terça-feira, 25 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

1. Excerto de mensagem de Cherno Baldé, com data de 16 do corrente:

(...) Juntamente envio dois textos e algumas imagens de Bissau, para publicação no blogue da TG, se assim o entenderem. 

O primeiro texto, sobre os acontecimentos de Cuntima, em Novembro de 1976, é uma promessa antiga mas que só agora foi possível concretizar, o segundo é um 'fait divers' popularizado na época colonial e o resto são imagens sobre a actualidade da cidade de Bissau. (...)

Entretanto, a 21, o Cherno envia-nos outra mensagem, nestes termos:

Junto envio a versão final do texto sobre os acontecimentos de Cuntima, Nov 1976. A última que enviei não contem as alterações do texto que de resto não são significativas.

Um abraço amigo e aceitem os meus agradecimentos pela publicação do meu aniversário [, em 20 de junho,]  que, no fundo, mesmo se não é exacto, sempre nos comove a simpatia vinda de terceiros.


Li o texto sobre os acontecimentos de Cuntima (referentes a novembro de 1976), e fiquei sem fôlego. É mais um caso da violência de Estado, praticada por homens do PAIGC, e mais concretamente por um dos heróis do PAIGC, Quemo Mané, comandante das FARP, dois anos depois da "transferência" de soberania das mãos da antiga potência colonizadora para os novos senhores de Bissau.

No Arquivo Amílcar Cabral, no sítio Casa Comum, projeto desenvolvido pela Fundação Mário Soares,  há uma foto de Quemo Mané, disponível aqui, para além de outros documentos com referência a ele  É uma foto expressiva (e só não a  reproduzo diretamente, porque  tenho de pedir autorização para o fazer). Quemo Mané  tinha fama se ser um homem temperamental e violento. É um histórico da guerrilha: ele e Arafan Mané, são considerados os que "dispararam os primeiros tiros contra um quartel do exército colonial", em 1963, na região de Quínara.

O texto de denúncia,  escrito e enviado pelo Cherno Baldé (e há  muito prometido!), preocupou-me: por um lado, é inegável o seu interesse para o nosso blogue, e para a nossa memória comum, dos portugueses e dos guineenses que fizeram a guerra colonial; por outro, o Cherno Baldé vive em Bissau, tem mulher e quatro filhos e eu não tenho a certeza de que ele fica seguro, dando a cara... Foram estas minhas apreensões que  lhe transmiti, logo no dia 19:

(...)  É impressionante o teu relato dos trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976. Diz-me se o comandante do PAIGC ainda está vivo, bem como outros intervenientes que identificas E se podemos publicar o poste, em teu nome, na tua série, com toda a segurança... Presumo que tenhas as várias versões dos acontecimentos, de um lado e do outro... Onde estavas nessa época ? Em Bafatá ?...

Ainda há tempo alguém de Contuboel, que fez tropa no nosso lado,  me contou coisas (horríveis) do tempo, pós independência, em Bambadinca: ele assistiu, por exemplo, ao julgamento popular e à execução de um cipaio do meu tempo... Falou-me também da morte horrorosa e indigna de um régulo da região (...) . É importante falar deste período negro da história da Guiné-Bissau, com depoimento sérios, autênticos, honestos como o teu... Vejo que os fulas estão a perder o medo de falar. Ainda é preciso muita coragem.... Tenho grande admiração por ti e por todas vítimas do terror e da violência de Estado (...)


Ao que ele me respondeu, da seguinte maneira, corajosa e desassombrada:

(...) O Quemo Mané já não se encontra entre os vivos, pois de outro modo teríamos ouvido falar dele no decurso dos acontecimentos que sacudiram a Guine ultimamente. Comparados com o Quemo Mané, o terror da guerrilha, todas as figuras que protagonizaram acontecimentos militares na Guiné, depois de Nino Vieira -  os Ansumanes, os Tagmes, os Verissimos, os Zamoras e Antónios - são figuras de segundo ou terceiro plano, no contexto da guerra de libertação.

Mas é claro que sempre haverá riscos porque o partido existe sempre, os amigos e companheiros, a família, etc.,  o que não deve constituir motivo suficiente para impedir a publicação de acontecimentos que foram públicos e do conhecimento geral da população. Exceptuando o Quemo, no texto não aparecem nomes reais, e no texto que te envio agora, acrescentei um parágrafo nas notas finais, onde aparecem os nomes dos protagonistas. Procedam conforme acharem melhor, por mim tanto faz, eu já vivi o suficiente para não continuar fechado no medo de possíveis represálias. As versões podem variar mas o acontecimento é factual e como tal é relevante.

Acontece que o trabalho de escrever e publicar está sempre acompanhado de riscos de erros e de interpretação. Depois da publicação do poste sobre o Capitão Carvalho,  recebi uma mensagem no facebook de uma ex-esposa que, ao mesmo tempo, queria encorajar-me e refutar factos que eu vi com os meus olhos, mesmo se era criança. Afinal o homem ainda está bem vivo e em Portugal.


Um abraço amigo, 
Cherno Baldé. (...)

A minha resposta só poderia ser esta:

Grande Cherno, mereces todo o nosso apoio, apreço e solidariedade. O nosso blogue é muito conhecido e considerado. 
Um abração, amigo e irmão. 
Luís.

Estamos então em condições de publicar hoje, num único poste, o notável e inédito documento que ele nos pede para publicar no nosso blogue (que também é dele, e de todos os guineenses, homens e mulheres de boa vontade, que querem construir connosco as pontes do futuro sem destruir os vestígios dos bons e dos maus momentos do nosso passado comum).  Embora extenso, é importante que se publique na íntegra, num só poste, para manter a unidade de leitura. Naturalmente, estamos abertos à publicação de outros testemunhos, de outras fontes, que contestem, ou corrijam, ou complementem, ou melhorem esta versão que contem as recordações de Demburri Seidi quando jovem, em Cuntima, novembro de 1976.



Guiné > Colina do Norte >  Mapa 1/50 mil (1956) > Posição relativa de Cuntima, junto à fronteira com o Senegal.

Info: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


2. Cuntima, Novembro de 1976 > A revolta das milícias

Texto © Cherno Baldé (2013)

Introdução

A tradição africana diz que um lobo sem dentes, na floresta, é um lobo morto. Tudo o que acontece na vida tem as suas causas e consequências porque a ponta inicial de um fio leva, necessariamente, à sua ponta final. Se o caminho recto leva o viajante esclarecido ao objetivo almejado, os erros e a perfídia de uns podem conduzir a perdição inglória d’outros.

No prefácio do seu livro sobre Gêngis Khan e a invasão Mongol do séc. XIII, o romancista soviético V. G. Yan diz que “a obrigação moral de um cidadão que testemunhou acontecimentos extraordinários é de os transmitir e revelar aos demais cidadãos de forma escrita ou então se não está instruído na arte de registar palavras épicas num papel com a ponta deslizante de uma pena, então que transmita as suas recordações a quem o possa fazer, para que sejam impressas em superfícies consistentes à intenção das gerações vindouras. E quem não procede assim é semelhante ao homem avarento que colocou toda a sua riqueza num alforge e a enterrou num lugar desértico, quando as mãos frias da morte já estavam a acariciar-lhe a face”.

Ultrapassado o período de medo, de dúvidas e de incerteza quanto a pertinência de o fazer, é este o sentimento que nos anima ao tentarmos transmitir os acontecimentos de Cuntima, na certeza de que os caros leitores compreenderão as nossas limitações pessoais e humanas para revelar em toda a sua dimensão esta tragédia humana, mesmo se, no contexto global, não representa um caso de excepcional grandeza.


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Cuntima > Aspeto geral da povoação ao tempo da CART 3331 (1970/72). Na sua maioria a população era de etnia Fula, de religião muçulmana; havia uma pequena minoria Mandinga. Foto do álbum do ex-1º cabo Vitor Silva.

Foto: © Vitor Silva (2008). Todos os direitos reservados.


Contextualização

Em finais de 1976, a Guiné-Bissau, por um lado, ainda está a saborear os festejos do 2º aniversário da sua independência, conquistada a ferro e fogo pelo PAIGC, na sequência de uma guerra sangrenta que parecia não ter fim (1), com graves consequências humanas e sócio-económicas dos dois lados da barricada. 

Mas, por outro lado, ainda não se recompôs do choque psicológico causado pela mudança abrupta da situação que conduziu o país de uma guerra brutal e sem quartel, para uma paz podre e sem garantias de protecção das partes saídas de um confronto fatricída, pese embora a existência de um acordo de paz fictício que, se serviu para salvar a face, a honra e a dignidade de Portugal, como país colonizador, trará tudo menos a desejada paz entre os Guineenses.

No nordeste, em chão fula, ainda o espírito das populações procurava compreender e medir a dimensão real do drama ligado aos últimos acontecimentos e da reviravolta da situação onde, de repente, os antigos turras assumiam, para certas pessoas, a insuportável figura de heróis nacionais, de grandes patriotas e de combatentes de liberdade da pátria, reclamando para si o mais que discutível estatuto de melhores filhos da nação e, por essa via, privar aos outros os mais elementares direitos de liberdade, de justiça e de cidadania.

Neste panorama ainda incerto de mudanças e de inversão de valores, os antigos soldados nativos do exército colonial em geral e as ex-milícias em particular faziam figura de infortunados. Desarmados pelos seus antigos patrões, privados dos seus direitos, feridos no seu orgulho de homens e de combatentes e sem os meios de sustento a que estavam habituados, pareciam náufragos espalhados na vastidão do oceano das suas (des)ilusões. Perseguidos e desorientados, uma boa parte tinha sido obrigada a refugiar-se no Senegal, na região fronteiriça do Casamança, de onde muitos seriam presos e recambiados de novo para a Guiné no quadro de um acordo que permitia, ao vizinho do norte, liderado pelo pragmático presidente L. S. Senghor, grande poeta e humanista, participar na disputadíssima predação dos recursos haliêuticos nacionais.

Para o partido vencedor, que tivera o tempo necessário para pensar e delinear a sua linha de acção, o objectivo a atingir estava bem definido: Marcar posição, assentar alicerces, alargar e consolidar as estruturas do novo poder saído da luta. E era importante fazê-lo, sobretudo, nas zonas onde as populações não tinham aderido à luta, através de medidas de choque para marcar os espírítos e, desta forma, evitar o surgimento de contestações organizadas. 

O relato que se segue,  faz parte desta estratégia de terror e de intimidação deliberada a populações indefesas e executada com mestria e sangue frio, bem à maneira da guerrilha que assumiu o poder na Guiné em 1974, com o beneplácito do exército português. Muitos dirão que não, cada um suas razões, cada um seus argumentos.

