quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8659: Contraponto (Alberto Branquinho) (38): As Frentes e os Homens

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 8 de Agosto de 2011:

Caro Carlos Vinhal
Porque verifiquei com a colocação do poste de hoje que estás, ainda, ao serviço neste mês de Agosto, aqui te envio um novo texto a contrapontar.

Um abraço do
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (38)

As “FRENTES” e os “HOMENS”


1 – As “frentes”

Tenho lido aqui, muitas vezes, afirmações idênticas às que seguem:

- “Eu, que estava na linha da frente…”
- “A minha Companhia, que estava na frente de combate…”

Recordo-me ter já feito um comentário a um poste, dizendo que, em guerra de guerrilha, não há frente(s).
Podem ser “aquecidas” ou “arrefecidas” temporariamente certas zonas, a critério e decisão de quem faça a guerrilha, mas certo é que a guerrilha não luta pela conquista e ocupação do terreno e não organiza o mesmo para o defender, de forma a impedir o avanço e sua conquista pela(s) força(s) inimiga(s). Isso acontece em guerra clássica.

Esse equívoco existiu nos primeiros tempos de acções de contra-guerrilha em Angola, quando foi entendido, do lado Português, que, com a “conquista” de determinados espaços ou lugares, usados como bases pela guerrilha, tinha sido conseguida “a vitória contra os terroristas”. Fora “uma” vitória, mas não “a” vitória. À guerrilha não interessa conquistar terreno, como é sabido. (Só para propaganda externa foi usada a expressão “zonas libertadas”).

Assim, essas referências a “linha(s) da frente” não informam devidamente os “leigos” que leiam os postes aqui publicados.

Mas, se não havia “linhas da frente”, não quer dizer que não tenha havido muitas retaguardas…


O nosso "ex-Alfero" Jorge Cabral ladeado por actuais camaradas (versão feminina) do Exército Português
Foto de Mário Fitas, editada e legendada por Carlos Vinhal

2 – Os “homens”

Outras afirmações que, de tempo a tempo, surgem são:

- “Um dos meus homens…”
- “Dei ordem aos meus homens…”

A gente sabe que esta manifestação de comando enche a boca e satisfaz o ego.
Mas, meus senhores, o que eu gostaria (AGORA!), nos tempos que correm (e se pudesse estar na tropa), era dizer umas coisas assim:

- “Uma das minhas mulheres…”
- “Tinha eu todas as minhas mulheres à minha volta…”

E mais não digo.

Alberto Branquinho

(Negritos e itálicos da responsabilidade do editor)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8591: Contraponto (Alberto Branquinho) (37): Adivinhação... ou as guerras de Bissau (...e afins)

Guiné 63/74 - P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado)

1. Comentário do dia 8 de Agosto de 2011 de José Manuel Pechorro (ex- 1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73) ao Poste 8644:

Acabo de ler a postagem sobre a intenção do Nino desertar do PAIGC…

Na minha modesta opinião e sinceramente acredito na história descrita.

A batalha de Guidage (Estrada Binta – Guidage, os ataques e flagelações ao quartel, a acção da nossa aviação, e o nosso fortíssimo contra ataque contra a base do PAIGC em Cumbamory, que foi quase totalmente destruída, foi de facto uma pesada derrota para o movimento da guerrilha, que inseriu na zona cerca de 800 combatentes!

O PAIGC atacou e cercou uma companhia de recrutamento na Guiné, a CCaç 19, de etnia Mandinga e o Pel Art 24 com negros da tribo Balanta, sediados em Guidage. O Batalhão de Comandos Africanos, eram negros da província, que invadiram a base de Cumbamory; além de outras forças africanas da Guiné que participaram na batalha de Guidage… Esta gente teve papel preponderante na sua derrota! Deu-lhes que pensar.
Os negros africanos da Guiné faziam-lhes frente e combatiam por Portugal…

A operação Cumbamory desenrolou-se em confrontos no dia 19 de Maio de 1973, quem estava em Guidage a 5kms, ouviu todo o desenrolar dos combates. O Batalhão retirou para Guidage, onde chegou cerca das 18 horas, logo escurecendo, e foram aparecendo…

Cansados, alguns esgotados, sujos, enlameados, suados, carregando além do seu armamento pessoal, 1 ou 2 armas do PAIGC e espingardas G3 que encontraram nos armazéns do IN.

Ao chegar ao quartel deixavam-se cair no chão e adormeciam logo, em locais de risco, como perto do edifício do comando, longe das valas e até na parada os vi deitados…

No comando estiveram com o senhor TCor Cav Correia de Campos, os oficiais do Batalhão de Comandos Africanos, o Major João de Almeida Bruno (hoje General), os Cap António Ramos, Matos Gomes e Jamanca (negro) e o Alf Marcelino da Mata. O Cap Raul Folques foi para a enfermaria. A eles ouvi relatos do que acontecera durante o dia…

Escrevi que ao dormirem fora das valas estavam em alto risco! Ouvindo, um oficial branco comando disse-me: “Depois da sova que levaram, hoje não atacam Guidage. Estão a tratar dos feridos e dos mortos!”

Assim foi, o IN sabendo do mais provável ataque terrestre a Cumbamory, no dia 19 começou com uma flagelação cerca das 02h10 e outra 05h15, com morteiro 82 e canhão s/recuo, sem consequências; o dia 20 foi de descanso e só voltaram a incomodar no dia 21 cerca da 02 horas da madrugada, durante 30 minutos com morteiro 82 e canhão s/recuo, meteram as granadas quase todas na parada, numa noite de luar, fresquinha…

E será assim até desistirem, com flagelações de uma a duas por dia …

O seu esforço foi de tentar impedir a chegada de abastecimentos via estrada, que não conseguem evitar no dia 29 e onde a 38-ª Ccmds teve o principal confronto com o PAIGC no Cufeu…

O senhor Major Almeida Bruno deu-me o Relim da operação para remeter para Bissau, onde este descrevia o resultado da operação, que somado ao que ouvi na sala de operações aos oficiais comandos, desmente o que o senhor Manuel dos Santos “Manecas” (comissário político do PAIGC da zona norte) menciona no livro “A Última Missão”, do Maj (hoje Cor) Calheiros no que se refere a Cumbamory na batalha de Guidage. O senhor “Manecas” tentou limpar da história um acontecimento verídico: O PAIGC foi derrotado em GUIDAGE, e nesta batalha os soldados negros portugueses da Guiné tiveram papel de destaque no seu fracasso. É isto que eles não querem admitir... Porque tem ainda forte impacto político…

Se nós com 47 baixas mortais (brancos, e negros na sua maioria) nos angustiou; eles, com os seus cerca de 150 mortos (que já mencionei noutras intervenções) e a sua base principal na zona norte atacada e destruída, o abalo foi fortíssimo e compreende-se que o Nino procurou aproveitar o momento para dar outra solução para a Guiné Portuguesa… Os Mandingas da CCaç 19 não escondiam o seu desagrado em serem governados por Cabo Verde, se os portugueses abandonassem a Guiné…

Um abraço a todos,
José Pechorro
Ex-1.º Cabo Op Cripto –71/73
Ccaç 19 – Guidage - Guiné

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2. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1971/74), com data de 10 de Agosto de 2011:

Ao ler a excelente e muito completa discrição do camarada José Perrocho, sobre o que se passou em Guidage em 1973, assaltaram-me algumas duvidas que gostava de ver elucidadas.

O que desejo perguntar é se nesta batalha e na defesa de Guidage, esteve o capitão Salgueiro Maia? Figura que todos nós conhecemos e eu pessoalmente admirava e na verdade li um relato seu sobre penso eu, o mesmo período.

Se o Nino Vieira pessoa que sempre detestei, foi posteriormente o comandante operacional no Sul e do ataque a Guilege?

E por último volto aqui a fazer uma pergunta já noutro poste feita, se não estou em erro pelo C. Martins: - Porque não se defendeu Guilege? Porque não foram disponibilizados os meios que se utilizaram em Guidage? Porque foi pedida ajuda e ela não foi disponibilizada em tempo útil? Onde estavam os comandos africanos e brancos? Onde estavam os pára-quedistas? Os fuzileiros que raramente para aqui são chamados onde estavam? Porque só foram utilizados depois? A contra guerrilha não é atacar o inimigo quando ele se prepara para nos atacar a nós?

