terça-feira, 6 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1567: Histórias de Vitor Junqueira (8): Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira foi alferes miliciano de uma companhia açoriana que fazia parte do COP 6, cujo comando era Mansabá. Sempre foi um homem exigente consigo e com os outros, como o prova este execertyod e e-mail que mem amdou a pedir para correcções de pormenor ao etxto que hoje se publica: "Como alguém (tu?) já disse, no Blogue não há lugar para mentirosos. Porque a mentira tem a perna curta, um mentiroso apanha-se mais depressa que um coxo. E na Tertúlia há sempre a possibilidade de alguém conhecer a versão autêntica da nossa história. Por isso despendi várias horas a redigi-la, consultando papéis, relendo relatórios, conferindo datas, para que fosse expurgada de imprecisões ou lapsos. Uma das vantagens de a guerra da Guiné ter sido feita essencialmente por milicianos, é podermos dispor hoje de imenso material classificado na mão de civis" (VJ).

Foto: ©
Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados.



Guiné > 1971 > Excerto do Relatório da Operação Larga Agora , na região do Oio (13-15 de Junho de 1971), em que participou o Vitor Junqueira, enquanto comandante de 2 Grupos de Combate da sua açoriana CCAÇ 2753... Apreciação do autor do relatório:

"Considero excepcional o comportamemto na função do Agr 5 (CCAÇ 2753) (-) do Alf Mil de Inf Victor José Anastácio Junqueira que, imbuído de alto espírito de missão, soube formnar com os 2 Gr Comb que comandava, uma equipa extremamente coesa e perfeitamente consciente do que lhe incumbia. Em todas as acções de contacto IN manifestou calma absoluta, clareza e rapidez de decisão. Julgo perfeitamente apto para comandar uma CCAÇ em operações".

Foto: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.

Texto enviado em 21 de Fevereiro de 2007 pelo Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa tertúlia (1).


Prezado amigo Luís,

Com a ousadia própria dos atrevidos, tomei de empréstimo um excerto de uma folhinha de Mestre Agostinho da Silva, como prólogo do episódio que hoje pretendo compartilhar com meus irmãos do mato. Fi-lo por duas razões, sendo a primeira aquela que emana do próprio texto, acrescida do receio de ser tomado como uma espécie de arrivista das letras, usurpador de um espaço que é de todos, ciente que estou de que jamais compactuarias com tal despautério.

A segunda razão tem a ver com o facto de Agostinho da Silva, de quem conheço pouco mais do que a biografia, me ter agarrado desde a primeira linha numa espécie de encantamento reforçado pelas entrevistas que deu para a televisão, e que acompanhei como um devoto. Figura singular, misto de profeta e frade franciscano, e acima de tudo, pedagogo experiente, cativava a audiência como certamente prendia os seus alunos. Aos meus olhos personificava o bom rebelde, de coração puro e despojado, para quem a estupidez humana constitui o maior drama do nosso tempo. Teria ele também alguma empatia com movimento anarquista, que tantas simpatias conquistou entre a estudantada dos meus tempos de Coimbra? (1)

“Queridos amigos,

Parece que toda a gente está de acordo em que o mundo inteiro se encontra em crise. Como isto me parece demasiado vasto para eu poder ser útil, decidi que sou eu quem está em crise e talvez consiga sair dela com três princípios: O de me ver livre do supérfluo, o de não confundir o verbo amar com o verbo ter, o de prestar voto de obediência ao que for servir, não mandar. Nestes termos comunico a todos os Amigos que não imporei a ninguém a leitura de textos meus …

Setembro de Lua Cheia e de 93.”

Agostinho da Silva, Filósofo, in Folhinhas.

E agora, vamos ao relato. Procurarei que seja tão rigoroso quanto a minha memória o permitir, tão neutro e isento quanto a farronquice deixar, apimentado q.b. para que não adormeçam ao lê-lo. Leva dedicatória:

“Para um tertuliano especial, o Manuel Lema Santos, que se reclama de meio chaparro, meio estremenho, integralmente português. Pelas palavras simpáticas e pelo desafio (*)”.

Quem desce Cacheu a partir de Farim em direcção ao Tiligi, deixando Binta para trás, chega a uma zona onde o Pedro Lauret viu a mina-vaca (**). Notará então que o rio descreve quatro curvas sendo uma delas, uma grande chouriça de concavidade virada para sul.

Nesta concavidade, situada a leste do Leto, acomoda-se a Ponta do Tancroal, uma projecção de terra firme que reduz ao mínimo a distância entre margens. Este acidente topográfico era inteligentemente aproveitado pelas forças do IN, como porta de entrada para as áreas do Oio e Morés. Posso garantir que em algumas ocasiões em que passei por aquelas bandas, não era difícil ouvir por cima do silêncio da mata, o ruído próprio de embarcações motorizadas (2) cambando o rio, certamente levando reforço em homens e material a uma vasta área onde as NT raramente incomodavam as populações sob controlo do PAIGC.

Conheci bem essa região. A beleza e serenidade da paisagem eram verdadeiramente idílicas. A fertilidade do solo, onde lalas e bolanhas bem cuidadas produziam milho, arroz, mandioca e hortícolas a que se juntava abundância de gado, evidenciavam uma excelente organização social e administrativa. As tabancas, constituídas por pequenos aglomerados de moranças construídas a céu aberto e não sob a copa das árvores como em outras zonas, apresentavam-se bastante dispersas, rodeadas por trincheiras, dispondo algumas, de abrigos e espaldões para armas pesadas.

Embora não existisse praticamente população civil desarmada (3), a tropa de linha, sujeita a movimentos de rotação e rendição como em qualquer exército convencional, ocupava instalações segregadas da restante população. Ao contrário do que muitos crêem, mantinha com os residentes apenas as indispensáveis relações em matéria de autodefesa e abastecimento de víveres. E nem sempre eram as melhores (4)!

A ligação entre estas populações e os militares era feita através dos comissários políticos, aos quais o braço armado do PAIGC se encontrava subordinado. Aqui constatámos também a existência de depósitos de bens essenciais, desde os alimentares a outros considerados de primeira necessidade como chinelos, panos e até material escolar. Possuíam instrumentos de medida e livros de escrituração. Julgo que estas estruturas seriam os embriões de outras de maior amplitude chamadas Armazéns do Povo, que viriam a ter um papel importante num ensaio de economia colectivista, no período pós-independência.

Ainda no Tiligi, foi-nos desvendado um enigma que durante muito tempo me intrigou. Sabendo que um dos grandes receios (terror!) das NT empenhadas em operações de maior envergadura era o de ficarem desmuniciadas, o que obrigava à celebérrima disciplina de fogo, como é que o IN emboscava duas, três vezes seguidas e tendo eles, armas com cadências de tiro idênticas às nossas, não pareciam afectados por este problema? A resposta é bem simples, tipo ovo de Colombo. Referenciados através de pontos conspícuos (5), dispunham de uma rede de mini-paiois que permitiam o seu remuniciamento contínuo! Como curiosidade, refiro que num desses paióis, além de algumas armas pesadas e respectivas munições, foram recuperados vários fardos de uniformes (6).

Entre a documentação apreendida, encontrámos alguns bons exemplos de como o PAIGC se preocupava tanto com a preparação para o combate dos seus elementos, quanto com a sua formação político-doutrinária. Sabemos que havia aulas de alfabetização em Português, e nos caderninhos de TPC abandonados junto aos postos de vigia (sentinela) podiam ler-se tanto expressões e palavras de ordem de conteúdo ideológico, como histórias para crianças e até poesia. Exemplares do Corão eram às centenas, bem como manuais militares exemplificando com gravuras, como deitar abaixo um helicóptero, montar uma emboscada ou confeccionar um fornilho. Tive a sensação de que entre os militares das FARP, não havia lugar para a ociosidade: Combatiam, trabalhavam ou estudavam. Também sabemos que o árabe numa das suas versões era ensinado às crianças por homens santos ou marabus, que percorriam as aldeias, tanto aquelas que estavam sob a nossa protecção como as que se encontravam nas apregoadas áreas libertadas.

Operação Larga Agora (13 de Junho de 1971)

Quem manda, pode! E quem podia naquele Território no longínquo ano de 1971, ordenou que se fizesse uma operação de limpeza na região cujo retrato sumário acabei de vos apresentar. Para uma tal empresa que, foi decidido, teria a duração de três dias (7), coisa rara na Guiné como todos sabem, foi reunida a fina-flor da nossa tropa: Fuzos, comandos brancos e pretos e páras (8). A representar a tropa arre-macho estava aqui o vosso amigo Junqueirita y sus muchachos (9).

Quanto a ordens, … as do costume, simples, claras e concisas: Destruir, queimar, inutilizar os meios de vida. Relativamente aos elementos armados do IN, diziam-nos para os “capturar, eliminar ou no mínimo expulsar da ZA”.

Passo agora a vista pelo relatório da operação onde leio que o primeiro dia de trabalho começou com a execução de (transcrevo) “um héli-assalto sobre objectivo IN em Binta 5 D7-34 (10). Captura-se material que é evacuado por meios héli em 131000Jun.

A partir desse ponto, as NT iniciaram a progressão no terreno, segundo linha de orientação geral definida em Ordop …” que nos havia de levar até ao Tancroal (11) e depois, em sentido descendente, às tabancas de Suntucuia, Solinto Mandinga e Sibicunto, entre outras (12).

Operação Larga Agora (14 de Junho de 1971)

O segundo dia começou ainda melhor. Ao alvorecer, um grupo IN que ao fim da tarde do dia anterior nos tinha impedido de tomar um tabancal, caiu numa emboscada montada por nós. Ficámos a ganhar por vários a zero e capturámos mais material.

Interrogatórios para exploração imediata (13), forneceram dados importantes quanto aos efectivos das FARP e sua localização. A meio da manhã encontrámo-nos com a 121ª de paras. Um dos alferes deu-me conta de que o nosso ronco estava a ser muito apreciado em Bissau. Pouco depois, o PCV passa sobre a nossa vertical dando ordem para que fosse montada de imediato uma segurança, que permitisse ao Maior dirigir-se às tropas da CCAÇ (14). Foi um momento de grande apuro já que aquela era a pior altura para receber o Comandante-chefe.

À nossa volta havia pequenos grupos de elementos armados dispersos pela mata (15), e os rebentamentos, nossos, do IN e das munições de todos os tipos escondidas no interior das moranças em chamas, eram contínuos, tornando considerável o risco de um acidente durante a aterragem ou descolagem. Um pequeno campo de milho fez de heliporto onde o Alouette que transportava o nosso General não tardou a pousar. Começaram a desembarcar, Spínola e o seu séquito (16). Em passo de corrida, dirigi-me ao Velho e comecei bem, como se segue…
- Meu general, apresenta-se o alferes …

Não me deixou terminar a lenga-lenga. Cortando-me a palavra com indisfarçada irritação, disse-me:
- Ó nosso alferes, não é consigo que eu quero falar, é com o seu comandante. Vá lá chamá-lo.

Aí, alto e pára o baile, senti-me beliscado. Enchi o peito de ar e repliquei:
- Pois saiba, meu general que, aqui, o comandante sou eu! - E que ninguém duvide: Pus o homem em sentido quando lhe disse que ali quem mandava era eu! O tom da conversa mudou logo.

Mais f... do que eu devia estar o piloto, obrigado a aterrar numa barafunda daquelas. Manteve o rotor a girar à força toda e fez muito bem. Os cavalheiros, também não se descuidaram muito no chão.

O Homem olhou para mim com um ar que eu não sei se foi de tristeza ou desolação. De espanto foi certamente. Esperaria ele encontrar um façanhudo capitão, educado pelos mestres da Academia nas mais avançadas técnicas da contra guerrilha, curtido pelas duras batalhas do sertão? Saiu-lhe uma coisa bem diferente; um piço de um rapazito quase imberbe, meio enfezadote, negro de fuligem, com um fez enfiado na cabeça (devido à deserção do quico), e um belo par de botas de cabedal made in Checoslováquia à cintura, fazendo contrapeso ao cantil (17). Na sua expressão li o mais puro desalento. Adivinho-o a pensar: Ao que nós chegámos!

Se calhar foi aí que percebeu que mais valia dedicar-se à escrita e terá decidido começar a alinhavar Portugal e o Futuro! Jogou a mão a uma carta que um dos seus acompanhantes lhe estendia e ordenou-me que, sobre ela, lhe mostrasse quais os objectivos atingidos e o que é que nos faltava fazer. Depois de uma breve explicação, bateu uma palada e afastou-se, não sem antes dizer a um simpático major que o acompanhava:
- Ó Senhor major, faça o favor de ver de que é que estes homens precisam.

O major era um homem polido, muito atencioso. Falei-lhe do cansaço, da água e da comida que já não tínhamos (18) e do estupor da G3, pesadona, comprida, pouco jeitosa para quem tinha que manobrar rádio, cartas, bússola etc. No fundo eu estava-me a fazer a uma kalash! Escutou-me, interessado. Despediu-se com um abraço, juntou-se ao grupo e partiram.

Operação Larga Agora (15 de Junho de 1971)

O resto desse dia e o seguinte decorreram na mesma toada. O momento mais difícil aconteceu durante essa noite (do segundo para o terceiro dia) no local destinado à pernoita, próximo da clareira do Tancroal. Pareceu-me ser o sítio mais seguro, pois tendo o rio a norte, bolanhas a E e W, apenas teríamos que nos preocupar com o flanco sul. Tinha o inconveniente de, no caso do IN nos barrar a retirada, ficarmos mais ou menos encurralados. Sabíamos que os seus olheiros tinham espiado os nossos passos durante toda a tarde, pelo que nos mantivemos em movimento e só alta noite nos dirigimos para o local escolhido.

Mandei instalar em círculo e abrigar o melhor possível. Buracos escavados no chão com a faca de mato onde pudéssemos enfiar a cabeça, troncos de árvore, termiteiras, crateras das raízes das palmeiras caídas, tudo serviu como antepara para o caso de um eventual ataque nocturno. Montada a segurança com sentinelas dobradas, passámos uma rasteira à fome com o que nos restava nos bolsos. Quando começávamos a acreditar que um pequeno descanso era possível, irrompe o maior arraial de morteiro 82 mm de que guardo memória. Toda a zona onde fomos avistados por altura do sol-posto, foi batida com uma intensidade tal, de que só vos poderei dar uma ideia dizendo que pelo meu cálculo, foram disparadas mais de 500 granadas.