Em Cuntima, pequeno aglomerado fronteiriço que tinha sobrevivido à guerra de fronteiras de 1973, nada fazia prever que nos dias seguintes seria o palco de acontecimentos que iriam marcar o período pós-colonial e perturbar a pacata vida da aldeia e suas gentes. A região vivia a despedida da época das chuvas e nas áreas alagadas de cultura de arroz, as premissas de uma boa colheita que se avizinhava já se faziam sentir pelo cheiro aromático do arroz novo e pela cor amarelada dos campos a perder de vista nas extensas planícies de terras baixas, rodeadas de verdes cinturas de palmeiras dendém. Com o fim da guerra as aldeias tinham sido repovoadas, todas as bolanhas tinham sido recuperadas e parecia não haver limites para criar a prosperidade tão almejada e recuperar o tempo perdido. Mas, nem todos pensavam assim, helás!

Dia 14 de Novembro - o ataque ao quartel

Ódio, coragem e perfídia

Na noite do dia 14 de Novembro de 1976, um grupo constituido maioritariamente por ex-milicias, cegos de raiva e de ódio, mas muito mal equipados, cujo material bélico se resumia em catanas de uso doméstico, facas de mato e algumas granadas, apostando no efeito surpresa, decide atacar e neutralizar o destacamento militar do PAIGC colocado em Cuntima.

Ao entrarem na aldeia, uma parte dirige-se para a casa de Sissão Seidi, uma decisão que será fatal a este pacífico aldeão que era colega de alguns dos elementos do grupo. Põem-no ao corrente das suas intenções, isto é,  atacar e neutralizar os homens do PAIGC e, de seguida, com as armas que iriam recuperar, liquidar todos os que, na aldeia e seus arredores, colaboravam com o partido.

Quando o grupo deixa a casa para dirigir-se ao seu alvo, o Sissão vai a casa do Comité da tabanca e, em segredo, conta-lhe tudo o que tinha ouvido dos assaltantes. O Comité apercebe-se de toda a gravidade da situação e sabe que não pode perder tempo, rapidamente, decide passar para o outro lado da fronteira, situada mesmo ao lado, levando consigo a sua família, mas antes de partir informa o incrédulo Sissão de que só voltaria em caso de derrota dos assaltantes.

O grupo aproximou-se em silêncio, encoberto pela escuridão da noite, consegue eliminar a sentinela e penetrar no interior do quartel, apanhando de surpresa os seus ocupantes. Os guerrilheiros do PAIGC reagem bem à investida, refeitos da surpresa inicial e melhor armados, obrigam os assaltantes a bater em retirada de uma forma dispersa e desorganizada. De acordo com a testemunha, o ataque teria durado cerca de 3 horas o que, manifestamente, parece exagerado, tendo em conta a disparidade das forças em presença.

O dia começa a amanhecer e os primeiros raios de sol começam a pintar de amarelo o horizonte claro do fim da época chuvosa. E, nas horas que se seguiram à retirada, alguns elementos do grupo assaltante entram, de novo, na morança de um antigo colega, também ex-militar, impelidos talvez pelo desejo de implicar o maior número de pessoas e convencem-no, desavergonhadamente, que já tinham feito o essencial do serviço, mas que, sem munições suficientes, não conseguiram limpar todos, pelo que, se ele tivesse uma catana bem afiada e um pouco de coragem,  podia ir dar o golpe de misericórdia aos feridos que estavam amontoados no quartel. Sem pensar duas vezes e empurrado pelo ódio que nutria pelos novos senhores, o homem não hesitou e com uma catana nas mãos correu para o local indicado, sem saber que se tratava de uma armadilha para o perder.

Quando chega ao quartel, encontra os guerrilheiros a porta da entrada, armados até aos dentes. O que fazer? Recuar? Tarde demais, ele precisa pensar rapidamente numa saida. Com as akas [, Kalashnikov,] apontadas, perguntam-lhe o que procurava ali aquela hora. O homem responde que vinha a procura de ajuda para socorrer um filho que tinha sido mordido por um cão vadio. Parece uma saída razoável, mas não será. Os guerrilheiros estão apressados, pedem a sua identificação e informam-lhe que no momento não tinham tempo para o ajudar, mas que voltasse mais tarde, juntamente com o seu filho.

No rescaldo do ataque das milicias

Medo e horror em Cuntima

Na manhã do dia 15 de Novembro, os guerrilheiros mandam convocar o Comité da Tabanca para o por ao corrente do que sucedera durante a madrugada. O enviado encontra a morança vazia de gente. Mas, na tarde do mesmo dia, informado sobre o falhanço do ataque e a debandada das milícias, conforme prometera, o Comité regressa com a sua família a Cuntima. O Comandante do destacamento dá-lhe ordem de prisão imediata, por comportamento suspeito. Inquirido sobre as razões que tinham motivado a sua fuga precipitada na noite anterior, confessa que tinha sido informado pelo seu vizinho, Sissão Seidi, mas que, lamentavelmente, não pudera prevenir as autoridades porque os assaltantes eram numerosos e bem armados. Disse ainda que fora obrigado a fugir devido a ameaça de morte que pendia sobre a sua cabeça e que regressara após a confirmação de que o perigo tinha sido afastado. Ordenaram-lhe para os conduzir a casa do tal Sissão Seidi, onde os dois seriam presos e amarrados à moda do PAIGC, isto é,  mãos para trás e o peito bombeado à frente, estilo peito de pomba.

Na manhã do dia 16 de Novembro chegou em Cuntima o responsável militar da zona norte, o famigerado Comandante Quemo Mané, que assume a direcção das operações e manda convocar toda a população de Cuntima e seus arredores. Querem o máximo de gente e para se certificar que todos estavam presentes, guerrilheiros armados passam revista em todas as casas e sitios passíveis de albergar um ser vivo, querem todos, mulheres, velhos e crianças.

Os dois prisioneiros são colocados no meio da assembleia reunida. O Homem de cabelos grisalhos, toda a gente o conhecia, era o Comité da tabanca, espécie de cipaio reformulado na nova nomenclatura, colaborador activo da ordem instituida, mesmo sendo de etnia fula, ele estava ciente de que a sua prisão não preocupava ninguém para além do círculo restrito da sua familia, mas o caso do Sissão incomodava os espiritos dos pacatos camponeses de Cuntima. 

Que diabo o teria arrastado para as malhas do partido, ele que sempre fora um camponês simples, honesto e trabalhador, distante das lides políticas e das intrigas que esta engendra nos homens mais ambiciosos. Não servira na tropa colonial apesar dos benesses, do ronco e da fama que o estatuto augurava no meio social fula. Toda a sua família estava presente, a mãe, duas esposas, os filhos e o irmão mais velho. Com voz trémula, explicou tintim por tintim como os assaltantes o tinham acordado durante a noite, os seus intentos e as ameaças proferidas. O Comité da aldeia também repetiu a sua versão e as palavras trocadas com Sissão naquela fatídica noite,  bem como os motivos que o impediram de alertar os homens do destacamento.

Não foi preciso ouvir mais e, se calhar nem era preciso, o Comandante levantou-se e, com a frieza de quem estava habituado a tomar decisões graves, disse que,  pelos comprovados actos de rebeldia e traição à Pátria, os dois homens deviam ser fuzilados e imediatamente.

Ao ouvir as palavras “pá mata!” da boca do Chefe militar, a assistência ficou literalmente congelada. A rapidez e a dureza da decisão tinham surpreendido tudo e todos, mas quem conhecia o Comandante Quemo Mané durante a luta, sabia que com ele tudo era simples, rápido e demolidor como o turbilhão de vento em dia de tornado tropical. A semelhança da grande maioria dos Comandantes do PAIGC, apesar de rotundo analfabeto (2), subira na hierarquia militar por mérito próprio, distinguindo-se pela sua coragem, brutalidade e violência extremas, uma inteligência fora do comum e pelos sucessos acumulados nas operações que dirigia.

Deram ordens para que todos fossem presenciar o acto no centro da aldeia, mas antes de os levarem, um grupo de homens do partido dirige-se ao local onde estava o Comandante a fim de interceder a favor do Comité da aldeia, provavelmente, pela lealdade e serviços prestados no passado. Assim, no local da execução da sentença, só compareceu o assustado Sissão, diante de uma dupla de homens armados com metralhadoras de fitas metálicas, contendo perto de uma centena de balas. O caso não era para menos.

Tudo estava a postos, os dois guerrilheiros com as armas apontadas, o Sissão à frente,  com as mãos amarradas e olhos fixos nos seus carrascos, a população em pé, envolta em silêncio e no céu o Deus dos homens a registar mais uma crueldade humana. O Comandante da zona que ficara retido pelos colegas do partido para deliberar sobre a sorte do Comité, ao entrar no recinto, grita para os dois executantes:
- O que estão a espera, acabem com eleǃ

Os tiros sucedem-se ensurdecedores, o corpo de Sissão é projectado para trás com o impacto das balas das metralhadoras que continuaram a cuspir fogo até transformar o corpo num autêntico manto de retalhos. A poeira e o cheiro acre da pólvora invadiram o recinto. De seguida, um dos guerrilheiros pega no corpo inerte do defunto Sissão, tendo-o arrastado até ao pé da família, diz a estes:
- Aqui está o corpo do vosso cão, agora podem levá-lo, se quiserem!

Da multidão, ninguém proferiu uma única palavra, ninguém teve a coragem de sussurar a mais pequena lamentação, os guerrilheiros atentos ao menor gesto de indignação. Perguntaram se havia alguém que estivesse descontente com o que acabara de assistir. Como ninguém respondia, foram autorizados a dispersar-se no preciso momento em que se ouviam os gritos de desespero vindos da concessão de Sissão Seidi, cujos familiares a muito custo tinham conseguido conter a dor pela perda do seu ente querido.

Na tarde do mesmo dia, o Comissário Político da zona convocou todas as mulheres cujos maridos estavam ausentes, refugiados algures no Senegal, e que, eventualmente, podiam ter feito parte do grupo assaltante e intimou-os a deixar Cuntima para se juntarem aos seus maridos, pois que não tolerariam mais a presença de pessoas que viviam na aldeia, mas, ao mesmo tempo, passavam informações para fora. Mais que intimação,  era uma ordem que ninguém podia ignorar. As mulheres partiram levando consigo os filhos para um destino incerto.

Na manhã do dia 17 de Novembro, foram buscar o homem da catana para as averiguações que se impunham. O homem foi amarrado ao estilo peito de pomba e a população foi novamente convocada para mais um julgamento público. Perguntaram-lhe porque não voltara com o filho conforme tinham combinado, o homem confessou que na verdade ele tinha sido enganado pelos assaltantes e que a sua verdadeira intenção era liguidar os homens do PAIGC aos quais ele odiava com todas as suas forças e que,  mesmo depois de morto,  continuaria a odiar. De certa forma, a coragem deste homem desesperado tinha compensado a humilhação pública da população de Cuntima.

Levaram o homem ao mesmo sitio do dia anterior, a cabeça e o rosto encapuchados com um chapéu (sumbia) e para o executar, estavam novamente os homens das metralhadoras. O homem pediu para ver o seu filho mais novo. Retiraram-lhe o chapéu que cobria o seu rosto e,  durante alguns segundos,  olhou para o filho, depois pediu para que o cobrissem de novo e em voz alta, para que todos pudessem ouvir, disse que estava pronto para morrer. 

