Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (7)
O meu adeus a Bula
A oito de agosto, deixei Bula com um nó na garganta e sem saber que não mais lá voltava.
Tinha férias marcadas para Portugal e pedi ao comandante que me permitisse ir uns dias mais cedo para Bissau, de forma a poder visitar o Daniel no Hospital Militar.
O Daniel é aquele soldado maqueiro de que vos falo no meu P9877. O tal que na estrada de S. Vicente, já próximo do Rio Cacheu, acionou uma mina anti pessoal, sofrendo a amputação do pé esquerdo.
Leiam o que escrevi, porque se não lerem jamais irão compreender a angustia daquela viagem entre Bula e Bissau.
Saímos manhã cedo. A habitual escolta, uma secção da CCAÇ 2466 e duas Panhard do EREC 2454, deixou-nos em João Landim. Há hora marcada, eu e os que comigo iam, subimos para a jangada que fazia a cambança do Rio Mansoa.
Agora que nisto falo, dou comigo a pensar, quarenta e muitos anos depois, como a primeira e a última viagem que fiz naquela jangada foram iguais em tormento, embora por razões distintas. Recordo-vos que embarquei para a Guiné no dia 6 de fevereiro de 1969. A meio da viagem, o alferes miliciano Vinagre, oficial de informações e ribatejano como eu, encontrou-me no deck do Uíge e confidenciou-me que houvera uma “grande tragédia” no leste da Guiné.
Uma jangada que fazia a travessia do Rio Corubal tinha-se voltado a meio do rio, com uma centena de homens lá em cima. Estimava-se que uns 50 homens tivessem perdido a vida. Foi assim que, em pleno mar alto, entre Lisboa e Bissau, nos chegou a notícia do desastre do Cheche.
Dez dias depois deste acidente, sofrendo com o calor e a humidade, enjoado com os cheiros que me trepavam pelas narinas, atordoado com o movimento de carros e de armas à minha volta, confundido pelas ordens gritadas por homens que me parecia terem um aspecto desvairado, estava em Safim, à beira de um Rio que me disseram chamar-se Mansoa, a entrar para uma jangada que, também me disseram, era para me levar a João Landim, margem de onde se alcançava Bula, o meu destino.
A Jangada de Bula
Foto: © Virgínio Briote (2005) – com a devida vénia ao autor.
A jangada partiu e as minhas pernas tremiam, fosse pelo trepidar do ronceiro motor a gasóleo que a fazia deslizar sobre a água, fosse porque à minha cabeça só acudia o que me contaram ter sucedido no Chéché.
Naquela manhã, pisei João Landim como estando a pisar a terra da salvação.
A minha última viagem naquela jangada (eu ainda não sabia que seria a última, mas foi e trato-a assim), foi também ela feita com o coração ao pé da boca. O Daniel, o drama do Daniel, ocupava os meus piores pensamentos. Como o iria encontrar? Como reagiria ele quando me visse?
A resposta a estas perguntas está lá, na publicação que vos recomendei.
Dispenso-me de vos dizer que, após a visita ao Daniel, parti para Lisboa em férias, bem menos amargurado. Regressei à Guiné na segunda semana de Setembro. Apresentei-me nos adidos para receber ordem de marcha, e foi lá que me disseram que a companhia estava em Bissorã.
Como?!? Ninguém me explicou.
Iam providenciar-me transporte, que não me podia ausentar do quartel porque a qualquer momento podia embarcar. Apressei-me em fazer chegar uma mensagem ao Santos, o furriel miliciano vagomestre que ficara em Bissau a tratar dos assuntos da companhia, para que fosse ao meu encontro dar-me conta do que se passava.
O que se passava – disse-me ele – é que o nosso Batalhão fora rendido em Bula pelo BCAV 2868, por razões que ele desconhecia mas de forma inesperada, que a sede do batalhão passava agora a ser em Bissorã mas com a responsabilidade da mesma zona operacional, que as companhias mantinham as suas anteriores posições, salvo a CCAÇ 2466, que também deixara Bula para se instalar em Encheia.
- Ó Santos, e as minhas coisas, pá?
- Então, isso já eles levaram para lá.
- Bissorã!! – continuava eu, incrédulo, a pensar – Como é que aquilo é?
- A malta já te disse alguma coisa?
- Já pá. Falei via rádio com o Filipe. Diz que é calminho.
- Calminho? Mas Bisssorã não fica próximo do Morés?
- Pois fica, pá, mas o Filipe diz que é calminho, que é que queres?
Às cinco da tarde fui informado que, na manhã seguinte, uma viatura levar-me-ia à Base Aérea onde, num DO, seguiria para Bissorã.
Levantámos voo às oito horas. Lá em cima, ao mesmo tempo que o meu olhar, sôfrego, procurava sinais de Bula, apoderava-se de mim uma estranha nostalgia. Sim, sentira muitas vezes os testículos apertados e as calças ao fundo do cu. Mas também lá construíra sólidas amizades, passara momentos de inesquecível confraternização, ali testemunhara actos de enorme solidariedade.
Bula fora a primeira vez. A primeira vez não se esquece. Portanto, mandavam-me embora de Bula sem me deixarem despedir da malta da 2466, com quem partilhei copos, medos e cansaços, da malta das Panhard, que me “adoptou”, sem beber a última bazuca no libanês, sem gastar mais uns pesos na loja do Zé Maria.
