terça-feira, 20 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9631: (In)citações (38): Para uma leitura não-etnocêntrica dos nossos usos e costumes: o caso do casamento tradicional entre os guineenses (Cherno Baldé)



Nota de 50 escudos, emitida pelo banco emissor da Guiné, em 1971, o Banco Nacional Ultramarino (BNU)


 Nota de 100 pesos, emitida em 1990 pelo Banco Central da Guiné-Bissau. Efígie de Domingos Ramos, guerrilheiro do PAIGC morto em Madina do Boé em 1966.






1. Comentário do nosso amigo Cherno Baldé ao poste P9623:


Caro António,


A descrição que fazes da tua estadia na Guiné é muito interessante e tocou-me particularmente porque, também, fui  jubi e  faxina de condutores de um aquartelamento de metropolitanos,  em Fajonquito (1969/74), região de Bafatá, como o foi o teu amigo Sherifo.

No entanto, tenho duas observações a fazer do actual Poste e que, com alguma frequência, tenho lido em vários escritos de ex-combatentes:

Primeiro, referindo-te à moeda local, falas de "Pesos". Na verdade, a moeda que circulava na época colonial, até 1974,  era o "Escudo" e nãoo  "Peso", que foi instituido em meados de 1975/76, depois da independência.

Em segundo lugar, falas de uma menina que alegadamente "estaria vendida",  provavelmente para casamento. Esta interpretação, muito frequente entre os metropolitanos, resulta de uma leitura muito errada dos nossos usos e costumes, enfim da prá
tica relacionada com os casamentos arranjados e muitas vezes celebrados sem consulta e acordo prévio dos principais interessados.

Este tema é do foro cultural e antropológico,  do qual poucos de nós temos a preparação necessária para sua correta compreensão e interpretação, pelo que devemos ter os cuidados necessários no seu tratamento para nao ofender aos outros de uma forma gratuita e desnecessária.

Um casamento, seja ele "civilizado" ou "primitivo",  deve ser visto, sempre, como um contrato social entre partes cujas cláusulas podem ser diferentes e porventura, mais ou menos (in)justas, mais ou menos liberais. Mas nunca é um negócio de compra e venda como, erradamente, se pode supor pelas primeiras aparências de superfície. Se isto fosse verdadeiro, então não haveria lugar para os divórcios que, também, são uma realidade palpável e cada vez mais frequente, ao contrário do casamento cristão e "civilizado" em que os homens não são chamados a intervir. 


[Foto acima: pintura do nosso camarada Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav no Pel Rec Daimler 2046, em Bambadinca, 1968/70].


Um abraço de encorajamento,

Cherno Baldé
________________

Nota do editor:

 

Guiné 63/74 - P9630: A minha CCAÇ 12 (23): Julho de 1970: "pessoal não ataca população, guerra é com tropa", diz o comissário político... (Luís Graça)


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2715 (1970/72) > Xime > s/d  [Julho de 1970 ?] > A artilharia do Xime, a única guarnição do setor L1 que dispunha, em meados de 1970, de um pelotão de artilharia com 3 obuses 10.5, o 20º Pel Art / GAC7... Reconheço, nas fotos, os meus camaradas da CCAÇ 12,  o Arlindo Roda (em cima e em baixo) e o António Marques (em baixo, do lado direito, de perfil).

Fotos: © Arlindo Teixeira Roda  (2010). Todos os direitos reservados.



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BART (1970/72) >  c. Julho de 1970  > Instalações do comando, bem como de oficiais e sargentos > Em plena época das chuvas...

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados.







Fonte: História da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71. Bambadinca: CCAÇ 12. 1971. Policopiado, pp. 36/37.



A. Continuação da série A Minha CCAÇ 12 (*)

por Luís Graça

Não me lembro de acontecimentos marcantes (nem exaltantes), no decurso do mês de julho de 1970... Nem mesmo depois de reler a história quer da CCAÇ 12 quer do BART 2917, que tinha acabado, em junho de 1970, de tomar conta do setor L1, rendendo o BCAÇ 2852 (1968/70).

 Possivelmente foi o mês em que vim de férias à metrópole, via TAP. Não vou gastar energias a confirmar isso nos meus papéis. É possível que tenha sido nesse mês, ou em agosto.  

Por outro lado, estava-se em plena época das chuvas, o que trazia sempre fortes condicionalismos à actividade operacional quer das NT quer do IN.  Uns e outros abrandavam a atividade de carater mais ofensivo. Em julho, nessa época, chovia a potes, como já não chove hoje na Guiné-Bissau (pelo me dizem, e tendo em conta as alterações climáticas que se fazem sentir em todo o planeta). Chovia  a potes na região dominada pela bacia hidrográfica dos Rios Geba e Corubal.  Chovia a postes no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole. Chovia a potes no setor L1.

O que não impediu a realização em julho de 1970 de, pelo menos, mais 3 colunas logísticas ao Xitole levando os comes & bebes aos nossos camaradas, periquitos, das companhias de quadrícula do novo batalhão (, o BART 2917), estacionados em Mansambo (CART 2714) e Xitole (CART 2716)... Colunas sempre penosas, com montes de viaturas civis, que se atascavam, que levavam um dia, às vezes dois, a chegar ao destino e a regressar a Bambadinca...

Por outro lado, tinham (re)começado as nossas idas ao  Xime, aquartelamento ribeirinho, na margem esquerda do Rio Geba, agora com novos inquilinos, a CART 2715... Era patente já, e logo no início da sua comissão de serviço,  a obsessão do comando do BART 2917 com a Ponta do Inglês, e as populações que, sob o controlo do PAIGC, cultivavam a bolanha do Poidon... Os RVIS mostravam, lá em baixo, os laboriosos balantas a cultivar o arroz que depois iria alimentar a rapaziada do(s) bigrupo(s)... Rapaziada que tanto estava in su situ (a 27) como aparentemente dava sumiço (a 13)...

Por outro lado, o novo reordenamento de Nhabijões (um dos maiores, senão o maior, da Guiné) tinha um destacamento, que era guarnecido pela gente mais desconcertante da CCS do BART 2917 e de outras subunidades adidas (como a própria CCAÇ 12), dos básicos aos "aleijados" (sem desprimor)... Não admira que à noite pusessem Bambadinca à beira de um ataque de nervos, com os seus SOS lancinantes via rádio: "Aqui há turras!"... Aconteceu mais do que uma vez, não seria esta (a 22) nem a primeira nem a última...