Felizmente, os rebentamentos davam-se bastante a sul da nossa posição. Fora o nervoso miudinho, no nosso canto reinava o maior sossego. Este festival durou várias horas, até que pelas quatro da manhã, um dos meus camelos, o Amorim, faz um disparo acidental de G3. Acho que não é difícil imaginar o resto da história. Uma nuvem de chispas de lume, falhas de aço incandescente, pó, terra, fragmentos de baga-baga, ramos de árvores, rodopiaram por cima da nossa posição num frenesim diabólico. Nós, nem um pio! Ao fim de cerca de uma hora, cansaram-se, esgotaram as munições ou convenceram-se de que não estaríamos lá? Quando a calma reinou de novo e os nervos descomprimiram, deu para perceber que tivéramos a protecção de Alguém. Exceptuando pequenas beliscaduras nos cromados, não havia ninguém ferido!

Uma Uzi novinha em folha para o Sr. Alferes

Não sei quanto tempo decorreu entre o encontro com o Estado-maior e uma inesperada visita do General ao K3, umas semanas, não mais. Ouvi dizer que ele era muito niquento no que dizia respeito ao aprumo da tropa aquando das suas visitas ao mato. Disseram-me que alguns comandantes de Companhia teriam apanhado umas porradas por o seu pessoal se apresentar abandalhado.

Desta vez o héli chegou sem qualquer aviso. O pessoal disponível encontrava-se empenhado no restauro da cozinha e refeitório das praças. Tronco nu, esfrangalhados, suados que nem porcos, transportávamos cibes ao ombro, que no meu caso já sangrava, amassávamos material para a confecção de blocos ou trabalhava-se de pá e picareta. À vista do heli, o pessoal formou rapidamente em U, tal como estava. O General, acompanhado por um major, dirigiu-se à Companhia com palavras de circunstância, não fazendo qualquer reparo quanto ao traje. Reiterou a promessa anteriormente feita de que a breve prazo retiraríamos para Bissau em recompensa dos bons serviços prestados, o que nunca aconteceu.

O major que o acompanhava avançou então para mim e, entregando-me uma arma que trazia consigo, disse com a maior simplicidade:
- Sr. alferes, aqui tem a sua arma! É uma Uzi novinha em folha. Olhe, igual à sua, só existe outra na Guiné. Com a arma vinham mais quatro carregadores.

Fiquei emocionado. Primeiro, porque tomei esta prenda como mais uma prova de grande consideração. Depois, por tê-la recebido da mão do senhor major Correia de Campos.

E ao evocar o nome deste brilhante militar, apetece-me dizer, com Ortega y Gasset: “Os temas fundamentais da História não são produto do colectivo, mas de indivíduos de excepção”.

P.S. - Acabo de saber da morte de Barbosa Henriques (***) que foi comandante da 27ª de Comandos. Participámos em várias operações conjuntas. Embora o convívio não tenha sido suficiente para nos tornarmos amigos, sei que era um Homem íntegro. Nesta hora triste, apresento à família sentidos pêsames. E peço a Deus que seja misericordioso com a sua alma.
_____________

Notas de V.J:

(1) Por alturas do 25 de Abril de1974, ia eu a descer a Av Sá da Bandeira, quando a propósito das comemorações do primeiro 1º de Maio em liberdade, li num muro a seguinte convocatória:

“Dia 1 de Maio todos à Portagem. O 1º de Maio é vermelho. MRPP”.

E alguém acrescentou por baixo e autenticou com o conhecido selo dos anarcas: "Também os Índios eram vermelhos, e foderam-nos todos!"

Sarcasmo, humor corrosivo e descomprometido, provocação irreverente, não tive dúvidas de que aquela era a chanca para o meu pé!

(2) O mesmo tipo de operação, constatei-o, era efectuado noutro trecho do Cacheu um pouco a leste da sua confluência com o rio de Jumbembem. Na área de Madina Mandinga-Gebacunda, também na margem esquerda do Cacheu, testemunhei outro facto insólito: o vai-e-vem de um helicóptero que, passando próximo da minha vertical, operava claramente um transbordo entre as duas margens em voo a muito baixa altitude, pelo que não pude avistar o aparelho. Questionada a FA sobre a possibilidade de haver algum meio aéreo nosso, naquela zona, a resposta foi: Negativo.

(3) No início da minha experiência de combate, fui indecentemente comido com informação que classifico de uma forma soft, como pouco honesta. Disseram-me: Nesta operação (…), você vai encontrar no máximo um bigrupo do IN, segundo as informações que temos. Não me disseram que para além desse contingente das FARP, havia outros tantos ou mais elementos das FAL, Pioneiros e populares armados, todos exímios a puxar o gatilho. Assim como me omitiram que antes de mim, já outras forças como a 27ª Companhia de Comandos, e a 121ª de Paras, se não me engano, a CART 2732 do Carlos Vinhal, tinham tentado tomar o objectivo. E todos trouxemos o que contar. Aprendi a dura lição em Fátima. Um dia, hei-de falar-vos deste caso pouco clínico!

(4) Nestas áreas, as FARP recorriam por vezes ao confisco de mantimentos assim como ao recrutamento (à má fila) de carregadores, o que não as tornava particularmente simpáticas!

(5) Ponto conspícuo significa qualquer elemento bem visível, natural (p. ex. pico, ilhota, rochedo, falésia, árvore de grande porte), ou construído pelo homem (edifício, torre, antena etc.) cuja localização no terreno sabemos corresponder a uma determinada posição geográfica indicada nas cartas de navegação. Tem mais ou menos o mesmo significado que conhecença. Na marinha usamos frequentemente estes pontos na preparação das aproximações a terra (aterragens) e na navegação costeira ou de cabotagem. No TO, ponto conspícuo poderia ser uma certa árvore, um baga-baga com determinada forma ou dimensão, o recanto de uma bolanha, um cruzamento de trilhos etc.

(6) Entre as armas pesadas havia antiaéreas, Browning 20 mm e Bredas. Fardamento de origem … francesa, havia-o de dois tipos: Fardas de caqui bege, iguais às dos legionários, e camuflados idênticos aos usados pelas tropas francesas na guerra contra a FNL (Argélia). Com aqueles camuflados vestidos, nunca encontrei ninguém. Julgo que por serem demasiado claros, mais próprios para o deserto. Já os de tipo legionário pareciam agradar ao pessoal das FAL.

(7) Operação Larga Agora. Decorreu nos dias 13, 14 e 15 de Junho de 1971. A minha Companhia já anteriormente tinha efectuado, à sorrelfa, algumas intervenções naquela área, do tipo saltar dos hélis, escaqueirar qualquer coisa, botar fogo e, … dar às de vila Diogo. Nos RVIS que por vezes se efectuavam alguns dias depois, aparecia tudo reconstruído!

(8) A respeito das tropas paraquedistas, afigura-se-me da mais elementar justiça fazer o seguinte comentário:

É minha convicção que na frente de combate, onde toda a vaidade se acaba, onde até o fraco faz força e mesmo o valente se caga, não há lugar para elitismos. Todos dão o seu melhor, quanto mais não seja para safar o próprio pêlo, o que é mais do que legítimo. Contudo, os paraquedistas que conheci na Guiné, 121ª e 122ª Companhias, eram realmente diferentes entre iguais. Sei que eram duros com o Inimigo, bravos debaixo de fogo, eficientes na acção, por esta ou qualquer outra ordem! Os resultados obtidos, as condecorações justamente atribuídas, atestam-no.

Mas aquilo que aos meus olhos os tornava a nossa melhor tropa de elite, sem desprimor para outros, eram a sua humildade, educação, respeito e cortesia para com os camaradas de outras forças. Chegava a ser embaraçoso quando, por ex., num alto para curto descanso no mato, à aproximação de um graduado (alferes) de outra força, todo um pelotão se punha de pé, incluindo o seu comandante! Pouco dados a fanfarronices, - nunca ouvi um pára gabar-se dos seus feitos individuais ou colectivos - , comandados por um militar de excepção, o coronel Rafael Durão, deixaram a todos nós o mais belo exemplo daquilo que deve ser o comportamento de tropas em campanha.

Espero que os páras de hoje continuem a ser os dignos herdeiros dos feitos valorosos dos seus camaradas de há quarenta anos, e que em qualquer parte do mundo para onde os mandem, o nome e o prestígio de Portugal e das suas Forças Armadas estejam no centro das suas preocupações. Admiro-os a tal ponto que, na próxima encarnação, se ainda existir serviço militar, eu quero ser paraquedista!

PS - Esclarecimento posterior de do comandante da CCP 121, Nuno Mira Vaz - hoje coronel paraquedista na reserva, e historiógrafo -, na altura em que a unidade esteve afecta ao COP 6, Mansabá: o coronel Rafael Durão, irmão do Rafael Durão (este nunca foi paraquedista) era então o comandante do CAOP1 em Teixeira Pinto, e de facto era um militar de excepção. O Comandante do BCP 12 era, por sua vez, o Tenente-Coronel Horácio Oliveira .

(9) Eles não eram os meus homens, nem os meus amigos, nem os meus camaradas. Eram tudo isso e muito mais. Por isso utilizei o espirituoso (acho eu!) castelhanismo, por me parecer que traduz mais adequadamente o sentimento que nos unia. E quer os meus amigos acreditem ou não, se eu me mandasse ao poço a rapaziada saltava de seguida. Habituaram-se àquele fado e acabaram por gostar. Como é possível alguém dizer tal baboseira, ouço-vos perguntar. É pura verdade. A prová-lo está o facto de, homens que nada tinham a ver com os tiros, como mecânicos, corneteiros, condutores, impedidos, sargentos da secretaria, básicos e cozinheiros, pedirem para alinhar. É certo que alguns juraram para nunca mais, mas muitos repetiram!

(10) Na proximidade de uma grande tabanca chamada Amina Dala, situada meia dúzia de quilómetros a sul de Leto (vd. carta de Binta). Estava muito bem defendida em termos de organização no terreno e possuía uma numerosa guarnição. Só levou chumbo quem trazia arma na mão.

(11) A partir daí e até à margem do rio, havia uma estreita faixa de tarrafo e bolanhas, domínio absoluto e incontestado dos nossos camaradas da marinha. Para nós caçadores, sentir humidade nos pés era do pior que nos podia acontecer. Eles, pelo contrário, movimentavam-se naqueles terrenos como peixe na água. Cada qual é p’ró que nasce!

(12) Nos três dias da operação, a CCAÇ 2753 destruiu 29 núcleos de tabancas (do relatório de operações).

(13) Os movimentos héli destinados à evacuação de material e prisioneiros serviam também para o nosso próprio reabastecimento em munições. Num desses movimentos, trouxeram-nos um intérprete.

(14) Do registo Factos e Feitos, retiro a frase: “Junto das NT esteve Sua Excelência o General Comandante-chefe que foi felicitar as mesmas”.

(15) Uma das causas em que assentou o sucesso desta operação teve a ver com uma certa táctica que consistiu em, uma vez tomado um objectivo, passar rapidamente à perseguição do IN cuja posição nos era fornecida pelo PCV, não lhe dando tempo a que os seus elementos se reagrupassem ou juntassem à guarnição do objectivo seguinte.

Numa dessas perseguições, dois FIAT passam sobre as NT, sobem até ficarem do tamanho de mosquitos e, de cabeça para baixo, a toda a mecha, largam duas alfarrobas à minha ré. Preparam-se para repetir quando eu chamo:
- Ó Tigre, Ó tigre … estou a ser batido pelo seu fogo. - E o Tigre responde:
- Vocês são pretos?
- Negativo, respondi.
- Então têm pretos convosco?
-Também não. - Ao que o Tigre replica:
- Eu só vejo pretos e além disso, vocês não era suposto estarem nessa posição!

E dito isto, bota abaixo, mais duas … mais longe. Ninguém se aleijou.

Aproveito para esclarecer que os pretos que os tipos viam, éramos nós próprios, com a pele negra pelo pó e fumaça que se agarrava ao rosto suado. Admito no entanto que na nossa retaguarda tenham avistado um dos tais grupos desgarrados do IN que cirandavam à nossa volta, incomodando-nos constantemente. Se assim foi, ... ainda bem!

(16) Séquito de que habitualmente faziam parte militares de primeira água que tive a honra de conhecer como Firmino Miguel, Carlos Fabião, Carlos Azeredo, Almeida Bruno, Pedro Cardoso, Ricardo Durão.

(17) Na Companhia havia um rapaz, por alcunha o Fafe, Osvaldo de Oliveira de seu nome, transmita de especialidade, que espontaneamente se dispunha a dar uma compostura cristã aos cadáveres do IN. Fechava-lhes os olhos, recolhia as armas e munições, documentos, e às vezes, peças do equipamento e fardamento. Foi assim que entrei na posse das botas. Carreguei com elas durante três dias para verificar ao experimentá-las, que me faltavam……quilómetros de pé. Acabei por oferecê-las ao chefe da tabanca, para o compensar de um fartum de porrada que lhe tinha aplicado uns tempos antes.

(18) Alguém imagina o carregamento de munições que cada homem transportava para uma operação de três dias? E ter que carregar ainda com rações de combate para o mesmo tempo? Pois os açorianos adoptaram uma técnica própria para obviar a este transtorno: Comiam tudo no primeiro alto e o que não comiam deitavam fora. A fome suportava-se bem com a ajuda de algumas coisas que íamos encontrando nas tabancas. Foi numa destas que comi cabrito-pé-di-rocha (****) pela segunda vez. Ainda estava a cozinhar num recipiente de barro sobre umas brasas. Disseram-me que não comesse, podia estar envenenado! Qual quê, caiu que nem ginjas.

Com a água o caso era mais complicado. Poupavam-na enquanto podiam, mas uma vez esgotados os cantis, nem sempre dávamos com os poços da população onde reabastecíamos com uma água leitosa mas muito agradável ao paladar. Nesta operação aconteceu em determinado momento ter de me por à frente deles, e ameaçar que daria um tiro no primeiro que bebesse água salgadíssima de um regato.

O terceiro elemento causador de grande desgaste físico e psicológico era o insuportável frio nocturno, sobretudo se acompanhado de cacimbo. A única forma de descansar um pouco consistia em encontrar uma cova onde coubessem dois ou tês homens se aconchegavam o melhor que podiam.

Um abraço para todos.

