terça-feira, 14 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10262: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (4): Hoje vais pagá-las todas!!!

1. Em mensagem do dia 6 de Agosto de 2012, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos esta estória de suspense:

Caro camarada Carlos,
Aqui vai o relato de mais uma passagem de que eu fui um dos intervenientes em Mansambo e, que faz parte das muitas que compõem a história da CART 3493.

Quando não conseguimos distinguir uma brincadeira, daquilo que é a sério, sujeitamo-nos a grandes sustos, e comigo aconteceu assim, em Mansambo.


PEDAÇOS DE UM TEMPO

4 - HOJE VAIS PAGÁ-LAS TODAS!!!

O eletricista da nossa Companhia era muito brincalhão, de estatura baixa, de vez em quando juntava-se a nós (condutores) sempre disposto a pregar partidas, depois ria-se das brincadeiras que fazia, algumas vezes calhava-lhe levar umas palmadas como moeda de troca, mas não se chateava, até porque era quase sempre ele o primeiro a pôr (lenha na fogueira). Quem passou pela Guiné sabe que todos nós tínhamos dias de algum desnorte. Aconteceram incidentes graves, por vezes sem razão aparente para que tivessem sido provocados. O certo é que aconteciam, e todos nós tínhamos conhecimento de tais atos.

O Vieira, certo dia, entrou no abrigo dos condutores, onde (por acaso) só estava eu deitado em cima da cama, que era a última do abrigo. Quando entrou, não sabia se eu estava sozinho ou não. Aparentava ir completamente descontrolado, levando na mão uma granada ofensiva. Entrou cerca de um metro dentro do abrigo e, em vós alta e com cara mau disse- me:
- Estás farto de gozar comigo, hoje vais pagá-las todas.

Nos primeiros instantes não fiz caso, mas quando ele retirou a cavilha da granada e a atirou para debaixo da minha cama, estive alguns segundos em que a respiração parou. Naqueles breves momentos pensei em quase tudo, mesmo no pior… Passados que foram alguns segundos não houve rebentamento (estava desativada). O Vieira começou a rir e fugiu, ainda hoje não faço ideia onde se terá escondido. Quando saí da cama era mesmo com vontade de lhe sacudir a roupa, mas passadas algumas horas já tudo tinha esquecido, menos o susto que apanhei.

Encontrámo-nos há três ou quatro anos num almoço da companhia que teve lugar em Viseu, (desde a nossa vinda da Guiné não mais o tinha visto), falámos acerca desse episódio o que serviu para ele se rir mais um pouco. Eu ainda lhe disse: - Hoje é que vais levar uns murros… na brincadeira, claro!

O Vieira era um bom camarada. A primeira vez que vim de férias à Metrópole fui incumbido de levar para Bissau uma mala que pertencia a um oficial da nossa companhia, que tinha sido destacado para outra, ou para um grupo de combate (não tenho a certeza) de tropa nativa e que tinha sido vítima de um incidente provocado por um subordinado seu. Talvez recordar-me da mala que levei para Bissau (por sinal bastante pesada), me fizesse pensar que o que foi uma brincadeira pudesse ser a sério.

António Eduardo Ferreira
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Nota de CV:

(*) Vd. último poste da série de 5 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10119: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira (3): Crianças de Mansambo, jamais vos esquecerei!

Guiné 63/74 - P10261: Convívios (464): Tabanca de São Martinho do Porto, sábado, 11 de agosto de 2012 (Parte III)



Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro <  11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > A dona da casa, a dra Clara Schwarz.
João Graça, médico interno de psiquiatria, músico, nosso grã-tabanqueiro, tocou algumas das peças do seu reportório de música klezmer e irlandesa, em homenagem aos presentes, e muito em especial   à dona da casa, cujos antepassados eram da Europa de leste, polacos, da parte do pai, russos por parte da mãe...



Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O João Martins e a esposa do Zé Teixeira, simpatiquíssima (mas cujo nome lamentavelmente não apontei no meu caderno de notas!)...


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > A Joana Graça... Bem disposta, e brincalhona, esteve dez minutos a "falar em russo" com o irmão do dr. Reynaldo sem que este tivesse dado conta de que ela, excelente imitadora de "línguas estrangeiras", não domina o russo... O Pepito, bem como a dona da casa, mais uma vez, divertiram.se com a "lata" da Joana,...



Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto >  O médico, urologista, dr. Reynaldo Urgaleno... De origem cubana, trabalha no Hospital de Aveiro. Estve em missão de cooperação na Guiné-Bissau.


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > Cecília, esposa do Reynaldo. Portuguesa, conheceu o marido na Guiné-Bissau.  Serviu de intérprete ao futuro marido e contou-nos algumas histórias desse tempo de Guiné... Como o leitor deve calcular, a relação terapêutica entre o urologista e o doente não é das mais fáceis, sobretudo da "primeira vez"... O homem guineense, por razões de pudor, culturais e outras,  não se sente confortável com o "toque rectal"... Pelo que a vida de um urologista,. estrangeiro (e da sua intérprete) não é propriamente um mar de pétalas de acácias...


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O irmão do Reynaldo, é engenheiro naval, trabalha e vive em Portugal (segundo percebi, na marinha mercante). Fala russo, tendo vivido seis anos em São Petersburgo.


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O anfitrião dso encontro e régulo da
Tabanca, diretor executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, de férias em Portugal.  Sempre  otimista (mesmo em relação ao futuro do seu país, onde nada neste momento funciona, a nível da administração pública...), falou-me com grande entusiasmo do novo projecto em que a AD  está envolvida, "Cacheu, caminho de escravos"...

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2012). Todos os direitos reservados

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10257: Convívios (463): Tabanca de São Martinho do Porto, sábado, 11 de agosto de 2012 (Parte II)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10260: Do Ninho D'Águia até África (5): Em cenário de guerra deixas de ser tu (Tony Borié)

1. Quinto estória de "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Op. Cripto, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (5)

Em cenário de guerra, deixas de ser tu! 

Já foi explicado no princípio, que quando os militares chegaram a esta vila, usavam as instalações, já existentes, de um antigo edifício em ruínas, que todos acreditavam que tinha sido usado anteriormente, por padres de uma ordem religiosa francesa. Era aí que funcionava o comando.

O Marafado, soldado pequeno na estatura, magro e moreno, talvez por andar sempre com o corpo descoberto, sem camisa, e que fazia parte do pelotão de morteiros, era algarvio, e dizia que era capaz de convidar o taverneiro da sua aldeia para beber um copo, e no fim não pagava, pois o taverneiro, oferecia o vinho!

Foi baptizado com este nome, porque cantava uns fados, muito desafinados, e não podia ver a caneca do café, cheia de vinho, que logo bebia, nos intervalos em que tirava o cigarro “três vintes” da boca, mostrando já uns dentes bastante escuros, aliás como quase todos os militares ali estacionados, devia de ser da água!.