Bula – 1969 – à esq.- o Zé Maria ao balcão e eu encoberto pelo funcionário da Casa Gouveia. À dirt. – No libanês, eu a servir os furriéis Bonito, Mateus, Sousa e Martinho.
O Zé Maria ficava mesmo no fim da Vila, já quase quando a estrada curvava à direita para Binar, ou a esquerda para estrada de S. Vicente.
O Zé Maria tinha tudo. A minha primeira ventoinha, a minha primeira máquina fotográfica, o meu primeiro álbum de fotografias, os meus primeiros isto e mais aquilo para levar de recordação aos meus, e tinha também, e quase sempre, tempo para dois dedos de conversa, daquela de aliviar a saudade.
O libanês foi onde comi as primeiras ostras da minha vida. Sacas enormes, carregadas de ostras, abertas ao calor da brasa, mergulhadas em sumo de limão com muito piri-piri. E também foi no libanês o meu primeiro chabéu.
Só não foi o último porque, ainda hoje, continuo a morrer por um chabéu. E por umas ostras.
E aquelas noites de fado, no bar do quartel ou no das Panhard? (P10354). À meia luz, como a tradição, a guitarra a trinar nas mãos do Dias, “o Guitarrinha”, e eu a cantar versos que falavam de amores, de saudades e de coisas que arrancavam lágrimas a quem ouvia em cada canto meu o canto da sua vida.
E o Xana, o Montagil, o Xico Coelho, o Vladimir, furriéis da CCAÇ 2466, que comigo já levavam amizade feita desde que, em Chaves, formámos batalhão, e que em Bula partilhámos todas as horas, as boas e as más, então não me despedia deles?
Bula – 1969 – à esq., de regresso ao quartel com o fur. mil “Montargil” – à dirt., em Ponta Alfama, descansando com o fur. mil “Xana”.
E o meu conterrâneo Moncada Cordeiro, que me recebeu em João Landim (P10354), e que me fez ganhar amizade com o Francisco Dias, com o Bernardino, hoje nosso camarada tabanqueiro, então eu não podia dar um abraço de despedida àquela gente?
Bula foi tudo isto em que não deixava de pensar. E foi o que vos tenho vindo a falar em relatos anteriores. E do que não vos falei, porque nunca encontrei a palavra certa, aquela que eu queria ter a certeza de não magoar ninguém, nem os que estão em vida, nem os que a perderam.
Foi o pior momento de toda a minha vivência na Guiné.
Era sábado, tinha acabado de almoçar com o pessoal das Panhard que me havia convidado, sentados à mesa distribuía-mos cartas para iniciar uma partida de King, quando chegou a nós o som da metralha.
- É a escolta de Có!
Fui tudo uma corrida. Arrancaram as três Panhard que estavam em prontidão na parada, o sargento Caeiro apareceu depois ao volante da GMC para onde subiram uns quantos atiradores, e eu.
Tarde de mais me lembrei que nem a bolsa de enfermagem levava. Que se lixe – pensei – se for preciso alguma coisa está lá a mala do enfermeiro deles.
E foi. Era pessoal de uma companhia já a caminhar para o fim da comissão. Regressava de uma escolta que fizera a João Landim, caminho tantas vezes percorrido e sem problemas que chegavam a facilitar, como o fizeram naquele dia em que tão pouco pediram o habitual apoio das Panhard, e logo naquela tarde calhou que o IN os esperava, emboscado, um pouco mais à frente do Placo, duas secções apanhadas em tal surpresa, que o cenário, a quem ali chegou para os apoiar, era dantesco.
As Panhard introduziram-se no mato atrás dos guerrilheiros que vieram à estrada para fazer prisoneiros ( levavam consigo três), alguns homens meio perdidos no asfalto, umas quantas G3 debaixo dos bancos dos dois Unimog da escolta, sinal de que foi tão grande a surpresa que ninguém agiu com elas, 4 feridos no chão, um morto, e quando puxei a porta entreaberta de um dos Unimog, para retirar um corpo de que apenas via as pernas e parte do tronco, percebi, confesso que horrorizado, que o corpo era apenas “aquilo”. O resto fora arrancado pela roquetada que perfurara a porta do Unimog e fora despedaçar todo o da cabine.
Procurei o enfermeiro para com ele partilhar a mala de socorro, mas não havia enfermeiro. Carregámos os feridos em cima da GMC que o Caeiro levara, e disparámos em direcção à enfermaria do quartel de Bula.
No caminho já os rádios das Panhard haviam pedido evacuações Y.
Na enfermaria, com a minha equipa, cuidámos do que havia para cuidar. Debrucei-me sobre um dos feridos, deitado numa maca ainda assente no chão e ouvi-o dizer que não sentia as pernas. Menti-lhe sem remorso:
- Tens nas pernas uns estilhaços e isso foi da injecção que te demos para não teres dores.
Arranquei um pedaço de adesivo largo, colei-o de chapa sobre a camisa camuflada, e onde sempre registava o que fora feito, para conhecimento das equipas de evacuação, limitei-me a escrever: Fractura da coluna lombar
O Dornier aterrou em Bissorã eram quase nove da manhã.
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Nota do editor
Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11567: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6): Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados