num dos aviões que descolam de New Jersey, atravessam o Atlântico, aterrando pela madrugada nesse País distante, na Península Ibérica, era ir ver as nossas raízes, ir cumprir uma “promessa” da esposa e companheira, conhecer pessoalmente alguns companheiros combatentes que já considero a minha segunda família, ver aquela mulher descendo a montanha, a caminho da sua aldeia rural, com uns restos da planta de milho às costas, desviando-se dos arbustos que lhe tocam constantemente nas pernas, ferindo-a, mas não se queixa, vem descalça, não usa, ou talvez nunca usou sapatos e, quando lhe falam, podemos capturar na sua face um sorriso inocente de bondade, fazendo com que nós, a viver por aqui, viajantes do mundo, nos sintamos portugueses, mas a viver e a adquirir os costumes duma terra estrangeira.


Seja qual for a razão, estas são as histórias que transformam o emigrante, viajante do mundo, não importando os anos de ausência do seu País, nunca perdeu as suas raízes, sendo talvez um verdadeiro “Indiana Jones”.

Tony Borie,Maio de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14655: Libertando-me (Tony Borié) (18): Os carapaus em molho de escabeche da Ti'Glória

Guiné 63/74 - P14682: Efemérides (191): Aquele dia inextinguível (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52)

1. Em mensagem do dia 24 de Maio de 2015 o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) lembra o dia 19 de Março de 1969, quando Missirá ardeu durante um ataque do PAIGC.


Aquele dia inextinguível

Beja Santos

Tinha 24 anos quando vivi uma epopeia, não me aconteceu outra. Em 19 de Março de 1969, pela calada da noite, uma flagelação bem acontecida, com muita bala incendiária certeira no colmo ainda quente das moranças, destruiu praticamente Missirá, transformando-a em terra calcinada. Vários prodígios convergiram: o envio generoso de muito material do Batalhão de Engenharia, nunca vi em dias da minha vida tanta chapa ondulada, esquadrias de portas, sacos de cimento; a humilhação e a dor eram tais que garanti a mim próprio que haveria tempo para tudo: para ir a Mato de Cão diariamente, para abastecer as gentes do Cuor, e para se reerguer Missirá.

O que aconteceu, entre finais de Março e meados de Junho. Vários ventos sopraram de feição: houve uns chuviscos a debutar a época das chuvas, protegeu-nos todos os tijolos de adobe, nada se estragou; não houve férias para ninguém, não se celebraram choros, ninguém partiu nem para semear nem para colher, não houve contestação àqueles horários draconianos, cedo erguer e todo o dia movimentação, quem patrulhava entrava à mesma nas escalas de serviço, até para ir buscar água. E um dia, nos tais meados de Junho, percorri pelas novas moranças, pelos novos abrigos, telheiros e armazém, tudo a cheirar a fresco, obra de uma convocatória que obteve uma resposta tão incendiária como aquele desalmado incêndio que reduzira mais de três quartos de Missirá a um escombro.

Também houve tempo para a escrita. Perdi tudo no incêndio, vivia por empréstimo no abrigo do furriel Casanova, uma construção modelo que era motivo do seu legítimo orgulho, desmanchara a casa de Manuel Spencer em Malandim, entre Finete e a estrada para Mato de Cão. Daqui expedi os meus aerogramas meses a fio. A minha tia Carlota fazia anos a 1 de Junho e não deixei de a saudar, tinha por ela uma grande adoração, foi por seu intermédio que ganhei a paixão pelos azulejos pombalinos e pela arte do leque. Ter-lhe-ei dado uma versão adoçada do que era a minha vida, ele era mais que septuagenária, torneei os sobressaltos. E nunca mais pensei no assunto.

Aqui há alguns anos, telefona-me a minha prima Madalena, a sua única neta, houve conversa animada até que chegámos ao essencial: olha, Mário, imagina tu que abri um livro da minha avó e saltou de lá uma folha, era uma cartinha tua a dar-lhe os parabéns, tu estavas muito feliz, muito animado, falavas de umas obras muito grandes e a certa altura escreveste que tudo o que tinhas feito até então eram insignificâncias, que pela primeira vez na vida tinhas um grande desafio pela frente, que estavas cheio de fé e as pessoas que contigo viviam pareciam contagiadas, e davas graças a Deus, olha, não percebi bem o que te estava a acontecer mais era uma escrita tão exaltada que me deixou comovida, vou-te enviar esta carta que me encantou e estou absolutamente certa que deixou a minha avó feliz.

Tinha 24 anos, vivi uma epopeia de braço dado com militares e civis inesquecíveis. Nunca mais terei um aniversário como aquele, a ver crescer, a derrubar o touro da morte e a sentir o tutano da camaradagem. É por isso que quando me vem uma contrariedade há logo um rebate: lembra-te o que se passou naquele tempo em 1969, aquele teu dia de anos em que foste a Mato de Cão, vieste por Finete, regressaste a Missirá, discutiste com os teus colaboradores as obras, os pagamentos, o trivial da burocracia e como adormeceste cansado e enriquecido pelo dever cumprido. Que sejam assim todos os dias que Deus te deu para cumprir.

Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. 

Fotografia do início do Março de 1969, todo aquele fundo irá desaparecer, dias depois aquele balneário era indescritível, aquelas chapas rasgavam a carne a qualquer descuidado. Procurei-o em 2010, disseram-me que vivia para os lados de Farim, que estava muito velho e cansado. Tenho muitas saudades do meu querido cozinheiro, um bonzão com as crianças a quem cedia as nossas sobras.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14680: Efemérides (190). O ataque a Bambadinca foi há 46 anos, em 28/5/1969, recorda o barbeiro mais famoso de Dalvares, Tarouca, o Manuel da Costa, que foi sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2852 (1968/70)

Guiné 63/74 - P14681: Parabéns a você (913): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14676: Parabéns a você (912): António Vaz, ex-Cap Mil, CMDT da CART 1746 (Guiné, 1967/69)