Quando os militares, não estavam convocados para saírem em patrulha ou outras tarefas, andavam por ali, conversavam uns com os outros, jogavam as cartas, ajudavam em certos trabalhos sem serem convocados para isso, enfim, tentavam passar o tempo, quase sempre dentro do aquartelamento em construção.

O Marafado, não era assim, e dizia: - Eu não sou pássaro de gaiola!

E em especial pela manhã, quase sempre se dirigia à tal aldeia com casas cobertas de colmo que existia perto do aquartelamento. Ia para lá, com a ideia de conversar com alguém, ver as raparigas, comer fruta de cajú, às vezes beber aguardente de palma, até diziam que tinha lá uma namorada, o que ele sempre negou, enfim ia passar o tempo. Nesse dia, para encurtar caminho, aliás como quase sempre fazia, passa mais ou menos pelo meio, desse edifício em ruínas, e vê, ao lado de uma parede de adobe, em ruínas também, dois corpos de africanos, quase nús, esticados no chão. Fica arrepiado.

Pára, põe as mãos na cara, e aproxima-se. Um cheiro esquisito, vem dos corpos, já sem vida, no chão. Não acredita, no que vê.

Vai ao encontro de alguém, mais velho na província, e questiona.

Esse alguém, vendo a cara, e a atitude do Marafado, mostrando algum pânico e desespero, encolhe os ombros, acende um cigarro e pergunta:
- Qual é o teu problema? Chegaste ontem à guerra? Pois sejas bem-vindo.

E mais lhe disse:
- Oh pá, isso com toda a certeza, que é o resultado dos interrogatórios que se realizaram durante toda a noite, por essa polícia, que anda aí, e que eu até tenho medo de falar no nome dela, pois lá na minha aldeia, muitos foram presos só de falar nesse nome. Também esse gajo africano, que ajuda nos interrogatórios, usa o cavalo marinho, como se fosse um autêntico vaqueiro do oeste americano. Até dizem que bate com um arame dobrado. Tu não viste, como a luz falhava de vez em quando esta noite? Olha que o problema não foi do gerador, que trabalhou toda a noite.

O cenário macabro, que acabou de presenciar, com os seus próprios olhos, acompanhou-o em pensamento, pelo menos, toda a sua comissão de serviço, na dita província. E antes de vir falar ao Cifra, seu amigo, pensou para si:
- Estes desgraçados não resistiram. O que teriam feito?

Isto é mesmo a sério. Não é como nos filmes que eu via, na televisão, quando bebia o meu copo na taverna da aldeia, em Portugal.

O Marafado, que era amigo do Cifra, veio dizer-lhe o que viu. O Cifra, foi ao local, e era mesmo verdade, quase todos os militares sabiam que era verdade. Estavam lá, os desgraçados, mortos, tesos, com o tal cheiro esquisito, e só com um farrapo a cobrir-lhe os orgãos genitais, via-se um pouco das costas, com marcas de chicote, ou qualquer outro objecto, na área dos pulsos tinham marcas com sangue, os olhos de um, estavam abertos, e as faces do rosto, mostravam aflição. Esse cadáver tinha mais marcas de sangue nas pernas e no peito, e uma marca profunda em todo o redor do pescoço, talvez de um arame.

Esta cena horrível ficou gravada na memória do Cifra, para toda a sua vida, e jurou a si mesmo que não ia morrer sem a divulgar.

Ao cair da tarde desse mesmo dia, já muito perto da noite, uns tantos prisioneiros, comandados por esse tal africano que colaborava com a tal polícia nos interrogatórios, retiraram os corpos do local e caminharam em direcção ao sul, saindo das ruínas. Passado pouco tempo, para esse lado, viu-se um enorme clarão do que talvez tivesse sido uma grande fogueira.

Tanto o Marafado, como o Cifra, quando se viam e se encaravam, a primeira coisa em que pensavam era na imagem dos dois corpos, direitos, firmes, em cima dos ombros dos prisioneiros que começaram a caminhar e desapareceram com o cair da noite, rumo ao sul.

A partir desse momento, o Marafado era outro homem, deixou de cantar. E o Cifra deixou de achar graça a certas piadas que se contavam a respeito dos guerrilheiros, criou algumas rugas na testa, e olhando para o Marafado, diz-lhe: - Dá-me um cigarro!

Começou a fumar a partir desse momento. Ao outro dia, pela manhã, foi à messe dos sargentos e comprou um pacote de cigarros, e fumou durante o resto da sua comissão de serviço na dita província, começou a roer as unhas em sinal de nervosismo, e sem querer, algumas vezes não tinha control, era agressivo na linguagem quando ouvia certas façanhas de companheiros a vangloriarem-se de coisas sem nenhum senso, a respeito de cenas de combate.

Mais tarde, quase todo o pessoal no aquartelamento sabia que as forças armadas não simpatizavam com essa polícia, e até se dizia que muitas vezes os militares, que saíam em patrulha, não traziam prisioneiros pois sabiam que se os entregassem estavam condenados à morte.

Outros diziam que depois dos interrogatórios havia sempre operações de destruição, com mortes inúteis de ambos os lados, onde alguns militares de acção, já com algum tempo de província, não se sentiam muito confortáveis.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10225: Do Ninho d'Águia até África (4): No aquartelamento, quase em final de construção (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

Guiné 63/74 - P10259: (Ex)citações (192): Ainda as afirmações do senhor René Pélissier àcerca do nosso blogue (António Melo)

1. Mensagem do nosso camarada António Melo (ex-1.º Cabo Rec Inf, BCAÇ 2930, Catió e QG, Bissau, 1972/74), com data de 31 de Julho de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Aqui me encontro de novo e, como todos os dias, acabo de ler o blogue que para mim já faz parte do meu dia a dia. Repassando algumas coisas de que foi publicado, vou comentar a avaliação que o sr. René Pélissier fez ao nosso blogue, porque já afirmei que estava em total desacordo com ele, mas quero-me alongar um pouco mais.

O sr. René é francês e como francês que é não cumpriu o serviço militar como nós portugueses, que entre os anos sessenta e setenta e quatro, do século passado, na sua esmagadora maioria, tiveram que ir para África ou para Ásia e cito, Cabo Verde, Guiné, São Tomé, Angola, Moçambique, Índia (Goa, Damão e Diu), Macau e Timor. E é isso que nos diferencia do tal senhor que com demagogia faz uma ideia errada do nosso modo de pensar e das nossas recordações que só se apagarão quando fecharmos os olhos e pare para sempre o bater do coração, aquele que levamos dentro de nós, aquele que nos doeu e sangrou, aquele que se sentia apertado quando algum dos nossos camaradas caía morto ou ferido. Camaradas que tínhamos como família porque aqueles que estão a nosso lado dia e noite, que vestiam como nós, que comiam o que nós comíamos, que percorriam as mesmas picadas e que afinal eram a nossa sombra, aqueles que durante o tempo em que estávamos nessa frente de guerra, sorriam connosco e choravam quando nós chorávamos, aqueles com quem desabafávamos quando nos sentíamos impotentes para fazer alguma coisa para que esses camaradas não morressem ou ficassem sem uma perna, um braço, uma vista ou qualquer outra coisa, aqueles sim eram a nossa família.