Já se tem falado aqui amplamente, sobre a diferença de seis combatentes portugueses para cada um do PAIGC, para além de blindados aviação, artilharia pesada e ligeira. Porque não se utilizou essa supremacia?

Por que é que um militar com o prestigio do General Spínola é substituído no comando da Guiné, quando ele foi o impulsionador da chamada dos Guinéus à sistema politico e militar do território, com a sua famosa acção psicológica?

Praticamente a nossa tropa nativa era equivalente em número de homens do PAIGC, mas eles com muito menos logística.

Por que se abandonaram zonas e nunca mais foram por nós ocupadas?

Como também já aqui foi referenciado o nosso governo levou jornalistas e observadores a alguns desses locais em visita relâmpago, mas não ficou lá ninguém a ocupar o terreno.

Já por mais de uma vez, foram apontadas como parte da revolta dos capitães, a situação militar na Guiné para além da ditadura na Metrópole. Também afirmações de que Angola era caso arrumado e Moçambique estava a caminho disso têm sido um constante. Se estávamos tão bem, por que se resolveram as coisas da forma que foram resolvidas? Acaso a Junta de Salvação Nacional não era composta por oficiais superiores com larga experiência nas questões Ultramarinas? Ou os galões que ostentavam saíram em alguma rifa?

O decréscimo da actividade das guerrilhas, que de repente reaparecerem com violência redobrada, são tácticas conhecidas em todo o lado. Não há frente nem retaguarda. É uma táctica movediça que obriga a quem ocupa, um esforço enorme de meios em equipamento e homens. São como incêndios que temam em reacender-se, depois de terem sido dados como extintos.

Quero deixar bem claro, que em nada belisco a valentia dos nossos soldados, que considero como os únicos no Ocidente, que aguentaram as condições em que vivemos na Guiné.

Desculpem mas estes casos já foram aqui aflorados por diversas vezes, mas porque num comentário, foi utilizada uma frase meio nebulosa ou fora do contexto, logo os assuntos em discussão descambam em ataques pessoais e ficam relegados para a velha «Guerra Perdida ou Ganha».

Como popularmente se diz Perguntar não Ofende, espero não ter melindrado ninguém.

Um abraço
Juvenal
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Notas de CV:

Sobre os acontecimentos de Guidaje, vd. postes de:

19 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5300: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - I Parte (José Manuel Pechorrro)

21 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5310: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - II Parte (José Manuel Pechorrro)

16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5479: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - Agradecimento e algumas informações (José Manuel Pechorro)

4 de Abril de 2010 Guiné 63/74 - P6105: (Ex)citações (63): O Ten Cor Correia de Campos foi um dos heróis de Guidaje (José Manuel Pechorro)

4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5763: Notas de leitura (62): Salgueiro Maia (1): Crónica dos Feitos por Guidage (Beja Santos)

6 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5774: Notas de leitura (63): Salgueiro Maia (2): Guidaje numa descrição digna do Apocalypse Now (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 7 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8646: (Ex)citações (145): Uma afirmação, um desabafo, uma pacificação (Joaquim Mexia Alves)

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves**
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



II - GUINÉ, 1968

Dia 1
Novo ano começa. Embora a Guiné e os seus fantasmas se continuem insurgindo à minha frente, o ano de 1968 não se apresenta sinistro. A Guiné será muito em breve para mim e para todos estes heróis que me acompanham, como que um sonho acontecido ontem, do qual raras vezes visionaremos imagens precisas. Este novo ano será para mim um ano de libertação, um ano de paz. Como alguém me escreveu, este ano poderá ser para mim um ano maravilhoso. Quando os meus olhos se deleitarem de novo a olhar o belo panorama dos montes da minha terra, cobertos do verde dos pinheiros e do cinzento das oliveiras, serei de novo feliz. E, como eu, todos estes homens da Companhia de Caçadores 1546, quando pisarem o chão de Lisboa serão homens diferentes.

Será uma nova vida que todos teremos pela frente. Será um novo futuro a sorrir às nossas vidas.
Que esse dia e essa hora não demorem a chegar!..

A convicção de que este ano não será para nós mais um ano de guerra, é já uma razão muito forte a descongestionar as nossas mentes, todo o nosso espírito, até aqui impregnado de medos e sombras.
Hoje, em rigor, não fiz nada. Foi por isso um dia de tédio... Mesmo um dia inútil...
Ao fim da tarde cacei algumas rolas... Apaga-se o tédio matando alguma coisa!.. E matar, mesmo que seja uma simples rola, causa-nos sempre um estranho prazer... Não passamos de uns reles sádicos...


Dia 2
Pelas dez horas começou a grande reza dos Mandingas. Fui assistir, a convite do régulo e dos chefes da tabanca. Realizada ao ar livre, a cerimónia, desprovida de aparato externo e de barulho, é cheio de simplicidade. Quando vejo estes homens rezar, com tanto fervor e convicção, fica-me até pena de não ser Mandinga ou Fula como eles. Na vida quotidiana destes muçulmanos a religião, com toda a sua singeleza, é fundamental.

Chegou de Farim a secção de quartéis da Companhia que nos virá render. É mais uma esperança... É o dia do regresso cada vez mais próximo...

Guidaje
Foto: Ex-1.º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (2009). Direitos reservados


 Dia 3

De tarde saí para os lados de Guidage, a queimar o capim que se estende ao lado da estrada e que já está a ficar seco. Com estas queimadas pretende-se aumentar a visibilidade ao longo da estrada, anulando assim a possibilidade de emboscadas muito perto do itinerário que temos que percorrer.
O alferes que veio com a secção de quartéis é um doente mental muito chato. Se assim continua, antes de terminar a comissão vai maluco para a metrópole.

Se os que vieram para cá normais, no gozo perfeito das suas faculdades, acabam por ficar malucos, que destino poderá estar reservado aos que chegam aqui já contaminados, e muito, com o vírus da maluquice?


Dia 4
De tarde fui a Guidage.
A Companhia está a entregar o material à tropa que nos vem substituir. É a rendição à vista. A hora do regresso a chegar...


Dia 5
O capitão anda absolutamente maluco. Já não tem remédio. Vive só para os caprichos de que se vai alimentando, e mais nada. Cada homem para ele não passa de um simples boneco, com quem ele se farta de brincar... É um louco... Agora deu-lhe para martirizar o pessoal da secretaria com trabalho nocturno. Como de costume, levanta-se perto do meio-dia. De tarde vai de jeep para a tabanca fazer ninguém sabe o quê... Ou até se sabe! À noite dá-lhe para chatear toda a gente. Passa o tempo a berrar e a gritar. As pessoas convenceram-se de que ele é doido e, talvez por isso, vão tendo paciência para o aturar... É um homem desorganizado e sem regras...
Mas não é tarefa simples aturar um doido desta natureza, principalmente quando esse doido é chefe...
Durante quanto tempo teremos ainda que o aturar!

Binta
Foto: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.

Dia 6

Chegaram as barcaças com o abastecimento. O 2.º Tenente que comanda a escolta ficou connosco todo o dia.
O inimigo terá sofrido 3 mortos e alguns feridos no rebentamento de uma armadilha que montei em Tenanto.


Dia 7
Ao alvorecer parti para Farim ao encontro do pelotão que ficará em Guidage no interregno da rendição. Ainda antes do almoço parti com a coluna de viaturas para o referido destacamento. Só piquei a estrada a partir de Genicó. Regressei a Binta ao entardecer. Deixei em Guidage a secção de quartéis e um alferes do Batalhão de Engenharia.

A nossa guarnição que estava em Guidage, o 4.º pelotão, também veio comigo para Binta. Aquilo já não é um pelotão de tropa, mas um grupo de homens esfarrapados. A miséria desta tropa chegou a tal ponto que já nem dão aos soldados uma farda em condições. Aparentemente somos uma tropa esfarrapada. De facto, somos todos um grupo de heróis mal vestidos e mal tratados... Dificilmente haverá no mundo um exército que trate desta maneira os seus heróis!

Agora por aqui anda tudo louco...