Pau para toda a obra, os "pretos" da CCAÇ 12, além do destacamento da ponte do Rio Udunduma (e não Undunduma...) e das emboscadas noturnas na famosa Missão do Sono, em Bambadincazinha,  estarão também na segurança aos trabalhos de levantamento topográfico  da nova estrada Bambadinca-Xime, cuja construção vai ser obra da TECNIL... (Não posso perguntar pelo antecessor do António Rosinha nesse tempo, já que  a equipa de topógrafos não era da TECNIL, mas sim da Brigada das Obras Públicas, que presumo tivesse sede em Bissau)...

Vejo, por outro lado,  que o PAIGC, em meados de 1970, já tinha também adoptado a política de sedução do Spínola: afinal, a guerra, no setor L1, era só com a tropa (leia-se: os tugas e os seus aliados, fulas), não com a polução civil, fula ou de outra etnia, muito menos com os negociantes de gado, mesmo que o gado sirva para alimentar as bocas esfomeadas da tropa colonialista...

Era para isso que serviam os comissários políticos do PAIGC, subordinando o poder militar ao poder político... A frase só pode ser de um comissário político: "pessoal não ataca população, guerra é só com tropa"... E esse comissário político poderia ser, na época, um tal Pedro Landim...

Recorde-se o que já se disse, noutro poste, sobre o dispositivo IN na região (apenas no que diz repeito aos subsetores do Xime e do Xitole, excluindo portanto, a região a norte do Rio Geba):

(...) "Nas zonas que o IN efectivamente controla no Setor L1, implantou uma organização e hierarquias paralelas Administrativa e Militar cuja estrutura em pormenor é ainda mal conhecida.


Na primeira, definida pelo Rio Coruibal, entre a foz do Rio Buruntoni e Rio Pulon, por uma linha imaginária que une a foz deste último à nascente do Rio Buruntoni e por este rio até à sua foz, está referenciada a existência do Comissário Político Pedro Landimn que com as FARL controla toda a população civil, sendo Jorge João Bico aparentemente o Comandante Militar da mesma Zona, esta está, dentro da organização IN, incluída na Frente Bafatá-Xitole, Setor 02, e dispõe dos seguintes efectivos:  (i) um Grupo, Comandado por Mamadu Turé na área de Tubacutá; (ii) um Grupo, comandado por Incude na área de Gã Júlio; (iii) um Grupo, comandado por Mário Mendes,  na área de Satecuta...

"Estes quatros Grupos permutam entre sí com frequência as áreas em que actuam. Dispõe o IN ainda na zona, em permanência, de um Grupo Especial de Bazucas comandado por Vitorino Coluna Costa,  normalmente estacionado na área de Gã João e de um Grupo de Sapadores comandado por Mário Nancassa.


"Frequentemente o IN balanceia os meios da Frente Bafatá-Xitole com os da Frente do Quínara pelo que na situação de esforço sobre a Frente Bafatá-Xitole (incluí toda a zona do Sector L-1 a sul do Rio Geba) os efectivos indicados podem ser substancialmente reforçados". (...)

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9629: Agenda Cultural (188): Convite para o lançamento do livro Adeus até ao meu regresso, de Mário Beja Santos, dia 29 de Março de 2012, pelas 18h30, na Associação 25 de Abril, em Lisboa (Carlos Vinhal)

C O N V I T E

"Adeus até ao meu regresso" (a literatura dos e sobre os combatentes da guerra da Guiné) é o último livro de Mário Beja Santos, publicado pela Âncora Editora, cujo lançamento vai ser levado a efeito no próximo dia 29 de Março de 2012, pelas 18h30, na Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95 em Lisboa.

A obra será apresentada pelo Coronel Carlos Matos Gomes.


O "Adeus até ao meu regresso" é uma compilação das recensões feitas pelo camarada Mário Beja Santos no nosso Blogue, e agrupadas no livro por: Romance e Conto, Memórias, Ensaio, Poesia, História e Diários.

Entre outros autores podemos encontrar: Armor Pires Mota, Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, José Freire Antunes, José Brás, António Graça de Abreu, Hélio Felgas, Rui Alexandrino Ferreira, Cristóvão de Aguiar, Alberto Branquinho, Vasco Lourenço, Salgueiro Maia, Carmo Vicente, Amadú Djaló, Manuel Batista Traquina, Lobato Faria, José de Moura Calheiros, José Pardete Ferreira, Fernando de Sousa Henriques, António Duarte Silva, Aniceto Afonso, Carlos Matos Gomes.

Alberto Branquinho, Amadú Djaló, António Graça de Abreu, Cristóvão de Aguiar, Fernando de Sousa Henriques (1949-2011),  José Brás, José Pardete Ferreira,  Manuel Batista Traquina e Rui Alexandrino Ferreira, fazem parte da nossa Tabanca Grande, cujo número total de membros (entre os vivos e os mortos) ascende já a 543.

Dedicatória de Mário Beja Santos inserta neste livro:

À malta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, pela ajuda que me deu na pesquisa de livros esquecidos ou esgotados, um companheirismo espantoso;

ao António Duarte Silva, um amigo que dispõe de uma biblioteca surpreendente em tesouros da história e da literatura guineense, e que tem sido incansável com empréstimos e conselhos, sempre avisados e estimáveis;

à memória de Serifo Candé, de Mamadu Silá e de Ussumane Baldé, meus queridos camaradas do Pel Caç Nat 52, recentemente falecidos;

ao Armor Pires Mota, pela sua obra-prima "Estranha Noiva de Guerra";

à memória de Ruy Cinatti, a quem prometi, logo em 1970, que trataria com carinho este dever de memória, incluindo os testemunhos literários de combatentes e estudiosos.

Um livro a não perder, principalmente pelos interessados em literatura dedicada à guerra colonial, da Guiné particularmente. Para os menos endinheirados, na impossibilidade de comprar todos os títulos recenseados, poderão encontrar uma ajuda na selecção das obras a ler prioritariamente.