Acto continuo, o comandante deu ordens de fogo e a cena repetiu-se de novo. Como ninguém reagia e olhando para a multidão silenciosa, o Comandante aproveitou para informar a população aterrorizada de Cuntima que para ele e para o seu glorioso partido não custava nada e não constituía qualquer problema riscar a aldeia e a sua população rebelde do mapa da Guiné-Bissau. Com esta mensagem curta e clara,  tinham dado por encerrado o capitulo da revolta das milícias em Cuntima, mostrando assim a determinação do partido em impor a sua ordem.

A operação de procura dos assaltantes continuou nos dias que se seguiram. Durante as buscas, encontraram um dos assaltantes, gravemente ferido, a quem entregaram aos pais e que viria a sucumbir, poucas horas depois, dos seus ferimentos e, provavelmente, por falta de assistência mêdica. Como dizem os árabes, quem não consegue defender, com as armas, o seu ponto d’água, perdê-lo-á; quem não ataca o inimigo com todas as suas forças, sofrerá a humilhação da derrota com todas as suas amargas consequências.

Actos desesperados e suicídas,  como este, tiveram lugar em outros lugares do território, no período que se seguiu à proclamação da independência, sobretudo junto à linha da fronteira com o Senegal. Actos isolados e mal preparados que estavam condenados ao fracasso e cuja autoria, sistematicamente e sem uma explicação plausível, era atribuída à FLING, fazendo reviver velhos fantasmas do passado, aumentar o grau de crispação das novas autoridades e, em consequência, multiplicar a violência de represálias cegas, perseguições arbitrárias e execuções sumárias que marcaram a vida desta jovem nação que, para muitos, constituía um modelo exemplar de uma luta popular bem sucedida, contra o colonialismo em África e no mundo.

Bissau, 12 de Junho de 2013

Recordações de Demburri Seidi (3), tradução e texto de Cherno Baldé.
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Notas de C.B.:

(1) Na minha infância, povoada pelo espectro da guerra e das fugas constantes de um lado para o outro, quantas vezes não perguntara, a mim mesmo, se a minha vida estaria condenada a ser vivida assim no meio de uma guerra sem fim. Pela experiência dos mais velhos, sabiamos que no passado nem sempre tinha sido assim e sofriamos a bem sofrer,  com a guerra que nos minava a vida pelo medo de morrer em cada minuto, vivendo no improviso e na incerteza do momento, em abrigos imundos, quentes e húmdos, onde todos os ruídos eram ampliados ao máximo, rastreados e identificados a tempo, não fossem silvos de uma granada de obus a caminho ou de uma bala perdida na noite escura.

Para afugentar uma aldeia inteira, qual manada de bovinos na planície, bastava ouvir gritar na noite: “Aí estão eles!”. Não era preciso perguntar, toda a gente sabia quem eram “eles”. Uma vez, um dos meus tios ouviu o grito durante a noite e fugiu nu, como tinha nascido, e foi a mulher que lhe cobriu as vergonhas, no caminho, com o seu pano de cima.

(2) A propósito conta-se uma pitoresca estória sobre o Comandante, que aconteceu no período pós-independência. No término de uma aula rotineira, um Professor dá aos seus alunos um TPC (trabalho para casa) em que pede para citar exemplos de alguns animais voadores. Em casa, o filho pediu o apoio do Comandante, seu pai, para a conclusão do mesmo.
─ Isto é muito fácil ─ diz o pai ─ ponha os nomes de peixe e lagarto.

Na escola, durante a correção dos trabalhos o Professor pergunta ao seu aluno:
─ Quem te ajudou a fazer o trabalho?
─ O meu pai ─   responde o aluno, com uma ponta de orgulho.
─ O teu pai é um burro ao quadrado ─ diz o Prof.

A criança não diz nada e em casa conta tudo ao pai. No dia seguinte, o Comandante vai a escola armado com uma pistola e pergunta ao Professor:
─ O peixe voa ou não voa?
─ Voa ─ responde o Professor ─ mas debaixo d’água.

O Comandante pergunta de novo:
─ O lagarto voa ou não voa?
 ─ Voa ─ responde o pobre professor, com a voz a tremer ─ mas debaixo d’água.
─ Afinal quem é o burro ao quadrado? O burro ao quadrado é o professor que não sabe o que diz e a quem o diz ─ responde este.

Devagarinho, o Comandante coloca a pistola na cintura das calças e diz ao professor:
─ Agora continua a dar as tuas aulas e não te metas com antigos combatentes se não queres levar com uma bala na tua cabeça de burro ao quadrado ─  acrescentou antes de sair.

Um provérbio árabe diz: "Não menospreze uma criança frágil, pode ser que seja filho de um leão".

(3) Em 1974, Demburri Seidi (nome fictício) fez parte de um grupo de jovens que fugiu para juntar-se às fileiras do PAIGC, no mato. Após a independência, fez preparação militar em Canchungo, mas rapidamente chega a conclusão que, com o fim da guerra e sem instrução escolar, as suas hipóteses de subir na hierarquia militar eram praticamente nulas.

 Aconselhado por pessoas amigas, decide trocar a farda pelos estudos, colecciona alguns livros e escolhe a localidade de Cuntima, que dista a poucas horas da aldeia dos pais, para a sua formação escolar. E, sem querer, vai testemunhar os trágicos acontecimentos que se seguiram ao ataque de Cuntima (4) que acabamos de descrever e que marcaram a sua vida e sobre os quais, ainda hoje, não consegue falar sem que os seus olhos se encham de lágrimas.

(4) Comandante do destacamento de Cuntima - Capitão Madiu Kim;
Responsável da segurança – Sana Queita;
Comité da tabanca  ─ Samba Seidi;
Fuzilados ─ Soarê Seidi =Sissão Seidi; e Abbaro Candé = Homem da catana.
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11730: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (44): A mulher mandinga e o soldado português

Guiné 63/74 - P11761: Convívios (516): Último lembrete para o 3.º Encontro dos Bedandenses, a levar a efeito no dia 29 de Junho de 2013 na Mealhada (António Teixeira)

1. Em mensagem do dia 24 de Junho de 2013 o nosso camarada António Teixeira (ex-Alf Mil da CCAÇ 3459/BCAÇ 3863 - Teixeira Pinto, e CCAÇ 6 - Bedanda; 1971/73) mandou-nos para publicação o último lembrete para o 3.º Encontro dos Bedandenses das CCAÇ 4 e 6, a realizar já no próximo sábado dia 29 de Junho de 2013 na Mealhada:


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Notas do editor

(*) Vd. poste de 20 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11285: Convívios (502): 3.º Encontro dos Bedandenses, dia 29 de Junho de 2013 na Mealhada (António Teixeira)

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11747: Convívios (515): Fotos do Encontro de Confraternização da CCAÇ 763, dia 16 de Junho, em Arruda/Alverca (Mário Fitas)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11760: Em busca de... (226): Manuel Monteiro (Lelo), mais conhecido pelo "Matosinhos" no BAC1 (João Vaz)

1. Mensagem do nosso camarada João Vaz, ex-1.º Cabo Apontador de obus do BAC 1, CamecondeBubaJumbembem e Cuntima, 1968/70, com data de 5 de Junho de 2013:

Amigo Carlos Vinhal
Fiquei muito contente ao pertencer à TABANCA GRANDE(*) e muito obrigado pela tua ajuda pois as palavras TABANCA e GUINÉ nunca mais as esqueceremos fazem parte da nossa antiga vida militar.

Já vi no computador que vocês vão fazer mais um convívio no dia 8 de junho e só tenho pena de não estar convosco, mas como já adivinhaste eu estou em França há quase 43 anos, que os faço no dia 29 de Agosto próximo e como vou todos os anos a passar férias a Portugal em Agosto, não posso ir em junho.

Como vês estou em França, em PAU perto de LURDES, a quarenta quilómetros, se algum dia vieres a LURDES espero que entres em conctato.

Estou reformado, tenho três filhos (um rapaz e duas raparigas) e quatro netos (duas meninas e dois meninos). Como já disse vou todos os meses de Agosto a Portugal e este ano vou para Sesimbra até ao dia 15.

A minha vila em Portugal é o TEIXOSO, perto da Covilhã, e já que falo da Covilhã, quero-te dizer que uma vez nos anos 70-80 encontrei lá um jogador de futebol a quem chamavam o LELO, mas o nome dele era Manuel Monteiro e esteve comigo na BAC 1 - GUINÉ.
Ele é de MATOSINHOS porque nós na BAC1 só o tratávamos por "MATOSINHOS", e como tu és de LEÇA -MATOSINHOS, talvez o conheças ou tenhas ouvido falar dele.
Eu gostava muito de o encontrar de novo pois perdi o conctato com ele.

Espero que a festa do 8 de Junho corra bem e vê lá se encontras alguém que esteve na BAC nos anos 1968-1970.

Bebei lá um copo à saúde de todos os ex-combatentes da Guiné.
Eu da minha parte também vou pensar em vós e beber um copo à alegria da vossa festa.

Um abraço para todos e todas presentes e para ti CARLOS e tua família muita saúde e alegria e um GRANDE ABRAÇO
JOÃO VAZ


2. Comentário de CV:

Caro camarada João
Muito obrigado pelas tuas referências ao nosso Convívio do passado dia 8 de Junho. Já passou e correu muito bem, felizmente.

Com respeito ao teu camarada Manuel Monteiro, Lelo no futebol, Matosinhos no BAC1, não estou a ver quem seja. Tenho uma listagem de cerca de 200 nomes de ex-combatentes da Guiné do nosso concelho, mas dela não faz parte ninguém com esse nome.
Em tempos idos houve um Monteiro que fez parte da equipa de futebol do Leça F.C., que julgo não ter jogado em nenhum outro clube, porque ao contrário de hoje, tinha emprego para sobreviver. Se não estou enganado, faleceu há já alguns anos.
Terá o Lelo jogado no Leça ou no Leixões antes de ter ido para a Guiné?
Como o futebol não me tira o sono, esqueço com facilidade resultados e/ou personalidades que fazem parte daquele mundo muito particular. Peço desculpa por não te poder ajudar.
O teu camarada, a ser vivo, terá hoje perto de 67 anos.
Fica aqui este poste na esperança de que apareça alguém que nos dê uma pista para o poderes contactar.

Esperando que as recentes e graves inundações na região de Lurdes não te tenha afectado, deixo-te um fraterno abraço e votos de boa saúde.
Carlos Vinhal
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 24 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11619: Tabanca Grande (398): João Vaz, ex-1.º Cabo Apontador de obus do BAC 1 (Guiné, 1968/70)

Último poste da série de 20 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11738: Em busca de... (225): Os "Zorbas", camaradas da minha CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (Joaquim F. Alves, ex-fur mil, residente em Olival, Vila Nova de Gaia)

Guiné 63/74 - P11759: Blogpoesia (348): Pedir desculpa é pouco (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 29 de Maio de 2013: 

Camarada Carlos Vinhal
Tudo de Bom para ti e para os teus.
Assim como tudo de bom para todo pessoal do blogue.