Era bom saber escutar o amigo, saber estar calado quando a situação assim o requeria, ou então seguires a sua conversa e responder moderadamente sem o ferir mais do que já estava nesse momento, ser o seu conselheiro o vice-versa porque por vezes éramos nós que precisávamos de ajuda.

Eu tive momentos em que me afastei para um sitio onde ninguém me ouvisse gritar ao vento com todas as forças que tinha dentro de mim, depois voltava mais aliviado de toda a tensão acumulada.

Fomos para lá jovens inocentes e voltamos homens feitos e curtidos pelo sol abrasador, pelos sustos de varias índole, pelas noites dormidas em qualquer lado menos numa cama, pela fome e sede que passamos, mas aqui estamos, uns lendo, outros escrevendo, eu por mim falo, grande liçao de vida e dor apaziguada pelos anos dos que não voltarão.

Tu que hoje és pai e avô fecha os olhos e pensa um pouco, pensa nesses pais que viram partir os seus filhos e que ainda hoje os estão esperando.

Por tudo isto digo que o tal senhor René Pélissier não sabe do que fala, porque se passasse lá dois anos como nós passámos, teria seguramente outra opinião.

Também fala de como aqueles povos eram por nós subjugados e que o que a historia conta não é verdadeiro, que aquelas terras nunca nos pertenceu de pleno direito. Que sabe esse senhor? Só nos criticam aqueles que querem ser como nós.

Será que não devia ler mais um pouco sobre as invasões francesas? Ficaria a saber como nós sofremos, assim como os espanhóis, para evitar sermos dominados.

E agora resumindo dou a minha humilde opinião, que sendo eu um nada pois não sou escritor, politico ou qualquer outra coisa com significado, sou e com orgulho um simples operário da construção civil, mas com direito a ter minha opinião e estar de acordo ou em desacordo com o que oiço, vejo e leio.

Que houve excessos da parte de alguns dos portugueses que lá estavam não duvido, mas quem não tem telhados de vidro?

Saíram os portugueses e entraram Cubanos, Chineses e demais nacionalidades da nova geração, como pude verificar localmente em 2009. Fica a pergunta se agora esses países estão a fazer mais e melhor que os portugueses. Não foi o que vi.

Caros tertulianos, esta é a minha opinião com que podem estar ou não de acordo. Eu penso assim, mas como cada cabeça sua sentença, quem não estiver de acordo comigo que me respeite porque eu respeitarei a dos outros. Perdoem o meu desabafo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10251: (Ex)citações (191): Ainda guerra perdida e a guerra ganha (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P10258: Notas de leitura (391): A Identidade Cultural do Povo Balanta, de Padre Salvatori Cammilleri (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 21 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Este padre siciliano foi expulso da Guiné em 1973 e a ela regressou após a independência do país, dedicando-se a conhecer melhor os balantas na vila de Tite e arredores, desenvolveu atividades na área da saúde, inclusive colaborou na construção de um hospital. Pesquisou e o resultado do seu labor deu origem a uma tese de licenciatura que apresentou na Universidade de Génova, em 1995 e que agora é dado à estampa nesta edição portuguesa, numa síntese.
É um documento utilíssimo para quem queira conhecer as virtualidades desta etnia designadamente nas suas vertentes antropológica e etnológica.
O Padre Cammilleri estudou a fundo a linguística e o seu texto está eivado de exemplos que permitem concluir sobre a congruência da língua nas diferentes vertentes culturais.

Um abraço do
Mário


Quem és? Eu sou Brasa

Beja Santos

“A Identidade Cultural do Povo Balanta”, da autoria do Padre Salvatori Cammilleri (Edições Colibri 2011) é uma obra de carácter antropológico e etnológico de grande mérito, resulta de anos a fio do contacto direto de um missionário com o povo Balanta, na região de Tite. O que o lançou neste empreendimento foi mesmo investigar no sítio a identidade cultural deste grupo étnico animista e que não conhece a hierarquia mas preza valores e vínculos e não se mostra interessado em quebrar a tradição.

De acordo com o censo de 1991, a etnia balanta representa 23 % da população guineense, vem logo a seguir à etnia fula que tem 24,8 % da população. Os balantas têm uma cultura essencialmente baseada na oralidade e o autor viu-se confrontado sobre que nome utilizar para os identificar. Os seus ancestrais apresentavam-se como o povo Brasa, progressivamente associaram-se aos beafadas. Os Brasa definem-se como os que permanecem sem interrupção, os autênticos. Para o autor Balanta ou Brasa são sinónimos. Em termos de ocupação do território, os balantas acantonam-se sobretudo em três áreas: na região dos rios Casamansa e Cacheu, território antigamente conhecido por Balantacunda; entre o Cacheu e o Geba, predominantemente no Oio, nas áreas entre Mansoa e Bissorã, segundo a tradição é a área onde se concentram os grupos de maior bravura (Kuntoi, Mané, Mansoanca e Brasa); e os balantas no Sul, presentes em Quínara e Tombali mas também no Oeste, na região de Biombo, são os balantas da diáspora.

O autor associa os balantas a insurreições permanentes contra a presença portuguesa, a última batalha foi asperamente travada em Nhacra, de 4 a 7 de agosto de 1924. O historiador Peter Mendy descreve-a deste modo: “Debaixo de uma chuva torrencial desenrolou-se uma feroz confrontação de quatro horas. Na impossibilidade de utilizar as suas velhas espingardas, os grupos dos cruéis guerreiros balantas lançaram-se de assalto com a espada e lança, simplesmente para serem varridos pelo fogo incessante das Snyder e Kropatcher dos portugueses e dos seus auxiliares africanos”.

Depois o autor centra-se sobre o território balanta que estudou, refere as atividades agrícolas, as alfaias, o seu sistema produtivo de arroz, como se organiza um arrozal balanta e descreve a organização social, os seus esquemas de parentesco, a estrutura de clãs, a ordem familiar e o papel dos mais velhos e das mestras e conselheiras. Explica a seguir a importância das cerimónias da iniciação em ambos os sexos e interessa-se pelos aspetos verdadeiramente identitários onde podem alinhar-se a cerimónia da parturiente, a atribuição de nome à criança, quem intervém na sua educação e como pode ser vista a clara separação nos currículos educativos de rapazes e raparigas, segue-se todo o encadeado de ritos nas diferentes etapas e a função que cabe em ambos os sexos em desempenhos obrigatórios como sejam os cuidados nos cerimoniais fúnebres ou os conselhos que os anciãos devem dar aos recém-circuncidados.