Estou com medo de um ataque dos turras... O grau de abandalhamento e de desmotivação é tal que, se os gajos se dignam atacar isto a sério, pode acontecer um grande desastre. Todos se comportam como se a guerra já tivesse terminado ou fosse qualquer coisa que acontece noutro mundo, muito longe de todos nós. Mas não é assim... Ainda estamos na guerra... À nossa volta, e talvez a poucas centenas de metros, para além do rio, o inimigo existe. Às vezes até me espanta o facto de ele não nos atacar com mais frequência.


Dia 8
O ambiente geral é de que iremos embora dentro de pouco tempo... Por isso, agora os dias parecem mais longos e são mais difíceis de passar... Mas lá se vão passando. O que interessa é sair o mais depressa possível deste Vietname em miniatura, fugir a esta guerra que parece não ter fim, desta guerra que apenas serve para destruir vidas, muitas vidas, mutilar pessoas, criar ódios... E enriquecer, por certo, alguns homens, que nem serão muitos.

Há na companhia, ao que parece, propostas para algumas condecorações e louvores. Se os boatos se confirmarem, e se tiverem lugar os louvores ou as condecorações de que se fala, tudo não passará de uma farsa, e de um verdadeiro ultraje à dignidade de todos estes homens. Nestas condições, para mim, pessoalmente, um louvor, ou uma condecoração, seria algo que me negaria a aceitar... Vindo da pessoa que poderia vir, isso constituiria para mim uma vergonha, ou um ultraje, e não algo de que me pudesse orgulhar...

Comenta-se por aí, e com razão, que a tribuna dos heróis está a ser ocupada por fantoches, que o sacrifício foi suplantado pela fanfarronice, que a justiça deu lugar à desvergonha, à ingratidão, às cenas de pancadaria e a um novo tipo de escravatura.
E as virtudes militares deram lugar aos relatórios majestosos, repassados de cinismo e de mentiras, onde a guerra se apresenta como vencida e o inimigo como inexistente, ou esmagado. E é este o mundo dos nossos heróis. Os que de facto o são, se é que alguns há por aí, são heróis desconhecidos... Mas, para além do mais, o que estes homens precisam, e todos nós precisamos, é, quando formos desmobilizados, de condições de emprego, de trabalho e de integração social. Com as condecorações e com os louvores de que se fala, ninguém irá resolver problema nenhum.
 A concretizarem-se os boatos que se ouvem por aí, o mundo dos nossos heróis fica muito de rastos... Será que a cobardia algum dia poderá vir a ser condecorada?


Dia 9
Acredito que a política nem sempre segue o rumo que os seus criadores desejam incutir-lhe. As ordens e as ideias que partem dos que governam chegam aos seus destinatários sempre muito deturpadas. É, talvez, o problema dos intermediários... Dos realizadores...

Hoje eu pergunto-me:
- Será que o governo, em Lisboa, está devidamente informado sobre o evoluir dos acontecimentos, de tudo o que se passa com esta guerra? Tenho muitas dúvidas. Como o que está em causa é o prestígio do exército, e o dos seus chefes, pressagiar o abandono desta guerra e o arrumar das malas, seria um golpe demasiado duro para essa gente que apenas se deleita a olhar para o ouro dos galões que traz sobre os ombros... Para muita gente não convém que a guerra termine... É talvez por isso que ela ainda irá continuar por muito mais tempo. Os generais não têm interesse em que isto termine. Com o fim da guerra eles iriam perder importância e influência, o que não lhes interessa nada. E perderiam também muito dinheiro! E todos nós sabemos que é o dinheiro, e tudo quanto com ele se consegue, quem alimenta todos estes conflitos.

Invoca-se o interesse da população... Do povo... Mas é só para atirar areia aos olhos da sociedade que se deixa cegar com muita facilidade.

O destino tem destas ironias:
- Faz-se tudo em nome do povo... Justifica-se tudo com o interesse do povo... E ele, em nome de quem tudo é feito, não beneficia, em rigor, mesmo de nada. Ele é mesmo sacrificado dia a dia, hora a hora, nesse altar iníquo que é, no nosso caso, uma torpe ideia de Império, com algum sentido em séculos passados, ou até nas primeiras décadas deste século vinte, mas que hoje, face à evolução cultural e política que pelo mundo todo vemos, não faz mais sentido. Mas, infelizmente, é em nome dessa ideia ultrapassada e torpe, que por aqui se combate, se sofre, se definha e se morre! Só não se adivinha até quando tudo continuará assim.


Dia 10
Coluna a Guidage. Foram os rebeldes. No regresso trouxeram a secção de quartéis. O alferes de Engenharia ficou em Binta por falta de transporte.


Dia 11
Antes de partirmos para a Metrópole o capitão já começou a sementeira do joio. Quer deixar aqui a erva daninha da intriga e da discórdia. Em conversa com o novo Comandante das tropas de Binta, e referindo-se ao Brayma Sonco, que o ano passado fugiu de Guidage para o Senegal, disse-lhe que o homem regressará, embora seja contribuinte do PAIGC. Estará apenas a aguardar que a nossa Companhia se vá embora. Entende que, se regressar, deve ser preso.
Nunca quis admitir que, se o homem fugiu, foi apenas por medo do que lhe poderia fazer, ou mandar fazer... Ele, capitão, foi o único causador dessa fuga.

O Brayma Sonco, até no momento em que desertou foi um homem leal... Se, como se quis insinuar, ele fosse efectivamente simpatizante do PAIGC, na altura em que desertou teria tomado outra atitude bem mais prejudicial para as nossas tropas. O homem fugiu para o Senegal, mas ocupou o seu lugar até ao último minuto... Foi-se embora mas não levou a arma nem a farda... Levou com ele apenas o seu orgulho e a sua dignidade. Roubaram-lhe a oportunidade de ser herói! Roubaram-lhe aquele momento grande em que poderia “fazer ronco,” ser espectacular! E ele não aguentou a frustração e foi-se embora...


Dia 12
O Alfange, a barcaça da Marinha de Guerra que nos levará para Bissau, é esperado com ansiedade geral. Os preparativos da partida estão concluídos. Agora é mesmo só esperar a hora do embarque... Embarcar e… partir...
Agora já ninguém pensa em mais nada. Já ninguém apaga a esperança...
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

(**)Vd. primeiro poste da série de 8 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois

Guiné 63/74 - P8656: Álbum das Glórias (52): Ordem de Serviço N.º 43 do BCaç 2892, de 18 Fevereiro 1970 (Arménio Estorninho)

1. Mensagem de Arménio Estorninho (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2011:

Camarigo Carlos Vinhal, Saudações.
Habitualmente guardo o que acho por conveniente, quando apropriado apresento como troféu e tal como o que se segue:

- Pele de uma jibóia que media cinco metros de comprimento, que fora curtida de modo tradicional;
De Aldeia Formosa (Quebo) – Região de Tombali – 1968.

– Peça em madeira do artesanato guineense, trata-se de uma gazela mãe a acariciar uma cria;
De Bissau Região de -1970.

Sendo possuidor de um amuleto de recordação na circunstância a Ordem de Serviço (O.S.) Nº 43, de 18/Fev/70, do Batalhão de Caçadores 2892, instalado em Quartel de Aldeia Formosa (Quebo) - Guiné.

A seguir, em 24 de Fevereiro de 1970, a CCaç 2381, deslocou-se de Empada para Bissau e ficou a aguardar embarque para a Metrópole.

Esta relíquia de O.S. é a própria que já em Bissau, foi lida perante a CCaç 2381, a qual depois me foi oferecida pelo meu amigo e Irmão Maioral, o ex-1.º Cabo “Escritas” António Soares C. Gonçalves, natural e residente em Vinha da Rainha – Soure.

Neste documento, devidamente assinado pelo Comandante do Batalhão de Caçadores Nº 2892, o então Tenente-coronel de Infª. Carlos Frederico Lopes da Rocha Peixoto, foram concedidos os últimos Louvores a Militares da CCaç 2381, “Os Maiorais” de Empada, Guiné 1968/70.

Prezo em apresentá-la, onde também são mencionados outros camaradas, Pelotões e Companhias, que à data se encontravam sob o Comando do citado Batalhão de Caçadores e servirá também para memória futura.