Pombal, terra do Marquês, figura que detesto, aos vinte e um dias do mês do Entrudo, do ano em que o Alberto João se demitiu.

Vítor Junqueira (*****)
______________

Notas de L.G., editor do blogue:

(*) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1526: Em louvor do comandante Vitor Junqueira (Lema Santos)

(**)Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)

(***) Vd. post de 19 de Fevereiro de 2007
Guiné 63/74 - P1536: Morreu Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)

(****) Vd. post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)


(*****) Vd. posts da série de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

Guiné 63/74 - P1566: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (9): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte II

Guiné > PAIGC > Guerrilheiros em acção... Publicado em 1972 pelas Edições em Línguas Estrangeiras, de Pequim, o livro Pelas Regiões Libertadas da Guiné (Bissau) é constituído por de um conjunto de reportagens dos jornalistas da Xinhua, a agência noticiosa oficial da República Popular da China, que passaram mais de um mês na Guiné com a guerrilha do PAIGC.

Fonte: Regiões Libertadas da Guiné (Bissau). Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras. Agência de Notícias Xinhua. 1972.

Foto: © Agência de Notícias Xinhua (1972) (com a devida vénia...).

IX parte do dossiê O massacre do Chão Manjaco > Ideia, pesquisa, compilação e edição de Afonso M. F. Sousa , ex-furriel miliciano de transmissões da CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70) (*).

II Parte do depoimento do historiador lusoguineense Leopoldo Amado, doutorando em História Contemporanea pela Universidade de Lisboa. Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue:


Desconfiança e reserva do PAIGC à 'política do sorriso e do sangue' de Spínola

Num autêntico jogo de gato e do rato, Cabral responde a esta espectacular encenação [- libertação de Rafael Barbosa, co-fundador do PAIGC, e suas declarações em 3 de Agosto de 1969, em apoio à política de Spínola da Guiné Melhor, possivelmente sob coação da PIDE/DGS-] com a apresentação, a 18 do mesmo mês, em Argel, de cinco desertores portugueses, na cerimónia de encerramento do simpósio do I Festival Cultural Pan-Africano em que o PAIGC foi eleito vice-presidente do simpósio.

Tal acto era demonstrativo para o PAIGC de que era imperativo o reforço do seu arsenal bélico, pelo que, em finais de 69, Cabral se desloca a Moscovo, onde mantém conversações com peritos militares do Co­mité Central do Partido Comunista Soviético, passando seguidamente por Berlim Oriental e Paris, sempre em demanda de apoio militar.

Aliás, não obstante algumas guarnições portuguesas, no âmbito da nova política introduzida por Spínola, terem estendido espontaneamente a mão ao inimigo da véspera, num ambiente caracterizado pelo incremento das acções militares do exército português, sobretudo os sistemáticos bombardeamentos às regiões libertadas do PAIGC, com meios aéreos e bombas de napalme, essas aproximações foram acolhidas com forte des­confiança, tendo inclusivamente o Comité Central do PAIGC distribuído pelas suas unidades no mato um panfleto aconselhando desconfiança e cautela relativamente a política do sorriso e do sangue de Spínola.


Criação do Conselho Superior de Luta

Do lado do PAIGC, passou a ser evidente que o maior poder de fogo não era suficiente para contrapor à nova agressividade de Spínola, que se faz acompanhar de uma equipa jovem, coesa, decidida e ousada. Ao mesmo tempo que prossegue com maior vigor os ataques contra Ingoré, São Domingos, Guidaje e Morecunda, Cubisseco e Tombali, e Gansala e Catió (no Sul), e outros centros urbanos, como Bolama (atacada a 6 de Novembro de 1969 e onde se registaram inúmeras mortes e estragos em edifícios privados e públicos), acrescidos do facto de que, em 1969, na frente leste, mais dois campos fortificados caíram em mãos do PAIGC – Quifaro e Madina-Xaquili – o PAIGC sente a necessidade de robustecer a componente militar e, simultaneamente, adaptar a sua fórmula organizativa, ganhando mais disciplina e capacidade de resposta.

Surge assim o Conselho Superior de Luta, que substitui um ultrapassado Comité Central, enquanto o Bureau Político dá lugar a um Comité Exe­cutivo da Luta. No topo de uma pirâmide vincadamente hierarquizada, passou a existir uma Comissão Permanente, formada pelo secretário-geral, por Luís Cabral e por Aristides Pereira.

O PAIGC reestrutura os seus Serviços de Propaganda e fundou o PAIGC Actualités, cujo primeiro número saiu a 1 de Janeiro de 1969. Aquando da sua aparição, Cabral que se encontrava em Boé, escreve uma mensagem, que foi reproduzida nesse número, em que dizia “ (…) estou absolutamente convencido de que a iniciativa de publicar um boletim de informação em língua francesa contribuirá de forma eficaz para a melhoria desta arma importante do nosso combate multiforme contra os criminosos colonialistas portugueses (…)” (11) [a tradução é nossa, L.A.].

Contra-ofensiva propagandística do PAIGC a nível internacional

Doravante, os agressivos processos da acção psicológica do exército português já não se baseiam apenas, como no passado, em gestos de beneficência, como oferecer pão e agasalhos às populações, mas assentavam sobretudo em métodos melhorados para contrapor aos argumentos de acção psicológica que o PAIGC usava eficientemente na conquista das populações, sendo ainda de notar que uma vasta rede de rádios funcionava qual caixas de ressonância dos seus Serviços de Informação e Propaganda, a saber, Rádio Portugal Livre (Praga) da FELPA, Rádio Voz da Liberdade (Argel), também da FNLP, Rádio Moscovo, Rádio Pequim, Rádio Tirana, da Albânia, Rádio Libertação em Conakry (PAIGC), Rádio Voz da Revolução em Brazzaville (MPLA), Rádio Difusão e Radiotelevisão da RDC, em Kinshasa, Rádio Tanzânia, em Dar-es-Salam.

Para além disto, o PAIGC promoveu uma série de outras acções de propaganda dirigida a opinião pública internacional, como sejam as reportagens e artigos abonatórios na imprensa inglesa publicados desde 1966 pelo jornalista e historiador Basil Davidson e, em 1969, na imprensa italiana, pelo jornalista Crimi, jornalista, e pelo fotógrafo Uliano Lucas, ou ainda o aparecimento em Londres, de um livro da autoria de Richard Handyside, editado pela Stage 1, com discursos de Amílcar Cabral, e igualmente a exibição de filmes nas grandes capitais e metrópoles europeias rodados por várias cineastas sobre a vida e a luta do PAIGC.

Por outro lado, o novo conceito de acção psicológica empreendido por Spínola na Guiné visava igualmente uma solução política, baseada numa guerra de desgaste de longa duração, que levasse o PAIGC, pela fadiga, pelas divisões internas e pela descrença na vitória, a afastar-se das potências que o apoiavam e a procurar de novo integrar-se nas estruturas portuguesas.

'Autonomia progressiva e participada' (Marcelo Caetano)

Podemos resumir do modo seguinte os principais eixos dessa acção psicológica:

(i) Mostrar uma vontade firme de resistir e de vencer. O inimigo teria de acreditar que a luta em que o exército português estava empenhado era vital e de que nunca desistiria dela por fadiga ou por traição.

(ii) Acelerar o desenvolvimento económico e social dos territórios ultramarinos, aumentando a participação dos guineenses na administração dos negócios públicos, dando assim a ideia de que ao PAIGC só restava a opção entre os sacrifícios de uma luta de guerrilha e a sua integração numa sociedade em pleno desenvolvimento, na qual poderia participar.

(iii) Mostrar que o Governo estava pronto a receber aqueles que se arrependessem ou desistissem da luta.

Nesta estratégia enquadrava-se, perfeitamente, a política ultramarina por que se orientava o Prof. Marcelo Caetano e que era designada por autonomia progressiva e participada, expressão essa, aliás, que ele usou pela primeira vez num discurso pronunciado em Lourenço Marques (hoje Maputo), em resposta ao Manifesto de Lusaka onde fora revelada predisposição para o diálogo por parte dos dirigentes africanos que participaram na Conferência Internacional de Solidariedade para com os Povos das Colónias Portuguesas e da África Austral.

Marcelo Caetano defendeu então um projecto de autonomia pro­gressiva para as províncias ultramarinas, consubstanciando igualmente a acção psicológica de Spínola no que convencionou chamar de construção de uma Guiné melhor, ao que Amílcar Cabral respondeu dizendo que “nunca se iludiriam com os resultados de um possível referendo, na medida em que o Governo de Caetano persistia na sua guerra criminosa e que o PAIGC era há muito autodeterminado nas regiões libertadas que controla” (12).


Reordenamentos, sistema de autodefesa e faricanização da guerra

Todavia, na Guiné trava-se uma guerra revolucionária, escreve Spí­nola em O Problema da Guiné, em que as duas partes em pre­sença têm um mesmo objectivo: a conquista das popula­ções. Para isso, não basta a G-3, é necessário conjugar a manobra militar com a promoção socioeconómica e a acção psicossocial.

São os reordenamentos, para organizar a população em ei­xos situados junto aos quartéis, de modo a furtá-la à penetração do PAIGC e é o sistema de autodefesa das populações (13), ao mesmo tempo, que é accionada outra poderosa arma: a acção psicológica, que aposta na africanização da guerra para captar as populações para a causa nacional, por meio da progressiva recuperação das que estão sob duplo controlo. Como já assinalamos, um vasto esforço, que altera profundamente todo o dispositi­vo militar e administrativo no território. Tudo em nome de uma Guiné melhor – o lema que se transformará em bandeira da administração Spínola.

O PIFAS, em cinco línguas locais, e as Directivas do Com-Chefe

No mato espalham-se cartazes mostrando um negro e um branco de mãos dadas. O Pifas, a emissão radiofónica das Forças Armadas, passa a ser emitido em cinco línguas locais, num es­forço para anular a Rádio Conakry e a Rádio Libertação, ante­nas da propaganda do PAIGC. Difundem-se apelos prometendo uma recompensa de 10 000 escudos a cada guerrilheiro do PAIGC que se apresentar com a sua arma (o ordenado mínimo praticado na altura era de 50 es­cudos e um enfermeiro diplomado ganhava cerca de 1500 es­cudos).

A linguagem da propaganda é cuidadosamente retocada e o esforço de conquista das populações obteve, no início, resultados, tentando aliciar os próprios elementos do PAIGC, que, na linguagem da política da Guiné melhor, deixaram de ser terroristas, porque dizia-se, segundo a mesma linguagem, que tratava-se afinal um confronto entre irmãos, ou seja, batalha inglória de que ne­nhum poderá sair vencedor, o que evidencia bem as verdadeiras intenções de Spínola: na impossibilidade de derrotarem militarmente o PAIGC, retirar-lhe pelo menos o ascendente e a superioridade militares, para que, na eventualidade de uma solução política, o exército português não fosse obrigado a negociar em situação de inferioridade.

Nesse período, no âmbito da acção psicológica e psicossocial, inúmeras outras directivas são postas em marcha, visando inverter a equilíbrio militar favorável ao PAIGC. Assim, a Directiva secreta das Operações Psicológicas Alfa, de 26 de Outubro de 1968, recomendava um maior esforço de acção psicológica no chão manjaco, através de acções panfletárias, campanhas de informação e propaganda radiofónica e exploração de motivações ligadas ao sobrenatural.

A Directiva 44/69 de 8 de Abril de 1969, esclarecia ser necessário: “ (...) gerar um clima psicológico novo, onde não haja lugar para ressentimentos e complexos de culpa (...) fazer um esforço orientado para a reconstrução moral e material da província (...), e um trabalho de mentalização, com o fim de eliminar tendências repressivas, consciencializando todos os militares na missão civilizadora (...)”.

A Directiva 58/68, para a época seca de 1969, e, no tocante à acção psicológica, referia-se ao esforço de APSIC (acção psicológica) sobre os manjacos, balantas e mandingas do chão fula. A Directiva 17/69, de 22 de Fevereiro de 1969, insistia no apoio às populações. A Directiva 57/69, de Junho de 1969, apelava aos esforços no sentido de se acelerarem os planos de urbanização para disciplinar acções tendentes a resolver o problema da habitação das populações. A Directiva 60/69, de 15 de Julho de 1969, sublinhava a necessidade do incremento da instrução primária e a Directiva 78/69, de 19 de Novembro de 1969, que gizava todo um plano da manobra a desenvolver na a época seca de 1969/70 (Outubro de 1969 a Março de 1970).


Prioridade ao chão manjaco

Porém, a Directiva 65/69, de 13 de Agosto, explicitava que o comando-chefe – depois de um estudo aprofundado, que ainda não havia sido feito anteriormente, sobre o meio étnico, religioso e linguístico, o meio socioeconómico, rural e urbano os resultados das acções de conquista e protecção das populações através de: importantes medidas sanitárias, preventivas e curativas e o apoio a actividades agrícolas e piscatórias – decidiu, como manobra estratégica, constituir o chão manjaco como área fulcral da luta contra a subversão. Reputamos ser esta uma Directiva da maior importância, devido ao facto de a sua execução vir a ser a acção militar de maiores repercussões na condução da manobra estratégica socioeconómica.

Privilegiou-se igualmente a actuação psicológica sobre as populações sob controlo inimigo de forma a conseguir-se a sua apresentação ou, no mínimo, a aceitação do duplo controlo. Em relação às forças portuguesas, os serviços de Informação e Acção Psicológica deram prioridade ao esforço de APSIC sobre os quadros e pessoal integrante, por forma a conseguir-se a sua participação na manobra socioeconómica, e a orientação das relações com a população, em todos os escalões executivos, visando a dignificação e promoção do nativo guineense no quadro geral da administração.

Relativamente ao PAIGC, este serviços orientaram doravante todo o seu esforço na dissociação do binário dirigentes/combatentes e na anulação do compromisso ideológico e da determinação de luta dos combatentes do PAIGC, por forma a conseguir o máximo de apresentações de elementos activos a recuperação dos ex-combatentes e a captação dos ainda combatentes. A APSIC era ainda orientada para o apoio das operações militares, e visava um triplo objectivo: as forças inimigas, os seus quadros políticos e as populações sob sua influência. Já naquela fase em que os departamentos próprios de Acção Psicológica entraram a funcionar em pleno, estas acções passaram a ser planeadas em relação a três fases: antes, durante e depois das operações.