O escopo do trabalho do Padre Cammilleri tem a ver com a integração social masculina. Ele regista que o período de formação reservado aos homens ocupa as idades dos 6 aos 24/30 anos. É mais curto do que aquele que é destinado às mulheres, mas muito mais exigente e diversificado. A modificação da índole juvenil, escreve ele, é obtida através de um sistema de ensinamentos insistentes de noções, normas de vida e técnicas de trabalho até se tornarem homens. Percebe-se perfeitamente que o autor conviveu a fundo com esta população e registou ao detalhe o processo de integração social masculina. É conhecida a atitude balanta perante o trabalho e a sua pujança física. O autor diz que estes predicados poderiam ser pressupostos de violências e agressões frequentes mas tais manifestações de força são controladas pelo grande sentido de obediência ao chefe do grupo. O leitor interessado encontrará aqui a riquíssima documentação sobre as sucessivas etapas de formação, a natureza dos códigos iniciáticos e ritos e uma descrição poderosa dos diferentes rituais.

À guisa de conclusão, o autor considera que retratou os principais traços da forte unidade cultural dos Balanta/Brasa, as suas preocupações anímicas, o papel desempenhado pelo parentesco na vida do grupo e do clã e diz em dado passo se se perguntar a um qualquer jovem Brasa quem ele é ele responderá sem hesitação que é Brasa independentemente da terra onde nasceu, ou de onde vive, do clã ou linhagem a que pertence. A unidade de parentesco é confirmada na transmissão dos bens de pai para filho, ficando as mulheres excluídas. Contudo, esta exclusão feminina é recompensada pela norma tradicional que regula a afinidade e a aliança matrimonial entre as duas famílias extensas. É que o casamento é considerado uma verdadeira aliança entre duas famílias onde, para além do serviço da maternidade, é assegurada uma troca de prestação de trabalho e de outras ajudas que permanecem válidas até em caso de divórcio. A conjugação destes aspetos vem confirmar, observa o autor, a coesão e a integração cultural dos balantas, igualmente demonstrada a fidelidade da família às normas da cultura tradicional. No termo balanta encerra-se a complexidade desta identidade cultural: balanta significa “homens que recusam” e brasa é sinónimo de “gente que continua”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10247: Notas de leitura (390): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10257: Convívios (463): Tabanca de São Martinho do Porto, sábado, 11 de agosto de 2012 (Parte II)

  

Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > Da esquerda para a direita, o Eduardo Moutinho Oliveira, advogado, membro da Tabanca de Matosinhos, o João Martinhs, o JERO e o Zé Teixeira... Em primeiro plano, de perfil, a Joana Graça... O grupo está assistir a uma exibição de violino... O João Graça, que é médico, interno de psiquiatria, é também músico, do grupo Melech Mechaya (especialista em música klezmer)... A dra Clara Schwarz, filha de pianista russa, tem por sua vez o curso de violino do Conservatório de Música de Lisboa...

Infelizmente, e por lapso meu, é a única foto em que aparece o Eduardo Moutinho F. Santos, presença habitual dos nossos convívios... Desta vez ele prometeu-me que ia "tratar dos papéis" para formalizar a sua entrada (oficial) na Tabanca Grande... Em conversa com ele, vim a saber que é casado com a doutora Maria José Moutinho Santos, professora e investigadora do Departamento de História da Faculdade de Letras do Porto, com algumas áreas de interesse científico também afins às minhas...



Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O João Graça e o JERO.



Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro >  11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O JERO fez questão de tirar uma foto com o João Graça, com quem o prazer de conversar com algum tempo e vagar... O JERO tem um pouco afastado estado das nossas lides bloguísticas, por razões de saúde... Aproveito para lhe desejar  um rápido restabelecimento... Ele veio acompanhado da sua filha que, no entanto, não pôde ficar para o almoço-convívio que se prolongou pela tarde dentro...



Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > Da esquerda para a direita: o João Graça, a Alice Carneiro, a Isabel e o Pepito...


Fotos (e legendas):© Luis Graça (2012). Todos os direitos reservados

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10256: Convívios (462): Tabanca de São Martinho do Porto, sábado, 11 de agosto de 2012 (Parte I)

Guiné 63/74 - P10256: Convívios (462): Tabanca de São Martinho do Porto, sábado, 11 de agosto de 2012 (Parte I)


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto >  Um pormenor de um pano africano da sala de convívio da casa de veraneio da família Schwarz da Silva



Alcobaça, São Martinho do Porto  > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > A dona da casa, Clara Schwarz da Silva, com a neta Cristina... A Casa do Cruzeiro é das mais antigas de São Martinho do Porto (pertenceu a um ator de revista e foi comprada pelo Eng Samuel Schwarz para a sua filha Clara Schwarz, nascida a 14 de fevereiro de 1915).


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto >  A dona da casa e decana da Tabanca Grande, Clara Schwarz, mãe do Pepito.


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > Clara Schwarz, de 97 anos, lendo a dedicatória do João Graça, manuscrita na contracapa do úiltimo CD dos Melech Mechaya



Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto >  A senhora Leonor Levy Ribeiro, mãe da Isabel.



Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > Cristina da Silva, filha do Pepito e da Isabel, ex-.quadro superior da empresa que explora ao Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, em Bissau. Nasceu na Guiné-Bissau, estudou psicologia social em Lisboa, no ISCTE.  Tem mais dois irmãos: a Catarina (Pepas) que está também na Guiné-Bissau, erabalha neste momento num projeto financiado pelas Nações Unidas, ligado ás questões da biodiversidade e da proteção do ambiente; e o Ivan, que vive em Portugal. 


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O nosso grã-tabanqueiro, e uma vez por ano nosso anfitrião na Tabanca de São Martinho do Porto...


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > Outra grã-trabanqueira, a Isabel, esposa do Pepito,  especialista em questões de educação ambiental.


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro >11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O nosso Esquilo Sorridente... o Zé Teixeira, que veio expressamente de Matosinhos, com a esposa e o camarada  Eduardo Moutinho F. Santos... É presença habitual (e obrigatória) dos  encontros desta e doutras Tabancas...


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > A esposa do Zé Teixeira... Tivemos pena que os filhos, desta vez, não tenham podido vir: Joana Teixeira, psicóloga, e Tiago Teixeira, médico, infecciologista, com forte ligação à Guiiné-Bissau e de cujo trabalho na área da cooperação e da solidariedade já aqui temos falado...


Alcobaça, São Martinho do Porto > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > O grã-tabanqueiro João Martins cujos antepassados estão fortemente ligados a São Martinho do Porto... Ele próprio sempre passou férias nesta belíssima praia... e tem lá a casa  de férias dos pais, que está a restaurar... Veio expressamente de Lisboa para poder estar neste encontro, a convite expresso do Luís Graça e do Pepito...


Alcobaça, São Martinho do Porto > Casa do Cruzeiro > 11 de agosto de 2012 > 3ª edição do convívio anual da Tabanca de São Martinho do Porto > Outra grã-tabanqueira, Alice Carneiro...