CV
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9573: Agenda Cultural (187): Inauguração da exposição Guerra Colonial - Tarrafal 50 anos depois - CONVITE

segunda-feira, 19 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9628: Meu pai, meu velho, meu camarada (25): Bo vida ta na balança... (Luís Graça)


Para o meu pai, Luís Henriques
(n. 1920, Lourinhã, ex- 1º cabo inf, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1941/43) (*)
e para todos os pais,
os nossos pais,
que vivem com a dignidade possível
na solidão instuticionalizada dos terminais da morte



Meu pai,
Meu velho,
Meu camarada…
Sinto que estás a chegar ao fim,
Sinto que estás a desistir,
Sinto que estás com poucas ganas de lutar
Contra o inexorável fim…
É com um aperto no coração
Que te vejo aí deitado no teu cadeirão articulado,
Do Lar de Nossa Senhora da Guia,
Na Atalaia da Lourinhã,
Com as velhas canadianas definitivamente arrumadas a um canto…
Onde está o teu proverbial sentido de humor,
Quando brincavas com as tuas canadianas,
Dizendo que tinhas trocada uma velha por duas novas ?!…
Onde está o teu gosto jovial pela anedota,
Pelo verso de improviso,
Pelo dito sempre apropriado
Para cada conversa, para cada ocasião ?
(Sempre brejeiro, sem nunca dizer um palavrão!)




Meu pai,
Meu velho,
Meu camarada…
Sinto que está agora mais difícil, para ti,
Prosseguir a viagem…
Eu já não queria que fosses até ao km 100,
Da autoestrada da vida,
Queria que chegasses ao menos até ao km 92,
Devagarinho,
Um dia de cada vez,
Sem dores,
Com o teu sorriso doce
E com o segredo da tua alegria
Que contagia(va) tudo e todos...
Queria que chegasses, para já,
Até o dia 19 do próximo mês de Agosto,
Dia dos teus anos,
Para a gente poder vcoltar a ouvir de novo os dois,
Numa cumplicidade pai/filho,
A tua coladera preferida,
Aquela que eu te ouvia cantarolar, desde miúdo,
Sem nunca entender, ao certo,  a letra em crioulo...
Lembras-te ?
Se bo ta moda um tracolança
'M ca sabê
Se bo vida ta na balança
'M ca e culpode (**)...



Se calhar estou a ser egoísta,
Miseravelmente egoísta,
E a subestimar ou menosprezar os teus avisos:
“Isto tá bera, Lis Manel”…
(É assim que me tratas,
Sempre me trataste,
Por Lis Manel).
Claro que eu vou brincando contigo,
Vou-te animando,
Vou-te desafiando para ir comer um peixinho,
Desafiando-te para ir ver o mar,
Não o mar azul da baía do Mindelo,
Aonde nunca mais voltaste, 
Mas o mar do Cerro da tua infância
Com as  Berlengas ao fundo...
Para limpar a vista, como  tu gostas de dizer... 
Anda, anda a tomar o teu café com o cheirinho,
No bar dos Cinco Paus,
Na Praia da Areia Branca...
Que eu vou pedindo a tua amarelinha em balão:
“Tome (nunca te tratei por tu)
Que no céu não há disto!”…


O que te prende à vida, meu velho,
Mesmo sabendo que és um homem de fé ?
A tua velha companheira,  
A minhã mãe,
A tua cachopa, agora muda e queda,
Ali a teu lado,
Na Senhora da Guia ?
Os teus filhos, netos e bisnetos,
Que já são tantos que dão
Para fazer duas equipas de futebol ?
Já não queres ir à vila,
Já não queres ver os teus amigos
Do banco do jardim,
Do Largo da Igreja,
Já não te interessas pelos resultados do teu Benfica,
Já deixaste de escrever o teu diário,
Já não jogas às damas,
Já não lês a Bola,
Já não ouves, na rádio,  o relato da bola,
Já não vais à bola ao domingo,
 Nem gritas aos jogadores do Lourinhanense:
“Quem ganha é quem corre,
Quem ganha é quem corre!”…


Já não corres, meu pai,
Grande ponta direita,
Velha glória de clubes de futebol
Sem história,
As pernas tramaram-te,
Já correste tudo o que tinhas a correr
Pela vida fora, na labuta da vida,
Nos campos de futebol e fora deles…
Já não corres,
Mas ainda continuas a ganhar,
Meu velho,
A marcar pontos,
Meu camarada…
Os dos exemplos de bondade,
E de humanidade,
E de coragem
E de sabedoria,
Que eu gostaria de poder transmitir aos meus dois filhos
E aos meus netos (quando os tiver)…


Um bom dia do pai,
No Dia do Pai,
Para ti,
Meu pai,
Meu velho,
Meu camarada!


Alfragide, 19 de Março de 2012
Luís Graça

2. Já que estamos numa homenagem ao(s) pai(s), ao(s) nosso(s) pai(s), a todos os nossos queridos pais, feita a duas, quatro seis, múltiplas mãos, aqui fica, ao cair do dia, a mensagem carinhosa que os meus dois filhos, Joana e João, quiseram deixar no nosso blogue, no Dia do Pai...

Amigos, camaradas, camarigos: Entendam-na como a expressão dos sentimentos de todos os nosso filhos, já que uma das nossas máximas é justamente essa: "Os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são"... (LG)

Para o nosso Pai:


Chegámos a casa e não parámos de chorar pela bonita homenagem que fizeste ao teu Pai! 


Pai!, como consegues tocar no coração das pessoas com as tuas palavras, o verso curto, a palavra certa, o sentimento todo, certeiro?!


Pai!, como consegues adivinhar o que sentimos nós, também, a sofrer ao longe, mas a pensar que os outros são fortes, quando afinal a todos o coração enfraquece.


Pai!, sentir o teu pai, nosso avô, a partir é triste. Mas foi ele, o teu pai, nosso avô, que disse que quem não viveu não pode viver.


Pai!, e o avô viveu e deu a viver, e viverá para sempre nas nossas histórias, aquelas que tu e nós vamos contar aos nossos filhos, sim, por que ser avô é uma bênção, e queremos dar-te essa alegria também.


Pai!, toca-nos a tua sensibilidade silenciosa, escondida, mas forte pela subtileza e bondade.


Pai!,  vamos levar nas nossas vidas a celebração da vida através da poesia embrulhada de afetos.


