sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12595: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (15): O cinema local e a figura lendária do seu guardião, o Canjajá Mané... E, a propósito, relembre-se o documentário, já em DVD, "Bafatá Filme Clube", do realizador Silas Tiny, com fotografia de Marta Pessoa (Lisboa, Real Ficção, 2012, 78')


Foto nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5



Foto nº 6



Foto 7

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 2010 > O regresso do Fernando Gouveia, 40 anos depois... O nosso blogue e sobretudo o Fernando Gouveia acabaram por estar também na origiem de um filme, estreado em 2013, do realizador português, de origem s


Fotos (e legendas): © Fernando Gouveia (2014).Todos os direitos reservados


1. Continuação da publicação do  "roteiro de Bafatá", organizado pelo  Fernando Gouveia [, ex-alf mil rec inf,  Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70;
autor do romance Na Kontra Ka Kontra, Porto, edição de autor, 2011; arquiteto, residente no Porto]

[Fernando Gouveia, foto atual à direita]

Mensagem do Fernando Gouveia:

 Data: 17 de Janeiro de 2014 às 02:09

Assunto: Cinema de Bafata

 Luís:

Como há dias, a propósito do Cinema de Bafata (*), referiste com uma certa imprecisão a existência de um homem que toma conta do edifício, mando-te algumas fotos que esclarecem melhor esse assunto. Assim, quando fui lá em 2010 estive com o tal homem, chamado Canjajá [Mané] que, sem receber nada, guarda o cinema. Em tempos foi o operador da máquina de projecção. Também lá me disseram que ainda hoje ele limpa regularmente a máquina apesar de já não funcionar. (**)

Legendas das fotos:

1 – Vista do edifício em 2010.
2 – Átrio de entrada.
3 – Corredor lateral.
4 – Sala de espectáculos e palco.
5 – Sala de espectáculos e balcão.
6 – Canjajá.
7 – Canjajá admirando o meu cartão de sócio do Sport Club de Bafata, à porta da sede do PAIGC, edifício que penso ter sido a casa de um tal Camilo que costumava dar umas jantaradas a todos os oficiais.

Ab
Fernando Gouveia
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Notas do editor:

 (*) Vd. poste de 14 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12585: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (14): Foto aérea, nº 3 (Humberto Reis)


(**) Sobre esta figura, Canjajá Mané e a sua história, há um filme documental, Bafatá Filme Clube, do realizador português, Silas Tiny [Lisboa, Real Ficção, 2012, 78' ( fotografama à direita), reproduzido com a devdia vénia]...  Já aqui foi notícia, há meio ano atrás, em poste do Fernando Gouveia (***)

Também, foi referido pela página do Facebook, de uma jornalista portuguesa que vive na Alemangha, "com um pé em África e outro no Brasil... Tomo a liberdade de reproduzir um poste de 8 de abril passado, com a devida vénia:

 Domadora de Camaleões  > 8 de Abril de 2013 às 11:50 ·


A história do projecionista que tomou conta do cinema de Bafatá, na Guiné-Bissau, mesmo quando já não havia espectadores, foi filmada pelo realizador são-tomense Silas e vai ser exibida hoje, em Lisboa, no cinema São Jorge às 15.30.

Integrado na maratona de documentários do FESTin, festival de cinema da língua portuguesa, que decorre até quarta-feira, no Cinema S. Jorge, "Bafatá Filme Clube" conta a história de Canjajá Mané.

O realizador Silas Tiny, nascido em São Tomé, mas que vive em Portugal desde os cinco anos, contou à agência Lusa que tropeçou por "sorte" e "acaso" na história do antigo projecionista de cinema.

"A pessoa cativou-me", justificou, recordando a beleza de traços coloniais da cidade guineense de Bafatá, apesar das "atuais condições".

Canjajá Mané trabalhava como projecionista em Bafatá "desde a altura dos portugueses" e "ficou tempos a cuidar" do cinema local, quando já nem espectadores havia, até ter "que se ir embora, porque não tinha condições para estar lá, porque ninguém lhe pagava", relatou Silas Tiny.

Não há atualmente nenhum cinema a funcionar na Guiné-Bissau, onde os cortes de eletricidade são recorrentes.

Canjajá Mané - que esteve no cinema de Bafatá "anos e anos sem receber qualquer salário" - ainda não viu o filme, "infelizmente", mas Silas Tiny e a produtora portuguesa Real Ficção estão "a fazer tudo" para que isso aconteça.

Apesar de "as condições na Guiné-Bissau" não serem "muito boas neste momento", estão a avaliar a possibilidade de "fazer uma projeção do filme".

Vd. Também aqui o sítio da produtora Real Ficção > O filme está agora disponível em DVD [, à venda na FNAC, por exemplo].ao,

Sinopse >  "Em Bafatá na Guiné-Bissau, Canjajá Mané, antigo operador de cinema e guarda do clube da cidade, repete os mesmos gestos há cinquenta anos. Mas actualmente o cinema está fechado e não existem espectadores. Dos seus tempos como trabalhador do clube até aos nossos dias, restam apenas recordações. Na cidade, somente as pedras, árvores e o rio resistiram à erosão do tempo. E com eles, algumas pessoas, que ficaram para perpetuar na memória do mundo e dos homens, que ali já viveu gente. São essas pessoas por quem Canjajá procura e espera pacientemente até hoje".

Guiné 63/74 - P12594: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (1): Espinho, Porto, Tavira e Torres Novas (José Martins)

1. O nosso Editor lançou o repto à tertúlia dos ex-combatentes para falarem das cidades por onde passaram antes da mobilização para a Guiné, cidades estas onde tirámos as nossas Recrutas e jurámos Bandeira, onde nos especializámos nas mais variadas artes de guerrear, onde fizemos os "mestrados" e "pós-graduações", onde conhecemos gente com outros usos e costumes, mas tão portugueses como cada um de nós os forasteiros temporários nessas terras.

Aproveitando um comentário do nosso camarada José Martins, damos o pontapé de saída à série, esperando que correspondam ao desafio e desatem a escrever.

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2. Comentário do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5 - "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70), deixado no poste 12542 em 5 de Janeiro de 2014:


As localidades por onde passei

Olhando para trás, que ficou das localidades por onde penei/passei, os tempos da tropa?
Saudades? Só da juventude.
Raiva? Só da Guerra.


Paramos, Espinho - Recruta, primeiro contacto com a tropa, primeiros contactos com armas, primeiro contacto com milicianos e militaristas, primeiras ilusão e desilusões.

Tive sorte. Consegui desarranchar-me e dispensa de pernoita. Ia e vinha, a partir de Gaia, todos os dias, com a marmita do almoço às costas. Contribuía para a “gasosa” do Mini em que nos transportávamos.

O primeiro amigo militar: O Aspirante Roldão, de Coimbra.
Que será feito dele? Já o tentei encontrar, mas nada consegui.

Da terra nada conheci além do quartel e do caminho que ligava a estação da CP ao quartel.


Porto, Arca de Água - Primeira Especialidade: Teleimpressor.

Pode dizer-se que estava em casa. Utilizava os transportes públicos, desarranchado e com dispensa de pernoita, lá andava com a marmita atrás de mim.

Recordações? Só o cuidado dispensado pelos “prontos” na semana de campo, em que foram incansáveis na procura do meu conforto, quando fiquei com uma gripe dos diabos. Houve quem fizesse a guarda por mim.

A terra já a conhecia mais ou menos, já que estava a trabalhar há uns anos.


Tavira - Segunda especialidade, já no CSM e Transmissões.
Só pedi dispensa de pernoita. Depois da instrução no campo da Atalaia, saía ao toque de ordem direito à casa onde tinha quarto alugado à D. Rosa, uma “mãe” sempre atenta à nossa chegada em dias de instrução nocturna. De vez em quando ainda ouço a sua voz: “Meninos, há leite, café e pão na sala. Comam antes de ir dormir”.
Estes mimos não estavam incluídos na mensalidade, nem nunca foram cobrados.
Havia também a D. Cesaltina, que era uma “irmã mais velha”, sempre a perguntar se necessitávamos alguma coisa que fosse necessário tratar durante o dia, que ela tratava.