1. Esta é a terceira edição do convívio da Tabanca de São Martinho do Porto. O ano passado foi a 13 de agosto.  E há dois anos, em 25 de agosto

Marcaram presença este ano: 

 (i) o Zé Teixeria e a esposa, o Eduardo  Moutinho F. Santos, o Luís Graça, a Maria Alice Ferreira Carneiro, o João Graça, a Joana Graça, o José Eduardo Oliveira (o JERO), o João Martins;

(ii) Do lado do nosso anfitrião, o Pepito, deu-nos a honra da sua presença, a sua querida mãe, Clara Schwarz, a Isabel Levy Ribeiro, a mãe da Isabel (Leonor Levy Ribeiro), a Cristina Silva, filha do Pepito e da Isabel;

(iii) E ainda os amigos do Pepito, o médico cubano, urologista no Hospital de Aveiro, que trabalhou na Guiné-Bissau, o dr. Reynaldo Urgaleno, a esposa, portuguesa, Cecília, e ainda um irmão, que também vive e trabalha em Portugal, engenheiro naval.

Recorde-se que o  nosso anfitrião, Pepito, tem aproveitado, nos últimos três anos, as suas férias portuguesas para juntar (e conviver com) alguns dos seus amigos portugueses (uma parte dos quais são membros da Tabanca Grande, parceira da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento)... O encontro da Tabanca de São Martinho do Porto, em Agosto de cada ano, já se tornou "obrigatório"... E é sempre um grande prazer aceitar o convite dos donos da casa... 

Este ano foi possível conciliar algumas agendas: foi o caso do nosso grã-tabanqueiro João Graça (cujo grupo musical, os Melech Mechaya,  ia actuar, no dia seguinte, em Porto de Mós, curiosamente uma terra onde, nos anos 40, o pai do Pepito, Augusto Silva, exerceu advocacia).

(Continua)
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Nota do editor: 

domingo, 12 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10255: Bibliografia de uma guerra (62): Primeiro Capítulo do próximo livro "Quebo", de Rui Alexandrino Ferreira (3): Primeira parte do depoimento do Major General Pezarat Correia (2)

1. Fim da apresentação do primeiro capítulo do próximo livro, "Quebo", de autoria do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira* (foto à esquerda) (ex-Alf Mil na CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67 e ex-Cap Mil na CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72):


COMPANHIA DE CAÇADORES 18


2. A CCaç 18 em reforço do Sector S-2


Por Pezarat Correia

Foi neste ambiente geográfico, humano e operacional que, em Janeiro de 1971, se integrou a Companhia de Caçadores 18 (CCaç 18), comandada pelo Capitão Rui Alexandrino Ferreira e que tinha sido acabada de formar na própria Guiné. A atribuição desta companhia não ia constituir uma surpresa para o Comando do BCaç 2892, nem a área de actuação e a correspondente missão seriam novidade para grande parte do pessoal da Companhia.

O Comando do BCaç 2892 soubera, já não recordo através de que vias, que a CArt 2521, que lhe estava atribuída de reforço e que estava a terminar a sua comissão, iria ser rendida por uma companhia da guarnição normal, isto é, a formar na Guiné e, predominantemente na base do recrutamento regional, da etnia fula, portanto. Aliás isto era voz corrente na tabanca, onde muitos desses militares tinham família e o que se sabia na tabanca sabia-se no quartel e vice-versa. Tal significava que parte do pessoal seria oriundo da região do Quebo cujo regulado tinha sede em Aldeia Formosa. Alguns deles já tinham mesmo experiência operacional, pois haviam pertencido aos pelotões de milícias e caçadores nativos, sob controlo operacional do Comando do Sector S-2. Estavam intimamente familiarizados com o terreno e com as populações, conheciam as formas de actuar do PAIGC na região, não lhes era estranho o ambiente dentro do BCaç 2892 e das suas Companhias e a forma de actuação do seu Comando. Sabia-se ainda que o comandante da companhia era um capitão miliciano, em segunda comissão na Guiné e, portanto, voluntário, que na anterior comissão, como subalterno, se distinguira brilhantemente na sua actividade operacional tendo sido condecorado com uma Cruz de Guerra de 1.ª Classe. Havia, portanto, de parte a parte, uma expectativa positiva com a entrada em sector da CCaç 18.

A Companhia chegou a Aldeia Formosa em 17 de Janeiro de 1971, na coluna logística que nesse dia regressou de Buba, onde chegara na véspera vindo de Bissau em Lancha de Desembarque Grande (LDG), da Marinha de Guerra. Era já noite e no Batalhão preparara-se uma recepção modesta mas, tanto quanto possível acolhedora. Depois de instalado todo o pessoal, reuniram-se os oficiais na velha e acanhada casa de tipo colonial que servia de messe de oficiais, com uns frugais aperitivos (a inevitável mancarra e castanha de caju em lata, insípidos bocados de queijo e fiambre de conserva) para acompanhar uns whiskies e cervejas e dar as boas-vindas aos recém-chegados. Mas as primeiras impressões foram algo frustrantes. Não pelos subalternos, naturalmente ansiosos, certamente desiludidos com as péssimas condições do aquartelamento, desordenado, mal iluminado, predominando o enquadramento operacional, arame farpado, torreões, trincheiras, abrigos. Os veteranos, todos com mais de um ano de comissão, olhavam sobranceiramente, como sempre se olhavam os novos “periquitos”. A frustração vinha do capitão, parecendo pouco comunicativo, mal-encarado, senão mesmo desconfiado. Deitámo-nos cedo, como habitualmente e o pessoal da CCaç 18 vinha “estoirado” e precisava de descanso. No dia seguinte as impressões alteraram-se radicalmente. Para melhor, muito melhor. O Capitão Rui (como rapidamente passou a ser conhecido), apareceu bem-disposto, conversador, irónico, cheio de iniciativa. Afinal ele vinha, na véspera, a sair de uma crise de paludismo que, com o cansaço da viagem, era o responsável pelo seu humor enganador. O dinamismo com que imediatamente começou a tratar da instalação da Companhia, a preparar metódica e eficazmente o treino operacional e a sobreposição com a CArt 2521, a integrar-se no ambiente geral e na missão que lhe ia ser atribuída, justificou as mais optimistas perspectivas. E rapidamente daria provas.