Com afeto,


Joana e João


Alfragide, 19 de Março de 2012

3. Magnífica lição sobre a música popular urbana de Cabo Verde, por parte do nosso amigo Nelson Herbert [ jornalista, VOA - Voice of America, Washington, DC, filho de um camarada do meu pai, velha glória do futebol caboverdiano e guineense, Armando Lopes, mais conhecido por Búfalo Bill] que, do outro lado do Atlântico, se apressou a responder ao meu pedido de tradução da letra da coladera Velocidade (que faz do álbum da Cesária Évora, Voz d'amor):

Caro Luís:


Antes de mais, votos de rápidas melhoras para o seu "Velho"...


De facto esta sarcástica coladera é do tempo da vivência do seu "Velho" em S. Vicente, é da década de 40/50, anos em que fez um estrondoso sucesso...

Época áurea do Porto Grande de Mindelo, dos marinheiros dos navios que aportavam à ilha, do corpo expedicionário, clientes dos bares e casas de música e "engates" famosas da ilha...


Sarcástica como praticamente todas as coladeiras, ela retrata no fundo uma espécie de sermão, com laivos de ciumeira, aparentemente dirigida à m'nina de vida, como se diria naqueles tempos... (Hoje simplificando, e falando politicamente correto, uma prostituta ou profissional do sexo).
Mindelo era conhecido na altura pelo seu Porto (Porto Grande)... Como diria o poeta italo-caboverdiano Sergio Frusoni, era o tempo em que os gatos eram engordados à base da gemada ... e pelo seu intenso traáego portuário,  com todas as demais actividades paralelas,nomeadamente a prostituição !


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > "O belo porto de mar de São Vicente; ao centro, o ilhéu [dos Pássaros] que se confunde com um barco. Outubro de 1941" [Foto de Luís Henriques, 1º cabo nº 188/41, 1º Pelotão, 3ª Companhia, 1º Batalhão, Regimento de Infantaria nº 5, Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo, 1941/1943].


E de tão profícua atividade, a m'nina de vida tendia a sobressair-se... pelo seu ar sobranceiro e exibicionista...

E é, pois, reflectindo essa realidade que esta sarcástica coladera é feita.  Salvaguardando as expressões idiomáticas do crioulo caboverdiano, por vezes difíceis de traduzir, a tradução da letra desta coladera ficaria mais ou menos assim (Ver abaixo). Mantenhas. Nelson Herbert

Coladera Velocidade
Trad. para português: Nelson Herbert

E m'dojr bo caba q'ues esparate
Pa ca ba pobe nome d'Velocidade
Oia q'ma tude cosa forte
Um dia ta t'chega na fim


[É melhor deixares-te desses disparates
antes que ganhes a alcunha de Velocidade.
Vê bem, que tudo que é forte
não deixa um dia de ter um fim.]


[Comentário: ... Um dia deixas de ser forte... No fundo, um dia com a velhice, ainda te cai a crista !]


(Bis)


Refrão


Se bo ta moda um tracolança
'M ca sabê
Se bo vida ta na balança
'M ca e culpode


[Se tens estado a dar nas vistas, pela vida que levas,
eu cá não sei..
Se a tua vida, o que fazes ou (des)fazes ja está na boca do povo...
Nao fui eu o culpado, nada tenho a haver com isso]

(Bis)


Ja'l soma ta bem ta treme
Q'tude se vaidade estilusinha
Ele ca t'ma fe na ques desgraçode
Q'tava traz d'quel esquina ta guital


[E lá vem ela de novo, qual donzela,  saracoteando,
Com toda a sua vaidade, estilo e charme
Que nem deu conta daqueles desgracados (supostamente os clientes habituais...)
Que algures numa esquina, observam-na e preparam-se para  disputar a sua companhia]...

________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série >  23 de outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7164: Meu pai, meu velho, meu camarada (24): Bijagós, memórias de menino e moço (Manuel Amante)

(**) Letra recuperada aqui, no sítio Vagalume... Letra da coladera tradicional,  Velocidade,  magistralmente interpretada por Cesária Evora (1941, Mindelo - 2011, Mindelo)  (Vídeo no You Tube disponível aqui)


E m'dojr bo caba q'ues esparate
Pa ca ba pobe nome d'Velocidade
Oia q'ma tude cosa forte
Um dia ta t'chega na fim

(Bis)

 Refrão

Se bo ta moda um tracolança
'M ca sabê
Se bo vida ta na balança
'M ca e culpode

(Bis)


Ja'l soma ta bem ta treme
Q'tude se vaidade estilusinha
Ele ca t'ma fe na ques desgraçode
Q'tava traz d'quel esquina ta guital


 (Bis)

Refrão

Guiné 63/74 - P9627: Blogpoesia (183): Homenagem ao Homem, no Dia do Pai (Felismina Costa)

Mais um poema da nossa amiga tertuliana Felismina Costa*, neste dia dedicado ao Pai:

Homenagem ao Homem, no Dia do Pai

Pretendo homenagear o homem!
O homem avô!
O homem Pai!
O homem Filho!
O homem Marido, Amante e Amigo!
O homem, criador e criativo!
O homem… amparo e abrigo!
O homem, orgulho da sua prol
Da sua Pátria,
Do seu torrão Natal!
O Homem, orgulhoso da sua obra total!
O homem nascido, concebido no amor
Gerado para se multiplicar, para fazer crescer o mundo!

Falar da vida,
é falar do homem,
à sombra do qual, a mulher se abriga,
Os lares se enchem
A sede se mata
A fome se acaba
A luta é bendita!

Falar do Homem, é falar do sonho!
Dos sonhos todos de uma vida!
É da força do seu braço, do calor do seu abraço
Da ternura da sua voz, do seu olhar,
Das suas ideias
Da sua presença varonil, indiscutivelmente válida,
que a terra, se enche de valores.
É ai, à beira desse rectângulo humano
que a vida gira!
Que o dia começa e a noite finda!
Que novo dia desperta!
Que a terra grita!

Cada dia, soerguendo-se no horizonte
tem um rosto barbeado
uns olhos que se abrem para o mundo
Uma boca que beija
Que incendeia
Uma voz que se personaliza!
É o Homem que se diz,
Companheiro de amarguras…
de alegrias!
Companheiro de esperanças,
Presença, que se não dispensa.
Que acende a chama dos dias!