Como não tinham água quente em casa, arranjou-nos um local para um banho quente, a dez tostões por banho.
Ao fim de semana íamos ao mercado, os camaradas de quarto, fazer compras para as refeições do fim-de-semana. Claro que convidávamos a comer connosco, já que as refeições eram confeccionadas por elas com os meios de que dispunham.

Da terra, além dos cafés e de um ou outro restaurante, pouco conheci. O afecto pela terra está materializado na memória da D. Rosa e da filha D. Cesaltina.


Torres Novas - Concluída a especialidade a unidade de colocação.
Um serviço de reforço e uma Ronda da Policia da Unidade.

A única visita à cidade, terminando com a “tentativa de aprisionamento” de um refractário a um embarque para o ultramar.
Do período em que lá passei, estive mais tempo em casa do que no quartel: férias da Páscoa e licença de mobilização.
Da terra não me lembro, mas tenho pena. Era a terra dos meus tios paternos, que foram lá professores.



Guiné - Desta terra veio o ódio e depois a saudade.
Mais palavras para quê? É a nossa “Segunda Pátria”.

E siga a “infantaria”.
José Martins

Guiné 63/71 - P12593: Museu Etnográfico de Passos de Silgueiros, em Viseu, onde se podem encontrar objectos relacionados com a guerra na Guiné (Manuel Traquina)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Traquina (ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2013:

Visitei um museu na povoação de Silgueiros nos arredores de Viseu, e surpreendido fiquei ao encontrar ali varias coisas relacionadas com a guerra na Guiné, que terão sido oferecidas pelo padre Manuel Antunes Santos Barranha que foi Capelão Militar na região de Aleia Formosa.

Uma das fotos é de um monóculo do General Spínola, que terá sido oferecido por ele, junto também um cartão de visita do mesmo.
Outra foto trata-se de um crucifixo que executado em Aldeia Formosa onde foram soldados vários estilhaços de granada que ele próprio recolheu após ataques aquele aquartelamento no ano de 1971.

Existem ainda naquele museu vários crachás de companhias e pelotões de morteiros.

Um abraço
Traquina


Objectos que se podem ver no Museu Etnográfico de Passos de Silgueiros



Guiné 63/74 - P12592: Notas de leitura (553): "Mudança Sócio-Cultural na Guiné Portuguesa", dissertação de licenciatura de José Manuel Braga Dias (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2013:

Queridos amigos,
Aqui se continua a procurar sintetizar o que há de mais relevante numa tese de licenciatura em que José Manuel Braga Dias, que esteve na Guiné e muito próximo do Comando-Chefe pôde estudar e entrevistar e ter acesso a documentação restrita onde baseou o seu trabalho “Mudança Sociocultural na Guiné-Portuguesa”.
Permite ficar com uma imagem de atitudes e comportamentos das populações face à luta armada, releva erros crassos da administração colonial na nomeação da régulos e outros chefes que se saldaram em boas oportunidades para a propaganda do PAIGC.
O leitor tem aqui uma boa ocasião para perceber algumas das razões profundas que levaram a que a luta armada tivesse atingido todas as famílias, todas as etnias, tumultuando as sociedades tradicionais e gerando grandes equívocos nas chamadas sociedades modernas ou aculturadas, equívocos que depois o poder constituído pelo PAIGC não soube superar, após a independência.
O nosso olhar sobre a Guiné e a sua história fica bastante afetado depois de se ler este trabalho, estranhamente ignorado pela melhor investigação.

Um abraço do
Mário


Mudança sociocultural na Guiné Portuguesa (2)

Beja Santos

A dissertação de licenciatura “Mudança Sociocultural na Guiné Portuguesa”, por José Manuel Braga Dias e publicada pelo ISCPU em 1974 introduz um dado bombástico, a subversão afetava toda a sociedade guineense, tanto os estratos mais tradicionalistas como os modernos, constituídos estes por diferentes grupos socioprofissionais agindo nos centros urbanos.

O autor desagrega o comportamento da população face ao movimento subversivo, é aqui sem dúvida alguma que o trabalho é manifestamente interessante. No texto anterior, referiu-se as atitudes dos Fulas e Mandingas. Vejamos agora os Oincas ou Mandingas do Oio. Iniciada a subversão, a população fugiu maciçamente para o Casamansa; os que ficaram, excetuando os que viviam em Olossato, Mansabá e Bissorã, aderiram ou foram obrigados a aderir ao PAIGC. Para o autor, o comportamento futuro dos Oincas dependerá da aceitação no novo régulo do Oio e da resolução das tensões étnicas, sobretudo com os Fulas. Os Jacancas e Saracolés são ramos da etnia Mandinga ligados ao comércio ambulante – gilandade. Foi aqui que as autoridades portuguesas e o PAIGC encontraram bons informadores. Os Padjadincas mostraram-se maioritariamente apoiantes das autoridades portuguesas. Mas o autor recorda os conflitos étnicos existentes entre Fulas e Padjadincas e a questão de reinança surgida pela morte de Sene Sane poderão constituir fatores a explorar pelo PAIGC. Os Felupes-Baiotes não deram nenhuma colaboração ao PAIGC, o mesmo não se passando com os balantas que deram um expressivo apoio ao PAIGC. Banhuns, Cassangas e Caboianas revestem-se de minuta importância, no entanto num destes territórios o PAIGC estabeleceu santuários, caso da região da Caboiana. O autor interpreta este facto devido ao cuidado que houve, por parte do PAIGC em procurar manter uma sociedade homogénea, sem impor uma nova ordem aos seus membros, mas servindo-se de velhos argumentos com a tradicional hostilidade dos Caboianas à presença portuguesa. A subversão dos Manjacos fora fácil em regulados do norte, para Sul a ação de aliciamento foi mais demorada, os chefes legítimos opuseram-se. Para o autor, competia às autoridades portuguesas reconhecer os verdadeiros chefes, conhecer quem decide nas estruturas tradicionais Manjacas havendo que dialogar o posicionamento dos reordenamentos para impedir futuros comprometimentos da população com o PAIGC na região de Cacheu. O “chão Papel” tinha sido invadido por diferentes etnias, os Papéis estavam em desagregação quando chegou a luta armada e na sua maioria os Papéis de Bissau e Cacheu não se mostraram entusiastas em apoiar o PAIGC. No caso dos Brames ou Mancanhas também estavam em fase de perda de coesão e com tensões de diferente ordem (por exemplo, os Brames da região de S. João não eram reconhecidos pelas autoridades portuguesas). E o autor observa: “A vingança pessoal e o ódio étnico ao Fula, ao Mandinga e ao Papel foram os motivos principais da adesão de grande número de Mancanhas à subversão, exercem lugares de chefia no PAIGC e têm posições dominantes na máquina política e administrativa deste. Quanto aos Beafadas, secundaram posições dos Mandingas nas áreas em que com eles convivem". E escreve: “Os Beafadas dividiram-se na atitude tomada face à subversão; se em certas áreas da circunscrição de Fulacunda e nos regulados do Cuor e Xime aderiram e colaboraram com o PAIGC, noutras, como em Gadamael, e nas povoações de Jabadá e Fulacunda tornaram-se fiéis colaboradores das autoridades”. Os Nalus e Sossos concretizaram vinganças ao apoiar o PAIGC, igualmente exteriorizaram o seu ódio aos Fulas. O PAIGC parecia apostado em explorar as tensões existentes entre Fulas e Nalus e as estreitas relações entre os Nalus e os Sossos da República da Guiné. Quanto aos Bijagós, a luta armada nunca se manifestou em qualquer região do arquipélago. Acresce que depois de campanha de Canhabaque (1936) os chefes tradicionais legítimos ou legais manifestaram-se desinteressados pelo que quer que pusesse em risco a sua maneira de viver em paz e sem preocupações. Segundo o autor, os Bijagós que viviam em pequenos núcleos na Guiné continental, teriam aderido ao processo subversivo do PAIGC.