Em Nhacra, foi instalado um potente emissor e criou-se na rádio o Programa das Forças Armadas dirigido a toda a população (europeia e africana), que era emitido três horas, semanalmente, em várias línguas nativas (manjaco, fula, mandinga e balanta), além de crioulo, que dispunha de sete horas e meia semanais, sendo este facto importante, uma vez que a língua portuguesa tinha pouca penetração na Guiné.

Os programas-tipo foram, essencialmente, orientados para a exploração de temas de contrapropaganda, como: “Colóquio”, “África em Foco”, “Tua Terra é Notícia”, “Sete Dias em Foco”. Além do mais, havia ainda os programas radiofónicos em língua francesa, que visavam as massas populares da República da Guiné-Conakry, Senegal e, em especial, de Casamansa, e tem as elites senegalesas e guineenses, com a finalidade genérica de contrariar a noção de isolamento internacional de Portugal e de desacreditar os elementos independentistas. Quanto aos refugiados, a actividade de captação visava o seu regresso à Guiné, explorando os laços familiares, o apego ao chão e as realizações que consubstanciavam a política da Guiné melhor.

Paralelamente a tudo isso, esses programas radiofónicos fomentavam a deserção e contestação no seio do PAIGC e contavam ainda com um serviço técnico destinado a interferir na audição dos programas da Rádio Libertação, do PAIGC, e doutras rádios estrangeiras, sendo ainda apoiados pela imprensa, através da revistas Panorama da Guiné e o jornal Voz da Guiné.

Outros expedientes de grande poder em termos de acção psicológica foram utilizados, mormente a graduação de novos oficiais e sargentos africanos na cerimónia do 10 de Junho, a promoção de visitas de entidades e jornalistas estrangeiros, por forma a tentar neutralizar o clima de sucesso que a bem orientada campanha do PAIGC, vinha conseguindo, etc.

Quanto às tropas africanas, deve assinalar-se o esforço notável feito no sentido de se abolir, na realidade da vida diária do serviço, qualquer espécie de diferenciação que pudesse ainda existir, de facto, entre elas e as europeias. Neste aspecto, deve ser citada uma medida de relevante efeito psicológico: a intensificação e alargamento em todos os escalões da miscigenação das unidades com europeus e africanos. Esta africanização dos quadros das forças armadas “ (...) servia também a Lisboa para apoiar a sua propaganda de que a guerra não tinha carácter racial (,..)”. Assim, na Guiné, formaram-se unidades que eram quase só constituídas por naturais do território e também, o comando de africanos, recrutados e instruídos no local e, posteriormente, graduados como oficiais e sargentos.


Reestruturação da Rádio Libertação

Do lado do PAIGC, a situação, caracterizava-se por um contínuo esforço no sentido de ripostar convenientemente a política da Guiné melhor, privilegiando-se simultaneamente, no plano estritamente militar, a continuidade dos trabalhos de constituição dos CE (Corpos do Exército) já iniciado. É curioso notar que foi a partir desta altura que Amílcar Cabral concebe e implementa todo um sistema de informações junto dos comandos e frentes de combate, com objectivos evidentes de se contrapor à intensa e cada vez mais bem organizada acção psicológica do exército português. Curiosamente, é nesta altura que o PAIGC adquire igualmente um potente emissor com que equipa a sua Rádio Libertação, reestruturando completamente esses serviços e, conferindo-a maior dinâmica, sob a supervisão de José Araújo, distinto jurista do que, entretanto, se tornou especialista em matéria de informação, cuja secção chefiava.

Em consequência de tudo isso, o PAIGC evoluiu para nova divisão administrativa e militar, em fun­ção do seu avanço político. Foi criada a Comissão Nacional das Regiões Liber­tadas e, militarmente, o território foi divi­dido, pelo rio Geba, nas frentes norte e sul, e estas em sectores ou zonas. As suas unidades estavam agru­padas em três tipos distintos: (i) infantaria – grupos, bigrupos e bigrupos reforçados (CE), predominantemente dotados de armas ligeiras e lança-granadas; (ii) artilharia – morteiros, canhões; (iii) e armas antiaéreas. Pode afir­mar-se, contudo, que não se registaram durante os anos de guerra dificuldades insuperáveis na obtenção, notan­do-se mesmo crescente volume de material disponível, fruto do constante aumento dos seus apoios externos.


Os efectivos da guerrilha

No que diz respeito ao pessoal, embo­ra as características da luta de guerrilhas torne difícil precisar os efectivos empe­nhados e estabelecer estimativas esclare­cedoras, o comando militar português considerava, em 1971, que as FARP totalizavam 5500 elementos, mais cerca de 2000 das milícias populares, tendo ainda alguma (pouca) margem para novos recrutamentos, perto de 900 a 1000 em cada inter-região, atendendo às taxas de natali­dade e mortalidade existentes na altura.

Segundo a estimativa referida, o PAIGC tinha o seguinte dispositivo/efectivos por unidades:
(i) bigrupo, 38/44.
(ii) bigrupo reforçado, 70.
(iii) Grupo de artilharia, 50.
(iv) Grupo de canhões/morteiros, 23.
(v) Grupo de foguetões/antiaéreos, 16.

A disposição dos efectivos por inter-regiões era a seguinte: Efectivos por regiões:

(a) Inter-Região Norte:

(i) Frente São Domingos/Sambuiá, 630.
(ii) Frente Canchungo/Biambe, 760.
(iii) Frente Morés/NhacrA, 680.
(iv) Frente Bafatá/Gabu Norte, 730.

(b) Inter-Região Sul: ´

(v) Frente Bafatá/Gabu Sul, 200.
(vi) Frente Bafatá/Xitole, 160.
(vii) Frente Buba/Quintafine, 230.
(viii) Frente do Quínara, 560.
(ix) Frente de Catió, 370.

Reorganização dos meios operacionais portugueses

Também o exército português, sob o comando de Spínola, ia sofrendo alterações e ajustamentos constantes de modo a adaptá-lo às novas circunstâncias da guerra. Assim, segundo a carta da situação de 3 de Agosto de 1969, podemos verificar que ocorreu sucessivas alterações na organização dos meios operacionais, embora sem modificações significativas no dis­positivo, nem nos limites das áreas características – oeste, leste, sul e Bissau:

(i) O Sector L4 é destacado do comando de agrupamento de Bafatá e passa à dependência directa do comando central.

(ii) Os COP1 e COP2 são extintos e as respectivas zonas de acção vol­tam à responsabilidade do sector S2, que, por sua vez, perde o subsector de Buba, onde tinha a sede, e transfere esta para a Aldeia Formosa (hoje Quebo).

(iii) É criado o COP4, que engloba o ex-sector de Buba e a zona sul do SI (Serviço de Intendência).

(iv) É criado o sector S4, com uma pequena área: a ilha de Bolama, onde tem a sede, que é também sede do CIM (Centro de Instrução Militar) e as ilhas das Cobras e das Galinhas, com uma secção em cada.

Pela Directiva 23/69, de 27 de Fevereiro, do comando-chefe, o Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG) deixa de ter interfe­rência directa na conduta operacional, ficando com plena responsabilidade nos assuntos que corriam pelos comandos das armas e chefias dos servi­ços das repartições do Quartel-General.

O Sitrep Circunstanciado (SC) 09/69, de 2 de Março, revela a cons­tituição de um agrupamento operacional (CAOP), com sede em Teixeira Pinto (hoje Cantchungo), interposto entre os sectores 01 e 05 e à custa das áreas destes. O CAOP é um órgão de comando apenas operacional, de escalão semelhante ao comando de agrupamento.

No mesmo Sitrep verifica-se uma troca de zonas de acção entre o sector 02 e o COP3. Este, porém, passa a ter sede em Jumbembem e não em Farim, ficando assim sobre o corredor de infiltração de Lamel. O SC 14/69, de 21 de Abril, refere a constituição do COP5, com sede em Nova Lamego (hoje Gabu), tendo por área de responsabilidade o sector L3 (retirado ao comando de agrupamento de Bafatá) e o Sector L4.

A Direc­tiva 27/69, de 13 de Março, do Comando-Chefe, justifica a criação deste COP pelo agravamento da situação na região de Gabu. Em Maio (SC 18/69) e de acordo com a Directiva 36/69, de 11 de Abril, é constituído o COP6 na área do sector 03. A fim de dar garan­tia de segurança à prossecução dos trabalhos na estrada Mansabá-Farim, Este, pelo que um COP coordena a actividade das forças que pertencem ao Sector 03 e recebe de reforço uma companhia de caçadores pára-quedistas.

Nesta data, aparece como novidade o TG3. Trata-se de uma área onde as operações ficam a cargo do Comando da Defesa Marítima da Guiné, a qual se estende ao longo do curso médio do rio Cacheou, entre o COP6 e o sector 01, a sul, e os sectores 02 e 06, a norte, à custa do território anteriormente à responsabilidade destes, registando-se novas alterações, patentes no SC 31/69. Assim, o COP4 alarga a sua área até à fronteira sul, com a inclusão da Aldeia Formosa, para onde é transferida a sua sede, e o sector S2, reduzido da área que cedeu ao COP4, passa a ter sede em Gadamael Porto. Na área do CAOP, é constituído o sector 07, com sede em Pelundo. Neste Sitrep aparece também como novidade a Zona de Intervenção do CAOP (ZICAOP). Situava-se no extremo norte da área de acção, não tinha forças de quadrícula e nela apenas era permitida actividade opera­cional coordenada directamente pelo CAOP.

O Sitrep Circunstanciado 31/69 continua a considerar o território da Guiné dividido, como já se referiu, em quatro áreas – Oeste, Leste, Sul e Bissau. Todavia, a estrutura de comando não acompanhou esta divisão. O COMBIS (relativo a Bissau) não sofreu alteração na estrutura superior: continua a dispor de um comando de agrupamento, um comando de batalhão e duas companhias na sede, uma em Nhacra, outra em Quinhamel e duas companhias de milícias. Com excepção de uma das da sede, todas as outras têm pelotões e até secções destacadas.

O Oeste continuou a não ser coordenado por um comando de agru­pamento. Tem um CAOP, com sede em Teixeira Pinto/Cantchungo, que coordena três sectores de Batalhão: o da sede, com designação 05, mas agora reduzido de uma pequena área a Norte, que deu origem a outro sector de batalhão, com sede em Cacheou e o sector 07, com sede em Pelundo, constituído igual­mente à custa da área Oeste do Sector 05. O Sector 03 passou a designar-se por COP6, o sector 02 e o COP3, como já se referiu, trocaram as respectivas zonas de acção e os restantes sectores de batalhão (01, 04 e 06) mantiveram-se, apenas com ligeira perda de área para dar origem ao já citado TG3.

O Leste aparece agora dividido a meio, de norte a sul entre dois comandos de escalão semelhante: o comando de agrupamento de Bafatá e o COP5, este com sede em Nova Lamego. O primeiro coordena: o sector L2 (que não sofreu alteração), o sector L1, (reduzido praticamente a metade da anterior ZA) que continua com sede em Bambadinca e com mais uma CCAÇ (companhia de caçadores) e o recém-criado COP7, com sede em Galomaro, que ocupa a metade oriental do antigo L1 e dispõe apenas de uma companhia na sede e outra em Dulombi, dois pelotões de milícias e conta com mais uma CCac, que é reserva do CC. O COP5 coordena os sectores L3 e L4. A área do antigo L1 – agora LI e COP7 – recebeu, assim, um reforço de 3 Companhias de caçadores.

O Sul continua dividido em sectores independentes, que são, agora:

(i) o S1 com sede em Tite, reduzido em área, mas praticamente com os mes­mos efectivos;

(ii) o S2, reduzido à parte que lhe pertencia na fronteira sul e com os efectivos que aí mantinha e a sede em Gadamael Porto;

(iii) o S3, com sede em Catió, sem alteração;

(iv) o S4, pequeno sector, com sede em Bolama, retirado ao SI.

(v) e o COP4, com sede em Aldeia Formosa (hoje Quebo) e que ocupa as áreas dos extintos COP1 e COP2, do sector de Buba (que per­tencia ao S2) e ainda uma faixa a sul do SI, até ao mar. O COP4 recebeu as forças dos sectores extintos.

Os efectivos portugueses

Em síntese, as unidades e órgãos operacionais existentes nesta data eram: dois comandos de agrupamento (Bissau e Bafatá), um CAOP (Teixeira Pinto/Cantchungo), 18 comandos de batalhão (mais cinco que do antecedente), quatro comandos operacionais (COP) (do antecedente três), um batalhão de engenharia, dois centros de instrução militar, duas companhias de comandos, 84 companhias tipo caçadores (mais 15), uma bateria de artilharia de campanha (guarnição normal), dois esquadrões de reconhecimento, uma companhia de polícia militar, um pelotão de polícia militar, 19 pelotões de caçadores independentes (de recrutamento local), 10 pelotões de morteiros, 1 pelotão de artilharia antiaérea, três pelotões de canhão sem recuo, dois pelotões de reconhecimento (Fox), 11 pelotões de reconhecimento (Daimler) e 25 companhias de milícias.

Entretanto, pela carta de situação de 2 de Agosto de 1970, verifica-se um acréscimo de meios operacionais no exército português na Guiné, especialmente constituídos no pró­prio teatro das operações, com recurso ao recrutamento local, quer para unidades regulares de comandos, caçadores e artilharia, quer para companhias de milícias. A intervenção do comando-chefe continuava a fazer-se mais à custa da constituição de comandos operacionais para dinamizar acções locais do que por alteração de limites ou de meios das unidades. Trata-se de um conceito de comando específico que ficou bem expresso na Directiva 70/69, de 18 de Agosto.

O teatro de operações é dividido em zonas, sectores e subsectores. As zonas são quatro: Oeste, Leste, Sul e Bijagós. Com excepção da última, as zonas dividem-se em sectores, atribuídos ora a comandos de batalhão, ora a comandos operacionais (COP). Além destas zonas existia uma área à responsabilidade do Comando de Bissau (COMBIS). Os sectores dividem-se em subsectores de companhia ou de desta­camento. Os comandos de agrupamento e os comandos de agrupamento opera­cionais (CAOP) podem englobar indistintamente zonas, sectores e subsectores.