Em cada homem… um pai!
Um pai que gera e que cria!

Felismina Costa
Agualva, 18 de Março de 2012
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9579: Blogpoesia (180): No Dia Internacional da Mulher, A um modelo de mulher (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9586: Blogpoesia (182): Mulher - Esposa e Mãe (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P9626: Notas de leitura (343): Testemunho, de Filinto Barros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 17 de Fevereiro de 2012:

Queridos amigos,
Em duas circunstâncias diferentes tive a possibilidade de conviver e conhecer a personalidade de Filinto Barros, recentemente desaparecido. O Eng.º Filinto diplomou-se em Portugal, esteve, após a independência da Guiné-Bissau associado às atividades dirigentes, no PAIGC e no governo. Trabalhei na sua dependência em 1991, num projeto de cooperação relacionado com a defesa do consumidor. Em Novembro de 2010, na recolha de elementos para a conclusão do livro “A Viagem do Tangomau”, conversámos longamente. Pude avaliar a sua cultura, a sua sensatez, o seu humanismo.
Deixou um romance admirável “Kiakia Matcho”. O livro “Testemunho” é inacreditável como publicação, é impossível que tenha sido revisto pelo seu autor, um intelectual que dominava com perícia a língua portuguesa. E no entanto as suas análises, justificações e comentários são de uma real importância para entender a Guiné-Bissau. Sobretudo após o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. Para os estudiosos, mesmo sendo uma leitura penosa, passou a ser uma referência obrigatória.

Um abraço do
Mário


Confissões e justificações de Filinto Barros

Beja Santos

O livro “Testemunho”, de Filinto Barros é uma edição de autor, porventura a derradeira obra do antigo dirigente do PAIGC publicada em vida. Há uma enorme dificuldade em entender se o antigo dirigente político concedeu uma sucessão de entrevistas ou elaborou memórias avulsas sobre quatro temas em que foi participante seja como governante, observador político ou dirigente ativo.

Os temas abordados são do maior interesse para a história da Guiné-Bissau pós-independência. É deplorável que o autor não tenha revisto a edição, cheia de erros de toda a natureza, Filinto Barros era um homem culto, comunicava num português irrepreensível, não há página deste livro que não esteja polvilhada de gralhas, faltas de concordância, a pontuação no seu lugar. Isto quando estamos perante um testemunho que irá entrar na História.

O primeiro texto prende-se com os acontecimentos do golpe de Estado de Novembro de 1980. Filinto Barros critica a escolha de Luís Cabral para o cargo de presidente do Conselho de Estado, após a independência unilateral, por se tratar de um cabo-verdiano, era uma questão de jus sangue. Refere uma entrevista que o leitor não sabe qual que Luís Cabral, certamente no exílio, terá dado acerca dos acontecimentos do 14 de Novembro. Diz taxativamente: “Se há um responsável pelo golpe, Luís Cabral deve ser apontado pelo ambiente de intrigas que implantou, tentando inverter as hierarquias saídas da luta”. Mais adiante recrimina a discriminação praticada pelos dirigentes cabo-verdianos para tomarem o vértice do aparelho do Estado. Considerando que Amílcar Cabral, a propósito da unidade Guiné-Cabo Verde, fizera uma aposta corajosa ao criar uma nova entidade que englobava as duas realidades herdadas do colonialismo, atribui ao seu desaparecimento e à incapacidade dos seus herdeiros de prosseguir uma dinâmica criativa que levasse a cada um dos dois Estados a ser gerido pelos autóctones, devia-se ter optado rapidamente por uma federação de dois Estados. Nessa perspetiva, o 14 de Novembro pode ser encarado como uma retificação. Volta a acusar Luís Cabral, considerando que para este líder o adversário principal era o crioulo guineense.

Uma nova chuva de críticas vai agora impender sobre Nino, este tratou de consolidar o poder rodeando-se dos seus incondicionais. A governação de Nino, na sua ótica, foi um profundo desastre, continuando a implantar pequenas fábricas sem estudos de impacto, sem questionar se o país reunia condições em termos de matérias primas e uma mão-de-obra apta para garantir a sua rentabilidade. Nino continuou a praticar os erros de Luís Cabral que procedeu a uma implantação selvática de pequenas unidades febris. Filinto Barros pretende analisar o porquê dos seus insucessos. Diz mesmo que a sua análise procura determinar até que medida as ações levadas a cabo depois de 14 de Novembro de 1980 prejudicaram ou beneficiaram o país no quadro de industrialização iniciada por Luís Cabral. Passa em revista o Complexo Agro-industrial de Cumeré, a NHAI – Unidade de Montagem de Veículos, a fábrica de leite Blufo, o projeto Volvo, a Socotram – unidade de corte e processamento de madeira, o fabrico de plásticos, Titina Silá, uma fábrica de sumos e compotas, uma fábrica de colchões de espuma, a Dicol, a Guimetal, a Cerâmica de Bafatá, a Folbi – unidade de folhados e contraplacados de madeira, aponta gestão danosa, cegueira nos pareceres do Banco Mundial e FMI, muita corrupção, muita irresponsabilidade política sobretudo uma enorme incompreensão sobre o que devia ter sido uma liberalização gradual na transição de uma economia estatizada para as regras livres do mercado.

No segundo texto, o antigo governante pretende defender-se sobre a polémica questão dos lixos industriais. Narra as diligências efetuadas para apurar da possibilidade da transformação dos resíduos industriais provenientes da Europa reelaborando-os com adubos e material de construção. Denuncia as agiotas, queixa-se de oportunismos de vários colegas delatores. Justifica-se, dizendo que estava consciente dos efeitos nefastos dos resíduos tóxicos, deplora as forças do obscurantismo e a intelectualidade de meia-tigela da região. Sentiu-se obrigado a desistir do processo e a dar por encerrado todo o assunto.