PEDIR DESCULPA É POUCO

Eu sei
Não sou nada não sou ninguém
Mas também sei a força das palavras
Palavras que hoje perdem muito da sua força, porque essa força dilui-se muito na quantidade
Palavras que ganham força quando ditas no momento oportuno
Palavras que igualmente ganham força quando ditas no momento errado
Eu no meu canto esqueci-me do dia 8 de Junho, data que para mim nos últimos anos tem sido vivida de uma maneira diferente
Os meus ossos doem muito
Tenho os meus netos, parcialmente para olhar
Deixei de dar as voltas que costumava dar, principalmente pelo meu amado Marrocos
Desde sempre pensei que essa data seria, como será, como calhar
Esqueci-me totalmente do grito à vida, que vai ser o convívio da Tabanca
Pedir desculpa é pouco
Reconheço que meti a pata na poça, e que aquelas palavras loucas ou não, saíram no momento menos próprio, uma infelicidade
Mas também sei que vozes de burro não chegam ao céu
Sei que o convívio será muito grande
Sei que ficará como mais um episódio grande, dos muitos que estes fulanos efetuaram com uma farda a servir de pele e que têm continuado a efetuar já sem farda mas com o mesmo espírito de amizade.

Um grande abraço para ti
Um grande abraço para todo o pessoal da Tabanca
Um grande abraço para todo o pessoal do blogue
Ernesto Duarte
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11755: Blogpoesia (347): A outra guerra; Meus cabelos brancos; Serenatas do sul de África; Lembrando serões (J. L. Mendes Gomes)

Guiné 63/74 - P11758: (Ex)citações (222): Recado para uma mesa redonda de Coimbra e para a História... Guileje e as suas lições (Manuel Lomba)

1. Mensagem, de 20 de junho do corrente, do Manuel Luís Lomba,  (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) e autor de "Guerra da Guiné: A batalha de Cufar Nalu" (Terras de Faria Lda: Faria, Barcelos, 2012, 341 pp.):


Prezado amigo Carlos Vinhal. Submeto-te este texto para o blogue, na expectativa de merecer interesse. Um abraço, M.L.Lomba


A crise dos 3 G, na Guiné, conotada como o princípio do fim do Ultramar português, fez 40 anos em 25 de Maio p.p. e a informação sobre a mesa redonda de Coimbra, veiculada pelo blogue (*), impeliu-me a tecer um comentário. (**)

Se as crónicas e os cronistas baterem certo, Amílcar Cabral riscou com o seu punho a Operação Maimuna, de montar "cerco a Guileje", em Janeiro de 1968, porque, segundo escreveu o seu irmão Luís, a bandeira portuguesa içada em Ponte Balana irritava-o especialmente, mas meteu-a na gaveta, porque a guarnição portuguesa estava dotada de obuses, o PAIGC ainda aguardava as remessas dos "órgãos de Estaline" e dos morteiros 120, o comando português só abandonará a posição de Ponte Balana, em Janeiro de 1969 e só lhe oferecerá a "área libertada" de Madina de Boé e Beli, abandonadas em Fevereiro de 1969.

Amílcar Cabral interpretou a reunião do general Spínola com o PR do Senegal Leopold Shengor e o seu contexto como um forte indício do enfraquecimento das resistências dos portugueses e, em Julho de 1972, confidenciou a Pedro Pires, seu braço direito do Planeamento, a proximidade do fornecimento pela Rússia dos mísseis Strela, enquanto o então estudante de Economia em Moscovo, Osvaldo Lopes da Silva, tirava o tirocínio do seu lançamento, mas que o líder só envolverá na preparação das acções sobre Guileje, em Setembro desse ano.

Salvo erro ou omissão, nessa altura, o dr. Osvaldo Lopes da Silva dependia de dois superiores orgânicos - Nino Vieira e Pedro Pires. Em recente intervenção no Forum Amílcar Cabral, na cidade da Praia, este afirmou que os guineenses o haviam segregado em Conacri e impedido de velar o cadáver de Cabral, que após o funeral regressou ao Sul e só então começou a preparar com Nino Vieira as acções sobre Guileje.

O dr. Osvaldo Lopes da Silva e os que partilharem a sua narrativa, não poderão escamotear a verdade dos factos acontecimentais e as "mesas redondas" como a de Coimbra não conseguirão encobrir a sua conjuntura.

O planeamento das acções do PAIGC sobre Guileje foi supervisionado pelo capitão cubano Raul Diaz. O Sul da Guiné não se assemelhava à Sierra Maestra e a sua eficiência ficou comprovada pelo facto de os seus 200 militares defensores e os 400 civis a terem abandonado e percorrido calmamente cerca de 20 km de picada na mata, sem serem molestados, e as suas forças de assalto só terem penetrado no objectivo 3 dias após o seu abandono, com Nino Vieira metido num blindado!

O PAIGC não trabalhara a hipótese da retirada dos defensores, contara com o "general época das chuvas" para isolar Guileje de qualquer amparo de Bissau - e falhou, porque o elevado teor de humidade, atingido pelo ar, limitava a eficácia dos mísseis terra-ar Strela. O PAIGC correspondeu à temeridade do comandante do COP 5, da transumância de Guileje para Gadamael com a temeridade da transferência do seu esforço de combate, avançando-o no terreno, daquele para este. 

Mas a maior falha terá pertencido, por omissão, ao comando português.A partir da altura em que o Batalhão de Paraquedistas 12, comandado pelo tenente-coronel Araújo e Sá, obrigava o PAIGC a desamparar a loja de Gadamael e os pilav Lemos Ferreira, António Martins Matos e outros lhe desancavam as bases da retaguarda na República da Guiné com os seus Fiat, não explorou o sucesso propiciado pelo "general época das chuvas", permitido que o PAIGC retirasse o armamento pesado e as suas pesadas munições ao lombo dos seus combatentes a chafurdar, heroicamente, por aquele pantanal.
Será ou não verdade que o PAIGC mandou fuzilar o seu comandante da zona de Guileje, responsabilizando-o pelo insucesso?

Ao tomar a decisão de abandonar Guileje, o major Coutinho e Lima sabia que comprava a sua tormenta; mas também sabia que teria um julgamento judicial, do qual jamais sairia condenado à morte.
E, para concluir, não foi a panóplia do armamento sofisticado da Rússia, etc, os efectivos de internacionalistas cubanos e cabo-verdianos, a entrada sem resistência em Guileje, os bombardeamentos massivos sobre os 3 G que trouxeram a coesão e conduziram o PAIGC ao sucesso, cansado da guerra, desgastado pelas contradições internas e pela acção "Por uma Guiné Melhor"; foram aqueles que, ao longo de anos lhe infernizaram a vida e moveram uma guerra sem quartel, aos seus militares, aderentes e simpatizantes - os capitães portugueses e o seu Movimento das Forças Armadas, quando este se perfilhou como seu filho ideológico sob a sigla MFA, nascido na Guiné e extensivo aos outros teatros da guerra ultramarina à Metrópole.

O dr. Osvaldo Lopes da Silva, sem embargo a sua qualidade de herói da guerra da Guiné e da independência de Cabo Verde, bem como a generalidade dos participantes dessa, de outras mesas redondas e conferências, estarão para nós, os que fomos também povo em armas pelo Ultramar, como os "velhos do Restelo", mas com 500 anos de atraso. Sob o ponto de vista racional, Portugal, porque país pequeno, com tão poucos e tão pobres portugueses, começou a perder a guerra da sua expansão no início da mesma, logo a partir de 1415. Sob o ponto de vista romântico, os portugueses tão poucos, tão bisonhos e tão pobres, ousaram e fizeram obra pelos quatro cantos do mundo. Venha o diabo que escolha...

Quando Amílcar Cabral fundou o seu exército libertador, os portugueses já andavam há 500 anos pela Guiné, Angola, Moçambique, etc, de armas na mão, desfraldando uma bandeira e envergando uma farda e jamais a História nos poderá considerar espantalhos...

Manuel Luís Lomba

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11735: Recortes de imprensa (66): Osvaldo Lopes da Silva, então comandante do PAIGC, e um dos principais responsáveis pela Op Amílcar Cabral, sustenta, na mesa-redonda, em Coimbra, no passado dia 23/5/2013, a versão do cerco total ao quartel de Guileje e afirma que as forças sitiantes dispunham de um dispositivo (do qual teria sido utilizado menos de 10%), com condições para actuar durante um mês (AngopPress)

(**) Último poste da série > 24 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11622: (Ex)citações (221): O comandante do Comando de Agrupamento nº 2957, cor inf Hélio Felgas, o cérebro da Op Lança Afiada (8-19 de março de 1969) (Fernando Gouveia)

Guiné 63/74 - P11757: Notas de leitura (494): "Adormecer de um Sonho" por Carlos-Edmilson M. Vieira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Março de 2013:

Queridos amigos,
Aqui temos um relato de um guineense sobre o desencadear do conflito político-militar de 1998-1999.
Diplomata, poeta, declamador e músico, o autor privilegia o poético, nota-se que tem um grande orgulho sobre as qualidades amáveis do seu povo, faminto de paz.
Este seu “Adormecer de um sonho” (que título tão lindo!) é uma obra bem intencionada, tem aqui belos parágrafos, se bem que no seu conjunto haja uma arquitetura fruste e soluções nitidamente precipitadas que fazem do seu balanço uma obra bem elaborada mas sem direção.

Um abraço do
Mário


Adormecer de um sonho

Beja Santos

Em “Adormecer de um sonho”, por Carlos-Edmilson Marques Vieira, edição da União Nacional dos Escritores e Artistas de S. Tomé e Príncipe, 2010, voltamos ao palco do conflito político-militar de 1998-1999, numa toada por vezes onírica, por vezes com o recurso a imagens violentas, trata-se de uma narrativa de condenação de uma guerra que veio dividir gentes tão sofredoras de outra guerra que também dividiu famílias, crescendo assim o número de ferimentos que estão para sarar. Bissau é a cidade de Ôdocomé, as fações militares são os corpos dos caçadores de cabeças, o país chama-se Lambdò-Land.

Estamos nas primícias do conflito, “O dia tinha começado a gatinhar na brisa, embalado pelo vento fresco e manso que soprava, balançando as copas das árvores, varrendo das estradas a areia vermelha do Sahara, que o vento quente da noite anterior tinha espalhado sobre a cidade. E também sobre as folhas das árvores e as paredes das casas que já lá vão quase três décadas não foram pintadas”. Convém não esquecer que o autor é também poeta e músico.