Para além destes órgãos, aparecem ainda comandos de agrupamento temporários (CAT) e comandos operacionais temporários (COT). Todos estes órgãos (CAOP, COP, CAT e COT) eram organizados pelo comando-chefe com pessoal existente localmente na Guiné. Os comandos de agrupa­mento tinham constituição orgânica e eram destacados da Metrópole. O dispositivo, no entanto, sofre constantes alterações como consequên­cia da prioridade dada à manobra socioeconómica, preocupação que levou mesmo à desocupação militar de áreas desabitadas ou pouco habitadas, as quais passaram a ser designadas por zonas de intervenção do comando-chefe (ZICC). As alterações verificadas até se chegar ao dispositivo existente em 2 de Agosto de 1970 são a seguir descritas por ordem cronológica.

Segundo o Sitrep Circunstanciado n.º 36/69, o COP3 e o sector 02 são repostos nas suas áreas iniciais, com sede respectivamente em Bigéne e Farim. é criado na ZA do CAOP mais um sector, à custa das áreas dos sectores 07 e 01, com sede em Bula, e que passaria a ser designado mais tarde por 01A (SC 40/69). a área do TG3 é reduzida e mais tarde inte­grada na zona de acção do COP3 (SC 51/69). o COP6 é recolhido e desac­tivado e a respectiva área volta ao controlo completo do sector 03.

Pelo SC 40/69 é revelada a extinção do sector S2 e a integração da sua área no S3. Pouco depois, também o sector S3 é extinto e a sua área integrada no S4, à excepção de uma pequena faixa a noroeste que passa para o S1 (SC 44/69). Ainda segundo este SC, todo o Leste (LI, L2, L3, L4 e COP7) é posto de novo na dependência do comando de agrupamento de Bafatá. Em Dezembro, o SC 49/69 relata que: no CAOP é extinta a ZICAOP e os sectores 05, 07 e 10 passam a depender do sector do batalhão de Cacheu. no Sul, é recolhido o COP4 e a respectiva ZA volta a designar-se S2. No Leste o mesmo aconteceu ao COP7 e a área passa a constituir o sector L5.

No princípio de 1970 (SC 5/70) o sector S4 é extinto e Bolama passa a ser a sede da agora criada Zona dos Bijagós, cujo comando continua à responsabilidade do comando do CIM (Centro de Instrução Militar). Em Agosto deste mesmo ano (SC 31/70), aparecem delimitadas várias áreas excluídas da quadrícula. Surge de novo a ZICAOP e são criadas outras zonas de intervenção: no Oeste a zona de Canjambari. no Sul uma pequena área a norte do Sector S2, a ilha de Como e os baixos cursos dos rios Cumbijã e Cacine. no Leste todo o sul do Sector L3 (Madina do Boé). Todas estas áreas dependem do comando-chefe (ZICC).Na mesma altura, é instalado o COT1, no Norte do sector L3, com sede em Pirada, e que dispõe de efectivos relativamente elevados: cinco companhias ti­po caçadores, uma companhia de comandos africanos e dois pelotões de milícias. Em síntese, podemos considerar que os meios de apoio de fogo, em Agosto de 1970, aumentaram significativamente, assim como as acções operacionais.

Nessa altura, em síntese, eram as unidades existentes: dois comandos de agrupamento (Bissau e Bafatá). dois comandos de agrupamento operacionais (CAOP – Teixeira Pinto e CAOP – reserva), 18 comandos de batalhão, um comando operacional (COP), um grupo de artilharia de campanha (guarnição normal, com 27 pelo­tões de artilharia de campanha). um batalhão de engenharia, dois centros de instrução militar. três companhias de comandos (uma é a companhia de comandos africanos), oito companhias de caçadores (de recrutamento local), 79 companhias tipo caçadores, dois esquadrões de reconhecimento, 18 pelotões de caçadores independentes (de recrutamento local). três pelotões de reconhecimento (Fox), 11 pelotões de reconhecimento (Daimler), 10 pelotões de morteiros 81 milímetros, três pelotões de canhões sem recuo. um pelotão de artilharia antiaérea. Uma companhia de polícia militar, um pelotão de polícia militar e 30 companhias de milícias.

Outro objectivo, no quadro das alterações introduzidas pelo comando-chefe sob as ordens de Spínola, era dotar a força aérea com as condições que lhe permi­tissem assegurar um elevado nível de prontidão e sustentação dos meios. Este conjunto de medidas tornou possível voar muito mais horas do que anteriormente, apesar do facto de cada hora de voo exigir, em média, cerca de 10/15 horas de manutenção, não falando das grandes dificuldades que se depa­ravam, quer por força dos constrangimentos a que o País estava sujeito, quer pela dureza e rusticidade das condições em que os meios operavam e eram mantidos. Acresce que, na sua maioria, os aviões de combate eram meios quase obsoletos, com uma idade média superior a 20 anos” (14).

Os resultados desta estratégia não se fizeram esperar. Uma população ainda não politizada aderia a quem de imediato lhe dava melhores pos­sibilidades de vida, embora ajudasse ao mesmo tempo os guerrilheiros, pelo que o general Spínola não podia dizer que estava a desarmar o PAIGC ao tirar-lhe a principal arma de combate, isto é, os motivos de descontentamento.

A propaganda, bem feita, conseguiu mesmo atrair muitas populações anteriormente foragidas no mato ou acolhidas nos campos de refugiados da guerrilha, no Senegal ou na República da Guiné-Conakry e também alguns dirigentes, levados pelo cansaço ou por dissensões internas, apresentam-se ou são capturados, voltando-se mesmo para o lado de Spínola – é o caso, entre outros, de Rafael Barbosa, ex-presidente do PAIGC.

Entretanto, quando os sorrisos não bastavam, lá estavam os 40 000 soldados, os caças-bombardeiros Fiat e as bombas de napalme, embora não tão eficazes como em Angola. Para quê? Para vencer a guer­ra? Spínola não se iludia: “Para ganhar tempo, a fim de poder restabele­cer o equilíbrio militar (...)” (15).

No entanto, no chão manjaco, onde Spínola decidiu instalar a coordenação dos Serviços de Informações e Acção Psicológica, tornou-se um óbvio embaraço para o PAIGC, na medida em que esses serviços desenvolveram todo um trabalho de sapa e conseguiram mesmo, através de dignitários locais, penetrar no dispositivo do PAIGC. Estabelecem-se os primeiros contactos com os comandos dos bigrupos em acção na área - André Gomes e José Sanha, – e Spínola, acompanhado por Almeida Bruno, chega a ter um encontro com elementos do PAIGC (16).


O impasse militar no início de 1968

Nessa altura, porém, todos são unâni­mes na análise da situação militar, no início de 1968, na Guiné: a guerra estava atolada num impasse. Impasse, mas não empate, já que consagrava os ganhos do PAIGC nos quatro anos ante­riores e tornava a situação crítica para as forças portuguesas. A era de Spínola é inaugurada num período em que “la situation militaire est dans une impasse dificille sourtout por les troupes portugaises. Le PAIGC dispose d´une liberté total et ouverte d´installation et de manœuvres dans les pays voisins, ce qui lui facilite l´effet de surprise et rend plus sûres ses actions de guérilla, car le théâtre des opérations est peu profond, Par contre, le faible strcture administrative portugaise qui s´y trouve implanté, un résou routier insuffisant, le maillage des fleuves et canaux s´ajoute une grande ampleur de l´effet des marées, la dense arborisation aisée et la durée du climat non seulement empechent une intervention aisée et rapide des forces portugaises, mais les usent aussi physiquement car prés 80 por cento des effectifs sont constitué par des militaires européens ” (17).

Do ponto de vista estritamente militar, antes de a acção violenta se generalizar, as primeiras medidas no teatro das operações denotam a sua preocupação de ocupar o território por forças enquadradas segundo a hierarquia habitual: comando-chefe, comando militar, zonas militares, à responsabilidade de comandos de agru­pamentos, sectores, entregues a comandos de batalhão, subsectores, entregues a comandos de companhia, e destacamentos de pelotão e por vezes até de secção.

Perante o incremento das acções por parte do PAIGC, Spínola altera quase que imediatamente o dispositivo militar, substituindo destacamentos por companhias, para, mais tarde, voltar a aumentar o número daqueles destacamentos nas áreas mais afastadas da fronteira. Ainda quis ir mais longe no sentido de substituir batalhões com­pletos pelo sistema de rendição desfasada de pelo­tões ou mesmo de rendição individual, mas este alteração no dispositivo foi efémera, porque ele próprio o teria profundamente alterado em finais de 1968, quando centralizou toda a coordenação da actividade operacional no comando-chefe, suprimindo relativamente a esta estrutura de comando e coordenação as atribuições de intervenção operacio­nal.

Escalada da guerra a partir de Novembro de 1969

Assim, a partir de Novembro de 1969, o exército português intensificou os bombardeamentos às povoações fronteiriças dos países vizinhos com o objectivo de retirar o apoio destes ao PAIGC, chegando mesmo a utilizar, no período compreendido entre 1 e 27 de Dezembro de 1969, bombas de napalme, mormente nas localidades do Sul da Guiné, na povoação de Banta El Sila (Centro Sul). 

Aliás, é justamente no período em que se procedia a novas alterações no dispositivo militar português na Guiné que ocorreu, em Fevereiro de 1969 o desastre de Bassesse, a norte do rio Corubal, quando uma jangada que atravessava o rio foi fortemente atacada por um bigrupo do PAIGC, provocando o afundamento da mesma e a consequente morte de mais de 50 soldados.

Na sequência da retirada e do desastre, o PAIGC ocupou Madina de Boé, mais concretamente Medjo e Tchtché [Cheche] em Fevereiro de 1971, tendo o sido o facto alvo de enorme exploração junto da opinião pública mundial por parte dos serviços de informação e propaganda do PAIGC, ao que o exército português ripostava, com desculpas de terem abandonado aquela região em consequência do reordenamento populacional, que exigia que aquelas populações fossem transferidas para aldeias de maior progresso económico e social.

Embora se mantivessem as zonas e os sectores, as estruturas de comando não as acompanhavam. Passou-se à nomeação de comandos de carácter operacional, baseada numa organização do dispositivo militar em que assentava a estrutura do PAIGC, possuindo estes grupos, por vezes, categorias hierárquicas variáveis e implantação e duração eventuais: destinavam-se a cumprir mis­sões pontuais, determinadas pelo comando-chefe, substituindo, nalguns casos, a presença efectiva na área (quadrícula) pelo dinamismo da acção. E é assim que são cria­das as áreas de intervenção, as quais estão simplesmente desocupadas e só lá podem ser conduzidas operações pelo escalão a quem estão atri­buídas – comando operacional ou comando-chefe (18).

Em lugar da ocupação efectiva de todo o território, dá-se ênfase à denominada manobra socioeconómica, fazendo convergir as forças para as zonas de ocupação populacional e deixando as despovoadas para intervenções esporádicas de reconhecimento ou acções de combate a grupos do PAIGC eventualmente infiltrados e referenciados. (…)” (19).

Assim, o PAIGC deu pela primeira vez um inequívoco sinal de pretender, em 1971 pressionar a área de Guiledje-Gadamael, procurando manobrar segundo dois eixos convergentes a partir de Salancaur/Botche Sanza (por Medjo) e de Kandiafara. 

Para este objectivo, verificou-se o deslocamento de efectivos do CE da frente de Catió para reforçar os de Buba. Esboçava-se assim a tentativa do PAIGC de proceder ao corte de ligações terrestres entre Gadamael e Guiledje, o qual visava em especial pressionar este aquartelamento, que constituía uma ameaça a Kandiafara, situado já no território da Guiné-Conakry, mas importante do ponto de vista logístico e para a manobra do PAIGC no sul.

Com efeito, Cabral procurou a partir de 1971, estabelecer estruturas sociais de partido-Estado em Tigili/Iador/Sara/Zona Oeste (Biambi), Catió e Quintafine, enquanto que, por outro, se preocupava com as ameaças às áreas libertadas, traduzindo-se tal situação na polarização da sua actividade em torno da estrada Mansabá-Farim, na sua reacção ao reordenamento de Bissássema e na intenção de instalar forças no Unal, visando libertar corredores de infiltração que favorecessem os ataques aos centros urbanos. 

Assim, o PAIGC inicia, a partir desta altura, as acções contra Bissau e Bafatá, há muito anunciadas, num momento em que procede à desconcentração das unidades dos CE 199/A e 199/B, que se haviam deslocado para as áreas de Sano e Cumbamori (Senegal), dando por findo o esforço realizado na área de Barro-Bigene-Guidage.

Nesta desconcentração, o CE 199/A regressou à área de Campada, enquanto o 199/B foi ocupar e reactivar a base de Hermancono, que voltou a constituir área fulcral na fronteira norte, praticamente abandona­da desde Fevereiro de 1971, aquando da sua transferência para Canjeno. 

Como consequência desta nova ocupação de Sintchã-Djassi, aumentou de forma considerável o trânsito pelo “corredor” do Lamel, que passou a ser o mais usado, seguindo-se-lhe, em menor grau de utilização, o de Canja.

Ainda no que se refere à ligação com o interior da Guiné, uma vez que estas acções de iniciativa do PAIGC irradiavam no sul a partir do território da Guiné-Conakry, salienta-se, pelo seu significado, a reabertura do corredor de Campada, facto que surgiu da necessidade de uma ligação directa das bases no Senegal com o chão manjaco, em virtude da manobra que o PAIGC pretendia desenvolver nessa área. 

De resto, esta será uma das prováveis razões da deslocação do CE 199/A para a área de Campada e também a base da intensificação da actividade dos guerrilheiros do PAIGC que se verificou na área de São Domingos-Canjnde-Sedengal, na qual o citado corredor de infiltração está implantado (20).

(Continua)

_____________

Notas do L.A.:

(11) PAIGC Actualités, n.º 1, órgão de informação do PAIGC, Janeiro de 1969.

(12) PAIGC Actualités, n.º 10, Outubro de 1969.

(13) A organização das tabancas em autodefesa e o reordenamento das populações, na Guiné, foi determinada em 30 de Setembro de 1968. A "(...) política de agrupar populações em aldeamentos protegidos, representava uma cópia parcial da estratégia americana no Vietname e visava proteger a população rural dos insurrectos (...)"531, envolvendo responsabilidades acrescentadas para o Governo e para as Forças Armadas, perante as populações e, assim, as medidas adoptadas deveriam revelar-se eficazes, no tocante à segurança das populações e dos meios de subsistência. em Dezembro de 1971, havia 46 tabancas organizadas em autodefesa. A experiência demonstrou que era preciso reajustar as directivas sobre reordenamento e autodefesa. Assim, pela Directiva (secreto) 19/69, de 5 de Março de 1969, do comando-chefe das Forças Armadas da Guiné, foram publicadas as "Normas Reguladoras de Reordenamentos e Autodefesas".