Consultando os registos de que disponho verifico que, em 19 de Fevereiro de 1971, ainda em período de sobreposição com a CArt 2521, a CCaç 18, a dois GC e comandada pelo seu Capitão, actuava pela primeira vez no corredor de Missirã. Os resultados foram significativos e revelaram uma boa acção de comando e uma conduta eficaz (aí estava mais um êxito de uma operação que fugia à rotina diária do GC emboscado passivamente). As tropas emboscadas detectaram um movimento no “carreiro”, verificando que era apenas um elemento isolado (no “carreiro” já se sabia, quem nele se deslocava e não fosse das NT era IN). Revelando uma serenidade notável para uma acção de estreia em que a tensão é sempre muito elevada e propiciadora de precipitações, o dispositivo deixou passar esse elemento concluindo que seria um explorador avançado e não se denunciou, o que só terá sido possível pela acção experiente do comandante se bem que, deve salientar-se, a Companhia contasse com combatentes já experimentados como milícias e caçadores nativos. Conseguiu manter a emboscada atenta e, passadas cerca de duas horas e meia, surge o grosso da coluna do PAIGC, com avultados reabastecimentos em material de guerra, logístico e diverso. Só então a emboscada foi desencadeada, desbaratando a coluna IN que, experiente em combate e conhecedora do terreno, reagiu pelo fogo e dispersou mas deixando no terreno a maior parte do material que era transportado por carregadores e não por guerrilheiros. Estes não perderam nenhuma das suas armas individuais. O Capitão Rui não considerou a operação terminada como, provavelmente, muitos outros o fariam, reorganizou as suas tropas e transferiu a emboscada para outro local mais adiantado em relação ao sentido de marcha do grupo do PAIGC que, entretanto, também se recompusera. Uma hora mais tarde verifica-se novo contacto de fogo em que a CCaç 18 causou baixas ao IN e lhe capturou armamento. A acção mereceu referências elogiosas do Comandante-Chefe, General Spínola.

Cinco dias mais tarde a CCaç 18 assumia integralmente a sua missão como unidade de reserva (intervenção) do Sector S-2. Em 30 de Junho um GC da companhia tem um novo contacto no corredor de Missirã e agora em missão de rotina na rede de emboscadas, com resultados menos favoráveis e sofrendo sete feridos ligeiros.

Quando o BCaç 2892 foi rendido pelo BCaç 3852, que assumiu a responsabilidade do Sector S-2 em 26 de Agosto de 1971, a CCaç 18 passou a reforçar o novo Batalhão e, já experiente e com provas dadas, constituiu para ele uma unidade fundamental. Em 13 de Janeiro e 8 de Fevereiro de 1972 voltou a registar vultosos resultados em novos contactos no corredor de Missirã, dos quais o Rui me ia mantendo informado através de correspondência que trocávamos.

Mas a acção do Capitão Rui e da sua Companhia não sobressaiu apenas na actividade operacional. Pela sua maneira de ser expansiva, relacionamento fácil e aberto, aproveitando muito bem a ligação que grande parte dos seus militares tinham com as populações locais, conseguiu estabelecer com estas relações estreitas, que lhe foram muito úteis no papel de relevo que desempenhou nas tarefas de reordenamento (escolha, planificação e construção de novos aldeamentos para as populações civis) na região de Aldeia Formosa, que constituiu uma missão importante do BCaç 2892.

O certo é que, muito justamente, em Junho de 1971, apenas 4 meses depois de ter assumido a sua missão no quadro do BCaç 2892, o Capitão Rui foi louvado pelo Comandante deste. E, ao terminar a sua comissão nos finais de 1972, foi condecorado com uma nova Cruz de Guerra de 1.ª Classe. Mas, atenção, Rui Alexandrino Ferreira, Capitão Miliciano, era um combatente de eleição mas não era um belicista sádico ou vingativo. Tinha sentido de missão, procurava cumpri-la bem, sem alardes ou exageros. Era racional e respeitava o adversário.

Justifica-se aqui uma breve reflexão que, excedendo a mera apreciação da actuação da CCaç 18, me parece oportuna. Cumprir bem as missões de combate, logo num contexto de guerra, isto é, fazer bem a guerra, não implica que se goste da guerra ou, mesmo, que se concorde com ela. E não há nada de paradoxal nisto.

Quem é mobilizado para combater numa guerra tem duas opções antes de se encontrar perante o facto consumado: ou recusa liminarmente o seu contributo e deserta, ou vai. Mesmo contrariado, até eventualmente revoltado, mas vai. Esta delicada questão colocava complexos problemas de consciência dadas as conexões políticas da guerra colonial. Evidentemente que todas as guerras têm conexões políticas (a guerra é a continuação da política por outros meios, Clausewitz dixit) mas a guerra colonial levantava o problema da legitimidade política, uma vez que era determinada por um regime político que não resultava de uma escolha democrática dos cidadãos, era uma ditadura assente na repressão e na recusa dos direitos fundamentais. A guerra colonial era a expressão dessa política ilegítima nas colónias e os militares eram seus instrumentos. Respeito os que assumiram desertar por convicções legítimas, por vezes forçados a rupturas radicais nas suas vidas, rupturas dolorosas, enfrentando riscos e situações muito precárias. Foram actos de coragem. Mas também sabemos que sob a capa de motivações respeitáveis houve quem desertasse por mero comodismo, porque dispunha de condições materiais para enfrentar um exílio dourado, sustentado pelas famílias que os visitavam com frequência, sem que tivesse sobre a guerra e a situação política qualquer objecção de consciência ou rejeição ideológica. Para os militares dos quadros permanentes a mera admissão da deserção era mais traumática e, em tempo de guerra, envolvia o anátema da traição, da cobardia, do abandono “perante” o IN, colocando por isso delicados dilemas no campo moral e ético. Era uma opção extremamente problemática, particularmente quando se tinha de deixar mulher e filhos cuja subsistência estava a seu cargo. Mesmo assim houve quem, honesta e temerariamente, fizesse essa opção.

Para quem não podia, ou não queria, seguir o caminho da deserção, a alternativa era só uma, ir à guerra. E, uma vez na zona de combate, em operações, face ao IN, cumprir e cumprir bem ou não cumprir e cumprir mal, podia significar a diferença entre sobreviver ou morrer, não apenas para o próprio mas para os que o acompanhavam. Isto era especialmente verdadeiro para quem tinha responsabilidades de comando, quando dos seus actos não dependia apenas a sua integridade pessoal, mas também a dos seus comandados. As decisões de um comandante em campanha não têm um mero alcance individual ou egoísta, envolvem sempre os seus comandados e, por isso, não tem o direito de, por não concordar com a guerra, recusar ou abrandar a actividade operacional, desmotivar-se a si e aos seus subordinados, dar, pela sua passividade, todos os trunfos ao adversário. Para além de profissionalmente condenável seria eticamente inaceitável que, por causa das suas convicções, por muito louváveis que as considerasse, pusesse em risco a integridade física, a vida dos homens que dependiam e confiavam na sua acção de comando. Este era um problema humano de uma enorme delicadeza, que se colocou a muitos oficiais e testemunho-o por experiência própria. O comandante não só tinha de cumprir e cumprir bem, como tinha que fazer com que os seus subordinados cumprissem e cumprissem bem.