Há uma corrente elétrica, uma agitação palpável no número inusitado de militares que circulam armados, há também civis armados até aos dentes, não se entende esta tensão guardada em silêncio, mas estamos em África. Inúmeros rumores circulam nos mercados, algo irá acontecer, os militares estão descontentes, a tensão, para que não restem dúvidas, atravessa as forças armadas, como alerta o narrador: “De um lado estavam os jovens oficiais que clamavam pela modernização e redefinição da missão dos caçadores de cabeças, adaptada à nova realidade do mundo moderno, do outro, os mais antigos que continuavam a advogar o usufruto das regalias e normas herdadas da Luta de Libertação Nacional”. Foi um dia de vai e vem de pessoas e conciliábulos, uma febre sem causa aparente, depois veio a noite e trouxe um sossego provisório, fica-se a saber que os jovens quadros, no seu convívio, protestam contra as mordomias, a clique pegajosa que ciranda em torno do senhor absoluto que promete progressos enquanto inexoravelmente afunda as esperanças do país. O senhor absoluto é o Buntyó que agora anda às turras com o seu velho camarada das trincheiras, Carfala, houve para ali uma briga muito feia, o Buntyó suspendera Carfala do cargo de chefe da Casa das Armas, tinha-se armado a cegada. É percetível o clima de intentona, o autor socorre-se da retórica mais gongórica, temos para ali grandes discursos e invetivas, do tipo: “Somos o único país do mundo em que os funcionários públicos, quer dizer trabalhadores do Estado, ficam meses a fio sem receber o salário e não somos capazes de sair todos juntos à rua, para varrermos do pelouro os incapazes de cumprir a mais elementar das obrigações de um Estado, que é pagar o salário dos funcionários”.

Um outro interveniente da narrativa regressa a casa e recorda Bolama, trata-se de uma memória dolorosa, assim: “A cidade encontra-se coabitada por pessoas, morcegos, ratos, sapos, cobras e lagartixas. Nas noites de lua cheia, a luz entra sorrateiramente, sem arrogância, mas com abundância suficiente, como a chuva que também entra pelas frestas das telhas partidas pelo tempo, pelos rombos das portas e das janelas escancaradas, num infindo namoro com o vento que vem do horizonte marinho”. E depois fala-se de um encontro entre este interveniente, Ibraim, com um amigo, de nome Midana, depois surge Djena, filha de Nandtida e de Bedém, este fora colega dos dois, agora trabalha na Embaixada em Berlim, discreteia-se sobre a vida humilhante do corpo diplomático daquele país, com salários suspensos e corridos das casas alugadas tal a contumácia dos calotes, depreende-se que o azedume por tanta situação caótica envenena o espírito de todos. O autor conhece do que fala, é diplomata de carreira, ocupou o cargo de delegado permanente da Guiné-Bissau junto da UNESCO, depois oficial de ligação da UNESCO junto da União Africana, foi mais tarde colocado em Lisboa.

E às primeiras horas do dia seguinte, domingo, dia santo, uma rajada de metralhadora surpreende o dia nascente, logo se percebeu que era um sinal combinado. A metralha cobriu o barulho habitual da cidade, os tiros intensificaram-se, o pânico ganhou as entranhas das pessoas, endoidecidas procuravam um ponto seguro ou recolhiam a casa. Pelas 11 da manhã, a Rádio Nacional emitia uma mensagem pretendendo acalmar a população, mas da parte da tarde, começaram a troar as armas pesadas, acalmia não existia, ali estavam os mortos amontoados nas estradas e nos cantos das casas a comprovar. No hospital da cidade instalou-se o caos, e começou a debandada que ainda hoje a população recorda, tal o vigor do trauma. Trata-se de uma descrição pintalgada de todas as inquietações possíveis, todos os perigos, vibra-se com insegurança instalada na cidade, aos poucos os seus cidadãos apercebem-se que estão na linha de fogo entre duas fações altamente municiadas.

O autor arquiteta todo este desabafo nas imprecações de vizinhos sem ilusões de que esta guerra vai agravar todos os problemas, tornou-se numa população experiente em viver numa cidade sitiada: “Contavam os obuses lançados por uma parte e a resposta da outra, é que de tanto ouvirem os tiros já sabiam distinguir os morteiros vindos de um lado dos que eram enviados do outro e também sabiam reconhecer, pelo assobio do projétil silvando o ar se iria cair perto ou longe das suas casas. Quando sentiam a aproximação da bomba, gritavam para a família procurar abrigo, quem não tivesse tempo aplacava no sítio onde se encontrava, de barriga para baixo e o nariz raspando o chão".

Começa o êxodo, Nangtida e a família caminham para o Pidjiquiti à procura de um barco salvador. Num cenário dantesco, com a artilharia a bater a zona portuária, a família parte e Nangtida fica em terra, no meio daquele pavor desencontraram-se. Nangtida pede acolhimento à família de Bedém. Esforça-se por se reunir à família, provavelmente em Cabo Verde, ou em Dakar ou mesmo a caminho de Portugal, todas as suas diligências falham, não consegue embarcar. Enquanto espera no cais, presencia o diálogo travado entre Amélia e Kaajal. Amélia poetiza, vamos ouvi-la declamar os seus poemas no meio daquela atmosfera alucinante, onde ecoam os estrondos das armas.

Ficaremos igualmente a saber a história do Tio Polom, uma vítima de perseguições, fora parar à cadeia por uma denúncia caluniosa de um vizinho invejoso, ficou sete anos sem nunca ter sido ouvido e depois a polícia de segurança do Estado levou-o para casa. E tem aqui lugar uma longa estrofe em louvor da liberdade. A tragédia espreita, Nangtida não aguenta mais o desassossego que lhe vai na alma, mete-se ao caminho numa longa coluna que foge ao conflito que pôs Bissau em chama, são pessoas que abandonam as casas, parte das famílias, os amigos e os vizinhos, buscam a salvação. E perto da fronteira uma mina traiçoeira faz adormecer um sonho de uma mãe que procurava desesperadamente reunir-se à filha. Uma morte que, figurativamente, representa o desastre para onde se lançou a Guiné.

Uma obra bem-intencionada, belas imagens poéticas, temos aqui uma alma sensível que não se cansa de lembrar como os guineenses são solidários até na maior provação.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11741: Notas de leitura (493): Populações da Guiné, publicação do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné - Quartel General - Repartição de Informações (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P11756: Os nossos médicos (52): Com o pessoal do meu batalhão, partiram, em 24/4/70, no T/T Carvalho Araújo, très alf mil médicos: Vitor Veloso, José A. Martins Faria e Eduardo Teixeira de Sousa (António Tavares, ex-fur mil, CCS/ BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72)



Lisboa > Pessoal do BCAÇ 2912 no Cais Marítimo de Alcântra, na manhã de 24 de abril de 1970, a caminho da Guiné


Guine > Zona leste > Setor L5 > Galomaro > BCAÇ 2912 (1970/72) >  O nosso aquartelamento, em maio de 1970

Fotos: © António Tavares  (2013). Todos os direitos reservados. 



1. Resposta, com data de 22 do corrente, ao questionário sobre os nossos médicos (*), por parte do António Tavares, (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72) . foto direita


Médicos do BCaç.2912 – Galomaro em 1970/72

(a) - Partiram no Carvalho Araújo, em 24-04-1970, três Alferes Milicianos Médicos.

Vítor Manuel Veloso da Silva, José Alberto Martins Faria e Eduardo Teixeira de Sousa.

(b) – CCS (Galomaro), CCaç.2701 (Saltinho) e Bissau (HMR 241).

(c) – Conheci-os no IAO em Santa Margarida.


O Dr. Vitor Veloso  [, foto  à  esquerda, ] é Cirurgião e Presidente do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro. Foi Presidente do IPO do Porto. É membro Fundador da Sociedade Portuguesa de Senologia (foi criada em 1989) e ex- Presidente da mesma em 2001 a 2003.

No CTIGuiné esteve em Galomaro e Bafatá. As NT e a POP de Galomaro tiveram o privilégio de beneficiar dos conhecimentos médicos da sua esposa que conviveu connosco durante uns tempos. O Dr. Vitor Veloso habitava uma casa particular na Tabanca de Galomaro. Foi médico da CCAÇ 2700 (Galomaro e Dulombi).


O Dr. José Alberto Martins Faria era de Guimarães e faleceu em 2007. No CTIGuiné era o médico responsável da Zona de Acção da CCaç.2701. O Saltinho era uma das poucas companhias operacionais do CTIGuiné que tiveram médico permanente.

O Dr. Eduardo Teixeira de Sousa [, foto à direita,] é um reconhecido especialista de Psiquiatria no Porto. Penso que ficou em Bissau no HM 241.

Foi o Director do Departamento de Psiquiatria no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.

Em 1971 o Dr. V. Veloso foi para Bafatá como Delegado de Saúde. Foi substituído pelo Dr. José Guedes, ex-Otorrino no Hospital Geral de Santo António do Porto.



Em Janeiro de 1972 o Dr. António Manuel Pereira Coelho  [,. foto à esquerda,] ficou adido à CCS/BCaç 2912.

O Prof. Doutor Pereira Coelho dedicou-se à investigação e com a sua equipa, do Hospital de Santa Maria, de Lisboa, foi o pioneiro da fertilização “in vitro” em Portugal. O primeiro bebé (nasceu em 1986), resultante deste tratamento, foi jogador de futebol no Sporting Club de Portugal.

(d) – Sim.

(e) – Sim. Paludismo agudo. Em Maio de 1970 fui dos primeiros tropas a estrear a inacabada enfermaria de Galomaro. Certo dia começou a chover e os meus camaradas enfermeiros, por diversas vezes, mudavam a minha cama para um local onde não chovesse. Vómitos de sangue, febres altas, frio, desmaios e diarreias imobilizaram-me uns tempos na enfermaria.

(f) – Não.

(g) – Não.

(h) – Paludismo.

(i) – Sim. Bastante afluência de tropas e nativos. Consultas, injectáveis, curativos. Recordo ter visto, quando estava internado, um pénis, de um nativo, que de imediato imaginei uma banana cheia de pintas, escrevo mesmo podre.

Todo o pessoal dos Serviços de Saúde, que esteve em Galomaro, era muito estimado quer pelas NT quer pela população local. As suas qualidades de trabalho e humanas jamais serão esquecidas por quem com eles viveu nas matas do leste da Guiné em 1970/72.

Observações: - Fotografias próprias e outras a circular na internet. Aos seus autores as devidas vénias e agradecimentos. Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

António Tavares
Foz do Douro, 22 de Junho de 2013

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Nota do editor:

Último poste da séroe > 19 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11731: Os nossos médicos (51): O BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) teve pelo menos 4 médicos e prestava assistência à população civil (Benjamim Durães)

(...) Questões:

(i) Quantos médicos seguiram com o vosso batalhão, no barco ?

(ii) Quantos médicos é que o vosso batalhão teve e por quanto tempo ?

(iii) Lembram-se dos nomes de alguns ? Idades ? Especiallidades ?

(iv) Precisaram de alguma consulta médica ?

