terça-feira, 1 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > 1969 > "Interrogatório a um prisioneiro. Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita. O sorriso é o mesmo nas duas fotos. O prisioneiro era o Malan Mané".... 

Foto do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso ; legenda do ex-Alf Mil Torcato Mendonça; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos) (1).


Texto de Luís Graça (2)

Malan Mané. Vinte anos ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal, bilhete de identidade, passaporte, boletim de vacinas, caderneta militar, um papel que seja, a dizer quem tu és, de quem és filho, quando e onde nasceste. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região, ou pelo menos algum treino como milícias...

Malan Mané. Mandinga do regulado do Cuor, lá para os lados do Enxalé. Podia ter sido nosso soldado. Temos dois mandingas na CCAÇ 12: Malan Nanqui e Ussumane Sissé… Mas há mais outros dois Malan, de etnia fula: Malan Baldé e Malan Jau…

Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é talvez pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos...

Os páras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. A mala pata do Mané!... Por azar, foi apanhado pelos páras com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele (3).

Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui. Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné. Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra (2).

Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho, o refeitório dos praças. Entre a escola e o posto administrativo. Há um correpio de gente que vem ver o turra capturado pelos paras, na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no sub-sector de Mansambo (1). Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.

Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca (cabo-verdiana, ao que parece) que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola.


Guiné > Circa 1969 > Cartaz de propaganda das NT, dirigido ao homem do mato...

Imagem enviada por: © A. Marques Lopes (2006)

A senhora professora (que os senhores oficiais tratam com a deferência de cavalheiros) deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Se calhar é simpatizante do PAIGC. Ou até mesmo militante. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade (5).

Intriga-me a situação desta estranha personagem: uma mulher, mestre escola, talvez à beira da reforma, que insiste em viver aqui, no cú do mundo. Numa terra inóspita. Não sei donde veio. O chefe de posto é de Cabo Verde, como manda a tradição. Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, comendador da Ordem de Cristo, tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, governador de Bissau, de Cacheu e da província da Guiné, por carta de 24 de Janeiro de 1885, e que tem nome de rua no Porto...

Na realidade, a Guiné é (ou foi) uma colónia de Cabo Verde. Missionários e missionárias, oriundos da Europa, nem sequer os há aqui. Comerciantes tugas, só dois, perfeitamente cafrealizados, como se dizia no vocabulário colonial e racista dos europeus do Séc. XIX que exploravam estas paragens inóspitas.Os dois tugas vivem fora do perímetro do quartel. Um deles tem um bando de filhos, de mãe negra. O Rendeiro. Já nos convidou para lá ir comer a sua famosa galinha à cafriela. Fala dos filhos com ternura. Uma das raparigas está a estudar na Metrópole. Contou-nos a sua história. Veio da Murtosa, salvo erro, muito jovem ainda. Aos dezassete anos. Compra mancarra, vende arroz. Procura cultivar boas relações com a tropa. Acho-o demasiado afável...

Mas voltando ao Malan Mané: uns mandam-lhe piropos, outros dão-lhe um cigarro. Ou oferecem-lhe uma garrafa de cerveja, que ele recusa, delicadamente, como bom muçulmano que deve ser. Não entende as provocações que lhe dirigem:
- Então, pá, quantos tugas já mataste com o teu rocket ?

Há ordens, do comando, para o tratar bem. Tem-se mostrado colaborante. E para começar nada como um bom prato de bianda, arroz com mafé. Come com dignidade. No mato a vida é dura. Uma refeição por dia, um maço de cigarros por mês. Farda e botas novas só para os chefes. Bajudas, manga di sabe, também só para os chefes, imagino. Todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.

Tinha começado a aprender o português há pouco tempo. Sabe algumas letras do alfabeto latino. Não sei se chegou a aprender o Alcorão. Com a guerra, a sociedade mandinga desintegrou-se. Muitos mandingas foram no mato. Com os balantas e os beafadas. Mas só fala o crioulo e o seu dialecto mandinga O crioulo é a língua tanto do colonizador como do PAIGC. Ninguém se entende nesta Babel sem o crioulo que é uma genial criação dos homens, de diferentes grupos étnicos, que querem comunicar entre si. O exército não faz, porém, qualquer esforço para nos ensinar o crioulo.

Malan fala pouco, a custo. As suas respostas às minhas perguntas são lacónicas, arrancadas a ferro e misturadas com um leve sorriso resignado. Procuro transmitir-lhe sinais de simpatia e de compaixão. Foi no mato ainda menino, não consegue precisar com que a idade. Não deve ter conhecido outra vida. Chefe da tabanca levara menino e mulher para o Morès com medo de avião dos tugas. Primeiro deram-lhe uma semi-automática Simonov (uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser que está distribuída ao pessoal das tabancas em autodefesa). Começou como milícia: fazia segurança à tabanca e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. Mais tarde, é promovido a combatente como municiador do RPG-2. Passou depois a apontador. Há um ano atrás foi ferido em combate, no Xime, quando atacava lancha-grande em Ponta Varela.

Sabia quem era o novo homem grande Bissau.
- E homem grande di bó ?, perguntei-lhe eu.
- Amílcar Cabral. – Respondeu-me, de pronto, não sem uma certa expressão de orgulho (ou foi impressão minha ?). Não, nunca o tinha visto. Só o conhecia de nome e de retrato. Comissário político falava dele e da luta di partido africano.