(14) Corbal, Aurélio B. Aleixo, “O vector aéreo nas campanhas de África – Análise conceptual e estrutural” -, in Estudos sobre Campanhas de África (1961.1974), Instituto de Altos Estudos Militares, 2000, pp. 192-193.

(15) Rodrigues, Avelino, Borga, Cesário, Cardoso, Maria, O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril, Publicações D. Quixote, 4ª edição, Lisboa, 2000, pp. 148-151.

(16) Não nos foi possível confirmar em Bissau esta informação junto de José Sanha, ex-comandante do PAIGC.

(17) Barata, Manuel Themudo, op. cit., p. 76.

(18) Estado-Maior do Exército op. cit, pp. 93-96.

(19) Idem, pp. 57-59.

(20) “Anexo C ao Intrep” n.º 6/71- Pasta Organizada por Províncias Ultramarinas – Guiné- , Arquivos da PIDE-DGS/ANTT, NT 8924, fls. 15.
_____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. post de 25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1549: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (8): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte I

(**) Afirmação altamente controversa do Leopoldo Amado: as tropas portuguesas que foram protagonistas desses trágicos acontecimentos - como os alferes milicianos da CCAÇ 2405 que fazem parte da nossa tertúlia, o Paulo Raposo e o Rui Felício - negam terminantemente que tenha havido, como causa imediata e directa do afundamento da jangada, qualquer acção do PAIGC. Sobre o desastre do Cheche, no Rio Corubal, no âmbito da Operação Mabecos Bravios, vd. os posts:

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

(...) "(i) O desastre do Cheche ficou a dever-se, em minha opinião, ao excesso de peso entrado na jangada;

(ii) E ela é corroborada por todos aqueles que, como eu, viajavam na jangada e que em conversas a seguir ao desastre manifestaram a mesma opinião;

(iii) Note-se que a mesma jangada tinha já feito dezenas de travessias sob as ordens directas do Alf Diniz sem nunca se ter detectado qualquer problema;

(iv) Esse problema surgiu de forma trágica na última travessia, ou seja, naquela em que o responsável Alf Diniz não pôde efectivamente proceder segundo o que estava estabelecido, deixando entrar na jangada o dobro da sua capacidade, por ordem do 2º Comandante da Operação a que, pela natureza da hierarquia militar, não poderia opor-se;

(v) Mas fê-lo, e disso dei testemunho no âmbito do inquérito que se seguiu, advertindo previamente o seu superior hierárquico para o facto de estar a infringir as determinações que tinha sobre a forma de fazer a travessia do rio e da lotação definida para a embarcação;

(vi) E estou convencido que a rapidez do desaparecimento das vítimas nas águas calmas, escuras e profundas do Corubal, se ficou a dever ao facto de todos transportarem consigo pesado equipamento de guerra que lhes tolheu os movimentos e os conduziu para o fundo do rio, de forma tão rápida, com a agravante de que a maior parte deles não sabia nadar" (...)

(2) Vd. diversos depoimentos da autoria de alguns dos nossos tertulianos:

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1388: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (III parte)

segunda-feira, 5 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1565: A CCAÇ 12, o nosso 'neto' António Duarte e os nossos queridos 'nharros' (Abel Rodrigues)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Messe de Oficiais > CCAÇ 12, adida à CCS do BCAÇ 2852 > 1969 > O Alf Mil Abel Rodrigues, ainda com um ar de periquito... O Abel foi o primeiro dos três oficiais milicianos da CCAÇ 12 (que ainda estão vivos) a entrar para a nossa tertúlia. Além dele, ainda há o Carlão e o Moreira. Havia um outro Rodrigues, que infelizmente já faleceu. A CCAÇ 2590/CCAÇ 12 esteve em Contuboel e Bambadinca (Maio de 1969/Março de 1971).

Foto: © Abel Rodrigues (2006). Direitos reservados.

Mensagem do Abel Rodrigues, ex-Alf Mil da CCAÇ 12 (1969/71) (1):


Olá, camarada!
Sendo a CCAÇ 12 especial, penso que seria interessante tentar atrair ao nosso convívio o maior numero possível dos nossos sucessores [, os que nos renderam individualmente a partir de Março de 1971].

Estive recentemente a trocar impressões com o Antonio Duarte (2) , pertencente ao nosso blogue e que já será nosso neto da CCAÇ 12.

Já tinha a impressão que os nossos sucessores trataram muito mal os nossos nharros, principalmente porque enquanto nós resolviamos os problemas à chapada, eles socorriam-se do regulamento de disciplina militar, mandando-os para a prisão e eles não gostavam, porque eram penalizados no pré.

Com a troca de impressões com o Duarte fiquei com essa certeza, porque o melhor elemento do 3º Grupo de Combate era o Totala Baldé e tinha sido despromovido, além de que não conheceu o Simba, que era o reguila do meu pelotão (Deduzo que ou foi morto em combate ou o mais certo foi ter apanhado uma porrada e sido corrido da companhia) (3).

Mas acho que será de lhes perdoar e seria muito interessante trocar impressões com eles.
Para ti, Henriques, um abraço muito especial, porque chegámos recentemente a sexagenários, quando pelo menos eu não pensava chegar aos 25.

Abel Rodrigues

Comentário do Henriques (aliás, L.G.): Parabéns, meu velho! E agora toca de chegar aos 100, para teres direito a ser tratado como... centenário!... Como os belos cavarvalhos da tua região, Trás-os-Montes. Vai dando sinais de vida. Fiquei feliz por apareceres, mais uma vez, no nosso blogue.
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 13 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1171: Abel Rodrigues, o primeiro ex-oficial miliciano da CCAÇ 12 a entrar para a nossa tertúlia

Contactos >
Abel Maria Rodrigues (ex-Alf Mil, CCAÇ 12)
Urbanização do Juncal - Lote 20
5210-209 MIRANDA DO DOURO
Telef 273432263 / TM 967037338

(2) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1553: A CCAÇ 12 no Poidão e na Ponta do Inglês, pela enésima vez (António Duarte)

(3) Vd. post de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia) (Luís Graça)

Abel, aqui vai a composição do teu/nosso 3º Grupo de Combate, por onde também passou o Furriel Mil Atirador de Armas Pesadas Henriques (mais conhecido agora como Luís Graça, humilde editor deste blogue). Deixo-te também o endereço de e-mail do teu furriel, o José Luís Sousa, o nosso Zé da Ilha. Do Arlindo T. Roda, natural de Pousos, Leiria, não tenho e-mail nem notícias. Julgo que ainda vive e trabalha em Setúbal.

Comandante: Alf Mil Inf 01006868 Abel Maria Rodrigues

1ª secção

1º Cabo 02920168 Carlos Alberto Alves Galvão

Soldado Arvorado 82108769 Totala Baldé (F)
Sold 82108569 Sambel Baldé (F)
Sold 82108969 Mauro Baldé (Ap LGFog 8,9) (F)
Sold 82110369 Jamalu Baldé (Mun LGFog 8,9) (F)
Sold 82109169 Malan Baldé (F)
Sold 82109569 Iéro Jau (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82110969 Samba Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82109969 Malan Nanqui (M)

2ª Secção

Fur Mil 07098068 Arlindo Teixeira Roda
1º Cabo 17625368 António Braga Rodrigues Mateus

Soldado Arvorado 82108369 Mamadú Jau (Ap Dilagrama) (F)
Soldado 82109369 Malan Jau (Ap Mort 60) (F)
Sold 82100769 Amadú Candé (Mun Mort 60) (F)
Sold 82108869 Quembura Candé (F)
Sold 82109769 Sherifo Baldé (F)
Sold 82115369 Ussumane Jaló (FF)
Sold 82110169 Madina Jamanca (F)

3ª Secção

Fur Mil 06559968 José Luís Vieira de Sousa
1º Cabo 12356668 José Jerónimo Lourenço Alves

Soldado Arvorado 82108469 Sajo Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Soldado 82109669 Cherno Baldé (Mun Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82109469 Sanuchi Sanhã (Ap LGFog 3,7) (F)
Sold 82109269 Sori Jau (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82110569 Mamadu Embaló (F)
Sold 82110769 Chico Baldé (F)
Sold 82115169 Demba Jau (F)
Sold 82108669 Cutael Baldé (F)


Observações: F= Fula / M= Mandinga / Ap= Apontador / Mun= Municiador

Guiné 63/74 - P1564: Memórias de um Comandante de Pelotão de Caçadores Nativos (Paulo Santiago) (7): Fogo no capinzal

Guiné > Zona Leste > Subsector de Galomaro > Dulombi > 1971 > Mina anticarro (A/C) levantada entre Dulombi e Palai Numba.


Guiné > Zona Letse > Subsector de Galomaro > Dulombi > 1971 > As minas antipessoais (A/P) que acompanhavam a A/C.


Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > 1971 > Jantar: Da esquerda para a direita, os Alferes Barata, Santiago, Ravasco, Alf Estagiário do CPC, Correia, MacMillan e Barros.


Foto: © Paulo Santiago (2007). Direitos reservados.


VII Parte das memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72).



Uma semana após a abertura da picada ligando Saltinho-Chumael-Galomaro, via Pulom, recebo ordem para me apresentar na sede do batalhão, com o meu grupo de combate. Aí sou informado para seguir para Dulombi,onde iremos participar numa operação - como sempre esqueci o nome - com a duração prevista de três dias.

Distribuídos por dois Unimog 404, chegamos a Dulombi, onde nunca tinha estado, ao cair da noite. As instalações eram muito mais precárias que as existentes no Saltinho. Naquela noite, além do Pel Caç Nat 53, havia também um grupo de combate da CCAÇ 2699, estacionada em Cancolim, pertencente também ao batalhão de Galomaro. A companhia de Dulombi era a CCAÇ 2700, comandada pelo Capitão Carlos Gomes, que conhecera, em Outubro de 1970, na minha viagem no Dakota, de Bissau para Bafatá, era eu um periquito, com três dias de Guiné (2).

Estávamos em Abril de 1971, quase no fim da época seca, e os comentários ao jantar davam a entender que a operação poderia ser complicada.

Às cinco da manhã estava tudo preparado para arrancar, 2 Grupos de Combate da CCAÇ 2700, o Pel Caç Nat 53 e o Gr Com da CCAÇ 2699. Já tinha saído um Gr Comb, com Milícias, picando o itinerário que seguia até à tabanca (abandonada) de Palai Numba, onde nós deveríamos chegar nas viaturas.

Na frente da coluna seguiam as viaturas de Dulombi, seguidas pelas do Pel Caç Nat 53, sendo a coluna fechada pelas viaturas que transportavam o pessoal de Cancolim. Comandava este pessoal, saído de Dulombi, o Cap Carlos Gomes, sendo os Gr Comb da 2700, comandados pelos Alf Mil Correia e Barros, sendo o Alf Mil Mac Millan o comandante do Gr Comb da 2699. Eu, como era lógico, comandava o 53.

Teriam passado pouco mais de trinta minutos, pára tudo repentinamente. Há um militar vindo lá da frente, que vem informar todas as viaturas da detecção de mina(s) na picada. Digo ao meu grupo para se apear, instalando-se, com o máximo cuidado, não vá haver por ali mais minas A/P ou armadilhas.

Depois de instalado, informam-me, através do AVP 1, que vão tentar levantar uma mina A/C. Passa mais de uma hora, quando voltam a informar terem sido detectadas nas redondezas seis minas A/P, que irão levantar. Passa mais um tempo indeterminado, até finalmente, informarem que foi tudo levantado, o grupo de picagem já tinha seguido, e nós iríamos prosseguir dentro de meia hora.

Passado este tempo, retomamos os nossos lugares nas viaturas,e inicia-se o andamento da coluna. O quarto Unimog, da 2700, seguia à minha frente, guina, desviando-se do buraco, onde tinha estado a A/C, há um rebentamento, uma nuvem de terra, saltamos instintivamente para o chão procurando abrigo. O que acontecera ? Houve uma mina A/P que não fora detectada, tendo sido pisada pela roda traseira esquerda, quando aquela viatura se desviou do buraco. Não havia ferimentos pessoais, apenas o pneu e jante tinham ficado danificadas. Mais uma espera, para mudarem a roda. Após a mudança, lá seguimos em direcção a Palai Numba, onde chegamos por volta das treze horas,parecendo que era previsto estarmos naquele local às dez mas as previsões falham…

Iniciamos o percurso apeado. Era uma fila imensa e, à nossa frente, estendia-se uma bolanha sem fim, coberta de capim seco. Seguíamos pelo meio deste capim e há um dos tipos de Cancolim que seguiam atrás do 53, que deve ter atirado uma beata para aquele capinzal. Apercebemo-nos, atrás de nós, que está o capim em chamas e a progredir na nossa direcção. Somos sobrevoados por um heli, que entra em contacto connosco, via rádio, mas não nos consegue ver, tal é a fumarada. O fogo avança, não se vê mata, onde nos refugiarmos, naquele mar de palha a arder.

Começamos a ficar apreensivos e começamos a correr. Ao fim de alguns minutos de corrida e de quase pânico, avistamos um tufo de mata, no meio do capinzal. Acelera-se o passo, ainda mais, e lá conseguimos chegar àquele abrigo de mata que teria pouco mais que um hectare. Ardeu tudo à volta daquelas árvores. Tínhamos estado à beira de um desastre. Claro que ninguém sabia quem atirara o cigarro.

Voltou a aparecer o heli, que facilmente nos localizou, já sem fumo, no interior daquele tufo de mata. Era o Gen Spínola que vinha saber como estava a decorrer a operação pelas nossas bandas. Havia mais militares envolvidos na operação, tanto deste lado, como do outro lado do Corubal. Chegamos à margem deste rio perto do anoitecer, onde nos instalamos para passar a noite. No dia seguinte dois Gr Comb seguem a margem do rio para montante e os outros dois para juzante. A missão era encontrar possíveis locais de cambança e aí montar emboscadas.