No terceiro texto tece considerações sobre o II Congresso extraordinário, realizado na Base Aérea, em 1992. Comenta: ”Foi um congresso terrível, em que se deu a separação entre os políticos e as Forças Armadas, o congresso no qual o PAIGC deixou de ser considerado a força política dirigente da sociedade. Todos soubemos que o congresso foi manipulado por certa gente, que se aproveitaram da incapacidade da maior parte dos congressistas analfabetos ou semianalfabetos, induziram-nos com vários argumentos incluindo a solidariedade tribal. Ninguém de pele clara conseguiu passar! A partir daí, a história do Partido foi a história de uma série de complôs para afastar muita gente, sobretudo os preferidos do Nino e sempre o Malã Bacai Sainhá se aproveitou, pôs-se no lugar certo! Até que acabou por ficar com o partido como queria!”.

E estamos chegados ao texto fundamental, a Guerra Civil de 1998. Fala no tráfego de armas, na imperícia governamental no tratamento da questão, nas extensões crescentes nas FARP como causas do levantamento armado encabeçado por Ansumane Mané. Entende que o VI Congresso do PAIGC foi um congresso desunião que se estendeu ao descontentamento no seio dos militares, era um descontentamento que se prendia ao estatuto de carreira de promoções e ao tratamento que Nino fazia da instituição militar, manipulando-a a seu belo prazer. Como o texto seguramente que não foi revisto, até se pode pôr a hipótese de fazer parte de um conjunto de entrevistas ou de apontamentos escritos não organizados, a seguir Filinto Barros fala do assassinato de Nino e regressa a outro tipo de considerações que tem a ver com o pretenso golpe de Estado atribuído a Paulo Correia e que levou à execução de vários dirigentes. Considera que estes acontecimentos constituíram uma profunda humilhação da etnia balanta com repercussões que chegam à atualidade. Refere o seu protagonismo no Conselho de Estado, em 1986, e quais as opiniões que se manifestaram a favor ou contra a pena de morte. A narrativa tem foros de tragicomédia, Filinto Barros escalpeliza o livro “Ordem para matar”, de Quebá Sambu, para pôr em causa a sinceridade dos seus argumentos. Acha que Paulo Correia não foi tão inocente quanto protestou, que Viriato Pã era um verdadeiro tribalista e que os fuzilamentos foram um dano irreparável para o PAIGC e para o país inteiro, acabou por colocar a etnia balanta contra o PAIGC, passou a viver-se numa atmosfera de vingança tribal. Isto dá-lhe oportunidade para invocar outras purgas e ajustes de contas, invoca o nome do comandante André Gomes que morreu na prisão, sobre ele recaía a acusação de ter sido o acusador de Osvaldo Vieira, Lay Seck, um alto dirigente, faleceu na prisão logo após o 14 de Novembro, refere outros nomes de gente que sofreu sevícias terríveis. Este texto é depois dirigido para atuação de Kumba Yalá, outro dirigente que lançou o país no atraso e na miséria. O livrinho de justificações vai culminar numa exortação aos seus colegas de trincheira a participarem na tarefa de ajudar a esclarecer a verdade dos fatos passados.

Trata-se de um documento que não pode ser doravante ignorado, apesar da sua leitura ser penosa e da organização do textos ser altamente deficiente. Filinto Barros não merecia uma publicação destas, uma vergonha editorial.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9613: Notas de leitura (342): O Boletim Geral do Ultramar (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9625: Memória dos lugares (178): Sobre a ponte da estrada Canchungo - Cacheu, ao Km 6 (Carlos Schwarz/Pepito)

 

1. Mensagem e fotos do Engº Agrº Carlos Schwarz, Pepito sobre a ponte da estrada Canchungo - Cacheu, ao Km 6, enviada em 18 de Março de 2012 ao nosso Camarada Luís Graça.

Luís,

Contributo para o esclarecimento da controversa ponte da estrada Canchungo - Cacheu, ao Km 6.

A ponte existe mesmo

A ponte vista de outro ângulo
  Está localizada mesmo ao lado da estrada
A 600 metros de distância fica a ponte melhorada, no local onde sempre existiu
 Imagem do rio

abraço
pepito

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Nota de MR:

Vd. último poste da série em:

29 DE FEVEREIRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9547: Memória dos lugares (177): Canquelifá, a ferro e fogo, fevereiro / abril de 1974 (José Marques)

 

domingo, 18 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9624: Em busca de... (185): Pedido de informações e fotos do Sold Cond Fernando Alves Tavares (Cristina P)


1.   A nora do nosso falecido Camarada, Fernando Alves Tavares, ex-Sold Cond, de que mais nada sabe, além de que esteve na Guiné entre 1972 e 1974, solicita-nos através da seguinte mensagem, a divulgação de um pedido/apêlo, junto do pessoal da nossa tertúlia e demais visitantes do nosso blogue, e eventual prestação para o seu e-mail de toda e qualquer informação e, ou, foto dele que alguém possua e lhe a(s) possa enviar.



Boa tarde!

Desejava saber se alguém conheceu um soldado de nome Fernando Alves Tavares, que esteve na Guiné entre 1972 e 1974, era motorista e oriundo de Vale de Cambra.

Era o meu sogro e já faleceu, mas eu gostava, se possível obter mais informações e/ou fotos, pois só temos uma foto sua e a caderneta militar.

Já agora envio em anexo para ver se ajuda.

Agradeço qualquer informação para o meu email:
mad_cris@hotmail.com

Desde já agradeço a atenção dispensada.
Com os melhores cumprimentos,
Cristina P

 Na foto, o Soldado Condutor Fernando Alves Tavares, está de cócoras do lado esquerdo  
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Nota de MR:

Vd. último poste da série em:

24 DE FEVEREIRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9525: Em busca de... (184): Finalmente uma notícia do Armando do Hospital Militar de Bissau 73/74 (Luís Gonçalves Vaz)


Guiné 63/74 - P9623: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (2): De Bissau para Mansambo

1. Segundo capítulo do trabalho do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), intitulado O tempo que ninguém queria:


O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (2)

DE BISSAU PARA MANSAMBO

Lá voltei de novo ao aeroporto de Bissalanca, só que desta vez a viagem era mais curta, apenas até Bafatá. O avião que nos levou era um velho Dakota com bancos de madeira como se fosse uma carroça, à chegada estavam viaturas militares que nos levaram até Bambadinca, onde se encontrava a CCS do meu batalhão, o "3873", depois mais uma mudança de viatura, desta vez até Mansambo, onde já se encontrava a minha companhia, a "3493".