Com um Abraço
Arménio Estorninho








(Clicar nas imagens para ampliar)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8441: Efemérides (51): A nossa malta no 10 de Junho, em Belém (2) (Arménio Estorninho)

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3836: Álbum das Glórias (51): Santo Tirso, 1963, o almirante (Teixeira da Mota) e o poeta (Ruy Cinatti) (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8655: História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74): Ilustrações (Parte II) (Jorge Canhão)




Mais três Ilustrações retiradas da História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74), unidade que foi rendida pelo BCAÇ 4612/74 (Mansoa, 1974)... (Sobre esta aparente confusão de dois batalhões com o mesmo número, ler o poste do nosso camarada Agostinho Gaspar, P7414, de 10 de Dezembro de 2010).

Um exemplar da história desta unidade, o BCAÇ 4612/72,  foi-nos oferecido em tempos  pelo nosso camarigo Jorge Canhão (ex-Fur Mil 3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74).  O Jorge há havia aqui publicado uma série de postes com a história do batalhão... (se bem que incompleta, segundo julgo crer). 

Como já foi referido em poste anterior (*), este documento tem cerca de uma dúzia de interessantes (e raras) ilustrações, feitas por um ilustre desconhecido (toca a descobrir o autor, nminha genete!), a estilete sobre "stencil"... 
 
Na minha opinião,  têm qualidade suficiente para merecerem também vir à luz do dia, pelo menos algumas que, na fotocópia, apresentação melhor resolução. 

Possivelmente depois das férias, retomaremos alguns aspectos da actividade operacional deste batalhão que foi rendido já depois do 25 de Abril de 1974 pelo BCAÇ 4612/74 (unidade a que pertenceu o nosso co-editor Eduardo Magalhães Ribero).

Imagens: Cortesia de  Jorge Canhão (2011).
 
[ Selecção / edição / legendadem: L.G.]

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Nota do editor:

(*) Vd., poste anterior da série > 5 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8640: História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74): Ilustrações (Parte I) (Jorge Canhão)



Guiné 63/74 - P8654: Parabéns a você (299): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745


Com um abraço do camarada Miguel Pessoa, Tertúlia e Editores
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Notas de CV:

- Alberto Nascimento foi Soldado Condutor Auto na CCAÇ 84 que esteve em Bambadinca nos anos de 1961 a 1963

- Tomás Carneiro foi 1.º Cabo Condutor Auto na CCAÇ 4745 - "Águias de Binta" que esteve em Binta, Cumeré e Farim nos anos de 1973 a 1974

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8649: Parabéns a você (298): Anselmo Garvoa, ex-Fur Mil da CCAÇ 2315/BCAÇ 2835

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8653: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (38): O Sétima Dia


1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem:

O SÉTIMO DIA

A vida militar cria laços difíceis de explicar para quem “não andou por lá…”
Depois, já na vida civil, com o correr dos anos esses “laços” estreitam-se $em relação a alguns camaradas. O contrário também por vezes acontece quando, com o decorrer do tempo, conhecemos um pouco melhor com quem lidámos quando éramos jovens de vinte e poucos anos.
Os encontros anuais dos ex-militares aumentavam ou diminuíam o "valor acrescentado” do que conhecíamos ou julgávamos conhecer em relação aos nossos antigos camaradas de armas. Nalguns casos foram precisos anos para perceber melhor com quem tínhamos lidado durante esses anos da guerra do Ultramar.
Apesar de tudo não tivemos muitas surpresas porque os maus bocados de uma comissão de dois anos definem o carácter e a maneira de ser de cada um… sem grandes margens de erro.

O mais irreverente dos Alferes da C.Caç. 675, que serviu na Guiné dos idos de 1964-66, Artur Mendonça de seu nome, nado e criado em Felgueiras, só voltou a aparecer anos depois dos primeiros encontros anuais da Companhia.
Na foto o Capitão Tomé Pinto e o Alferes Mendonça em Binta-Guiné (1965).
Era então já engenheiro têxtil, com sinais evidentes de estar bem na vida. Era um homem de sucesso que já tinha trabalhado mundo fora e que continuava brincalhão .Era um “gozão” nato.
Ao longo dos anos sempre que nos encontrávamos contemplava-me de imediato com a recitação de uns versos ingénuos que tinha escrito e publicado num “jornal de parede” da Companhia, no Natal de 1964.
«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma nova.»
O Mendonça tinha uma memória prodigiosa…
Tivemos que aguentar esta piada ao longo dos anos, embora por vezes não nos faltasse vontade de mandar o nosso Alferes “abaixo de Braga”. Mas como o Mendonça já vivia em Felgueiras…
Há uns dois ou três anos soube pelo Belmiro Tavares - outro Alferes da C.Caç. 675 – que o Mendonça estava bastante doente . Tinha feito quimioterapia e já sabe que a partir daí a vida sofre grandes mudanças.
O Tavares, que tem as suas raízes familiares em Sever do Vouga, visitava-o de vez em quando.
Uma semana atrás o telemóvel tocou e vimos que do outro lado estava o Tavares: - Então Kamarada tudo bem?
Nem acabámos a brincadeira habitual entre nós – Kamarada mas com “K” – porque pelo tom de voz do Tavares percebemos que ele não estava bem.
Entre soluços e poucas palavras disse-nos que estava em Felgueiras e que o Mendonça tinha morrido. O seu corpo já estava na Igreja e o funeral ia ser dentro de meia hora. Desligou de seguida sem nos dar tempo de dizer nada.
Havia que deixar passar algum tempo e foi o que fizemos.
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No passado dia 4 de Agosto viajámos para Felgueiras. O Tavares veio de Lisboa e nós apanhamos a sua boleia na estação de serviço da Nazaré, na A-8.
Tínhamos entretanto combinado telefonicamente que uma representação da “675” deveria estar presente na Missa de 7º.Dia.
Connosco viajou também o Moreira, ex-Furriel Atirador da nossa Companhia.
Durante o tempo de viagem – mais de duas horas – recordámos entre risos inúmeras “estórias” do menino “Arturinho”, como mais tarde viemos a saber que era conhecido na sua terra natal . Rimos com gosto convencidos de que seria daquela maneira que o nosso Alferes gostaria de ser recordado pelos seus pares.
Viveu a vida militar sempre a “gozar com a tropa”no limite do admissível para não ser punido. Assumia que não seria voluntário para nada mas que cumpriria os “mínimos”, pois também não lhe interessava levar uma “porrada”.
No final da comissão ,na ausência do Capitão, desempenhou por alguns dias as funções de Comandante de Companhia Interino. Aproveitou o tempo para louvar os maiores “cromos” da Companhia. Quando dizemos “cromos” queremos dizer os militares que só teriam sido exemplo em “nabices”…
Por volta das 19H00 estávamos junto da mansão do menino “Arturinho” onde viemos a conhecer a sua viúva, dois filhos e um dos seus netos.
A família estava conformada com a partida do seu ente querido. Tinham durante cerca de três anos feito tudo o que era possível para o ajudar na sua luta contra a doença e estavam convencidos que o seu familiar tinha partido sem sofrimento.
A Igreja e o Cemitério eram a poucas dezenas de metros da casa do Artur Mendonça.

Um seu neto de 7 anos, com ar de esperto que nem um rato, andava de bicicleta à nossa volta com à vontade e destreza.
Tinha sido um dos grandes amigos dos últimos tempos de vida do seu Avô, a quem ensinava com paciência como gravar programas da televisão e outras habilidades informáticas.
Seguiu-se a missa do 7º. Dia, celebrada por um sacerdote despachado.
Vinte sete minutos mais tarde estávamos fora da Capela da Pedreira.
Visitámos o cemitério, com a surpresa de ver o nosso amigo sepultado num jazigo pouco vulgar.