De seguida a investigação centra-se sobre o comportamento das elites tradicionais face à subversão. O autor recorda que o sistema de regulados nem sempre se mostrou eficaz, colocando em confronto dois poderes políticos com interesses divergentes. Nuns casos as autoridades portuguesas manifestavam indiferença nas lutas travadas entre régulos ou apoiavam os régulos em desfavores de outros. E escreve: “É enganador julgar-se que foram somente os povos do litoral, como autoridade centralizadora, como é o caso dos Manjacos, Brames e Papéis, que se opuseram à presença portuguesa. O que se passou foi que a nossa presença fez-se sentir primeiro nas rias, tendo de lutar com as mesmas dificuldades à medida que se estendia para o interior. Poderá talvez dizer-se que houve maior resistência em sermos aceites pelos povos invasores da Guiné, na medida em que, a partir do século XIX, as lutas entre régulos e etnias Mandingas, Fulas e Beafadas, agitaram diretamente ou indiretamente todo o território”. As campanhas de pacificação saldaram-se na perda de prestígio dos régulos e no desmembramento ou extinção de alguns regulados, criaram-se mesmo novos regulados fiéis às autoridades mas que não gozavam de prestígio entre as populações. As consequências foram por vezes manifestamente explosivas: perda de prestígio dos régulos em benefício das autoridades administrativas; existência de regulados fictícios e sem projeção fictícia; importância da etnia Fula em detrimento das outras; fomento de rivalidades étnicas entre os antigos detentores do poder político e os novos senhores; reação da nova geração, parcialmente enculturada em padrões ocidentais à autoridade de um chefe fantoche, entre outras.

O autor seguidamente sistematiza a organização política dos povos da Guiné, refere detalhadamente S. Domingos, Farim, Bigene, Mansabá e Olossato, Cuntima, Cacheu, regulados não dependentes do régulo de Bassarel; depois dirige a sua atenção para o concelho de Bafatá, depois o Gabu (lembra que o território do Boé foi integrado na Guiné Portuguesa depois da Convenção Luso-Francesa de 1886), segue-se Fulacunda, adiante Bolama, depois o concelho de Bissau. É inquestionavelmente o levantamento riquíssimo, temos aqui as estruturas políticas étnicas, vemos como o não reconhecimento dos chefes tradicionais leva quase automaticamente à adesão à subversão, na generalidade dos casos é percetível que a falta de prestígio dos régulos, as tensões étnicas, a manifesta fraqueza da estrutura tradicional, constituíram-se focos explosivos que em muitos casos o PAIGC explorou a seu favor. O autor é minucioso, vê-se que teve meios para estudar, ouvir e consultar informação pertinente, seguramente lhe fora facultada pelos serviços do comando chefe. Tratou-se de uma situação privilegiada que assegurou um levantamento ímpar, daí este riquíssimo mapa que cobre todo o território, e assim pôde anotar fidelidades e traições que agora podem ser compreendidas à luz de um levantamento histórico onde a política colonial portuguesa também se manifestou por um acervo de erros em nomeações de régulos ou chefes que a propaganda do PAIGC, sempre que possível, explorava com sucesso. Só um dado entre os muitos que o autor apresenta no seu mapa, o regulado de Chanha, um campo experimental da chamada “política de independência das raças”, perseguida pelas autoridades, depois de 1927. O regulado foi dividido em três chefados e as respetivas chefias repartidas por um Fula-Forro, um Fula-Preto e um Mandinga. Em breve se verificou que esta política era impraticável e voltou-se a entregar de novo a chefia do regulado ao seu legítimo régulo, Nhala Bobo. Depois da morte deste, as autoridades pretenderam impor o régulo atual que até tinha perdido as eleições. As autoridades tradicionais existentes, quando começou a subversão, não tinham qualquer prestígio, e a perante a evolução da subversão, mostraram a sua incapacidade, criaram mais um problema às autoridades portuguesas.

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12580: Notas de leitura (552): "Mudança Sócio-Cultural na Guiné Portuguesa", dissertação de licenciatura de José Manuel Braga Dias (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12591: Em busca de... (234): Subunidade a que pertenceu Hermínio Dias Gaspar, meu tio, recentemente falecido... Sei que esteve em Nhala e pertenceu ao BCAÇ 2892 (1969/71) (Lúcia Alves, a viver e a trabalhar na Guiné-Bissau)


Guiné > Região de Tombali > Setor S2 (Aldeia Formosa) > Nhala > c. 1973/74 > Aspeto parcial do aquertelamehto e tabanca: cantina à esquerda e enfermaria à direita. Foto do 1º cabo cripto José Carlos Gabriel,  2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Nhala,  1973/741973/74).

Foto: © José Carlos Gabriel  (2011). Todos os direitos reservados.

1. Mensagem da nossa leitora Lúcia Alves, com data de 22 de dezembro último:


Exmo Sr. Luis Graça


Estou actualmente a viver/trabalhar na Guiné Bissau e gostava de tentar recuperar o percurso de um tio que esteve na guerra do ultramar na Guiné. Como faleceu recentemente,  pouco sabemos do(s) local(ais) por onde passou ou onde esteve e em forma de homenagem póstuma gostava de passar nesses locais.

Pesquisando alguma correspondência e fotos,  a única referência que encontro é uma, a localidde de Nhala, de onde escreveu uma carta e uma foto em que está supostamente um colega, frente a um distico/ brasão (perdoe a minha ignorância nesta matéria) de uma companhia de caçadores 2616.

Segundo a pesquisa que fiz,  pertence ao Batalhão [de Caçadores] 2892. Também encontrei alguma referência a uma lista de ex-combatentes mas não consegui abrir o link.

Será que alguém me poderá ajudar? O seu nome era Hermínio Dias Gaspar.

Votos de festas felizes e o meu muito obrigado

Lúcia Alves

2. Comentário de L.G.:

Lúcia, obrigado pela sua mensagem a que só agora nos é possível responder. Deixe-me louvá-la  pela sua iniciativa de ir, em romagem de saudade, aos locais, da Guiné-Bissau, por onde terá passado, durante a sua comissão de serviço, o seu tio Hermínio Fias Gaspar. Só nos deu duas pistas: (i) leu uma carta dele, endereçada de Nhala, no sul da Guiné; e (ii) ele envou uma foto, em que se pode ver, em plano de fundo, o brasão da CCAÇ 2616, subunidade que pertenceu ao BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71).

Não é fácil, com os elementos de que dispomos, saber ao certo a que subunidade (companhia) pertenceu o o seu tio. O BCAÇ 2892 (, que esteve sediado em Aldeia Formosa,  tinha três subunidades de quadrícula (CCAÇ 2614, CCÇ 2615 e CCAÇ 2616) e um companhia de comandos e serviço (CSS) que estava em Aldeia Formosa. Ao que parece, todas as três passaram por Nhala. O mais seguro era consultar a sua caderneta militar, que deve estar na posse da família.

De qualquer modo, pelos elementos recolhidos pelo nosso colaborador permanente, José Martins, o BCAÇ 2892 e o seu pessoal andou por diversos sítios da Guiné, com destaque para a região de Tombali. Aldeia Formosa hoje é mais conhecida por Quebo.

Lúcia, sinta-se á vontade para nos voltar a contactar. Entretanto, é possível que apareçam camaradas do seu tio, que tenham estado no BCAÇ 2892. Temos alguns membros do nosso blogue, ou amigos do Facebook [Tabanca Grande Luís Graça]. Siga os links:

(i) Amércio Vicente e Francisco Barroqueiro  (CCAÇ 2614,  Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71) [, curiosamente a esta subunidade do BCAÇ 2892, pertenceu o antigo presidente da República da Guiné-Bissau, Henrique Pereira Rosa, falecido em 2013];

(ii)  Manuel AmaroFradique Augusto Morujão (CCAÇ 2615,Nhacra,  Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71):

(ii) Francisco Baptista (CCAÇ 2616Buba, 1970/71).

Se um, dia passar por estes lugares, em homenagem ao seu tio, mande-nos notícias e fotos. Boa estadia pela Guiné-Bissau. Gostaríamos, de resto, que aceitasse o nosso convite para integrar este blogue de "amigos e camaradas da Guiné", em memória do seu tio e dos bravos da sua geração.


3. Ficha de unidade:

[Elementos recolhidos por José Martins]

BATALHÃO DE CAÇADORES Nº 2892 [Aldeia Formosa, 1969/71]


Ostentando como Divisa “Poucos Quanto Fortes”, mobilizado no Regimento de Infantaria nº 16, em Évora e, acompanhado das suas unidades orgânicas, embarca em Lisboa a 22 de Outubro de 1969, desembarcando em Bissau a 28 de Outubro seguinte.