À chegada, para além da nossa Companhia estava a que íamos render. Se a confusão era grande, para mim era ainda maior, pois não conhecia lá ninguém, ao contrário dos meus futuros camaradas que estavam juntos há já alguns meses. A única coisa boa que me aconteceu nesse dia, foi receber a correspondência que entretanto me tinha sido enviada para o SPM, Serviço Postal Militar, que já na metrópole nos tinha sido distribuído.

Mansambo City

Foto: © Torcato Mendonça (2012). Todos os direitos reservados

Estivemos alguns dias com os “velhinhos” para preparar a rendição, ao fim dos quais chegou a vez de assumirmos os cargos que até ali tinham sido deles. Para mim não foi nada fácil, ver aqueles que partiam, e pensar no tempo que ainda faltava para que nos acontecesse o mesmo, se é que viria a acontecer…

Os primeiros dias foram de uma tristeza enorme e difícil de explicar; recordo-me de um dos primeiros serviços que fiz, foi segurança à fonte, onde íamos buscar a água com que abastecíamos o aquartelamento para uso diário, que ficava a cerca de duzentos metros do arame farpado que circundava as nossas instalações, mas para fazer esse trajecto era necessário proceder à picagem do caminho todos os dias pela manhã, tendo em vista detectar alguma mina que a coberto da noite o IN lá pudesse ter colocado.

Ao chegar junto da fonte, cinco ou seis homens ficavam por ali a fazer segurança enquanto outros dois andavam com um unimog, o famoso "burrinho" a transportar água para o aquartelamento. Eu estava triste pensando em quase tudo... e não encontrava nada que me levantasse o ânimo, por momentos ocorreu-me a ideia de escrever qualquer coisa… escrevi a seguinte frase: tem calma, ainda és novo e o tempo há -de passar; frase que sempre me acompanhou, e que eu li vezes sem fim durante o tempo que estive na Guiné.

Na minha Especialidade de Condutor, tinha como função principal o transporte de pessoal, as viagens maiores eram as que fazíamos em coluna a Bafatá, onde íamos com regularidade uma vez por semana, normalmente buscar entre outras coisas, duas vacas que eram consumidas pelo pessoal da Companhia, eram animais de pouco peso, e outra coisa para nós não menos importante, que era o correio, naquele tempo, a única forma de ter noticias da terra, da família e dos amigos. Eu era um dos que recebia muita correspondência. 

Recebi cartas e aerogramas escritos todos os dias em que estive na Guiné, ainda que muitos chegassem no mesmo dia; também eu, durante o tempo que lá estive escrevi todos os dias para a minha esposa, quando recebia correspondência, respondia com uma carta, os outros dias escrevia aerogramas. Para outras pessoas de família e para alguns amigos também escrevia mas só aerogramas. Havia também quem ao longo do tempo de permanência em África raramente recebesse correspondência, quando chegava o momento da distribuição todos se aproximavam, mas para alguns, em vez de alegria era um momento de acrescida tristeza, pois correspondência para eles não havia.

As viagens de transporte de pessoal aconteciam também quando elementos nossos iam participar em operações fora da nossa zona, assim como fazer segurança aos que passavam na picada na zona de Mansambo, em especial às colunas de abastecimento que iam de Bambadinca ao Xitole, e regressavam ao fim do dia, enquanto não regressassem tínhamos de estar algures na picada na missão de segurança que nos era destinada.

Estávamos ainda há poucos meses em Mansambo, fomos fazer segurança a um dos “maiores” que naquele dia ia passar pelo sector leste, a nossa missão foi andar por umas tabancas, para nós desconhecidas, algures entre Bafatá e Nova Lamego. Chegámos já noite à tabanca onde fomos dormir… se no inicio muitas eram as coisas difíceis de suportar, a sede para a maioria de nós era a maior. Quando saíamos do aquartelamento, o cantil ia sempre cheio, mas não era necessário muito tempo para que ficasse vazio. 

Ao chegarmos ao sitio onde passamos a noite já ninguém tinha água, nem sabíamos onde a podíamos encontrar, valeu-nos o chefe da tabanca, que conseguiu um alguidar grande cheio de água onde quem quisesse tinha que beber lá dentro, parecíamos uma manada de animais com a cabeça dentro do alguidar, mas mesmo assim foi a melhor coisa que nos podia ter acontecido naquele momento.

Quando saíamos de Mansambo, durante cinco ou seis quilómetros na frente do pessoal que seguia a pé e das viaturas, iam três ou quatro picadores tentando descobrir alguma mina que pudesse existir na picada, o que nem sempre conseguiam, eram momentos de grande tensão em particular para os condutores, durante esse tempo de picagem, só o condutor seguia na viatura, porque tinha que ser, senão nem ele lá ia… as minas anti-carro eram demolidoras, pobre daquele que tinha o azar de conduzir o veiculo que as accionasse, principalmente se ela rebentasse do lado do motorista.

O aquartelamento de Mansambo, naquele tempo em que a nossa Companhia lá esteve, de Fevereiro de 1972 a fins de Março de 1973, não era considerado muito mau, atendendo ao que acontecia em quase todo o território da Guiné.

Certamente não pensam assim… o Furriel Ferreira, que seguia numa viatura na picada de Candamã que accionou uma mina e ele ficou sem um pé, ou o Silva do 2.º Pelotão que estava para vir de férias dentro poucos dias, e mais outro de quem já me não lembro o nome, que ficaram cada um sem um pé ao accionarem minas anti-pessoal. 

Durante o tempo em que lá estive, só uma vez fomos flagelados à distancia, onde o IN utilizou o morteiro 82, eu e mais cinco condutores estávamos nesse momento com o carro dentro dum grande buraco, que terá sido feito a quando da construção dos abrigos pelas companhias que nos antecederam, a carregar terra para levarmos para a oficina, estávamos a fazer uma pausa e todos a beber uma cerveja, a popular bazuca que era uma cerveja grande, creio ser de seis decilitros, quando ouvimos o som de disparo de um morteiro, uma saída. 