(v) Estiveram alguma vez internados na enfermeria do aquartelamento (se é que existia) ?

(vi) Foram a alguma consulta de especialidade no HM 241 ?

(vii) Foram evacuados para a metrópole, para o HMP ?

(viii) Tiveram alguma problema de saúde que o vosso médico ou o enfermeiro conseguiu resolver sem evacuação?

(ix) O vosso posto sanitário também atendia a população local ?

(x) (E se sim, o que é mais que provável:) Há alguma estimativa da população que recorria aos serviços de saúde da tropa ?...

Guiné 63/74 - P11755: Blogpoesia (347): A outra guerra; Meus cabelos brancos; Serenatas do sul de África; Lembrando serões (J. L. Mendes Gomes)

Blogpoesia > 
A outra guerra e outros poemas recentes (J. L. Mendes Gomes)


A outra guerra...


Passei por mim,
ao virar da rua, 
...fazia luar.

Quase não me reconhecia.
Fazia tanto eu não me via.
Tinha crescido. Mudara tanto.

Era miúdo quando me vi partir.

Cresci. Fiz-me homem.
Parecido com meu pai.

──Por onde tens andado? ── me perguntei.
Olhei para mim, surpreendido.
── Como crescestes, tanto! 
Há tanto que te não vejo.
Por onde andaste?...
diz-me lá, meu velho. 
Sentia tantas saudades tuas.

Nossa Mãe morreu...
e tu não estavas ao pé.
Perguntou por ti...
Suas últimas palavras...
── O meu Quim Luís...nunca mais o vejo! ──
Depois expirou.
──  Estás um homem feito!...
Conta-me lá...quero saber tudo.
Sei que foste à guerra...
E nada mais...
Deves ter tanto p'ra me contar!
Por aqui foi tudo igual...
Só tu não estavas...
E sempre à espera duma má notícia...
Ainda bem que não...
Deus assim não quis.
Tens outra guerra à espera.
E bem pior...
a guerra na paz...

Mafra, 23 de Junho de 2013


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Meus cabelos brancos


Meus poucos cabelos brancos
Esvoaçam ao vento,
Como se fosse uma floresta virgem.
Uma seara verde.
Poisam neles os passarinhos.
Nos seus recantos escuros
Fazem ninhos,
Depois amor.
E dos ovos saem
Bicos abertos
Que sorriem vivos.
Querem viver.
Querem voar.
Vou deixá-los crescer.
Em liberdade pura.
Para os ver voar,
Chilreando alegres,
Poisando nas flores
Desde que à noite voltem
E durmam soltos
Nos meus cabelos,
Como se fossem ninho.
Benditos sejam
Estes cabelos brancos,
Minhas telhas brancas
Do luar de Agosto...


Ovar, 19 de Junho de 2013
20h40m
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Serenatas do sul de África



Apetece voar,
perto das estrelas,
oceano além
e poisar no cabo de África,
para ouvir o canto divinal
deste coro de musas,
que cantam África
como mais ninguém.
Ressuma a selva,
Planuras sem fim,
Colinas ao sol,
Árvores gigantes,
Beijando as nuvens,
Rios famintos,
Lagos de mar,
Onde a vida virgem,
Em pujança a arder,
Ainda cheira a esperança.

Onde mãos irmãs,

Brancas e negras,
Entrelaçadas,
Cantando ao sol,
Cavam a terra
E semeiam o pão.
África negra e branca
Duas irmãs...
Aleluia!...
Aleluia!..


Ouvindo André Rieu,

Mafra, 19 de Junho de 2013
7h49m
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Lembrando serões...

Como uma lenda antiga
Que os avós contavam,

Ao serões de inverno,
Lareira a arder,
No rigor do frio,
A chuva a cair,
O vento a soar,
Bramidos de mar,
Oiço enlevado,
Minhas ondas internas,
Contando segredos,
Contos de fadas,
Me fazem sonhar.
Lembro as horas,
Tão longe,
Carregadas de amor,
Brincando às cegas,
Noitadas sem fim,
Sem querer dormir,
Ao pé dos meus pais alfaiates,
Que ganhavam o pão,
Na oficina a coser e brunir.
A roupa a estrear
Para a festa da igreja,
Com música e andores.
Que estava a chegar.
Em Pedra Maria,
E demais arredores,
Nos quinze de Agosto,
Senhora da Assunção,
Com gente feliz...

Ouvindo “ silêncio” de Beethoven

Ovar, 12 de Junho de 2013
15h58m

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11727: Blogpoesia (346): O Menino Homem (Felismina Costa)

Guiné 63/74 - P11754: Parabéns a você (594): Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72)

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Notas do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11744: Parabéns a você (593): António José Pereira da Costa, Cor Art Ref (Guiné, 1968/69 e 1972/74)

O editor de serviço pede desculpa ao camarada Abel Santos por o tornar mais velho antes do tempo. Fica desde já marcado encontro para o próximo dia 24 de Novembro.

domingo, 23 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11753: Inquérito online: Alguma vez tiveste necessidade, camarada, de recorrer ao médico ou ao enfermeiro da tua companhia, no TO da Guiné ? A resposta é múltipla e já temos 42 respostas

A. Mensagem enviada hoje, internamente, aos membros da Tabanca Grande, e que queremos alargar aos nossos camaradas, combatentes, que nos leem...

Quem é que não esteve doente no TO da Guiné ? Já não falo por ferimentos em combate,,, Falo de doença dita "natural"... Quanto mais não fosse, quem é que não esteve doente...  com uma carga de paludismo, uma diarreia valente, uma blenorragia ou com o corpo infestado de "flores do Congo" ?!

E, se sim, tivemos que recorrer ao "pastilhas" (enfermeiro) ou ao "senhor alferes miliciano médico" da companhia ou do batalhão. Médicos civis, nas santas terrinhas por onde passámos e penámos, não os havia... Hospitais a sérío, só o HM 241 (Bissau) ou HMP (Lisboa)... Sabemos que certas doenças transmissíveis como a tuberculose ou a hepatite davam logo direito a "evacuação" para a metrópole... Houve alguns safados que, mal por mal, preferiam uma hepatitezinha do que andar no mato... 

Bom, tudo isto para a gente recordar as nossas doenças e os nossos queridos médicos e enfermeiros... Há uma sondagem a correr sobre o tema. Precisamos das vossas respostas. Já houve 42 camaradas que responderam, às 20h30. Têm, a seguir, as perguntas e as respostas dos 42...Quem ainda quiser colaborar, tem 3 dias. A resposta é múltipla, podem dar mais do que uma resposta... Tem que ser "on line" (, na coluna do lado esquredo) E é anónima, a resposta, pois claro!..

Agradecemos desde já a vossa colaboração... Vocês têm (ou melhor,. todo nós temos) um precioso "capital de memória" que compete ao nosso blogue rentabilizar... Há perguntas que têm de ser feitas (e respondidas) agora, em 2013... No 1º centenário do início da guerra colonial, em 2061, de certeza que nenhum de nós cá estará para dizer que foi assim ou assado... 

Fiquem bem, bom, alegre, divertido e saudável São João!... Divirtam-se!

Um Alfa Bravo. Luís Graça



B. SONDAGEM: 

ALGUMA VEZ TIVESTE NECESSIDADE DE RECORRER AO MÉDICO OU AO ENFERMEIRO DA TUA COMPANHIA, NO TO DA GUINÉ ? (RESPOSTA MÚLTIPLA) (n=42)


1. Felizmente nunca tive necessidade de recorrer ao médico ou ao enfermeiro
n=4 (9%)

2. Fui visto uma vez pelo médico
n=6 (14%)

3. Fui visto mais do que uma vez pelo médico
n=20 (47%)

4. Fui visto uma vez pelo enfermeiro
n=3 (7%)

5. Fui visto mais do que uma vez pelo enfermeiro
n=21 (50%)

6. Não havia médico na minha companhia
n=12 (28%)

7. Não havia médico no meu batalhão
n=0 (0%)

8. Tive de passar pelo HM 241 (Bissau)
n=15 (35%)

9. Felizmente nunca tive de passar pelo HM 241 (Bissau)
n=15 (35%)

10. Tive de ser evacuado para o HMP (Lisboa)
n=4 (9%)

11. Felizmente nunca tive de ser evacuado para o HMP (Lisboa)
n=16 (38%)

Guiné 63/74 - P11752: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (39): 40.º episódio: Memórias avulsas (21): De lá para cá e vice-versa

1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), em mensagem do dia 17 de Junho de 2013, enviou-nos mais umas peripécias d"Os melhores 40 meses da sua vida", desta vez as suas andanças de lá para cá e vice-versa.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

GUINÉ 65-67 - MEMÓRIAS AVULSAS

21 - O ANTES DA GUINÉ - DE LÁ PARA CÁ E VICE-VERSA

Até que um dia...
Recebido o correio que vi logo ser Militar, disse para comigo: Queres ver que já me estão a convidar para um passeio até ao Ultramar?

Mas não... tal só veio a acontecer quando já tinha 20 meses cá no burgo (e até andava já, feito pavão, com as divisas amarelas e deixara de ser "O NOSSO" cabo miliciano, para ser "MEU" Furriel).
Agora estavam apenas a solicitar-me que fosse até à Amadora.

Ali chegado nem comida me deram e voltam-me a pedir:
- Queres ir até Lamego?

Hesitei, qu'era um bocado longe mas perante a insistência e os modos simpáticos, acedi.
Ali passei umas belas férias... passeei por cima do Douro revoltoso apenas agarrado a uma corda e desci da Sé de Lamego cá para baixo agarrado a outra mas esta tinha uma roldana que deslizava num cabo d'aço.
Neste último caso havia apenas de ir agitando os pés para que ao fim da descida não partisse as lajes que ornamentavam o solo...

Dali entenderam que precisavam de mim, em Tancos, foi bom que e, se por acaso viesse a pretender trabalhar em qualquer pedreira, ali colhi os conhecimentos e a própria carteira profissional de minas e armadilhas. Recordo até, com alguma emoção, convenhamos, aquele dia em que cá em baixo, junto ao Castelo de Almourol, fui experimentar um pedaço de massa explosiva, a que chamavam farinheira. Colocada que foi, debaixo dum pedregulho de todo o tamanho, a que juntei depois um detonador, mais um cordão com 50 metros que trouxe até cá ao alto e liguei a uma caixinha com alavanca que pressionei.

O estardalhaço do rebentamento foi impressionante, levantei a cabeçorra e é nessa altura que vejo aquele monstro redondo com mais dum metro de diâmetro, a dirigir-se, precisamente para local onde me encontrava. Eu sabia que causava tal reacção nas mulheres, pois que todas tentavam sempre fugir para onde eu estava, mas com pedras, tal nunca me passara pela tola.
Contudo nada de grave aconteceu, ninguém se aleijou e mais uma vez acreditei no dito: "ao menino e ao borracho..."