Teve como Comandantes o Tenente-coronel de Infantaria Carlos Frederico Lopes da Rocha Peixoto, o Tenente-coronel de Infantaria Manuel Agostinho Ferreira e o Major de Infantaria José Moura Sampaio.

O cargo de 2º Comandante foi exercido pelo Major de Infantaria José Moura Sampaio e Major de Infantaria Pedro Júlio Pezarat Correia, que acumulou com o cargo de Oficial de Informações e Operações/Adjunto.

A Companhia de Comando e Serviços esteve sob o comando do Capitão de Infantaria Eduardo Alberto de Veloso e Matos e, posteriormente, pelo Capitão Miliciano de Infantaria Francisco José dos Reis Neves,

O batalhão assume a responsabilidade do Sector S2, instalado em Aldeia Formosa, abrangendo este e os subsectores de Empada, Mampatá, Nhala e Buba.

Desenvolve e coordena acções de contra penetração nos eixos de reabastecimento do IN, diversas acções ofensivas, patrulhamentos e emboscadas, assim como reacções aos ataques aos aquartelamentos. Procurou promover a promoção socioeconómica das populações, tentando garantir a segurança e a defesa das mesmas.

No decorrer das acções que coordenou capturou diverso material, destacando-se 1 metralhadora pesada, 2 pistolas-metralhadoras, 5 espingardas, 303 granadas de armas pesadas, 29.657 cartuchos de armas ligeiras e 63 minas.

Foi rendida no Sector S2 pelo Batalhão de Caçadores nº 3852, regressando a Bissau a 27 de Agosto de 1971.


Companhia de Caçadores nº 2614 [Bissau, Nala e Aldeia Formosa, 1969/71]



Sob o comando do Capitão Miliciano de Infantaria José Manuel Baptista Rosa Pinto, cede dois pelotões para cooperar no dispositivo de segurança e protecção das populações da área de Bissau, na dependência do Batalhão de Artilharia nº 2866.

Segue, a 29 de Outubro e 7 de Novembro de 1969, para Nhala, para substituir a Companhia de Caçadores nº 2464. Em 10 de Novembro de 1969 assume a responsabilidade de subsector e, em cooperação com o subsector de Mampatá, tentar a interdição do corredor de Missirá.

A 21 de Novembro de 1970 troca com a Companhia de Caçadores nº 2615, e assume a responsabilidade do subsector de Aldeia Formosa até 26 de Agosto de 1971, data em que é rendido pela Companhia de Caçadores nº 3399 e regressa a Bissau.

Companhia de Caçadores nº 2615 [Nhacra, Aldeia Formosa, Nhala, 1969/71]

Sob o comando do Capitão Miliciano de Infantaria António Miguel Ramalho Pisco e na dependência do Batalhão de Artilharia nº 2866, substituindo a Companhia de Artilharia nº 2340 e assumindo a responsabilidade do subsector de Nhacra com destacamentos em Dugal, Safim, Ponte Ensalmá, João Landim e Fanha.

Entre 5 e 16 de Dezembro de 1969 segue por escalões para Aldeia Formosa onde, onde substitui a Companhia de Artilharia nº 2614, nas funções de intervenção e reserva do sector. Realizou acções nas zonas de Contabane, Cansembel, Bungofé, entre outras, e escoltas a colunas entre Buba e Aldeia Formosa.

Em 8 de Abril de 1970 a intervenção no sector passa para a Companhia de Artilharia nº 2521, enquanto a Companhia de caçadores nº 2615 assume a responsabilidade do subsector de Aldeia Formosa, destacando um pelotão para Nhala, para protecção e segurança dos trabalhos da instalação do aldeamento.

Entre 15 e 21 de Novembro de 1970, as Companhias de Caçadores nºs 2615 e 2616, trocam entre si, ficando a primeira com a responsabilidade do subsector de Nhala e a segunda com a responsabilidade do subsector de Aldeia Formosa.

Em 26 de Agosto de 1971, data em que é rendida pela Companhia de Caçadores nº 3400 e regressa a Bissau.

Companhia de Caçadores nº 2616 [Nhala, Aldeia Formosa, Bissau, Buba, 1969/71]

Embarca sob o comando de um oficial subalterno, o Alferes Miliciano de Infantaria Vítor Manuel Cristina Aleixo, sendo o comandante, o Capitão de Infantaria Artur Bernardino Fontes Monteiro que, mais tarde,  veio também a ser substituído pelo Capitão de Infantaria José João David Freire.

Cedeu, para cooperar no dispositivo de protecção e segurança das instalações e população da área de Bissau, ficando os mesmos na dependência do Batalhão de Artilharia nº 2866, até 7 de Novembro de 1969

A 29 de Outubro e 9 de Novembro de 1969 segue, em dois escalões, para Buba onde, em 10 de Novembro de 1969, assume a responsabilidade do subsector de Buba, rendendo a Companhia de Caçadores nº 3282.

Foi rendida pela Companhia de Caçadores nº 3398, em 26 de Agosto de 1971, regressando a Bissau.

O Batalhão e as suas unidades orgânicas, iniciam a sua viagem de regresso a 6 de Setembro de 1971.

16 de Janeiro de 2014

José Marcelino Martins

[Imagens dos brasões,  de colecção particular, aqui reproduzidos com a devida vénia: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.]

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Nota do editor:

Último poste da série >  29 de dezembro de 2013 >  Guiné 63/74 - P12520: Em busca de... (233): Pessoal do Destacamento Avançado Móvel de Intendência nº 664 (Moçambique, Tete, 1964/66) (António Ferreira Carneiro, o "brasileiro", ex-1º cabo magarefe, DFA, residente em Custoias, Matosinhos, e membro da Tabanca de Candoz)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12590: Blogoterapia (246): A Op Lança Afiada ou a Impotência da Escrita (Torcato Mendonça, ex-al mil art, CART 2339, Mansambo, 1968/69)



Foto Falanet III > Nº 55



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O "repouso do guerreiro"... O alf mil Torcato Mendonça numa pausa de uma operação no mato, "matabichando"... Ou mais provavelmente, à espera do IN, numa das emboscadas montadas, algugures, nas encruzilhadas da morte (Foto nº 55, acima). Na foto a seguir (nº 58), percebe-se que está "bem acompanhado": (i) foto de mulher, de uma capa de revista; e (ii) a metralhadora ligeira HK 21... Fotos nº 55 e 58 da série Fotos Falantes III.

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: L.G.]


1. Texto, com data de 14 do corrnte,  do nosso camarada (e colaborador permanente daTabanca Grande) Torcato Mendonça, ex-alf mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69: 


[Foto à esquerda:  Fundão, 27/1/2007. Foto de L.G. ]

O TM é um autor, fecundo, com cerca de 220 referências no nosso blogue, com  diversas séries como: (i) Estórias de Mansambo, (ii) Estórias de Mansambo II, (iii) Pensar em Voz Alta, (iv) Nós da Memória, (v) Fotos Falantes... Disponibilizou-nos também o seu riquíssimo álbum fotográfico. Material mais do que suficiente para publicar vários livros... Um alfabravo caloroso para ele, para estes frios do Fundão... (LG)

Assunto: Tarde Fria

Meus caros,

Aí vai o resultado de uma tarde fria. Finalmente a montanha pariu um rato e o resultado é essa droga. É o que entendi escrever sobre a Lança Afiada. Não me merece mais que isso. Foi mau demais e já muito sobre essa Operação foi escrito. [Temos, no blogue, cerca de 3 dezenas de referências sobre a Op Lança Afiada]

Eventualmente e se um dia me der na bolha poderei escrever alguns "casos" passados naqueles dias.

Com o meu abraço, T.



2. Op Lança Afiada ou a Impotência da Escrita

por Torcato Mendonça


Em meados de Fevereiro de sessenta e nove, o Boeing aterrou na curta pista de Bissalanca.  Com lentidão, sem pressa alguma, desapertei o cinto a preparar a saída…

…o calor e a humidade bateram-me forte no curto percurso até á gare. Aí estava eu de novo na Guiné, terra "vermelha e ardente", para mais um período de cerca de um ano de comissão…

…em Santa Luzia, após o almoço, recebi novas da guerra: a saída de Madina do Boé e o desastre do Cheche, uma ou duas semanas antes, outros acontecimentos mais e uma informação que parecia dizer-me diretamente respeito:
- Na tua zona vão fazer, parece que brevemente, uma operação em grande. 