Fizemos alguns segundos de silêncio, e logo ouvimos mais três saídas, estávamos dentro do buraco mas este era demasiado grande, e como tal menos protegidos, saímos em direcção ao abrigo do nosso morteiro 81, que ficava ali próximo, que logo respondeu ao fogo inimigo. Eu fui o ultimo a sair do sitio onde nos encontrávamos, pelo tempo passado depois de termos ouvido a primeira saída, tive um pressentimento que não teria tempo de chegar ao abrigo, voltei para traz e deitei-me dentro do buraco de onde estávamos a tirar a terra, talvez tenha sido essa decisão que me permite estar agora aqui a escrever; uma das primeiras granada a rebentar, foi precisamente no local que nós tínhamos de passar, e eu era o ultimo, provavelmente não teria tempo para alcançar o abrigo, o espaldão do morteiro. Acabado o bombardeamento, ficou apenas o susto, pois não provocou quaisquer danos, a não ser os psicológicos. Quando as coisas acalmaram e fomos ver o local dos rebentamento de algumas granadas que caíram dentro do arame, ficamos assustados com os cortes feitos no chão pelos estilhaços.

No dia seguinte na rádio do PAIGC divulgaram a noticia da flagelação, informando que para além de vários danos provocados nos terem terem destruído um abrigo… Depois desse ataque não mais nos foram visitar, a não ser colocar as terríveis minas… os atiradores faziam saídas apeadas, patrulhamentos, quase todos os dias, nós os condutores, só saíamos quando o serviço de condutor assim o exigia. Para além do nosso serviço de Especialidade, no aquartelamento fazíamos também reforços durante a noite. Até ao fim de Março de 1973, foi assim a minha vida.

Antes no verão de 1972 vim de férias à Metrópole. A viagem de Mansambo até Bissau foi demorada, de coluna até Bambadinca onde estive três dias à espera de transporte, até que tive boleia numa avioneta que me levou até Bissau, de todas as viagens que fiz por via aérea foi a que menos gostei, onde estive mais três dias à espera do voo TAP que me trouxe até à Metrópole, onde passei um mês de férias. Férias… não sei se será a definição correcta, pois mesmo estando cá, o pensamento estava sempre no dia do regresso, que em breve aconteceria a terras de África.

No abrigo dos condutores tínhamos um faxina, era um miúdo da tabanca, que a troco de uns pesos nos ia buscar a comida à cozinha lavava a loiça e varria o abrigo, a quem eu prometi levar uns sapatos quando fosse de férias; durante o tempo em que estive na Metrópole, os meus camaradas mandaram o Serifo embora, para ele a chatice maior não era ir embora, o pior é que o Fireira, como ele me chamava, provavelmente já não lhe dava os sapatos; mas não, assim que cheguei, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos novos, coisa que ele com treze ou catorze anos de idade nunca tinha tido.

No dia seguinte, o Serifo na companhia de mais três meninos da tabanca, com alegria e a felicidade estampada no rosto, vieram levar-me uma galinha, momento que jamais esquecerei, e certamente o Serifo também não, dentro do possível sempre procurei respeitar os nativos como pessoas iguais a todos os demais. Recordo-me de certo dia um grupo de condutores ter tirado um cabrito, que era de alguém de uma tabanca por onde passaram. Fui convidado para ajudar a comer o petisco mas recusei-me a participar. Era para mim uma forma de protestar ainda que em silencio contra um acto com que eu não concordava. Passados alguns dias, o dono do animal queixou-se ao Comandante da Companhia, tendo este ordenado o pagamento do valor do animal a quantos o tinham comido.

Em Mansambo todos os militares tinham uma lavadeira, que a troco de alguns pesos, moeda da Guiné, lavavam-nos a roupa e passavam-na a ferro. A Califa era a menina que me lavava a roupa, tinha só catorze anos, mas já estava vendida a um homem com cerca de quarenta.

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. primeiro poste de 15 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9608: Tabanca Grande (325): António Eduardo Jerónimo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74)

Guiné 63/74 - P9622: Ser solidário (121): Campanha Gramáticas e Dicionários de Língua Portuguesa para as EVA - Escola de Verificação Ambiental

1. Reproduzido da página da AD - Acção para o Desenvolvimento, os nossos amigos e parceiros da Guiné-Bissau:


A Campanha Gramática para Escolas, lançada pela ONG Afectos com Letras [, Associação para o Desenvolvimento Para Formação, Saúde e Educação, com sede em Pombal], começou a ser ouvida. Chegaram as primeiras encomendas: Maria da Graça Parracho e F. Maria e Castro enviaram-nos 5 gramáticas.



Vão ser enviadas para a Escola de Verificação Ambiental (EVA),  de São Domingos, no norte do país. E depois divulgaremos as fotos da entrega!


Um OBRIGADA,

Isabel Levy Ribeiro (isabel.levy@gmail.com)
Coordenadora da Rede Eva

2. Comentário de L.G.:


As gramáticas de língua portuguesa, bem como os dicionários,  são os livros mais apreciados e apetecidos na Guiné-Bissau, por professores e alunos das escolas, e em especial das EVA - Escolas de Verificação Ambiental, criadas e dinamizadas pelos nossos amigos da AD, sob coordenação da nossa tabanqueira Isabel Levy Ribeiro, engenheira agrónoma, portuguesa, mulher do guineense Pepito.


Alguns de nós têm gramáticas e dicionários a mais em suas casas, alguns destes livros estão já fora do mercado (com o novo acordo ortográfico) mas para os nossos amigos da Guiné-Bissau, que querem aprender e melhorar o português, são uma oferta muita valiosa... Por extensão: enciclopédias, compendios de história, clássicos da literatura, etc.


Amigos e camaradas, solidários com a Guiné-Bissau: Podem usar o endereço postal da AD e   e enviar uma encomenda postal até 2 kg (livros, brinquedos ou roupas). Esta via tem-se mostrado muito segura, de acordo com a nossa própria experiência, e a confirmação da AD.

Os CTT têm um tarifa especial para Guiné-Bissau, Timor e São Tomé e Príncipe, que prevê um preço para correio económico internacional até 2kg de 2,98€.



 ONG AD – Acção Para o Desenvolvimento


Caixa Postal 606
Bairro de Quelelé
Bissau
República da Guiné-Bissau


Email da AD - Acção para o Desenvolvimento: adbissau.ad@gmail.com

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Nota do editor:


Último poste da série > 7 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9454: Ser solidário (120): Tabanca de Matosinhos e Camaradas da Guiné (José Teixeira)