«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma nova.»
Depois foi o tempo do regresso.
Viajámos até Sever do Vouga onde pernoitámos numa das casas do Belmiro Tavares.
Na noite longa que se seguiu dormi mal, muito mal e pensei longamente no menino “Arturinho”.
Julguei perceber finalmente a sua maneira de ser e a irreverência congénita de que fazia alarde.
Tinha sido criado em berço de ouro -o seu Pai tinha sido um respeitado médico da região de Felgueiras - e atingiu os diversos patamares da vida sem grandes dificuldades porque alem de ser esperto era “filho de família”…
O que, quer se queira quer não, dá sempre jeito.
Quando chegou à vida militar percebeu rapidamente os pontos fortes e fracos da vida castrense.
E gozou sempre que pôde com a tropa. Na boa…
«…Lá fora não se ouvem os sinos/repicando numa harmonia jubilosa…/mas debaixo de cada “camuflado/no coração de cada soldado/ rejubila uma alma
nova.»
Até sempre, menino Arturinho.
Até sempre, meu Alferes Mendonça.
JERO
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:

3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8208: Histórias do Jero (37): 3 de Maio de 1966, o dia D de desembarque em Lisboa (José Eduardo Oliveira)

Guiné 63/74 - P8652: Notas de leitura (263): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
É só para recordar que este livro se vendia nas tabacarias da Guiné, ouvi mesmo comentários mordazes acerca de relatos que pareciam ficcionados, Alexandre Barbosa descreve incursões em áreas que a guerra tornou improváveis. Só que tudo quanto ele descreveu foi anterior à guerra. Impressiona, mais do que a qualidade da prosa, a autenticidade da sua devoção pelas pessoas e a natureza, a exaltação da caça com as suas preliminares e por vezes o seu trágico desfecho com a morte do caçador.
Uma Guiné de nostalgia que apetece reler, pois pesa a estima e a devoção por aquele cantinho africano que guardamos no coração.

Um abraço do
Mário


Guinéus: contos, narrativas, crónicas

Beja Santos

“Guinéus”, de Alexandre Barbosa, foi publicado pela Agência-Geral do Ultramar em 1967. O livro tinha sido distinguido com o Prémio Literário Fernão Mendes Pinto, modalidade de novelística, em 1963. A crítica aplaudiu, considerando que versava belos testemunhos de humanidade, com um poderoso recorte de personagens guineenses, uma mistura equilibrada entre o etnográfico. O autor viveu na Guiné durante 18 anos, provavelmente antes da eclosão da guerra, uma boa parte das suas narrativas venatórias passa-se na região Sul, em localidades profundamente afectadas após 1963. Alexandre Barbosa faz parte daquele leque de autores ainda da literatura colonial cujo discurso narrativo mistura uma atitude cosmopolita com o fascínio africano.

Falando dos bijagós, exalta o carácter identitário do povo, a criatividade da sua escultura e os aspectos por vezes desconcertantes das suas práticas animistas; um povo em que a mulher decide abertamente com quem casa, dá sinais da sua opção afectiva. Apaixonado pelos segredos das matas, Barbosa deixou-nos textos eloquentes de quem captou pacientemente, apaixonadamente, sons, cores, cheiros, basta este exemplo: “Do seu esconderijo escuta enlevado os ruídos estranhos do mato e o fascínio do canto dos pássaros de plumagem policroma. Segue com enternecimento as exuberantes correrias dos pequenos antílopes; o ar embevecido de uma gazela pintada que vigia as primeiras traquinices do filhote; labor admirável de uma colónia de abelhas silvestres; o vaivém dos pássaros tecelões levando nos bicos filamentos de capim para entretecerem os ninhos baloiçantes nos pilões, ou o galanteio quixotesco dum fritambá em redor da fêmea confundida e hesitante. Continua vigilante para ver a astúcia de um civete que espreita uma ave desprevenida, a jibóia que avança subtilmente para o roedor hirto de espanto, petrificado; o grupo de urubus, atraídos pelo odor da morte, a banquetearem-se com os restos de animal abatido, ou o curioso trabalho de equipa de uma legião de formigas pretas a transportar insectos mortos ou restos de carne das vítimas dos felinos. Uma vez por outra cai um tronco, com fragor, corroído pela baga baga; drapeja um ramo por golpes de brisa ou brincadeira de macacos ou desprendem-se mais folhas secas e encarquilhadas para se apodrecerem no solo húmido e ubérrimo”. Exemplo que vale por si: um domínio perfeito do que é possível ver, ouvir e cheirar, dito em língua portuguesa, alguém que se rende à exuberância de uma floresta tropical.

São histórias de dor, há mesmo crítica velada, ao trato colonial dominador, relatos de admiração do labor mandinga quando faz os seus diques para aproveitamento dos recursos do solo. Também admiração pelas artes cénicas dos lutadores felupes, combatendo agilmente ao som do bombolom, agradecendo sempre o talento dos caçadores nativos, não terá sido por acaso que ele lançou a seguinte dedicatória, no arranque da obra: “Aos nativos mancanhas Nicolau e Armando e ao fula Mamadú Djaló, meus fiéis pisteiros e ideais companheiros durante centenas de digressões venatórias através do mato guineense sob o sol acutilante, o cacimbo envolvente, a rija chuva e a fúria dos tornados, cenário de tantos momentos de satisfação, de desalento e, por vezes, de perigo, que sucederam para marcar os motivos mais saudosos que vivi em terras guineenses”. Alexandre Barbosa descreve como os caçadores untam o corpo com sucos vegetais para ludibriar o olfacto dos animais, munem-se de mezinhas e amuletos, guardas-do-corpo, tudo tem a sua função miraculosa: para que não suceda qualquer desastre de caça, para que haja poder de concentração no instante em que se procura abater o hipopótamo ou a onça.

Por vezes o autor deixa-se embalar pela toada a que a cultura o vincula, vai desinsofrido na encenação da escrita, o pretexto é um cenário africano, naturalista, como se exemplifica: “No penhasco onde assenta o farol não há rebentação de mar e neste lado, na ilha irmã, o quase imperceptível ondulado das águas estira-se preguiçosamente sobre o lodo reconquistado com pezinhos de lã, o terreno deixado antes no fadário rotativista das marés (…) O ambiente de quietude claustral cede vez a outro, este aspecto de chocalhante debate em hospício de alienados (…) Uma canoa gentílica demanda bolama. Ex-tronco que caiu ante a violência dos golpes de terçado e que milhentas de tasquinhadelas de machete tornou concavo e navegável.”

É uma prosa naturalista, épica, de comunhão lírica, de glorificação pelo korá, tambor, dança frenética, de sentido respeito pelo trabalhador africano que desbravou e dominou a terra. O seu empolgamento precede tudo quanto a guerra veio deixar para trás, só assim se explica como proponha entusiasmado o turismo nas regiões do Corubal, as visitas à lagoa de Cufada ou à mata de Cantanhez.

“Guinéus” foi dado à estampa profusamente ilustrado, tem fotografias do maior interesse: dançarino bijagó antes de iniciar a dança do “peixe-verga”, vemos ninhos de pássaro-tecelão, exóticos penteados balantas, cerimónias islâmicas, pescadores mandingas da ilha de Bolama, cenas de alpendre, entre outras. Para ler, recordar e até comparar com tudo aquilo que nós vivemos, naquele nosso tempo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8642: Notas de leitura (262): Marcello e Spínola: A Missão do Fim (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8651: Blogpoesia (157): Não sei qual é mais feio: / se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo... (Luís Graça)


Lourinhã, entre a Praia da Areia Branca e a Praia de Vale de Frades > Agosto de 2011 > Pedras do meu caminho...

Foto (e texto): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados


Dedicatória:

Em homenagem aos nossos médicos, que passaram pelo TO da Guiné (1961/74), em geral; e ao meu ortopedista, o Dr. Francisco Silva, em particular...  E a cima de tudo, a todos os caminhantes que, como eu, precisam das patas, das duas patas,  a da esquerda e ada direita, para caminhar... e aprender que o caminho se faz... caminhando, como dizia o poeta. (LG)

Não sei qual é mais feio:
se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo…


Fui fazer um raio X
à pata, esquerda.
É tão feio o esqueleto, assim descarnado.
Uma merda, dirá o poeta, desbocado,
pondo os pontos nos ii.
Mesmo que não seja o esqueleto, inteiriço,
que seja apenas uma pata,
até mesmo só a pata esquerda,
la gamba sinistra,
como dizem os italianos,
a pata que em todo o caso
já calçou muita bota
cambada, cardada,
civil e militar.
Tanto a esquerda como a direita, pois claro,
que ambas aprenderam
a andar a toque de caixa...
- Esquerda, direita, esquerda! -
e já levaram muita pisadela nos calos.

- É uma merda, doutor, o esqueleto
visto  ao negatoscópio.
Nem sequer no livro de anatomia,
eu gosto de te ver, ó esqueleto meu!
 O ortopedista não concorda:
Afinal, é onde ele põe a mão
e ganha o pão nosso de cada dia.
P'ra mim, desculpem-me a franqueza,
todos os meus amigos hipocráticos,
e todos os meus camaradas, medalhados ou não,
é feio o esqueleto, assim radiografado.
Nu.
Sem pêlo.
Sem chicha.
Sem embrulho.
Sem a farda.
Sem os galões.
Sem as medalhas.
Sem os tendões.
Sem os ligamentos.
Sem o papel celofane.
Sem a epiderme.
Sem o nervo à flor da pele.