Depois... fui atenciosamente aconselhado a ir para Abrantes, onde monitor fui dum pelotão de recrutas acabados de chegar.
A eles me dediquei e ministrei tudo o que havia aprendido.

Tomar a seguir e novos recrutas.

Regresso a Abrantes e de novo para Tomar, sempre a ensinar só que agora, aos meus futuros camaradas para a guerra da Guiné, ou seja a preparar a minha saudosa CCAÇ 1422.

Pelo meio deste andar de cá para lá e vice-versa, houve ainda oportunidade e que ninguém sabe porque aconteceu, de ter estado um mês, completamente sem nada fazer, no GC Trem Auto, ali na Av. Berna, Lisboa.

É aquando da última permanência em Tomar, que entretanto fui promovido a Furriel Miliciano, mas a notícia saiu na OS de Abrantes donde voz amiga me avisou. Confirmei depois e nessa noite decidi fazer uma surpresa, aparecendo na Messe dos Sargentos, divisas acabadas de sair do forno no bolso e a fim de que me fossem implantadas por um dos Sargentos-Ajudantes, que por sinal nos acompanhou como chefe da Secretaria, que outra coisa até nem poderia ser, dadas a sua idade e físico já bastante abarrigado.

- Ó Nosso cabo, então não sabe que não pode entrar aqui onde estão os homens?

Passei por cima da provocação... disse-lhes ao que ia... recebido melhor que bem, mas avisaram-me do hábito, de ter de pagar uma rodada aos presentes e duas ao padrinho.

Aqueles SORJAS eram no fundo boas gentes, mas tinham de parecer beras, o que psicologicamente resultava.

Dois meses mais tarde, embarquei no NIASSA e foi assim que na Metrópole deixou de estar cá o JE.
Parti cantarolando baixinho para os meus familiares: "Adeus até ao meu regresso"

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11716: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (38): 39.º episódio: Memórias avulsas (20): Tavira - O antes da guerra

Guiné 63/74 - P11751: Memória dos lugares (236): Gadamael, 1970-1971 (Vasco Pires)

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), com data de 17 de Junho de 2013:

Caríssimos Luís / Carlos,
Ontem fiz um comentário, no P11711 sobre "piras", e usei o termo "ALFERO DI CANHÃO".

Resolvi discorrer sobre o tema, mesmo correndo o risco de parecer arrogante ou pretensioso, o que de modo algum é minha intenção, e sim, simplesmente relatar a experiência de jovens soldados.

Primeiramente, Alfero di Canhão, não é a mesma patente que Alferes Miliciano de Artilharia.
Alferes de Artilharia era um soldado que recebia formação de guerra clássica, em Vendas Novas, e era "lançado" algures em África.
"Alfero di Canhão" era um Alferes de Artilharia, que chegado a Bissau, era jogado no primeiro buraco disponível e começava a tornar-se tal no primeiro ataque ao quartel, mas era um processo lento.

Logo o jovem soldado sentia que era ele que fazia mais barulho, atirava mais longe e ficava fora das valas quando todos lá estavam. Não fazia isso porque era mais corajoso, mas porque era o lugar onde se sentia mais seguro. Podia acontecer o "raio" cair no lugar "errado", não é C. Martins? Mas ele sentia assim?

Também sentia que era tratado de modo diferente dos outros Oficiais, pela população local, bem como por seus superiores da outra tropa, afinal era ele que acalmava as hostes (mesmo só fazendo barulho) na hora da verdade!

Havia também momentos de grande tensão, quando a tropa no mato pedia fogo para bem próximo, imaginem que eles estavam com o IN a curta distância, debaixo de fogo, e por vezes com referências precárias.

Assim, Caríssimos Editores, quando ele se tornava realmente um "ALFERO DI CANHÃO", voltava para casa.

forte abraço
Vasco Pires











Fotos ©: Vasco Pires (2013). Todos os direitos reservados
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11709: Memória dos lugares (235): Cobumba e a trágica realidade das minas (António Eduardo Ferreira)

Guiné 63/74 - P11750: Bom ou mau tempo na bolanha (14): "Tarrafo", um livro, um documento (Tony Borié)

Décimo quarto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Abri o envelope, dos modernos, almofadado, tinha vindo de Portugal, tinha na estampilha o nome de uma simpática povoação da região de Águeda, lá dentro vinha um livro, assinado pelo autor, com uma dedicatória que me fez emocionar. Abri-o, tinha o cheiro daqueles livros, quando novos, usávamos desde a primeira à quarte classe, depois com o uso, e com algum mal trato, pois muitas vezes serviam de balizas para aqueles tremendos desafios de futebol, da “Terceira”, contra a “Quarta”, que era o pessoal da terceira classe contra os “ranhosos” da quarta classe, que envolvia talvez uma equipa de quarenta e tantos “garotos”, contra outra equipa de outros quarenta e tal, e que acabava sempre quando tocava a campaínha para o regresso às frias e inconfortáveis salas de aula, onde havia um professor, “com cara de mau”, parecia mesmo um “pirata”, e a terceira classe quase sempre perdia, com um golo “roubado”, pois tinha sido marcado depois de forte empurrão que estatelou no chão de terra batida, da Escola do Adro da Igreja, o franzino “puto” da terceira classe. Esses livros, quase sempre ficavam todos riscados, com marcas, nomes do colega de carteira, sinais de “copianço”, enfim toda a qualidade “gatafunhos”.

Estou a falar da Escola do Adro, como havia tantas escolas do Adro, como havia tantas ruas da Farmácia, dos Correios, da Fonte, do Rio, de Cima, de Baixo, em tantas vilas e cidades de Portugal, mas esta era a Escola do Adro, de Águeda, região onde vivem os companheiros combatentes Paulo Santiago e Armor Pires Mota. O Paulo teve o simpático gesto de me enviar o livro, para que revivesse os tempos do conflito e me lembrasse do que era essa maldita polícia que nos acompanhava nesse mesmo conflito, o livro tem esse cheiro, tem essas marcas, que nós “putos” fazíamos, muitas vezes para enganar o professor.

O Armor Pires Mota, não era eu, creio, que se a minha já um pouco debilitada memória não me atraiçoa, que o vi uma vez ou outra na tipografia onde trabalhava em Águeda, creio que até o cumprimentei, mas como dizia, o Armor Pires Mota, não era eu, o Armor Pires Mota, não enganava ninguém, teve na altura, uma personalidade e uma visão um pouco arrojada para a época, tirava os seus apontamentos durante o conflito, ali, a quente, e mesmo antes de chegar à Europa, começa a contar a verdade do que via, num jornal de província, da pequena localidade donde era oriundo, mas pertencente à região onde eu nasci e na altura viviam os meus pais, que eu, já incorporado no exército, visitava assim que tinha oportunidade, apontamentos esses, que logo tiveram alguma publicidade, e ele, sem se preocupar um pouco sequer, pois a tal polícia do estado, vigiava-nos. Por fim, chegado de vez à Europa, publica esses apontamentos em livro. Resultado, o tal livro foi logo apreendido e com os “gatafunhos” escritos a lápis, talvez vermelho e azul, como usava o pai do meu companheiro de escola, que me trazia alguns desses lápis, depois de eu o ajudar nas contas de multiplicar e dividir, em que ele não era lá muito bom, e que tinha vindo dos lados de Leiria, cujo pai era chefe dos correios que também fazia a revisão e censura dos jornais da vila nesse tempo.

O livro “Tarrafo”, para mim é um documento, com “crónicas e reportagens feitas na hora”, algumas a quente, a verdade do que via, não importava se as aldeias eram queimadas, se havia bombardeamentos com bombas de napalme, se havia emboscadas, tiros, granadas, morteiros, catra-pum-pum-pum, mortos, feridos, guerrilheiros com armas, algumas com mais potencial do que as usadas pelas nossas forças, lama, bolanhas, tarrafo, fome, sede, fartura, bajudas, umas a fugirem, outras a refugiarem-se nos braços dos soldados, risos, abraços ou beijos, companheiros com o camuflado roto e sujo de sangue, alguma alegria, ou gritos de dor e angústia, nos momentos de aflição, em que alguns companheiros feridos, pediam a morte, era a verdade, que nós combatentes sabemos que existiu, eu, pelo menos, que lá cheguei uns meses depois dele e calquei aquela terra vermelha, e dada a minha especialidade no conflito, tomei conhecimento de algumas “façanhas” do célebre Batalhão 490, assim como de outras unidades de combate que andavam por lá, principalmente pela região do Oio. Vi que era verdade, mas não tive a coragem ou talvez a lucidez, de chegar à Europa e descrever em jornais, revistas ou livros, alguns pormenores daquela maldita guerra. Na minha modesta opinião, este livro em parte deve ser lido nessa vertente, como um documento, vou colocá-lo num lugar especial da minha pequena biblioteca.

Um grande bem haja aos amigos combatentes Paulo Santiago e Armor Pires Mota e não perco a esperança de um dia os poder abraçar.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11733: Bom ou mau tempo na bolanha (13): Durante 30 anos trabalhei numa multinacional em New Jersey (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P11749: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (10): "O Nosso Dicionário"

1. Mensagem do António J. Pereira da Costa cor art ref, ex-alf art CART 1692/BART 1914, (Cacine, 1968/69); e ex-cap art e cmdt, CART 3494/BART 3873 (Xime e Mansambo) e CART 3567 (Mansabá)  (1972/74):

Data: 19 de Junho de 2013 às 22:19

Assunto: "O Nosso Dicionário"

Olá,  Camarada

Aqui vão 4 páginas de um dicionário de termos militares relativos à Guiné. Foram os de que me lembrei. Se houver mais,  é só acrescentar. Um Ab.

2. A Minha Guerra a Patróleo (10) > 
O Nosso Dicionário Militar

Nota Prévia: Na elaboração deste pequeno dicionário:

(i)  não foram considerados acrónimos e abreviaturas regulamentares incluídas na linguagem militar do tempo;

(ii) Também não se consideraram designações regulamentares de certos materiais, ainda que tenham provindo de alcunhas ex. "jipe", (inicialmente "GP" ou "Jeep"); ex. matador (viatura militar de fabrico britânico da AEC), etc.;

(iii) Não se consideraram expressões de crioulo, pois essa é a língua usada pelos povos da Guiné para comunicarem entre si não constituindo, por isso, linguagem militar;

(iv)  As expressões da gíria militar "oriundas" de outros TO também não foram aceites, bem como as expressões vindas da I Guerra Mundial ou de outras, ex. ameixa de Elvas, (inicialmente pelouro e depois sinónimo de granada) e que ficaram na gíria militar, por que não foram "adoptadas" durante a Guerra Colonial.

Este critério reduziu muito o número de palavras ou expressões características da Guerra da Guiné.


APANHADO (do clima) – Situação do foro psicológico que poderemos comparar a certas situações de stress laboral e que se manifestava por comportamentos absurdos ou inconvenientes. O termo era, muitas vezes usado como chacota, para designar os militares com atitudes hilariantes e bem-dispostas, mas, noutros casos, era indício de um cansaço psicológico que não deixava de se fazer sentir em consequência da permanência na "Província".