Pouco mais me disseram e nem era necessário.

Quando fiquei só, perante a facilidade e a ligeireza como proferiram estas informações fui levado a pensar que o IN (Inimigo – PAIGC) sabia, e certamente com pormenores, desta Operação. Tinha boa rede de informadores e descuidos como este pareciam ser frequentes. Guerra de merda,  com estas informações tão permissíveis.

… não compreendia a saída de Madina, depois da saída de Béli. Sabia como era a estrada para Madina e os ataques que este aquartelamento sofria. Só que aquela saída de Madina era o abandono do Boé e a deslocação da fronteira para a margem esquerda do Corubal – praticamente desde a entrada do rio no Território (Marco 49 – zona de Cabuca –ver Carta 1500.000 da Guiné) até, sem precisão, a zona de Contabane (Marcos 20/21).

O IN aproveitaria certamente essa tomada de posição e mais facilmente entraria no território. Preocupante.

Mas quem era eu, um simples Alferes de empréstimo àquela guerra, para me preocupar com o que Oficiais Superiores tinham discutido no conforto de seus gabinetes? Ninguém!

Dias depois, já em Mansambo, vim a saber mais pormenores sobre essa Operação:  o nome de código "Lança Afiada".

Eu, integrado no meu Grupo de Combate e na minha Companhia, participei nela.

Já muito foi escrito, aqui neste Blogue, sobre essa Operação. Pessoalmente creio já ter escrito o suficiente. Tentei, agora, escrever mais e acabei por ficar com dezenas de páginas. Preferi destruir a maioria e outras foram para o arquivo morto. 

Encerro o "Capitulo de A Guerra".

Aquela Operação acabou por me mostrar que assim devia proceder. Falar dela, da maior Operação em que participei, podia ser, em algumas partes, uma crítica injusta e ter, hoje, passados tantos anos uma visão completamente errada do que por lá, naqueles longos dias, se passou.

Um exemplo:  o não terem sido montadas emboscadas na margem direita do Corubal por tropas helitransportadas. Muito mais exemplos podiam ser aqui apresentados.

Quando a Operação terminou, tínhamos a consciência de que toda aquela zona do Leste (Xime ao Xitole pela margem esquerda do Corubal) foi completamente destruída e arrasada e todos os objetivos, previamente planeados, foram conseguidos. Cumpriu-se assim a missão. Mas para quê e com que resultado para as NT? Dizer que o IN não foi aniquilado e devia ter sido, hoje, parece violento. Teria outrora o mesmo significado?

O IN, não digo Turras porque não gosto de certas palavras –Tugas, tropa macaca, Pimbas, Caco e e vocábulos semelhantes.

Com estas limitações, há, isso sim, uma impotência da escrita. Questão subjetiva e passível de todo o contraditório ou mesmo colocar em causa alguns escritos meus. Não ponho um ponto final na escrita ou, melhor, nos escritos sobre a Comissão na Guiné. Se isso acontecer, fá-lo-ei como até aqui, em relato simples de certos acontecimentos. Nunca digas nunca,  mas parar um pouco é o melhor. Já estou nesse "estado" há muito tempo.

Para mim, bem para mim…

…a guerra não se descreve ou não tenho palavras para o fazer. A guerra são sons, gemidos, urros e gritos, cheiros, ódios, sofrimento, dor e a sua descrição se torna uma impossibilidade descritiva. Fica ainda para o fim a amizade, a camaradagem entre os militares e isso como se descreve? Difícil, eu sei.

Aquilo – o combate, o embate entre os contendores – acontece, acontece bruscamente ou com lentidão, num sim ou não que, em comum, tem sempre a brutalidade. Vai subindo de violência, envolvendo tudo e todos com os sons das granadas e tiros, de gritos e gemidos numa envolvência onde os automatismos, o treino, a brutalidade a tudo e a todos se sobrepõem. Vai lentamente parando, aquietando-se e fica o cheiro adocicado da morte, das ervas devastadas, do enxofre das granadas e os sons mudam agora e temos a libertação dos ódios, da constatação da morte e a tristeza aparece. Caso os sons sejam de risos, sim de risos, então tudo, naquele lado, está bem. Mas tudo isto não se descreve, tudo isto se sente, se entranha nos ossos, dentro dos ossos e lá fica. Quando chegam encostam-se ás anteriores memórias e aconchegam-se para darem lugar ás que aparecerão no futuro, ou não. Se não, se não houver memórias a guardar aparece certamente o riso tolo e sarcástico da morte. Essa está sempre presente na contenda e saltita, ri e chama. A morte, essa puta, se vence o momento leva a presa e ri saltitando em busca de algo mais.

Como descrever a morte ou o que há tanto tempo está tão profundamente guardado? Não, não é possível e existe sempre uma lógica retração. Descrever a morte de camaradas? Não.

Para quê então falar disso? Para quê então falar do cheiro da morte, dos sons, dos gritos, dos ódios se eles nos aparecem, felizmente hoje com menor intensidade. Vêm no sonho, num ruído estranho, no cheiro ligado á recordação de outrora. Vêm raramente mas vêm. Não as provoquemos. Que fiquem guardados, aquietados,  pois foram para isso tratados durante anos e anos. Um dia, anos atrás e de repente abriu-se o portão da memória e um novelo prenhe de nós correu veloz a desatar-se, a tentar libertar-se de algo.

Pará-lo é preciso e ele ficará aquietado.

Talvez também por respeito. Sim,  por respeito pelo portador do novelo das recordações já deturpadas, dos camaradas que já partiram, de muitos que hoje pretendem o silêncio. Mas nunca esqueças os teus camaradas, os teus companheiros ou os teus amigos africanos. Muitos andaram contigo no mato e te ajudaram e não eram "tropa macaca" e não te chamavam de "tuga". Mas ouviste chamarem-te assim,  no Galoiel ou no Poindom…apelos ou vómitos nervosos do IN…

Não vais desatar os nós, vais aquietar-te e, de quando em vez, podes, se for caso disso, desatar uma ou outra recordação alegre ou mesmo lamento ou protesto para com algum teu camarada ou o bom Povo das Tabancas…

Sobre a Lança Afiada é tudo. Há ou sinto uma libertação de nela falar (escrever). Foi violenta demais. Um dia, se houver esse dia, recordarei casos que não sejam tormentos aquietados.

Torcato Mendonça

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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12589: Memórias de Gabú (José Saúde) (38): Uma homenagem ao Major, aposentado, Brito, então 1º Sargento.


Um brinde com whisky entre o então 1º Sargento Brito, hoje Major, e claro, eu, José Saúde. As tabancas, ao fundo, retratam realidades num espaço distante onde as fortes e medonhas trovoadas se cruzavam com um cacimbo atroz e um arco ires que se sobrepunha a um horizonte belo, mas sempre carregado de incertezas. O calor sufocante hostilizava, também, as nossas vidas.


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Uma homenagem ao Major, aposentado, Brito, então 1º Sargento 

As minhas memórias de Gabu


Revendo uma pequena parte do meu livro GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU

Uma homenagem ao Major, aposentado, Brito, então 1º Sargento 

Visita a Madina Mandinga

Foi um dia memorável! Uma visita amigável à 1ª Companhia do BART 6523 sediada em Madina Mandiga, apresentou-se como uma viagem tranquila e anteriormente impensável. As estratégias no terreno estavam definidas. O PAIGC e a nossa tropa haviam estabelecido princípios de entendimento e o medo da picada, e a sua imprevisibilidade, antes constatado, oferecia agora uma segurança absoluta.

Foi a um domingo e já em tempo de Paz que um grupo da CCS, em Nova Lamego, e a Companhia destacada em Madina, combinaram um jogo de futebol. Dois Unimog com malta que se entregava às jogatanas pontuais, e eis-nos perante o grupo disposto a desbravar conteúdos de uma picada onde a ondulação do capim se misturava com árvores de grande porte nascidas na exuberância da densidade do mato cerrado.