Não encontramos qualquer vestígio de passagem do rio. Voltamos a reunirmo-nos, no dia seguinte logo pela manhã. Vimos passagens de Fiats e helis e ouvimos muitos rebentamentos para os lados do Cheche e do Boé, no lado de lá do Corubal.

As viaturas foram buscar-nos, onde nos tinham deixado dois dias antes, tendo regressado a Dulombi sem problemas.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 13 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1424: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (6): amigos do peito da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72)

(2) Vd. post de 12 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1168: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (1): Periquito gozado

Guiné 63/74 - P1563: Nunca pensei que também havia as Maria de Portugal (José Teixeira)


Guiné > Empada (Região de Quínara) > 2005 > Antiga caserna agora transformada em escola ... Por aqui passaram homens como o José Teixeira e o Mário da Conceição Caixeiro, da CCAÇ 2381, Os Maiorais (1968/70). Um, o Zé, regressou, são e salvo, a casa... Outro, o Mário, não teve a mesma sorte...

Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.


Texto do nosso camarada Zé Teixeira:

Caríssimo Luís: Saúde, paz e felicidade. De vez em quando apareço, para te saudar e saudar todos os camaradas da tertúlia que continua em crescendo, sempre com estórias novas/velhas que nos dão o fio condutor da História por nós vivida numa guerra fraticida, para que fomos empurrados e cujas marcas continuam a reflectir-se no quotidiano das nossas vidas.

Hoje dediquei-me a escrever sobre as Marias de Portugal e reconhecer humildemente que me tinha esquecido delas. Junto mais dois temas, um dos quais extraído de um artigo de jornal enquadrado no mesmo tema (o stresse pós-traumático de guerra que também afecta as mulheres dos ex-combatentes, segundo peça da jornalista Sílvia Maia, da Lusa, publicado no Correio da Manhã, em 27 de Março de 2006).

Fraternal abraço para todos, com votos de que haja saúde física e psíquica.


Sublime atitude de amor
por Zé Teixeira


Equacionar, no tempo, os efeitos nefastos de uma guerra não desejada pelo povo, como todas as guerras o são, mas muito especialmente esta em que fomos envolvidos, era até agora para mim:

a) Os milhares de mortos, na flor da juventude, entre os militares envolvidos de ambas as partes da contenda, arrastados, uns pelo dever patriótico de defender a autodeterminação e independência da sua terra face a um dominador estrangeiro que pelo facto de ocupar há umas centenas de anos pela força do poder, se julgava rei e senhor e os outros, arrastados por uma máquina poderosa do Estado que se alimentava na ideia de não querer perder um território que afirmava ser seu, remando contra ventos e marés que o mundo moderno rejeitava.

b) Os milhares de mortos duplamente inocentes entre as populações que se contabilizam em crianças, mulheres, velhos e população activa, quantas vezes barbaramente assassinados, como eu mesmo pude testemunhar, com raiva. Vítimas que viviam envolvidas entre dois fogos, arrastados e divididos por duas correntes de patriotismo opostas que se degladiavam, sem sentido lógico. A sua pátria era a Guiné, está hoje mais que provado. Quantas famílias divididas, pais para um lado, filhos para outro.

O Kebá, meu ajudante de enfermeiro, recusou-se a entra na milícia e não me acompanhava nas saídas para o mato. Um dia após insistência de minha parte, abriu-se a contar a sua história. Duas das mulheres que tinha estavam do outro lado da guerra, com alguns dos seus filhos. Ele optara por ficar em Empada e um dia fugiu e foi procurá-las com o objectivo de as fazer regressar, correndo o risco de ser apanhado entre dois fogos. Regressou de mãos vazias, pois elas recusaram a ideia. Fixou-se de novo em Empada, onde tinha terceira mulher com seus filhos. Da base do PAICG de onde elas se encontravam, algures nos arredores de Empada, partiam os guerrilheiros que nos atacavam, pelo que mais de uma vez ouvi o seu desabafo, após a refrega. “Hodje minha fidjo ê mudjer di mim vem visita a eu” . O Kebá que tive o prazer de rever em 2005, alegre e feliz, agora com toda a sua família junta.

c) Os estropiados, entre militares e civis que sobreviveram. Vitimados por uma guerra suja de matas ou morres, quer a razão (se é que alguma vez houvesse razões lógicas, que justifiquem uma guerra) pendesse para um ou outro lado em função da noção de patriotismo inculcada pelos ideológicos. Sobretudo os civis que eram apanhados entre dois fogos, numa guerra sangrenta e suja de que procuravam fugir para sobreviver. Hoje quantos deles na extrema miséria por incapacidade física ou mental de se organizarem para ganhar o pão de cada dia, ou então apoiados por familiares que têm de repartir o magro salário, se é que o usufruem, por mais uma boca que pede pão.

Registe-se as vítimas de stress traumático que não são tão poucos como parece, de parte a parte pois quase não se fala deles. Terrível doença que aniquila a personalidade do individuo, tornando mero ser vegetativo, dependente e de sociabilidade complicada, que causam terríveis problemas à família, ou se isolaram e vivem como párias, perdidos sem nexo, numa vida de que perderam o sentido.

d) As viúvas na flor da idade que de um momento para o outro se viram sós, sem o seu amado. Os projectos de vida perderam-se para sempre. O recomeço, se o houve, quão difícil foi.

e) Os pequeninos órfãos que muitos nem chegaram a conhecer o seu pai.

f) Os pais que geraram e criaram com amor e carinho seu filho, para o entregarem à Pátria em holocausto não desejado, nem consentido. Ficou a dor eterna da perda, que fez muitas mães, sobretudo, perderem a alegria de viver.

g) Nós todos, os antigos combatentes, com as marcas, sonhos terríveis que nos atormentaram e continuam a atormentar que nos ficaram em resultado de cenas vividas e não desejadas e muitas vezes não admitidas pelo nosso inconsciente, em resultado de uma educação que nos tinha sido dada, sobretudo pelos pais e pela influência da religião que professávamos. Marcas essas que agora com o envelhecimento estão a vir ao de cima.

No meu caso, sonhava continuamente com a Guiné do arame farpado. Sonhava com um povo tal como o conheci, fechado nas suas tabancas envolvidas em arame farpado, cheio de medos de um inimigo que afinal já não existia, mas que as informações que nos chegaram nos primeiros tempos de independência, quanto a mortes e perseguições a antigos combatentes, nossos companheiros de jornada, alimentavam este meu drama. Só em 2005 quando tive a felicidade de lá voltar numa romagem de saudade, pude fazer as pazes comigo mesmo e afastar fantasmas que me perseguiam.

Ora, nunca pensei que também havia as Marias [que perderam amigos ou namorados, na guerra].

A coragem de uma coragem de uma mulher aparecer no Blogue com o seu testemunho - pese embora o editor o tenha feito circular apenas pela tertúlia e no Blogue tenha querido mantê-la sob anonimato (1) - , arrastou à minha memória tantas jovens raparigas que viram partir os seus amores para o desconhecido de uma guerra num país lá longe, em África, que os mentores da ideologia política reinante afirmavam ser parte da nossa Pátria e que era preciso defender de ambiciosos estrangeiros.

Os contornos e efeitos dessa guerra eram-nos subtraídos, apenas pequenos e lacónicos comunicados com o nome dos mortos e os caixões com falecidos em combate, que as famílias com algumas posses conseguiam resgatar, eram sinais visíveis de que a guerra era a valer. Juntavam-se os discursos inflamados no 10 de Junho, para alimentar a plebe. Feira de vaidades que permitia aos Chefões tirar do guarda-fatos as vestimentas de gala e passeá-las pelo Rossio.

As jovens namoradas sonhavam com os seus amados, pintavam o futuro com os tons mais negros. Agarravam-se à esperança de que o seu ia ter sorte e voltaria são e salvo. Quantas se escondiam do mundo, dos prazeres que o quotidiano da vida lhes podia proporcionar, vestiam-se de escuro. Refugiavam-se no apelo ao seu Santinho predilecto à Virgem de Fátima e aguardavam em silenciosa esperança. O regresso do seu amor que o tempo teimava em manter afastado.

Nem a todas a sorte foi madrinha. Muitas unidas já pelos laços matrimoniais e com filhos, não voltaram a ver o seu amado. Outras transformaram-se em viúvas virgens. Uma bala assassina, enviada não se sabe por quem, um estilhaço de uma granada, roubou-lhes o que de mais belo possuíam, o sonho de construírem uma vida, um futuro em felicidade com aquele a que de alma e coração se entregaram por amor. A vida a que tinham direito.

Eles, ficaram pelo caminho, esmagados por sofrimentos terríveis ou . . . sem saberem de que morreram. Elas, tiveram de ganhar novas forças e recomeçar caminhos novos, passado o choque inicial, o sofrimento da perda que acreditava eu com o tempo se tinha esvaído num passado para esquecer. Anos de vida que se perderam, momentos felizes da vida que teimavam em manter-se no sótão da memória, marcas com muito custo afastadas.

Este e outros casos levantam, para mim, um novo drama, que sinceramente pensava que já tinha sido abafado. A fidelidade, mesmo quando factores da contingência da continuidade da vida obrigam a mudar de rumo, lá dentro fica para sempre a mágoa do amor que se foi de forma tão brutal e inglória. Drama que talvez, muitas outras mulheres mantenham vivo e silenciado, na dor e na raiva pela perda de uma vida a dois que legitimamente sonhavam e perseguiam com esperança e se esfumou num abrupto e seco telegrama a anunciar a morte "ao serviço da Pátria" do seu amado (3).

Às Marias de Portugal eu quero dedicar dois poemas que escrevi em tempos de guerra e que reflectiam o meu estado de alma.


AMOR EM TEMPO DE GUERRA

Ver-te chegar à minha vida, amor,
É sofrer.
Por saber que para a guerra vou.
Dizem que a Pátria me chama.
Já cá não estou para a semana.
Tu que nesta aventura quiseste entrar,
Acreditas no futuro ?
Estranha forma de amar.
Estranha forma de ser.
A razão do meu viver.
De lutar
Para voltar direito,
Escorreito.

Voltarei.
Gritei, na despedida, lembras-te ?
Quando o comboio apitava,
Um corpo morto ele levava,
Ficava contigo o coração.
Sentado no degrau da Estação,
Enquanto me interrogava.
Que mundo vou conhecer ?
Que Pátria vou defender ?
Será que terei de matar
para viver
...E regressar
Direito.
Escorreito.

Estranha forma de ser.
O desafio aceitar.
Dois anos tu vais ficar,
Tu e eu a sofrer.
Ambos vamos sonhar.
Estranha forma de amar.
A razão do meu viver,
De lutar para voltar
Direito.
Escorreito…


A CARTA QUE NÃO ESCREVI
(Dedicado ao camarada Mário da Conceição Caixeiro que morreu sem eu lhe poder valer) (2)

A carta que escrevi,
Não escrevi.
Ao seu destino chegou.
Atrasada.
No avião seguia, quando morri,
Levou-me o sopro de uma granada.
Dizia eu que estava bem. Era verdade.
A guerra estava parada.
À vista o fim da Missão,
Servir a Pátria amada.
Cantava.
Cantava de alegria,
Afastava a solidão,
O medo, a angústia, o desejo de voltar.
E veio a granada para me matar.
A notícia voou rápida,
Para ferir.
Levou à minha amada
A dor de me ver partir,
Sem me despedir.
A carta.
Juro que a escrevi,
Mas não escrevi
Porque morri.
Sei que a leste
Com que fé, amor !
Esperança danada
Que fez esquecer a dor,
Da mensagem levada
Pelo Crocodilo lacrimado,
Com o resto da minha granada,
medalhado.
Eu estava.
Mas não estou.
Quando cantava
A morte me levou
E a minha carta
Para ti, Amor,
Viajava, levando a esperança
Que acabou.


___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)

25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)

28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As Marias que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)


(2) Vd. post de 11 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca

Vd. também o belíssimo diário do Zé Teixeira, já publicado em 19 posts > 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

(3) Caríssimo Zé: Valeu a pena ? Pergunta o poeta, perguntas tu e eu, pergunta a nossa geração... Deixa-me também recordar aqui o magistral Mar Português, que o Fernando Pessoa escreveu na Mensagem (1934), o único livro publicado em vida do poeta e que mereceu um obscuro prémio num concurso de poesia lançado pelo SNI do António Ferro:

X. MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

domingo, 4 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1561: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (35): O Fado Hilário, em Mansambo, antes do internamento no Hospital Militar de Bissau

"Uma palavra sobre as últimas leituras em Missirá [no final de Fevereiro de 1969]. Li Corpo Ausente, de Mário Braga. É um conjunto de novelas que falam exactamente de ausência, rompendo os muros dos códigos não realistas: o morto que parte e é negócio para cangalheiros, incapazes de perceber a dor e a fragilidade de quem contrata um serviço em desequilíbrio; um espólio guardado num baú que esperou um amor intenso para ser posto à luz do dia; um cauteleiro fantasma que entra em pesadelo, misturando a realidade com a ficção; uma noite de insónia onde o insone reorganiza o passado e glorifica o futuro; um grupo de resistentes que atropelam um transeunte e não resistem à solidariedade" (BS).

Foto: Capa de Corpo Ausente (novelas), de Mário Braga. Lisboa: Portugália. Editora. 1961 (Contemporânea, 26). Autor da capa: João da Câmara Leme.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1973 > CART 3493 > Aquartelamento de Mansambo (donde partiu o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, em 27 de Fevereiro de 1969, para a Operação Fado Hilário, a Galoiel, juntamente com forças da unidade de quadrícula local, na época a CART 2339, a que pertencia o Alf Mil Torcato Mendonça). Reconhecem-se na fotografia soldados (africanos) da CCAÇ 12, em preparação para mais uma operação no regulado do Corubal.

Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento. Ao fundo, da esquerda para a direita, a estrada Bambadinca-Xitole. Na foto é vísivel a célebre árvore dos 17 passarinhos que servia de mira... para os ataques do IN.
Foto: © Humberto Reis (2006) . Direitos reservados.



Texto enviado em 2 de Fevereiro de 2007. Continuação das memórias do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).


Fado Hilário
por Beja Santos


A 26 de Fevereiro, a meio da manhã, chegou a Missirá o Pel Caç Nat 63 que aqui vem ficar enquanto partimos para a Operação Fado Hilário a desenrolar em Mansambo, indo connosco o Pelotão de Milícias nº 102, de Finete, ficando neste alguma milícia de Missirá e parte do Pel Caç Nat 54. Antes de partir, depois de ter apresentado o aquartelamento à tropa que vai ficar, peço ajuda ao Cherno para começar a arrumar os meus bens, já que de Mansambo partirei para Bissau, para ser operado.