É peremptório o relatório, médico:
Tenho o dedo grande do pé todo torto.
Dois dedos encavalitados.
Um joanete.
Um trambolho.
Sequelas, quiçá, da vida,
das tropelias da vida,
das pedras das vielas e calçadas,
dos trambolhões da tropa, da Guiné, eu sei lá!,
das marchas a mata-cavalos.
das cambanças
por lalas e bolanhas,
por rios e tarrafos.
- Faca com ele, o joanete!-,
diz o ortopedista,
franzindo o sobrolho.

Fui fazer um ressonância magnética.
À alma.
Translúcida como uma alforreca,
espalmada como um linguado do estuário do Tejo.
- É feia a alma -,
diz-me o imagiologista,
quebrando o dever de reserva da intimidade
e de sigilo profissional.
Mas eu não posso deixar de concordar:
É feia, a alma, sem carne nem osso.
- Tens um diabrete a atormentá-la,
um irã mau -,
diz-me o Doc, curandeiro, balanta,
do Largo de São Domingos,
na baixa lisboeta,
cais de náufragos do império.
Sequelas porventura do tempo, diz ele,
em que fui o guardião de Nhabijões
onde o bulldozer deitou abaixo todos os sagrados poilões,
porque reordenar era preciso…

- Opero ou não opero,
eis a minha questão existencial -,
segrega-me ao ouvido
o meu cirurgião da alma,
com a maior calma,
diga-se, deste mundo.

Faço uma tomografia axial computorizada
ao mundo.
Ao meu planeta outrora azul.
Entre o tá-tá-tá e o pum-pum-pum do aparelho,
passo em revista o meu mundo,
descubro-o medonho, pavoroso, cavernoso.
Mais feio que o meu joanete,
Mais lúgubre que a minha alma.
Tem um cancro, generalizado,
local, regional, global.
Com metástases por todo o corpo,
da crosta ao coração,
ao mais fundo do fundo,
do osso até ao tutano.

Fui, com o meu planeta outrora azul,
à Oncologia,
baixaram a cabeça,
em sinal de impotência e negação:
- Em boa verdade,
não sei como extirpá-lo,
não há ciência e tecnologia médicas
para tamanha patologia,
diz-me o cirurgião do mundo…

Explicou-me,
em traços largos,
com um desenho
na irrisória capa de uma revista cor de rosa,
o prognóstico, reservado:
- Não há mais mundo, meu caro…
Muito menos azul ou rosa, verde ou vermelho.
Não há mais mundo à volta da carne,
do osso, da pata, do joanete, da alma…

Resta-me,
impávido e sereno,
o verídico do Dr. Francisco Silva,
meu amigo e camarada da Guiné,
irã bom do poilão da minha tabanca,
que tem encontro marcado com o meu pé, esquerdo.
A partir do dia 1 de Setembro.
- Depois das férias,
vamos começar por tratar desse joanete…

(E eu tenho a secreta esperança,
confesso,
de que,  se a minha pata ficar mais bonita,
a minha alma também fica mais jeitosa…
e quiçá o mundo melhore um bocadinho!)

Luis Graça
Caminhante, entre o Vale de Frades e o Paimogo,
muitas vezes sem rede...

Lourinhã, Agosto de 2011


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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8641: Blogpoesia (156): O Sonho e a Realidade ou a angústia de uma sentinela (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P8650: Recortes de imprensa (45): Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê? Da autoria de António Vaz Antunes (Coronel de Infantaria)


1. Publica-se hoje, para quem ainda não conhece, mais um documento que faz parte da história da guerra na Guiné (mencionado no poste P8644 e matéria com o mesmo relacionada). É um reprodução integral da narrativa original que a direcção da revista “Combatente” entendeu resumir, nas páginas 47-49 da s/edição Nº 346, publicada em 12Dez2008 – já o autor - Sr. Cor. António Vaz Antunes (21JUN1921 a 14OUT1998) havia falecido, com a simples indicação «síntese de documento enviado à LC». Na dita revista foram omissos o título original do documento bem como a data em que o mesmo foi enviado à direcção-central da Liga dos Combatentes. Também por omissas foram dadas as funções militares que o autor então desempenhava na Guiné [comandante do BCAÇ 4512/72 - RI15, Farim 13Jan73-29Ago74], e a data do seu falecimento.




Guiné: uma diligência interrompida. Porquê?
António Vaz Antunes
(Coronel de Infantaria)
Mafra, Abril de 1987



Depois da Operação Guidaje, em Maio de 1973, para apoio e reabastecimento àquela guarnição, sucederam-se vários movimentos de colunas, de ida e volta, todas com ponto de passagem em Farim, cujo sector era, por isso, muito empenhado em picar itinerários, montar seguranças, alimentar e prestar toda a ordem de apoios ao pessoal de passagem. Isto provocava um enorme desgaste nos elementos dos órgãos de comando do sector que, durante vários dias, não puderam contar com um horário normal de actividade. Dormir o indispensável era nas horas mais variadas, de dia ou de noite, nos curtos intervalos de acalmia.

Foi assim que recebi com alguma satisfação a ordem do Comando-Chefe para montar um comando avançado do sector em Cuntima. A mensagem rádio acrescentava laconicamente, como justificativo, que as informações do Quartel General davam como muito provável uma acção inimiga sobre aquela guarnição que ficava a escassas centenas de metros da fronteira com o Senegal.Relacionei esta ordem com as notícias que referiam a presença de carros de combate na Guiné-Conackry perto da fronteira entre o Senegal e a Guiné Portuguesa, ao que constava destinados a um ataque a Cuntima. Porém as informações recolhidas nesta guarnição continuavam a confirmar que o Senegal não autorizava a passagem pelo seu território.


O comandante da companhia Capitão Miliciano Vasco Vale, ao ver-me chegar imprevistamente, não escondeu a sua surpresa nem tão pouco a sua preocupação por deduzir, após a explicação da minha presença, que se punha em dúvida a sua capacidade para enfrentar a situação.

Tranquilizei-o, afirmando-lhe que não ia interferir no seu comando, confiava no seu serviço de informações (que não previa nenhum agravamento da situação a curto prazo) e que ia aproveitar para descansar. Aliás, com o mesmo intuito, levava comigo o oficial de operações (1) e o oficial de transmissões (2) que eram os mais desgastados com a Operação Guidaje e os problemas de coordenação que se seguiram com as já referidas colunas.

Distribuídos os alojamentos, depois da troca de impressões sobre a situação no subsector, os três demos de imediato cumprimento ao nosso programa: pôr o sono em dia.

A descontracção que propositadamente vivia apenas era importunada pelo clima que, em Junho, a preceder o período das chuvas, era ainda mais incómodo.

As manhãs eram agradáveis, pelo bulício resultante da chegada de senegaleses que, a partir das nove horas, acorriam ao nosso Posto Médico.

Os homens da Companhia Eventual também ali sediada, constituída por Fulas, todos voluntários, e sem quadros (3), quando estavam presentes aproveitavam para se abeirar das vistosas senegalesas todas enfeitadas, e faziam-lhes a corte à sua maneira: era a hora do ronco dos namorados.

O Capitão Vale entretanto colhia habilmente as notícias que lhe interessavam. Nada de novo.

No dia 29 de Junho, sábado, surgiu o inesperado: três helicópteros são detectados em aproximação à pista (4) e simultaneamente uma mensagem faz saber que está a chegar [era] o General Spínola [a chegar].

Havia já vários meses que nenhum meio aéreo tinha sido visto em Cuntima, excepto para raras acções de evacuação consequência das medidas preventivas contra a utilização do míssil terra-ar pelo PAIGC. Com efeito junto à fronteira não podia arriscar-se sem as adequadas medidas de segurança por ser sempre possível um lançamento partindo do Senegal.

A aterragem dos helicópteros foi festa.

Por mim encarei com certa apreensão a visita do Comandante-Chefe. A Operação Guidaje, embora tivesse dado já origem a referências especiais e muito elogiosas, não estava para mim terminada. Aguardava a oportunidade para explicações e não me tinha preparado para a discussão que previa fosse muito dura.