O resultado final não interessou, tão-pouco ficou registado nas minhas memórias. Não interessa! O único objectivo foi o amplo convívio verificado. O festim decorreu de forma cordial, trocaram-se impressões, comentou-se o último ataque a Madina, apontou-se para o sítio das valas que serviram de proteção aos ilustres soldados e recordou-se os locais onde os foguetões haviam caído. Pelo meio de dois dedos de conversa umas fotos para mais tarde recordar.

Dessa viagem, com o pessoal completamente dispensado das G3, bazuca, ou do morteiro 60, ficaram momentos inolvidáveis passados entre camaradas de armas que contemplavam a Paz agora sentida em toda a largura do terreno. Recordo, que a dita viagem entre as duas populações dista (va) cerca de 20 kms. Todavia, os quilómetros de picada assumiam-se como um osso duro de roer. Lembro que o percurso dividia-se entre o asfalto (alcatrão) e a terra batida.

Revivendo esse já longínquo convívio por terras da Guiné, recordo agora a forma desinteressada como fomos recebidos pelos ilustres anfitriões. Uma receção extraordinária, uns chutos numa bola já defeituosa, um almoço bem regado, uma cavaqueira que se arrastou ao longo da tarde, uma mesa cheia de bebidas e, finalmente, as despedidas aos companheiros de Madina que determinou, como foi evidente, o nosso regresso a casa emprestada.

O Cap. José Luís, sempre simpático, congratulou-se com a visita, mas foi com o 1º Sargento Brito que dissequei os momentos mais ávidos sentidos pela Companhia ao longo da comissão em Madina Mandiga. A talho de foice, e com toda a justiça o digo, que o 1º Sargento Brito era, e é certamente, um homem de se lhe tirar o chapéu. Gostei dele!

Soube, agora, através do ex Alferes Miliciano António Barbosa, um camarada de armas que integrava o nosso BART 6523 e que pertencia à 2ª Companhia sediada em Cabuca, que o então 1º Sargento Brito está, actualmente, aposentada como Major. Confesso que me congratulo por saber tão feliz notícia. Um abraço, e bem grande, meu Major. A vida, por norma, sorri-nos quando dentro de nós existem fatores humanos que suplantam o nosso querer, a nossa enorme vontade e o nosso egocêntrico ego.

Na minha guerra – Operações Especiais/Ranger, Lamego – evocava-se, com vaidade absoluta e estilo próprio, um grito (com a devida vénia e respeito) que arrepiava o mais incrédulo efebo da apelidada tropa “macaca”: “Vossa Excelência, meu Major, dá-me licença que evoque o seu bom nome para o colocar no meu Quadro de Honra?”. Creio, com certeza, que a resposta do meu Major será: SIM!

 
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

Guiné 63/74 - P12588: Os nossos camaradas guineenses (37): Os milícias e outras tropas auxiliares: as estatísticas dos tombados (José Martins / António J. Pereira da Costa / Jorge Picado)


(a) Milícias, polícia administrativa, caçadores nativos, civis contratados, etc.

Fonte: José Martins (2014)


1. Texto elaborado a partir de um comentário de L.G. ao poste P12576 (*)

Parece-me haver uma injustiça gritante, quando as nossas Forças Armadas não registaram (ou não registam) na lista oficial dos mortos os nomes de todos ou de muitos dos valorosos "milícias", ou tropa auxiliar, que esteve do nosso lado, durante a guerra colonial na Guiné... 

Por exemplo, o srgt de mílicas Samba Coiaté não consta na lista dos mortos da guerra do Ultramar, disponível no sítio da Liga dos Combatentes... Pesquisei pelo seu nome e data de morte em combate (18/3/1973)... E nada, o seu nome não consta...

E no entanto a sua morte é uma morte heróica, a avaliar pelo relato do Manuel Reis (*)...

Fiz um outro teste, com o nome do Seco Camará, valoroso milícia e guia das NT (que muitos de nós, do Setor L1, conhecemos)...  Não sei exatamente qual era o seu estatuto: creio que era um "civil contratado" (sic), às ordens do comando do BART 2917, com sede em Bambadinca, embora ele tivesse morança  no Xime (**)...

[Foto à esquerda: Seco Camará, em Mansambo.Foto: © Torcato Mendonça (2007) ]


O Seco Camará morreu, juntamente com uma secção inteira (5 camaradas do Xime, da CART 2715), numa operação em que participei, no subsetor do Xime (Op Abencerragem Candente)...  Foram os 6 primeiros homens abatidos de uma enorme coluna apeada, composta por 2 destacamentos, cada um com 3 grupos de combate, ou seja, no total cerca de 180 homens... Ajudei a recolher os seus restos mortais... tão reduzidos que cabiam num poncho...

Fez connosco (CCAÇ 12) diversas operações, fez operações com o Torcato Mendonça e outros camaradas que estão aqui na Tabanca Grande, e que passaram pelo Setor L1 em diferentes épocas... Mas aquela operação foi-lhe fatal... a ele que tinha guiado milhares e milhares de homens pelas matas do Xime e do Corubal, desde os  primeiros anos de guerra... Morreu, à roquetada, no dia 26/11/1970...

O seu nome também não consta na lista dos "nossos" mortos (, pelo menos na lista da Liga dos Combatentes)...

Um primeiro pensamento que me ocorre, é de indignação, esperando que  no entanto que isto não tenha passado de um lapso ou de falha da máquina burocrática do exército...

Os milícias não eram militares, mas foram combatentes... E que combatentes, muitos deles!... O Seco Camará não era nem podia ser um simples civil: era considerado o melhor (ou mais leal) dos nossos guias, e um exímio e corajoso picador. Mas os outros mílícias do Xime, ao que parece, não gostavam dele. Daí talvez a sua transferência para Bambandinca, ao tempo do BART 2917, se não me engano.

Tudo para dizer que a memória destes homens, o Samba Coaité, o Seco Camará e outros "tropas auxiliares" guineenses que tombaram, ao nosso lado,  deve ser honrada por todos nós... Pelo menos aqui... LG


2. E a este propósito, perguntei ao José Martins, nosso colaborador permanente [, e que tem especial sensibilidade em relação a este assunto, já que pertenceu a um companhia afriicana , a CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70], para me confirmar se os milícias estão ou não estão fora das listas dos mortos da guerra na Guiné.

Dei-lhe estes dois exemplos, o do Samba Coiaté e do Seco Camará, em que sabemos os nomes e as datas da morte... Mas haverá mais casos que, em princípio, terão ficado fora das nossas contas. A ser assim, teríamos que  rever os números das nossas baixas (mortais)  no TO da Guiné que, tenho, ideia andarão à volta das 3 mil... 

A resposta do José Martins, com data de 13 do corrente, foi a seguinte:

Boa tarde, Luis: Junto quadro elaborado a partir dos totais inscritos nos dois livros sobre os Tombados na Guiné. [ Vd. quadro supra.]

Dos nomes indicados o primeiro  [Samba Coiaté]   não  consta, com os elementos fornecidos, mas o segundo  [Seco Camará] faz parte da relação.

É preciso ter em boa nota os nomes por que eram conhecidos e se identificavam. Há milicias a quem se atribui dois nomes.

Abraço, José Martins.

Analisando o quadro acima verficamos que os nossos piores anos, em termos de baixas mortais, no caso das tropas regulares, foram os de 1967, 1968, 1969 e 1973... No caso das tropas auxiliares (e nomeadamente milícias), foram os anos de 1967, 1968, 1971 e 1973. No conjunto, o pior ano é do de 1973, com 11,9% do total das baixas mortais, ou seja, em termos absolutos 339 tombados.

3. Eis a seguir a opinião do nosso camarada António José Pereira da Costa, cor inf ref, a quem também pedi opinião, na mesma data.

[Foto à direita ... Recorde-se que ele foi alf art  na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; e Capitão Art Cmdt das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74]

Nunca estudei esse assunto.

Creio que não estarão incluídos por terem o estatuto de civis que colaboravam com as NT.

Não ganhavam como soldados e no período de formação (em Mansabá houve instrução de milícias) não tinham a mesma verba para alimentação dos soldados que assentavam praça para fazerem o SMO.

Em 1968 ainda armavam de Mauser e vestiam as sobras do fardamento e equipamento das NT. Daí para a frente as coisas mudaram e surgiram até os GEMil (havia dois no Enxalé, em 1972).

Claro que, nestas condições,  a sua prestação era variável havendo Pelotões de  Milícias com óptimas prestações e outros nem tanto. 