ATACADORES DE PARAQUEDISTA (Ou de PM)
– Esparguete. Este tipo de massa era, talvez pela sua melhor capacidade para se conservar e baixo preço, muito frequente na alimentação das unidades militares. Acompanhava carnes, era incluído em sopas, mas há notícias de ter sido consumido de outros modos nomeadamente acompanhado de marmelada.

BANANA
– Rádio portátil de curto alcance normalmente usado para ligação entre grupos de combate e com uma forma bastante sugestiva. Permitia a ligação com a Força Aérea em duas frequências (uma de contacto inicial e outra para utilização subsequente). Inicialmente de origem francesa – o THC 736 de maiores dimensões foi substituído pelo AVP – 1, mais portátil e, sensivelmente, com o mesmo alcance.

BARCOS DE BRAÇO-DADO – Conjunto de duas embarcações que navegavam muitas vezes sem escolta e incluindo uma pequena força de fuzileiros pelos rios da Guiné. O aspecto exterior de ambas era idêntico. Porém, só uma tinha motor. Assim, navegavam solidamente ligadas pelas amuradas. Eram semelhantes a batelões com uma capacidade de carga, a granel, muito considerável. Frequentemente transportavam pessoas em condições bastante incómodas, sobre a carga e com reduzida protecção contra as intempéries.

BATE-ESTRADAS – Aerograma. A fim de simplificar o manuseamento da correspondência para o Ultramar foi criado este tipo de correspondência que já existia noutros países. Este tipo de "envelopes" abertos e consultáveis facilitava a possível acção da censura de guerra. O Movimento Nacional Feminino fazia a distribuição de aerogramas que também podiam ser obtidos noutras fontes, como as juntas de freguesia.

BAZOOKA – Cerveja de 0,6 dl. Exclusivamente para o Ultramar as cervejeiras (Sagres, Nocal, Cuca, etc.) apresentavam a cerveja em garrafas de 0,6 dl às quais foi dado aquele nome por oposição às normalmente comercializadas com 0,33 dl de capacidade e por consequência com maior poder "explosivo" como sucedia com as bazookas, armas anti-carro de calibre 6 cm ou, mais frequentemente, 8,9 cm de fabrico americano.

BIANDA – Comida em geral. Do crioulo arroz, base da alimentação da população.

BICHA DE PIRILAU – Designação comum a todos os TO. Progressão, em coluna por um, mantendo cada homem uma distância regulamentar, adequada à situação táctica, em relação ao que se lhe seguia.

CACO (Baldé) – Alcunha do brigadeiro e, depois, general António de Spínola, aludindo ao monóculo que usava. Diz-se que a lente não tinha graduação e que se destinava a compor a sua figura. Ao cert, sabe-se que o general usava óculos, sempre que precisava de ler. A designação baldé vem da protecção dada às populações e ao esforço que promoveu para a sua captação para o apoio às tropas e à política do governo.

CANHOTA – Espingarda. Inicialmente a espingarda Mauser, de calibre 7,9 mm, cujo desempenho insuficiente obrigou à aquisição de uma espingarda automática – a G – 3 (também de fabrico alemão) – de calibre 7,62 mm.

CAPITÃO-PROVETA – Nos últimos anos de guerra, devido a dificuldades de recrutamento, foram graduados no posto de capitão, oficiais, normalmente licenciados, que, após o curso de oficiais milicianos (COM), embarcavam com o posto de alferes miliciano para um estágio de quatro meses numa unidade operacional e num dos três TO para que pudessem familiarizar-se com o ambiente que iriam encontrar. Ao regressar eram graduados em tenentes, preparavam uma subunidade e voltavam a embarcar, agora como comandantes de companhia. Esta forma de recrutamento de comandantes de companhia entra em vigor quando se esgotou a possibilidade de chamar às fileiras os oficiais milicianos que não tinham sido mobilizados, ou porque a guerra ainda não se iniciara, à data da sua passagem à disponibilidade ou porque, durante o seu serviço militar, não tinham sido mobilizados como subalternos.

CICLISTAS – Feijões-frade. Esta designação estava divulgada na Metrópole e no Ultramar. Resulta da semelhança entre um pelotão de ciclistas a passar pelos espectadores. (todos iguais e movendo-se rapidamente). Julga-se que se deveria ao facto de este tipo de feijões (muito utilizado como acompanhamento de diversos pratos de peixe e conservas) ser cozido e depois a água da cozedura ser escorrida. Sendo todos iguais e movimentando-se depressa nessa altura temos que considerar que a "semelhança" era evidente.

CIFRA – Operador cripto. Até ao nível companhia existiam normalmente dois cabos operadores-cripto que cifravam e decifravam as mensagens, expedidas e recebidas. A alcunha vem claramente da sua actividade.

COSTUREIRINHA – Pistola-metralhadora PPSH de fabrico soviético de calibre 9 mm que equipou os exércitos da URSS e do Pacto de Varsóvia, respectivamente, durante a II Guerra Mundial e durante grande parte da Guerra Fria. Tinha um carregador circular de cerca de 60 munições e distinguia-se pelo som do seu funcionamento que lembrava uma máquina de costura.

EMBRULHAR
– Ser atacado pelo IN.

ENXOTA-PINTOS – Também chamado burro-do-mato ou simplesmente burrinho. Viatura de fabrico alemão Mercedes Unimog 411. Inicialmente era uma viatura agrícola destinada a serviços em pequenas explorações. Trabalhava a gasóleo e tinha um ruído de motor agudo e muito característico. Era uma viatura muito utilizada pela sua potência e manobrabilidade. Transportava habitualmente uma equipa de atiradores.

ESCRIBA – Primeiro-cabo escriturário que trabalhava, normalmente, na secretaria com o primeiro-sargento que "respondia [1]" pela companhia.

ESTILHAÇOS – Carne de frango, normalmente em pequena quantidade e, por isso, muito dividida em pequenos bocados, habitualmente comida misturada com massa ou com arroz.

FERRUGENTO – Qualquer elemento da "ferrugem", secção de manutenção auto, e não só, de uma subunidade.

KIKO, QUICO ou TAPA-CHAMAS – Barrete do uniforme n.º 3 ou do camuflado. Totalmente confeccionado em pano com uma pequena pala, em redondo, para diante, e outra, para trás, que se abria em duas partes, de forma a adaptar-se à nuca. Muitas vezes, para se não perder nos movimentos de progressão no mato, era atado por uma das pontas a uma platina do camuflado. Esta designação generalizou-se e era usada em todos os TO e na Metrópole.

KALACHE – Espingarda automática de fabrico soviético, utilizando o calibre 7,62 (curto) denominada Kalashnikov, nome do seu inventor Mikhail Kalashnikov. No exército de origem é designada por AK – 47 (Avtomat Kalashnikova odraztzia 1947 goda).

LERPAR – Por analogia com o jogo de cartas, significava morrer. Podia também ser usado em relação a qualquer outra coisa que falhasse ou não se concretizasse. (viagem, dinheiro a receber, etc.)

MANGA DE CAPOTE
– Tipo de massa alimentícia que também era assim designada pela própria Manutenção Militar e que aumentava substancialmente de volume, depois de confeccionada.

MÉZINHO ou PASTILHAS – Adoptando uma expressão do crioulo, era a designação dada a qualquer elemento da equipa sanitária da subunidade, normalmente o furriel.

NHARRO – Expressão de significado depreciativo que designava o preto (normalmente interessado em tirar partido da acção da tropa) ou o branco residente e exercendo comércio numa povoação do interior à maneira dos "lançados" no Brasil antigo.

PAGA-DEZ – Grande lagarto de cores vivas, mas inofensivo que se movimenta por pequenos e rápidos lanços. Ao parar subitamente, fazia um movimento com as patas dianteiras semelhante ao das flexões de braços em apoio no solo. "Pagar dez" (flexões de braços) era a punição mais comum durante o treino físico, praxe militar ou em consequência de um qualquer procedimento tido como não regulamentar.

PBX – Designação atribuída a um qualquer elemento da secção de transmissões da subunidade. Corruptela da expressão em inglês Private Branch Exchange (mudança de ramais privados) e que designava, naquele tempo, um centro de distribuição telefónica pertencente a uma entidade que geria, no seu interior, os seus próprios serviços telefónicos.

PERIQUITO ou PIRA – Novato. Todo aquele que tinha acabado de chegar à Guiné para continuação do serviço militar. Esta designação era utilizada noutros sectores da vida e da acção nas unidades ou fora delas.

PICAR (a estrada) – Operação de grande perigo que consistia em progredir por itinerário ou trilho procurando detectar minas (normalmente) ou armadilhas. Uma vez que a quase totalidade das minas usadas pelo inimigo eram de plástico ou de madeira não era possível utilizar o detector de minas. Por isso este trabalho era realizado com recurso a uma vara de verguinha afiada – a pica – que se espetava no solo e pelo som ou pela diferença de textura do terreno encontrada permitia a detecção do engenho.

REBENTA-MINAS – Designação, comum a todos os TO, para a primeira viatura de uma coluna auto, geralmente mais pesada, de cabine recuada e com diversos sacos de areia, visando aumentar-lhe o peso e proteger o pessoal da cabine, no caso de ser accionada uma mina anti-carro.

SALGADEIRA ou SOBRETUDO DE MADEIRA
- Caixão.

SUPOSITÓRIO – Granada de artilharia. Aludindo à forma aerodinâmica deste tipo de munições.

TROPA-MACACA – Unidades do Exército, de quadrícula ou intervenção, formadas na Metrópole ou do recrutamento local, não incluídas na designação de tropa especial (comandos, pára-quedistas ou fuzileiros especiais).

TUGA – Designação pejorativa dada pelo PAIGC aos militares portugueses.

TURRA – Designação pejorativa dada aos combatentes do PAIGC. Abreviatura de terrorista.

VAGUEMONSTRO – Furriel vagomestre da companhia.

VÉLHICE – Expressão designava uma unidade ou grupo de unidades que já tinha terminado a sua comissão ou estava à espera que tal sucedesse, a curto prazo.

VÉLHINHO. – Militar de uma unidade da velhice.

VIÚVA NEGRA
– Mina anti-pessoal PMN de fabrico soviético. De plástico negro e formato circular, apresentava duas tampas que lhe conferiam um aspecto de pequena panela e continha uma quantidade relativamente pequena de explosivos. Era adequada a ser manuseada por guerrilheiros pouco evoluídos como sapadores, já que tinha a particularidade de, uma vez implantada, só ficar activa após algum tempo destinado a cortar com um arame semelhante a uma corda de guitarra uma cavilha de chumbo.
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[1] Esta expressão designava as funções gerais administrativas e logísticas do primeiro-sargento de qualquer subunidade. Actualmente estas funções são desempenhadas por um sargento-ajudante.

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11172: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (9): A praxe da Ivone