Primeiro, os discos. Trouxe tudo o que tinha: óperas como a Madame Butterfly, La Traviata, Otelo, D. Carlos, mas também a Salomé, O Crepúsculo dos Deuses, o Parsifal; música de câmara de Haydn, Mozart, Beethoven, Prokofiev; recitais de piano, como o de Samson François a tocar os prelúdios de Chopin, oferta da Cristina; Adriano de Correia Oliveira e Zeca Afonso, até com compras feitas em Bissau, no início de Agosto passado. O Cherno e eu limpamos os discos enquanto George London, uma das mais lindas vozes de barítono de todos os tempos, enche os ares com árias de Verdi e Massenet.

Seguem-se os livros, espalhados, sublinhados, maltratados e por vezes permutados. Não falo do que já aqui foi invocado, recordo os ensaios, os livros sobre religião, história, antropologia e sociologia que estou a arrumar pela última vez, sem o saber. Naqueles dois baús estão os livros que fui acumulando desde os 14 anos, as lembranças dos amigos como aquela espantosa obra Espera de Deus, de Simone Weil que o Carlos Sampaio me ofereceu na véspera de embarque, que li e reli sofregamente e que mais tarde aqui faremos referência graças à tradução portuguesa que encontrei recentemente na Assírio Alvim.

Estão aqui lembranças das minhas economias, descobertas que me deslumbraram nos alfarrabistas onde passava as minhas tardes de sábado , estão aqui os meus cinco sentidos, um dos meus sedimentos culturais, as leituras da minha paz, a minha companhia entre as emboscadas nocturnas, as obras em Missirá, os patrulhamentos a Mato de Cão, a vigilância que procuro responsavelmente montar no Cuor. São livros preciosos de estudo, na sua maioria, o destino pregou-me uma partida, acabei por me centrar na ficção, com os meses que virão vou descobrir a perda de capacidade de concentração e a propensão para leituras menos comprometidas.

Depois, arrumo a documentação que vou entregar ao cuidado do Casanova, se bem que haja duas diligências a prover no processo da Fatu e dos seus dois filhos brutalmente sinistrados com uma granada de fumos, em Finete, em 1967. A seguir, dou ordem ao meu correio, recebido nos últimos 7 meses: as cartas da Cristina e da minha mãe, a companhia dos amigos em toneladas de aerogramas, o apoio permanente, do Ruy Cinatti, do Carlos Sampaio e de tantos outros. Ordeno as cartas e os aerogramas dentro de uma caixa de sapatos. Faço a mala com roupa para duas/três semanas, escovo a farda nº 2 que não uso desde que saí de Bissau. Nessa altura, lembro ao Cherno que é preciso remover várias caixas de munições e entregar os livros de abastecimentos ao cuidado do Alcino Barbosa, o 1º Cabo que recebeu esta incumbência, coadjuvando o Furriel Pires.

O Cherno olha-me fixamente e adianta:
-Ainda não lhe disse mas vou de férias. Vou contigo, vou para Bissau, levo a mala e depois vou levar água e bananas ao hospital. Quem vai ficar aqui a tomar conta da cubata de Alfero é o Ussumane Baldé. O guarda-costas anda sempre com Alfero.

A voz embargou-se-me, eu estava tolhido pela comoção, e só recentemente me recordei das visitas do Cherno ao Hospital dos Capuchos, quando fui operado a uma hérnia discal, em 1995. O Cherno aparecia todos os dias com duas garrafas de 1,5 litros de água e quilos de bananas monumentais. A explicação que me deu era muito simples:
-A água faz sempre bem e se a comida não for boa a banana aconchega.

Pois bem, está tudo arrumado, olho à volta, detenho-me a arrumar a colcha da minha cama e saio da cubata enquanto o Cherno tira as esteiras do chão e varre o espaço que ele assumiu sob a sua total responsabilidade. Cá fora , bem fardados, aguarda-me o Pel Caç Nat 52 em peso. Binta, a minha lavadeira, não esconde a sua ansiedade:
-Vai embora? Não me paga? Fica em Bissau? - Explico-lhe que vou primeiro a Mansambo e que só dentro de três dias é que parto para Bissau e virei a andar melhor.

Perguntei há pouco tempo ao Queta Baldé se a Anda Cá tinha deixado gente doente, impossibilitada de nos acompanhar a Mansambo:
- Estávamos muito tristes com a perna quebrada do Fodé, sabíamos que nosso Alfero estava a sofrer, decidimos ir todos. - E Queta que tem a memória prodigiosa que já viram, adiantou:
-Ia o Teixeira com o rádio, o Domingos com a metralhadora, o Ussumane, Mamadu Silá, Mamadu Djau, Cherno, Campino, Serifo, Tomani, Sadjó, Silá Baldé, Camara, o Doutor e eu, mais os cabos Alcino e Queirós. Levámos duas bazucas, um morteiro 60 e 4 apontadores dilagrama. Não se esqueça que o Alferes Reis, aquele sapador que armadilhou tudo à volta de Missirá já andava aos gritos com o Alferes do 63, dizendo que quem mandava ali era ele.

Depois de cumprimentar a população e de abraçar o régulo, partimos. Em Finete, juntou-se Bacari Soncó, mas antes fui cumprimentar a família de Fodé Dahaba. Gente da CCS e do 54 desejaram-nos boa sorte. Em Bambadinca, fui recebido por o Major das Operações, desta vez lacónico e que soletrava as sílabas como lâminas de gelo:
-Veja lá se depois da barraca de Madina levam desta vez a missão até ao fim. Já lhe expliquei que vão à região Galoiel, confirmar que o acampamento inimigo está abandonado. Não é nada de especial, mas pode haver surpresas.

Chegámos a Mansambo ao anoitecer, era a primeira vez que visitava este quartel, quase novo em folha (2). Para quem, como eu, estava a ser demolido por não saber demarcar quartel da tabanca, dei comigo a pensar onde estaria a população civil de Mansambo. Só mais tarde, quando comecei a fazer patrulhamentos na periferia de Bambadinca e a coordenar colunas ao Xitole é que fiquei com a ideia do ordenamento das populações. O Capitão Laranjeira Henriques, de quem me tornei amigo, recebeu-nos com afabilidade e pela primeira vez desde que cheguei à Guiné fui inteirado da missão de combate, com rigor e objectividade.

Depois de jantar, recordo que fui encontrar Cherno, Mamadu Djau e Tomani a rezar. Quando recuei para não os pertubar, Mamadu tocou-me nas costas e disse-me:
-Estamos a rezar a Deus por Fodé Dahaba. Junta-te a nós. - Assim aconteceu, ergui as mãos e mais do que rezar desejei que o tempo passasse rapidamente para eu poder entrar numa enfermaria num hospital de Bissau.

Ao romper da alva, partimos para Galoiel . Socorri-me da história da operação e pedi confirmações a Queta, ele anuiu que havia dois picadores, Lati Baldé e Massamba Buaro. Ainda me atrevi a dizer:
-Queta, não será Massamba Buapó? É o que está escrito no relatório. - Ele foi categórico:
- Não, era Buaro, conhecia-o perfeitamente das feiras de Amedelai, Taibatá e Samba Silate, ele era da família Buaro e ficou muito ferido.

De facto, pouco passava uma hora após a saída de Mansambo quando foi detectada uma mina antipessoal, Buaro terá picado com demasiada força a tampa da mina que rebentou, ferindo gravemente os dois. Vem um grupo de combate de Mansambo que os transportou e eles foram evacuados.

Atingimos Galoiel três horas depois, e pela primeira vez entrei num acampamento abandonado, com cubatas desconjuntadas, sem colmo, estacas calcinadas, mostraram-me o local onde os rebeldes abrigavam as suas metralhadoras, não havia ali vestígios de que o inimigo regressara depois de ter sido desalojado em fins de Novembro passado. De acordo com a missão seguimos para o rio Samba Uriel onde ouvimos rajadas de metralhadora. Queta confirmou:
- Eu sabia, andámos demasiados expostos junto das lalas, alguém nos viu, aquele sinal da metralhadora era um código. Depois, a avioneta ajudava a denunciar-nos.

Procedeu-se à batida deste rio, apanhámos um trilho que servia anteriormente ligação entre dois povoados que tinham desaparecido com a luta armada e começava a escurecer quando regressamos a Mansambo. Na manhã seguinte, numa atmosfera de cordialidade que até agora não provara, regressámos a Bambadinca e daqui seguimos para Finete e Missirá.

Conversei nessa noite longamente com o Reis e o Casanova, a ambos entreguei memorandos que organizara com a escrita hábil do Pires: para além das idas obrigatórias a Mato de Cão, o plano das obras em dois abrigos, o recurso ao Sintex para trazer o material de construção civil que nos pertence e está no depósito de engenharia em Bambadinca; as obras em Finete, o pequeno curso de bazuca que será dado pelo Campino e Mamadu Djau. Apelei vezes sem conta a que o Reis não se excedesse em novos armadilhamentos, pedindo inclusivamente ao Pires que o acompanhasse para elaborar o plano dos novos engenhos.

Estou derreado, amanhã parto para Bissau. Por impulso, escrevinho os meus últimos volteios líricos:
- Os meus feridos martelam esta floresta e deslizam em abóbodas de gás, como se houvesse um concerto polar, uma pétala encravada à porta da minha morada. Retalho, esventro, entrego à pira recordações avulsas, iludindo a dor daqueles que acabaram de partir.

Não sei o que fazer à minha solidão, há silêncios que ribombam dentro desta cubata onde não sei resolver dolorosos conflitos sentimentais que estalaram entre pessoas que amo profundamente. Magoado com a minha condição, garatujo uma queixa que intitulei:
- Estou na guerra, mãe.

É um papel amarrotado, inconsequente e hoje risível, onde escrevo:
- Tu és a minha primeira testemunha e a minha ancestral companhia. És o meu campanário, uma ternura balouçante onde se redigem as poderosas leis onde elevo o meu coração ao cesto da gávea.

Dominado pela comoção e por aquela mágoa sem nenhuma direcção, desato a chorar convulsivamente no silêncio da noite. São os nervos de quem vai partir para Bissau, nada sabe do seu regresso, está tomado por negros presságios.

Uma palavra sobre as últimas leituras em Missirá. Li Corpo Ausente, de Mário Braga. É um conjunto de novelas que falam exactamente de ausência, rompendo os muros dos códigos não realistas: o morto que parte e é negócio para cangalheiros, incapazes de perceber a dor e a fragilidade de quem contrata um serviço em desequilíbrio; um espólio guardado num baú que esperou um amor intenso para ser posto à luz do dia; um cauteleiro fantasma que entra em pesadelo, misturando a realidade com a ficção; uma noite de insónia onde o insone reorganiza o passado e glorifica o futuro; um grupo de resistentes que atropelam um transeunte e não resistem à solidariedade.

Afago o livro quando o arrumo no baú, mal sabendo que o autor me oferecerá um igual exemplar décadas depois, pondo termo a uma ausência. E leio também Simenon e o seu herói mais popular, o Comissário Maigret. Mal sabia então que Maigret se iria alcandorar às minhas leituras predilectas. Então, deliciei-me com uma história rocambolesca em que Madame Maigret tomou conta de uma criança, perdeu a consulta do dentista mas ajudou o mais humano dos comissário de polícia a desvendar uma história intrincada, de final sombrio.

Saio de Missirá olho tudo bem à volta, como se estivesse a gravar toda a ternura da gente e do meio. Ainda não sei que esta Missirá já não vai existir quando eu regressar. E pronto, uma viatura leva-me a Bafatá e daqui parto para Bissau. O Cherno seguia comigo e perdeu completamente a timidez . Conversávamos, ele tinha a minha mala na mão, de repente, na pista do aeroporto de Bafatá, avançou para um piloto e perguntou:
-Não há um lugar para mim? Ele vai para o hospital e eu só tenho barco à noite para Bissau. Eu sou o guarda-costas de Alfero. Por favor.

O piloto olhou, depois olhou-me, sorriu e disse:
- Estás com sorte, sobe. Tu mereces seguir para Bissau.

E agora vou-vos contar a minha ida ao Hospital Militar 241.

________________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 23 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel


(2) Troca de correspondência entre o Beja Santos (Pel Caç Nat 52, 1968/70) e o Torcato Mendonça (CART 2339, 1968/69):
Assunto - Operação Fado Hilário, Galoiel, Mansambo, 27 de Fevereiro de 1969

(i) Mensagem do Beja Santos > Caro Torcato: Os nossos destinos cruzaram-se nessa operação em que se regressou a Galoiel, para se confirmar que estava às moscas.Tens lembrança, fotografias (das falantes!), recordas o picador que ficou sinistrado? Aguardo uma grande surpresa da tua memória elefantina, Mário Beja Santos

(ii) Resposta do Torcato Mendonça >

Beja Santos: Creio não ter participado nesta Operação. Cheguei na véspera, a Mansambo, vindo de férias. Estive na destruição do Galoiel em 28 de Novembro de 1968. Posso lá ter ido, fui a tantas…

Nesta, participaram 3 Grupos da CART 2339, o Pel Caç Nat 52 e Milícias de Finete – diz o Historial da 2339, que tem falhas.

Não tenho fotos. Infelizmente muito desse material, desapareceu… as tracejantes e a cobertura das moranças não conjugavam.

Efectivamente o IN (Turras) tinha abandonado o acampamento. Diz o breve relatório – ouviu-se um tiro, de caçador IN… Pelas 06h15, o picador Ladi Baldé detectou mina A/P… O picador Mamasamba Buero para verificar, aproximou-se, accionou a mina e ficaram ambos feridos…Foram evacuados para Mansambo… As NT prosseguiram, verificaram a destruição de Galoiel… deram uma volta, para verificar o trilho Demba Danejo-Biro e regressaram, pelas 16h30 ao Quartel.

Sabes eu afastei-me daquilo até Maio de 2006. Deram-me a conhecer o Blogue, do Luís Graça, …e tenho recordado. De quando em vez um escrito.

É o que sei sobre o Fado Hilário… Raio de nome! Pobre fado…pobre Hilário. Coimbra que lhes perdoe!

Meu Caro, um abraço, Torcato Mendonça.