Mas, então, e aqueles que já tinham, ou foram adquirindo consciência cívica, inteirando-se da injustiça da guerra e dos interesses reais que esta servia, da natureza perversa do sistema colonial e da ditadura na metrópole a que estava associado? Como conciliar estas convicções político-ideológicas com as suas obrigações de comandante? A solução só poderia ser aguentar os riscos materiais e os custos morais de uma guerra com a qual se discordava, exercer com sacrifício mas com honra a sua acção de comando e tratar de aproveitar o próprio paradoxo da guerra, as contradições que introduzia no sistema, para alimentar as fragilidades que iam minando o regime, tornando inevitável o seu derrube e, no momento oportuno estar no lado certo e com as pessoas certas para lhe aplicarem o golpe decisivo. As imposições éticas que tinham com os seus homens, com os seus comandados, não as tinham para com os responsáveis políticos nas alcatifas do poder que, como atrás assinalei, nem sequer era legítimo e era, esse sim, o responsável pelas verdadeiras causas e perversões da guerra. Em relação ao poder político ilegítimo e ditatorial, a obrigação do militar consciente era colocar-se do lado do povo, revoltar-se e derrubá-lo. E foi isso que veio a acontecer mas levou tempo a amadurecer. A própria guerra se encarregou de gerar os factores e os agentes que estariam na base do derrube do regime que levara à guerra e era agora dela prisioneiro.

Não estou a dizer que esta tipificação se aplicasse ao Capitão Rui Ferreira. O que quero dizer é que, em termos teóricos, é deslocado identificar, linearmente, bom combatente e apologista da guerra, bom combatente da guerra colonial e defensor do sistema colonial. A segurança e a vida dos seus homens, a mais importante obrigação de um chefe, obriga um comandante, uma vez que aceitou assumir o comando de uma unidade, a comandar bem. E nesse particular não tenho dúvidas, o Capitão Rui Alexandrino Ferreira foi um excelente comandante de companhia em campanha e um excepcional condutor de homens. Posso testemunhá-lo porque convivi com ele directamente durante oito meses, em ambiente de campanha e de guerra, acompanhei-o algumas vezes nas saídas para o mato e, afirmo-o convictamente, ao longo da minha experiência de trinta e seis anos de serviço militar efectivo, na grande maioria em contacto com as tropas e em todos os sucessivos escalões de comando, com seis comissões na Índia e em África desde alferes a major, o Capitão Rui Alexandrino Ferreira foi dos melhores condutores de homens que me foi dado conhecer.

Há uma característica da liderança que considero o tempero decisivo capaz de conferir virtude a determinados atributos de comando que, sem ela, podem tornar-se excessivos e transformar-se em defeitos perversos. Refiro-me ao bom senso, o equilíbrio moderador que impede que a coragem resvale para temeridade gratuita empurrando os seus homens para riscos desnecessários, que evita que o culto da disciplina dê lugar ao autoritarismo desumano, que a tolerância resvale para o laxismo, que o gosto pela decisão rápida caia na precipitação, que o excesso de ponderação conduza à hesitação. O bom senso confere sangue frio nas situações de pressão emocional, presença de espírito quando à volta se instala a ansiedade. É uma virtude que, normalmente se adquire com a idade, com a experiência, com a dimensão da responsabilidade. Mas, apesar da sua juventude, o Capitão Rui Alexandrino Ferreira aliava ao seu entusiasmo contagiante uma notável dose de bom senso, o que lhe permitiu aplicar a sua coragem, o seu sentido de disciplina, o seu gosto pela decisão, na medida e no sentido convenientes. Não estou a fazer um elogio fácil. Não devemos nada um ao outro nem pretendemos nada um do outro. Estou apenas a registar uma opinião madura e consolidada, que é a minha.

*     *     *

Mas há ainda uma outra característica do Rui Alexandrino Ferreira que me interessa destacar. É a sua faceta humana, a facilidade para conquistar e cultivar amizades, a sua disponibilidade para conviver, para colaborar e para ajudar, o que também foi um trunfo na sua elevada capacidade de liderança.

Em Aldeia Formosa as instalações eram muito deficientes, nomeadamente as dos oficiais, bem piores do que as dos sargentos e as das praças, cujas casernas foram as primeiras a serem concluídas depois da chegada do BCaç 2892. Quando este foi rendido estava ainda em construção um novo edifício de quartos para oficiais que só veio a ficar concluído depois da sua rendição pelo BCaç 3852.

O Rui resolveu alugar uma casa rudimentar na tabanca, fora do perímetro do quartel e aí se instalou com os seus oficiais subalternos. Era pouco mais do que uma palhota melhorada, coberta a zinco, mas ampla e os seus novos residentes fizeram os arranjos possíveis, com cartazes (do tipo das motivações mais correntes em ambientes masculinos e bélicos), com boa instalação sonora, com um conforto mínimo. Era um oásis dentro de Aldeia Formosa e passou a ser o local de convívio para muitos oficiais, incluindo o Comandante, Segundo-Comandante e Oficial de Operações, que ali iam à noite beber uns copos, ouvir música (predominando a música da época, do pós-década de sessenta, de intervenção e contestatária), falar com liberdade de tudo, sem mesmo deixar de lado temas mais incómodos, culturais, sociais ou políticos. Às vezes chegava-se ali vindo de actividade operacional e saia-se a correr para responder às flagelações dos grupos do PAIGC.

O Rui tinha um relacionamento muito próximo com todo o seu pessoal, oficiais sargentos e praças, sem nunca ter sido beliscado o seu ascendente de líder natural. Mas também eram muito boas as suas relações com os camaradas das outras subunidades e com os oficiais superiores do Batalhão sem que daí resultasse a mínima perturbação para os condicionamentos hierárquicos. A “palhota” da CCaç 18 era um sítio onde todos se sentiam bem, desinibidos e descontraídos. 

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3. Para além da CCaç 18

Pela minha parte felicito-me por ter feito com o Rui uma sã amizade.

Depois do seu regresso da Guiné, finais de 1972 princípios de 1973, antes de nova mobilização minha, restabelecemos a nossa relação que, aliás, nunca interrompêramos completamente pois mantivemos alguma troca de correspondência. Ele pretendia continuar ao serviço do Exército e queria ir para Angola, de onde era natural, onde crescera até vir para Portugal para a tropa, onde tinha a sua família há várias gerações (na então cidade de Sá da Bandeira, actual Lubango) e onde queria fixar-se. Em meados de 1973 iniciei uma nova comissão em Angola, tendo sido convidado para ir chefiar o Gabinete das Forças Auxiliares na Zona Militar Leste (GFA/ZML) com sede na cidade do Luso (hoje Luena), que incluía as força estrangeiras catanguesas (nome de código Fiéis), zambianas (Leais) e os angolanos Grupos Especiais (GE). Convidei o Rui, que entretanto se tinha oferecido para nova comissão em Angola, para ir trabalhar comigo, isto é para, uma vez eu chegado a Angola propor a sua nomeação para um dos lugares de adjuntos no GFA/ZML, alguns dos quais eram destacados junto dos campos dos Fiéis e Leais. Aceitou, em princípio, mas ficou combinado que, assim que chegasse a Luanda entraria em contacto comigo. Assim fez mas, entretanto, ficou colocado em Luanda onde sua mulher – tinha acabado de se casar – também tinha aí emprego. Não fazia sentido que ele fosse para o leste nessas condições apesar de eu ter gostado muito de ter contado com a sua valiosa colaboração.