O mesmo sucedia individualmente. Até conheci um que, em 1968 era muito decidido e em 1972 procurava viver na paz do seu lar deixando a guerra que parecia não ter fim.
Um Ab.

António J. Pereira da Costa

4. Comentário, de 14 do corrente, do Jorge Picado, ao mesmo poste (*)



[Foto à esquerda: ex-cap mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72 ... aos 32 anos, pai de 4 filhos, engenheiro agrónomo, ilhavense].



Camaradas: Comungo do sentimo geral expresso sobre "a sorte" dos guineenses que nos foram fieis e que muito nos ajudaram.

Já agora, como dizem que os milícias e outros, como os carregadores, não constam das baixas em combate, posso acrescentar que na HU do BCaç 2885, constam os seguintes Mortos em Combate:

Pel Mil n.º 250 (Ex-Pel Mil n.º155)

- Soldado Mil.ª n.º 17267 Bailó Djaló, em 18MAI69

Pel Mil  n.º 251 (Ex-Pel Mil n.º 156)

- Soldado Mil.ª n.º 21067 Alberto Silva, em 18JUL69

Pel Mil n.º 252 (Ex-Gr Caç Balantas) (Ex-Pel Mil  n.º 186)

- Caçador Nativo José Bacar, em 04JUL69
- Caçador Nativo Clode Biete, em 18JUL69
- Caçador Natigvo Toban Car, em 23SET69
- Cacçador Nativo Quedim Botche, em 23SET69
- Soldado Mil  n.º 49069 Tuquena Iagna, em 06DEZ70

Pel Mil.ª n.º 253 (Ex-Pel Mil.ª n.º159)

- Soldado Mil.ª n.º 02868 Sambel Sabali, em 05OUT70

Colaborador das NT

- Carregador José Sambú, em 17AGO69.

Abraços
JPicado

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Notas do editor:

(*) 12 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12576: Os nossos camaradas guineenses (36): Abdulai, meu irmão!... Recordando quatro valorosos milícias de Guileje: Sátala Colubali, Camisa Conté, Abdulai Silá e Sargento Samba Coiaté (Manuel Reis, ex-Alf Mil Cav, CCAV 8350, Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã, Colibuia, 25/10/72 - 27/8/1974]

(**) Vd. postes de:

20 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11429: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai

26 de novembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7339: In Memoriam (62): Por quem os sinos dobram hoje, 40 anos depois: Fernando Soares, Joaquim de Araújo Cunha, Manuel da Silva Monteiro, P. Almeida, Rufino Correia de Oliveira e Seco Camará, os bravos do Xime, mortos na Ponta do Inglês (Op Abencerragem Candente) (Luís Graça)

11 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador, Seco Camará

12 de fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5803: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (2): Os guias e picadores, mandingas, do Xime, Malan e Mancaman: duas maneiras diferentes de ser e de estar na guerra...

2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz


Guiné 63/74 - P12587: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (14): A minha casa em Bissau

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap Mil de Artilharia

14 - A MINHA CASA EM BISSAU

Em 24 de Junho de 1970 a Lena e o meu filho Fernando Manuel chegaram a Bissau, depois de cumprido o ano escolar de 1969-1970.
Foram viver para uma pequena moradia situada na Avenida Arnaldo Schulz, que eu tinha conseguido alugar.
A nossa casa localizava-se muito próximo do Quartel da Polícia. Era uma pequena vivenda, com uma sala de estar, outra de jantar, dois quartos, cozinha e casa de banho. Mas tinha à sua volta um pequeno jardim no qual havia duas bananeiras e uma linda acácia rubra.

Dada a minha posição na hierarquia militar tive direito a um impedido. Foi-me atribuído para exercer essas funções um soldado negro, que anteriormente havia sido "terrorista", de nome Moba, de religião muçulmana.
Tinha já três mulheres quando entrou ao meu serviço e vários filhos.
Andava sempre com dificuldades financeiras. Muitos dias antes do pagamento do pré1 pedia-me adiantamentos e isto quase todos os meses.
Dizia-me que não tinha dinheiro para comprar a "vianda" para os meninos. E eu adiantava-lhe o pré.

A sua religião proibia-o de beber vinho. Mas para ele vinho somente era o tinto. Desta forma iludia as suas próprias convicções religiosas, pois dizia-me que o vinho branco era água de Lisboa e como tal não lhe estava proibido bebê-lo.
Quando a sede lhe apertava pedia-me:
- Capitão, dá-me um copo de água de Lisboa.

E eu, em regra, satisfazia-lhe o pedido.
Um dia pediu-me férias.
- Férias nesta altura, Moba?
- Sim, Capitão. Preciso de alguns dias de férias para casar.
- Outra vez?! - admirei-me eu. Já tens três mulheres e não sei quantos filhos e queres casar outra vez? O dinheiro não te chega a nada, estás sempre a pedir-me adiantamentos e ainda queres outra mulher?
- Preciso, Capitão. Vou casar com uma "bajuda". Quando eu e as minhas outras mulheres envelhecermos ela tratará de nós.

Perante esta explicação não pude deixar de dar férias ao meu impedido Moba.
E a explicação que me deu levou-me a considerar que a organização social dos muçulmanos protege a velhice dos seguidores dessa religião.
Também entre as várias mulheres de um só homem não se verifica a existência do ciúme. Era usual pentearem-se umas às outras em frente das palhotas, convivendo amigavelmente.

Tivemos também uma lavadeira negra de nome Inácia. Durante o tempo que esteve ao nosso serviço o marido adoeceu gravemente e acabou por morrer.
Ficamos muito tristes com o infausto acontecimento uma vez que tínhamos muita estima pela Inácia, que era muito boa mulher.
Sempre que me irritava com alguma traquinice do meu filho e lhe ralhava ela punha-se imediatamente à frente e rogava-me:
- Capitão, não batas ao menino. Capitão, por favor.

Por isso quisemos saber da futura situação da Inácia e do seu pequeno filho.
Ela informou-nos que tudo estava assegurado. Passaria a pertencer a um cunhado e o "tiozinho" passaria a ter a responsabilidade de tratar e criar o miúdo.
Era uma criatura paciente, humilde e meiga. Gostava muito do meu filho. Dizia a respeito dele, muitas vezes:
- Menino, tem esperto na cabeça.

Tivemos também uma "bajuda" para a limpeza. Era uma rapariga muito nova que, findo o trabalho, se despia completamente nas traseiras da nossa casa e se lavava com a mangueira do jardim.
Encontrei o meu filho, algumas vezes, por detrás da persiana, gozando o espectáculo que a "bajuda" oferecia sem o mínimo pudor.

A nossa alimentação vinha da Messe de Oficiais do Batalhão de Engenharia pelo que não cozinhávamos.
Também tivemos um pequeno cão, o Perna Longa, e um periquito.
Uns tempos antes de regressarmos a Portugal demos o cão. O Moba tratou de o levar para o novo dono que habitava longe de nós.
O animal procurou e conseguiu voltar a nossa casa, orientando-se não sei como por entre aquele emaranhado de bairros de palhotas que circundavam a cidade. Só depois de ser preso pelo novo dono é que deixou de nos aparecer.

Quanto ao periquito ofereci-o ao Major (é hoje General) Carlos Azeredo. Ele tinha um periquito que morreu. O major falara-me do seu passamento com alguma tristeza.
Perto de regressarmos, para aliviar a tristeza do major, ofereci-lhe o periquito.

Nutria por este major uma certa simpatia, enquanto permaneci na Guiné.
Mais tarde vim a saber que entre a minha família e a dele havia fortes relações, dada a proximidade das "casas" a que ambos pertencemos.
Ele é oriundo da Casa do Cabo de Marco de Canavezes e eu da Casa da Seara de Magrelos.