Eis senão quando o Comandante-Chefe desembarca sorridente, não quis fazer o questionário que lhe era habitual nas visitas aos comandos operacionais, adiantou que confiava nas medidas tornadas pelo sector e, depois de uma breve exposição do Capitão Vale sobre a situação na sua área, pediu apenas para ficarmos a sós no Gabinete do Comandante da Companhia.

Quando supunha que iríamos entrar no caso Guidaje o General nem se lhe referiu. No tom mais cordial que imaginar se possa contou-me o que tinha sido a sua acção desde que chegara à Guiné, nos contactos com o Presidente Senghor, os contactos com os comandos do PAIGC nos tempos de Amílcar Cabral e as suas diligências na interferência da escolha do próximo Secretário Geral do PAIGC cuja eleição ia ocorrer dentro de dias.

Tudo eu ouvi com um misto de surpresa e curiosidade. Muita novidade para mim e ao mesmo tempo muitas interrogações íntimas, permanentes, mas contidas: porquê esta abertura? Porquê esta abordagem de temas tão secretos, comigo que não pertenço a tal círculo? Será só para desvanecer a minha animosidade por causa dos precedentes da Operação Guidaje? Virá aí alguma missão especial? Porquê esta conversa longa, pormenorizada, esta exposição da situação de áreas tão confidenciais?

Fiquei meio atónito quando o General, que continuava [sempre] bem-humorado, se despediu de todos e regressou a Bissau.

Sempre tive a preocupação de respeitar o segredo e habituara-me a controlar a curiosidade. Sempre considerei que, em matérias classificadas, não se deve fazer pressões nem usar habilidades para conhecer mais que aquilo que o superior entenda poder e dever dizer. Por isso não fiz perguntas, limitei-me a ouvir e apenas pretendi deduzir, mas não encontrava fácil explicação para esta visita nem resposta para as perguntas que a mim próprio punha. A dúvida mantinha-se no meu espírito.

Também os meus subordinados estranhavam o modo como tudo decorreu, tão fora do que era hábito em visitas do Comando-Chefe às unidades operacionais.

Mas eis que no dia seguinte, 30 de Junho de 1973, domingo, cerca do meio-dia, me procura um indivíduo fula, não guinéu, que eu conhecia desde que assumira o comando do sector por contactos estabelecidos em Farim. Era um agente de informações com o nome de código “Padre”, ao que se sabia pertencente ao “Front” da Guiné-Conackry e com especial aceitação no Comando-Chefe.

Nunca lhe perguntei o que fazia, mas facilmente se deduzia pelos apoios que lhe eram concedidos: era obsequiado em Farim pelo agente da DGS, vinha de Bissau, em regra, em avião militar e no sector havia instruções para lhe ser facultado transporte sempre que o pedisse. Dirigia-se a Cuntima e, dali, em regra ao Senegal.

Havíamos passado alguns serões em Farim falando em generalidades e, quando ele entendia, em problemas da guerra. Tinha formação de curso superior e falava apenas em francês e fula. Era bastante culto e muito correcto no trato. Talvez por nunca o ter importunado com perguntas incómodas, em obediência ao meu princípio de respeito pelo serviço de informações, fui, a pouco e pouco, ganhando a sua confiança e até a sua amizade.

Foi por força desta mútua confiança que ele agora me procurou e pediu que fizesse uma mensagem relâmpago para Bissau solicitando a presença do General Spínola nesse dia, ali em Cuntima, para um contacto com alguns [altos] dirigentes do PAIGC (5).

Pareceu-me, agora, perceber o que se passara na véspera.

Acedi ao pedido, redigi a mensagem, retroverti-lha [traduzi-a] para francês para verificação e fi-la seguir. Por volta das 14:00 horas é recebida a resposta de Bissau. Pretendia o Comandante-Chefe explicações de pormenor. O agente estranhou tal pedido uma vez que o General sabia do que se estava a passar e o seu retardamento podia prejudicar o resultado de todo um trabalho de meses.

Fez-se, no entanto, rapidamente novo texto, um pouco mais explícito. [e] Cerca das 16:00 horas vem a resposta à segunda mensagem: àquela hora já não se podia fazer a deslocação porque o regresso não era possível antes da noite e os helicópteros não estavam preparados para isso.

Foi um balde de água fria para o agente que, mal tomou conhecimento da mensagem saiu, desesperado; era, segundo dizia, todo o esforço perdido, o seu crédito junto do PAIGC abalado e, provavelmente, a impossibilidade de preparar outro encontro.

Não escondia a sua angústia.

Passado algum tempo regressa e procura-me. Trazia agora uma conversa com pouco nexo contrariamente ao seu habitual, e exteriorizava nervosismo. Pedia-me que o ajudasse, na circunstância, mas não concretizava a ajuda que queria.

Em dada altura, e perante o seu embaraço, pretendi acalmá-lo e fazer com que reflectisse friamente na situação: a reunião não podia fazer-se sem o General e ele não vinha, “ou acha que eu posso substituir o General” - perguntei em tom jocoso por supor que não tinha sentido resposta afirmativa. Mas eis que os olhos do meu interlocutor adquirem um brilho especial e ele me retorquiu:

- Mas o Coronel vai? É que eu não me atrevia a pedir, mas é mesmo essa a única hipótese de salvar a situação criada pela recusa do General Spínola.

Depois de argumentar que não estava credenciado para tal missão e de uma troca de impressões sobre o que ele pretendia, acabei por dizer-lhe:

- Nós estamos proibidos de contactos deste género mas porque confio em si aceito ir.

Eram cerca das 18:00 horas. O pessoal presente no aquartelamento preparava-se já para a 3ª refeição servida em quatro refeitórios separados, por razões de segurança. Chamei o Capitão Vale e expus-lhe resumidamente o que se passava. Precisava que ele, com toda a discrição, no final do jantar enviasse dois grupos de combate para os lados da fronteira na missão habitual de segurança afastada, que todos os dias era montada ao anoitecer em direcções diferentes; recomendei-lhe que desse a tudo o ar mais natural, mas esta missão tinha por finalidade actuar contra qualquer emboscada de que eu viesse a ser vítima e, se necessário, desenvolver uma acção de retaliação.

O Capitão Vale, homem já experiente na vida e com sentido prático muito refinado, bom caçador, entendeu rapidamente, perguntou-me apenas se o autorizava a acompanhar-me (disse-lhe que sim) e saiu de imediato a tomar as disposições requeridas.

Simulando ir à caça, montámos numa viatura e seguimos pela estrada cerca de 800 metros. Depois apeámos e dirigimo-nos ao marco nº 104 da fronteira. Ali chegados o agente estranhou que ainda não estivessem [lá] os interlocutores e não escondeu uma certa apreensão. No entanto aguardamos. Passados uns minutos vem alguém do outro lado, de bicicleta. Vem informar que o interlocutor está dentro do Senegal, receia vir até nós (terá dado conta do movimento das nossas tropas?) e solicita que nos desloquemos nós.

Recusei.

O agente insiste, pretende que eu me disfarce com um albornoz, mas não aceitei porque o disfarce não atenuava aquilo que eu considerava indisciplina: entrar em território estrangeiro. Ele porém pedia-me agora com todo o empenho que não desistisse de prosseguir na decisão tomada de não deixar gorar esta oportunidade única.

A argumentação convenceu-me e fui.

A noite estava cerrada. Na nossa frente viam-se as luzes de uma povoação senegalesa, já próxima. Caminhávamos em silêncio. Chegávamos ao local indicado pelo mensageiro da bicicleta, cerca de um quilómetro dentro do Senegal, quando se notou a aproximação de um automóvel que parou a duas centenas de metros, do qual saíram dois indivíduos que se dirigiram a pé para nós [a pé].

Era o [nosso] interlocutor.

O agente fez as apresentações e eu estendi-lhe a mão - o que, segundo soube mais tarde, o sensibilizou muito. Tratava-se do [ele era o] representante pessoal do Comandante Geral das forças do PAIGC.