Estas palavras finais já ultrapassam o espaço temporal sobre o qual o Rui me convidou para contribuir com o meu modesto depoimento – aquele que cruzou as rotas da CCaç 18 e do BCaç 2892. Mas justifica-se porque invoca uma amizade que resultou desse cruzamento. Depois seguiram-se os anos, trinta e quatro longos, agitados e riquíssimos anos. Por vezes posicionámo-nos diversamente em relação a determinadas rupturas e evoluções posteriores a 1974 mas nunca, tenho a convicção disso, em relação aos fundamentos e aos princípios que de então para cá mudaram Portugal, o Mundo e a sua Terra, Angola. Mas estas já são outras matérias que excedem o objectivo destas linhas. Creio que temos dado provas, de parte a parte, que mantemos uma sólida amizade e nos respeitamos mutuamente. A CCaç 18 está na origem dessa amizade. A sua invocação ajusta-se plenamente neste livro em que o hoje Tenente-Coronel Rui Alexandrino Ferreira quis registar a memória da Companhia que, brilhantemente, formou e comandou, enquanto jovem Capitão, nas matas e bolanhas da Guiné.

PEDRO PEZARAT CORREIA
Dezembro de 2008

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Mapas a elaborar:

Mapa 1 - Guiné c/ localização do Sector S-2 e assinaladas as localidades onde estavam guarnições militares:
ALDEIA FORMOSA
CHAMARRA
PATE EMBALÓ
MAMPATÁ
NHALA
BUBA
EMPADA
Assinalar ainda:
CONTABANE
República da Guiné
Sectores limítrofes: S-1, S-3, L-1 e L-5
Mapa 2 - Sul da Guiné localizando os corredores de Guilege, de Missirã e de Buba e assinalando:
INJASSANE
XITOLE
Rio Grande de Buba
Rio Corubal
Mapa 3 - Guiné realçando a posição do Sector S-2 como tampão do sul do TO e assinalando:
CANTANHÊS
CANSEMBEL
Canal de Bubaque

Guiné 63/74 - P10254: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (9): Operação Tábuas

1. Terceira estória, de mais uma série de três, dos Fidalgos de Jol, enviada pelo nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), em mensagem do dia 2 de Agosto de 2012:



ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (9)

Operação “Tábuas”

Felizmente para a minha Companhia, a questão das minas nunca chegou a ser um verdadeiro problema. Sabíamos da sua existência, temíamo-las, mas foi um autêntico milagre nunca termos feito accionar qualquer engenho.

Sendo o Chão Manjaco uma região essencialmente de passagem para os elementos do PAIGC, penso que esse terá sido o principal factor para tão poucos registos relativamente a minas. Falava-se até (obviamente sem qualquer confirmação oficial) que em tempos houve uma tentativa de minar alguns trilhos utilizados pelo inimigo, mas alguns dias depois as minas haviam sido levantadas e, no local, estaria a seguinte mensagem espetada num pau por parte do PAIGC: “ Se continuarem a minar os nossos trilhos, nós também minamos os vossos. Parem!”

Sinceramente foi algo em que na altura me foi difícil acreditar, pois mais parecia um daqueles episódios de guerra contados pelo Raúl Solnado, mas o que é certo é que, como já anteriormente referi, durante toda a comissão não houve qualquer registo de incidentes com minas.

Assim, foi com certa surpresa, mesmo já no fim da comissão, que fomos “obsequiados” com a notícia de termos de ir levantar um campo de minas antipessoal existente na região de Pepantar, mais propriamente na Bolanha de Ponta Vicente, sobre o qual só sabíamos da sua existência através de um croqui já muito antigo e, obviamente, desactualizado.

Chegados ao suposto local, foi com muita dificuldade que, dadas as alterações do terreno e dos pontos de referência assinalados, conseguimos chegar a alguma conclusão. Importa salientar que o referido campo não fora montado por nós, e que já ali se encontrava há alguns anos.

Tentando seguir todas as regras que nos haviam sido ensinadas para estes casos (mas sem a devida prática) e, na ausência de verdadeiros especialistas na matéria (sapadores), lá fomos tentando identificar os possíveis locais onde as nossas “amigas” deveriam estar, porém sem resultados práticos. Ao fim de algum tempo lá encontrámos dispersas, mas já muito deterioradas, duas das famosas tabuinhas (se bem me recordo do tipo dos caixotes de madeira da margarina), sob as quais as mesmas se deveriam encontrar, mas quanto a elas, “népia”.

Como é lógico começámos a ficar algo baralhados e preocupados com a situação, pois por acção das águas da bolanha, as mesmas poderiam já não se encontrar nos locais onde supostamente deveriam estar. Assim, por uma questão de segurança, abandonámos o local antes que pudesse ocorrer alguma tragédia, pois o mais provável era tanto eu como o Alferes que à minha frente seguia com o croqui, já termos passado por cima de alguma, além de que já nos encontrávamos expostos no local há bastante tempo. Qual picagem qual quê, quanto a minas, nada…

Segundo nos explicaram mais tarde, das três uma, ou os nossos “amigos” do PAIGC tê-las-ão levantado /neutralizado em devido tempo, ou a acção corrosiva das águas acabou por as deixar inoperacionais (graças a Deus…) visto tratarem-se de minas antipessoal metálicas já com muitos anos, ou então poderiam ter sido de facto arrastadas para um local diferente devido a alguma corrente mais forte das águas da bolanha. Sendo minas metálicas, sinceramente na altura achámos uma situação pouco provável.

Não sei bem o que mais tarde ficou decidido fazer, mas falava-se na possibilidade de solicitar a presença de sapadores, e também de se abrir fogo para o local para provocar o possível rebentamento das minas, para o caso de elas efectivamente ainda lá estarem.

Que me desculpem os especialistas na matéria (minas e armadilhas), se eventualmente cometi aqui alguma incorrecção, mas é desta forma que me lembro deste insólito (ou não) acontecimento.

Foi assim que, sem minas, acabámos por ficar apenas com duas velhas tabuinhas nas mãos.


Jolmete, Junho de 1972 > Trilhos do Pioce

Jolmete, Junho de 1972 > Traseiras do meu abrigo

Jolmete, Julho de 1972 > Bolanha de Gel

Jolmete, Julho de 1972 > Trilhos de Gel

Jolmete, Junho de 1972 > Junto a um bagabaga

Jolmete, Novembro de 1972 > Bolanha de Ponta Vicente

Jolmete, Novembro de 1972 > Preparação para recepção aos piras
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10240: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (8): Nada de "mariquices"