Enquanto durou a minha comissão na Guiné a Lena trabalhou como professora na Escola Preparatória de Bissau e o nosso filho Fernando Manuel fez lá a 4.ª classe, a admissão ao Liceu e o 1.º ano do Ciclo Preparatório.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12503: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (13): A Economia da Guiné - A Feira de Amostras de 1971

Guiné 63/74 - P12586: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte II) (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Furriel Mil. Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 14 de Janeiro de 2014:

Caríssimos Camaradas Editores:
Luís Graça, Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães. 
Antes de mais, desejo-vos um óptimo ano de 2014.
Depois de uma primeira narrativa histórica [P12565], que serviu de apresentação a um novo contexto vivido pelo efectivo militar da CART 3494, no qual me incluo, relacionada com o quotidiano de práticas e experiências contabilizadas durante a presença no Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, ocorridas durante o 2.º semestre de 1973 [já lá vão mais de quarenta anos!] eis, pelo presente, a segunda peça desse puzzle.

Obrigado pela atenção
Jorge Araújo
14Jan/2014


O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA 

(XIME-BAMBADINCA) 

- As acções especiais durante o 2.º semestre de 1973 [parte II] - 

A segurança à[s] Ponte[s] do Rio Udunduma

1. - Introdução

No texto anterior [P12565*] dei-vos conta do itinerário histórico que me levou, assim como ao competente efectivo militar da CART 3494, até ao Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, sito ao km 4 da Estrada Bambadinca/Xime, identificando as três principais acções “especiais” aí realizadas durante o 2.º semestre de 1973, a saber: delimitação física da área do destacamento com arame farpado; construção em alvenaria de uma moradia e melhoramentos dos caminhos internos, culminando com a edificação de um monumento em memória do colectivo da Companhia 3494, a que designámos por “Rotunda da Ponte” [fotos anteriores].

Com esta tríade de benfeitorias, procurou-se dotar aquele contexto com um pouquinho mais de dignidade humana, tendo em consideração o superior interesse pela salvaguarda da integridade física e mental de cada um de nós, pois tratava-se de um cenário adverso, miserável e degradante, certamente como tantos outros por que passamos no CTIG, em particular os mais operacionais, independentemente da época em que tal se verificou.

Como reforço do acima expresso, apropriamo-nos, nesta abordagem histórica, de um pensamento/reflexão do camarada Luís Graça [CCAÇ 12], nosso antepassado e um dos pioneiros envolvidos nestas e em outras aventuras na região, e também ele contemplado, no seu tempo, com várias visitas ao local, referindo-se sobre este contexto nos seguintes termos: “o mítico destacamento da ponte do Rio Udunduma… e os “desgraçados que lá penaram dias e dias à boa vida…” e […] “O maldito “buraco” da ponte do Rio Udunduma, o inferno de mosquitos, cobras e ratos, onde muitos de nós, nos idos tempos de 1969/70, vivemos como animais…”. Ou, ainda, a experiência aí contabilizada, durante dois meses do ano de 1972, pelo camarada Joaquim Mexia Alves, ex-Alferes Op Esp/Ranger da CART 3492/BART 3873 e, depois, CMDT do Pel Caç Nat 52, afirmando que “as instalações eram tétricas, e que havia uma qualquer construção de ripas de madeira tipo refeitório”.

De facto, foram cinco os anos em que por lá passaram algumas centenas de militares, africanos e metropolitanos, pertencentes a diversas subunidades do Sector L1, já divulgadas anteriormente, ocorrência iniciada em 29MAI1969 por via da ponte velha ter ficado danificada após atentado perpetrado pelo PAIGC, e que só teve o seu epílogo com o fim da guerra de guerrilha, pós 25 de Abril de 1974.

Esses efectivos colocados numa linha avançada em relação à sede do Batalhão, sito em Bambadinca, [repito] permaneceram activos e vigilantes mas desprovidos de qualquer rectaguarda de apoio militar, em que cada um de nós estava completamente abandonado à sorte da divina providência e à sua capacidade de resistir e de sobreviver, ou seja, à sua dimensão transcendental.

Assim, no alinhamento do texto anterior, com este segundo episódio pretende-se aprofundar a caracterização do contexto, socorrendo-nos de algumas imagens [as existentes no meu arquivo], esperando que se confirme o tal ditado popular: uma imagem vale mais que mil palavras.


2. - Caracterização do contexto através de imagens

Considerando que a foto 3, apresentada na narrativa anterior, surgiu com a legendagem desalinhada, entendemos ser pertinente a sua repetição.

Foto 14 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem da estrada velha, assinalando-se a ponte semidestruída em 1969 [fotos 1 e 2], e Bambadinca, ao fundo, como local mais próximo, a quatro quilómetros desta. Na linha do horizonte, vê-se a nova estrada na qual é possível contar uma coluna de mais de uma dezena de viaturas civis, em direcção ao Cais do Xime.

Foto 15 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – O “Chefe da Tabanca da Ponte” disfarçado de Jorge Araújo [ou vice-versa]. No canto superior direito vê-se a Ponte Nova e a respectiva estrada. Bambadinca fica para a direita e o Xime para a esquerda.

Foto 16 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – As duas pontes e o Rio Udunduma. Bambadinca fica para a esquerda e o Xime para a direita.

Foto 17 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma - 1973] – A Ponte Nova, o Rio Udunduma, à direita, e a bolanha contígua. Bambadinca fica para a esquerda e o Xime para a direita. 

Foto 18 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Eis os buracos no chão, cobertos com palmeiras, chapas e terra, herdados na sobreposição [fotos 5 e 6].

Foto 19 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Um dos três postos de vigia. No canto superior esquerdo podem ver-se as instalações sanitárias [foto 26] e a estrada para Bambadinca.

Foto 20 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – O monumento edificado em memória do colectivo da CART 3494 e, ao fundo, para sul, mais dois postos de vigia, tendo por perto uma estrutura em arame farpado [fotos 7 e 8].

Foto 21 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Troço da estrada velha junto à ponte danificada [fotos 1 e 2], única via de acesso ao destacamento. Do lado esquerdo estão os abrigos e os postos de vigia. A meio, junto à 1.ª árvore da esquerda está a mesa de refeitório [foto 22]. À direita, +/- a meio da imagem, está a moradia construída [fotos 9 e 10]. Do lado direito fica a estrada Xime-Bambadinca [fotos 14 e 15].

Foto 22 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – A mesa polivalente, onde se comia, escrevia, li, jogava e… conversava. Em suma: o espaço de socialização e de partilha. Da esquerda para a direita, os ex-soldados: Gregório Santos; José Sebastião (?); Ricardo Teixeira e eu próprio, participando no” mata-bicho” das tardes de seca, confeccionado num forno de alta tecnologia, conforme se dá conta na imagem seguinte. Junto à chapa ondulada pode ver-se um exemplar de petromax.

Foto 23 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Último modelo de cozinha de campanha, com fogão modelo “palmeira rastejante”, cuja patente foi registada na conservatória local. Eu e o soldado Amândio Domingues em fase de conclusão de um suculento «pato da bolanha ao piri-piri», uma iguaria contemplada no cardápio da restauração local.

Foto 24 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – A mesma mesa da foto 22 depois de desactivada na sequência da conclusão da moradia, onde passou a existir uma sala de jantar, mas onde não havia alimentos. Estes eram confeccionados em Bambadinca, na CCS, e chegavam-nos às diferentes horas do dia, segundo a sequência das refeições.

Foto 25 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Enquadramento paisagístico com um plano de água do Rio Udunduma. Este fazia fronteira com a zona leste do destacamento. 

Finalmente, e tendo por base a mesma falha observada na foto 13 do texto anterior, decidimos repeti-la, devidamente corrigida, para uma melhor leitura do contexto.

Foto 26 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – imagem das instalações sanitárias… último modelo… e, daí, não terem sofrido quaisquer alterações até ao final da comissão. Por detrás do WC correm as águas do Rio Udunduma [foto 25].

Com esta imagem, damos por concluído o segundo capítulo desta nossa missão, histórica, especial e colectiva, vivida na Ponte do Rio Udunduma durante o 2.º semestre de 1973.

Segue-se a [III] crónica referente às principais actividades diárias desenvolvidas pelo grupo aí instalado.

Espero que esta narrativa tenha servido, tal como a anterior, como elemento de comparação com um vasto leque de outros exemplos que constam do currículo de muitos de Vós, e de inspiração a outras escritas, pois ainda estamos a tempo de as narrar na nossa Tabanca Grande.

Um forte abraço para todos e votos de muita saúde.
Jorge Araújo
Jan/2014
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Nota do editor

(*) Vd. poste anterior de 10 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12565: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte I) (Jorge Araújo)