Não podíamos demorar-nos porque era imperioso evitar qualquer detecção quer por parte de elementos das forças de segurança senegalesas quer por parte de elementos do PAIGC não envolvidos nesta diligência, e por isso o interlocutor foi directo:

- Não venho tratar de assunto pessoal nem de grupo restrito. Trata-se sim de problema[s] que diz[em] respeito a todos os combatentes do PAIGC. Andamos há já [há] dez anos nesta luta. Somos agora menos do que quando começámos. Actualmente não nos entendemos com o escalão político: eles são caboverdeanos e comunistas; e nós somos guinéus, combatentes e não comunistas. Desejamos apenas uma Guiné melhor. Já chegámos à conclusão de que, sozinhos, não somos capazes de a fazer, mas sê-lo-emos convosco. A nossa proposta é muito simples: em dia e hora que se combine acaba a guerra, nós seremos integrados nas forças da Guiné, sem recriminação nem vingança; e depois, juntos, faremos a Guiné melhor. Tudo isto tem que ser combinado em curto espaço de tempo e com o maior segredo, porque se fôr descoberto antes do tal dia e hora terei a mesma sorte que outros companheiros meus já tiveram.

Isto dito assim de chofre deixou-me um pouco perplexo e retorqui apenas:

- Do que propõe, eu, que não sou [o] Comandante-Chefe mas apenas um comandante de sector, somente posso dar como aceite com toda a certeza, já, que recriminações ou vinganças da nossa parte nunca haverá: temos todos instruções severas nesse sentido. Quanto a rapidez, amanhã mesmo vou pessoalmente dar conhecimento da sua proposta. No que se refere à segurança dos elementos que eventualmente venham a participar em conversações futuras, no caso do [se o] General comandante [chefe] concordar com a continuação dos contactos também posso garantir que os podemos recolher em qualquer ponto à vossa escolha e voltar a colocar onde desejarem.

- Eu compreendo que não pode adiantar mais do que isso, e eu próprio também apenas posso transmitir o que já disse. Não tenho poder de decisão. Mas agradeço-lhe ter vindo a este encontro e peço apenas um sinal para autenticar ou selar esta conversa.

- O sinal de autenticação que nós usamos, em conversa, é a palavra de honra. E eu dou a minha palavra de honra de que vou transmitir o que ouvi e que são verdadeiras as afirmações que fiz.

- Nós não usamos a palavra de honra, costumamos jurar perante Deus.

- Pois estamos aí à vontade: não teremos a mesma religião, mas certamente acreditamos no mesmo Deus Único, e Criador. Por mim, quando dou a palavra de honra faço-o sempre em termos de juramento perante Deus.

- Certo, mas se pudéssemos ter um sinal deste compromisso era bom.

- Pois eu julgo que já dei sinal de boa vontade: vim até aqui confiado apenas na honestidade do nosso intermediário.

Nisto o homem parece ter-se sentido atingido e interrompeu-me dando-me como que um abraço.

- Desculpe, desculpe. O senhor fez mais do que eu pois veio aqui enquanto que eu tive medo de ir ao lugar combinado.

Impunha-se que não demorássemos mais o diálogo. Fazem-se as despedidas rapidamente. Quando me apertava a mão (era o dobro da minha) dizia-me:

- Estou muito feliz. Desde há dez anos é a primeira vez que estou em conversa agradável e a primeira vez que estou desarmado.

De novo repetiu o seu agradecimento.

Regressamos alvoroçados. Teríamos nós o privilégio de ser os intermediários e os primeiros intervenientes num processo que levaria a um próximo fim da guerra com honra para ambas as partes?

Mal dormi, ansioso pela madrugada, pelo regresso a Farim, pelo avião dessa 2ª feira que me levaria a Bissau, pelo encontro com o General Spínola.

Eram 18:50 horas do dia 1 de Julho de 1973 quando cheguei ao Palácio do Governo em Bissau. O Capitão Ayala, ajudante do Governador e Comandante-Chefe atendeu-me.

Disse-lhe que tinha urgência em falar com o General Spínola.

- Não me diga que é por causa do contacto de Cuntima.

- Precisamente.

- O nosso general não o poderá receber agora porque tem o briefing às 19:00 horas no Quartel-General e vai já para lá.

- Diga-lhe que estou aqui, que não o demoro com o que tenho a dizer-lhe e que é do maior interesse não atrasar; os minutos contam.

O General recebeu-me de imediato.

- Então hoje já aqui?

- É verdade meu general. No sábado estivemos em Cuntima, não contava nada com esta vinda, para a qual nem pedi autorização, mas como fui ao contacto que estava preparado para V.Exª...

- Então o senhor não sabe que proibi todos os contactos; não sabe o que aconteceu aos três majores? Atalhou o general, irritado, levantando-se e crescendo para mim.

Mantive-me sentado, cruzei as pernas e retorqui:

- Sei e até era muito amigo de dois deles, mas entendi que era meu dever ir, e fui.

- Espere lá, mas afinal você está aqui; conte lá.

E sentou-se de novo para ouvir o resumo que lhe fiz da conversa e das propostas do interlocutor do PAIGC.

O General voltou a levantar-se, agora com entusiasmo, abraça-me ao mesmo tempo que [e] diz:

- Mal sabe o alto serviço que acaba de prestar à Nação!

- Ainda bem. Estou feliz por isso.

Dirige-se ao telefone liga para Lisboa e ouvi-lhe o seguinte:

- Allas? (era o chefe da DGS em Bissau) Está bem? Tome o avião amanhã e venha aqui.

- Pois, sei bem que foi ontem de licença... É pena não poder vir ainda hoje, pois temos aqui coisa importante que requer já a sua presença.

- Está bem, mas tenha paciência. Espero-o amanhã. Um abraço!

O General agradeceu-me de novo. Vai a sair para a reunião mas faz questão que o acompanhe a jantar no Palácio.

Era a terceira vez que me convidava para jantar na sua residência.

Não falámos mais sobre este caso. Ficou acordado que se manteria total segredo e que seria pessoalmente contactado para qualquer interferência futura se fosse necessário.

Os curiosos de Bissau bem tentaram saber da razão da minha presença ali tão imprevista. Fui escapando como pude do cerco de perguntas.

Na 3ª feira regressei a Farim onde poucos dias depois pude observar, por duas vezes, a passagem dos helicópteros que transportavam interlocutores que deviam dar continuação aos contactos de Cuntima.

O sector passou a conhecer uma tranquilidade esperançosa.

Em Agosto entrei de licença. Na metrópole soube da substituição do General Spínola pelo General Bettencourt Rodrigues. Fui à tomada de posse deste último. Ouvi os discursos e pareceu-me que estavam em dessintonia com tudo o relatado, o que muito me surpreendeu. Preso como estava à promessa de segredo não perguntei nada. Já em Bissau pedi audiência ao novo Comandante-Chefe. Abordei o caso e tive a resposta que me surpreendeu: não sabia de nada.

O agente que tinha preparado o encontro em Cuntima, manifestou-me, em Farim, o seu desgosto por se aperceber de que tudo voltara ao princípio. Não entendíamos o porquê da viragem, que era notória.

Um dia, no bar do Estado Maior do Exército, já em 1976, contava o caso [este episódio] a uns camaradas, dado que a manutenção do segredo já não tinha razão de ser.

O então Major Monge estava ao lado e certamente ouvindo o meu relato, porque a dada altura interrompeu-me e diz:

- Afinal foi o meu coronel quem provocou o 25 de Abril.

Fiquei atónito. Mas imediatamente me veio à memória que tinha lido dias antes, uma informação do Chefe do Estado Maior General da Forças Armadas (o então General Costa Gomes) para o Governo (do Dr. Marcelo Caetano) segundo a qual para Portugal era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada...

Porquê?

(1) Capitão Beato
(2) Alferes Miliciano Costa
(3) O comandante da companhia em operações era o Cabo Sitafá
(4) Já uns dias antes tentada mas sem concretização por causa de forte trovoada
(5) Contacto que, segundo me disse, «vinha preparando havia alguns meses»
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Nota de M.R.:

Vd. também o poste relacionado com esta matéria em:

6 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8644: Recortes de imprensa (43): O pacto secreto de NINO com a PIDE, jornal TAL & QUAL, 14 Maio 1999 (Magalhães Ribeiro/Manuel Marinho)

Vd. último poste desta série em:

7 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8645: Recortes de imprensa (44): Jornal Açoriano Oriental noticía em 1961 a partida para a Guiné da Companhia de Caçadores Especiais 274 (Durval Faria)