O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus cento e tal quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 3º Gr Comb, do Alferes Rodrigues. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané (6). Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima. Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Conquistadores. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. São os cipaios, os agentes do colonialismo... Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar.

Malan é franzino e frágil, embora de estatura normal. Uma criança crescida na guerra. Procuro tranquilizá-lo. Mas não adianta. Vêm buscá-lo para mais interrogatórios. O interrogador do BCAÇ 2852 é o famigerado sargento do cavalo marinho do Pelotão de Informação e Reconhecimento. Um personagem sinistro, a quem nunca dirijo a palavra. Não posso com estes gajos. Fazem o trabalho sujo. Trabalham em estreita colaboração com os pides de Bafatá. Explorando-se o seu estado físico e psicológico, e muito provavelmente sob tortura ou ameaças físicas, o Malan Mané acabou por dar com a língua nos dentes e revelar mais algumas informações preciosas, comprometendo a segurança dos seus companheiros.

Foi a minha primeira grande decepção em relação aos guerrilheiros do PAIGC. Ingenuamente, eu julgava-os da estatura humanal, moral e até intelectual de um Che Guevara ou de um Amílcar Cabral!... Que idiota!... Acredito que a escola de guerrilha do PAIGC tenha formado já grandes combatentes e comandantes. Mas o pobre do Malan Mané não é muito diferente dos meus soldados e de mim próprio: fomos todos apanhados na rede como cães vadios; somos todos vítimas da História; nascemos no sítio e na data errados… Se eu fosse guinéu, muito provavelmente estaria a combater, com ou sem convicção, num dos dois lados da barricada.

Por um dia, O Malan Mané foi o meu herói, o meu anti-herói (7)...

O Malan Mané, se hoje ainda for vivo (8), terá por volta de 55 anos. Há muito que ultrapassou a esperança média de vida, à nascença, estimada para os homens da sua geração. Se alguém o descobrir, lá para os lados do Enxalé ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, mandem-lhe um abraço meu.

A última vez que o vi, ia preso por uma corda, à guarda do Iero Jau (9). Foi gravemente ferido por um diligrama nosso, no assalto a um acampamento da guerrilha na Ponta do Inglês. Na madrugada do dia 7 de Setembro de 1969. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O Iero Jau morreu. Morreu a meu lado. O Malan, também a meu lado, ficou gravemente ferido e foi evacuado para Bissau (8). Mesmo que tenha sobrevivido e chegado a ver a independência da sua terra por que lutou, não sei o que lhe terá acontecido depois.

Não sei como é que o PAIGC, organizado à boa maneira marxista-leninista, terá lidado com este e outros casos de colaboracionismo de antigos combatentes, feitos prisioneiros. Colaboracionismo ? Delação ? Traição ? Um homem não nasce herói. Mas eu posso testemunhar que o Malan Mané tentou resistir, tentou ludibriar-nos. Não demos com o acampamento da Ponta do Inglês, à primeira, em 25 de Agosto de 1969. Ele alegou que o capim estava muito alto e que se perdera. O tanas! O tipo conhecia aquilo de cor e salteado, de olhos vendados. Resistiu enquanto pôde, o pobre diabo.

Só lá voltámos, à toca do lobo, no dia 7 de Setembro (Op Pato Real). Os espíritos da floresta (bons ou maus, quem sabe distingui-los ?) não lhe perdoaram. Se ele morreu, de morte natural, em consequência dos seus ferimentos, ou de morte matada, dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários que acabam sempre por devorar as suas criaturas, espero ao menos que o seu fantasma continue a vaguear, agora mais tranquilo, pela orla da bolanha do Poidon, com o seu RPG-2 ao ombro, ou a sua velha Simonov a tiracolo, guardando desta vez os bons espíritos da terra. Para que eles iluminem o presente e o futuro daquela terra onde um dia nasceu uma criança, de seu nome, Malan Mané, e a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram uma arma e uma bandeira. E onde nós próprios fomos soldados contra a nossa própria guerra. Eu, pelo menos, fui.
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

(2) Há uma outra versão anterior: vd post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(3) Sobre a Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)

(4) Vd. post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"

(5) Bambandinca foi atacada ("flagelada", segundo a expressão, mais light, das autoridades militares locais), no dia 28 de Maio de 1969, "durante 40 minutos", por um grupo de uma centena de guerrilheiros ("elementos IN"), usando um forte dispositivo militar que incluiu, entre outros, 3 canhões sem recuo, além de vários morteiros, lança-rockets e armas automáticas.

Apesar da envergadura do ataque, houve apenas 2 feridos entre as NT. Por razões disciplinares, todos os oficiais superiores do BCAC 2852 foram punidos pelo Com-Chefe, a começar pelo comandante (tenente-coronel Pimentel Bastos, mais conhecido pelo diminuitivo Pimbas), na sequência desta ousada iniciativa do PAIGC, conduzida em resposta à grande operação de limpeza no Sector L1 a que foi dado o nome de código Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969).

Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)


(6) O Abibo Jau consta da lista dos guineenses que combateram do nosso lado e que terão sido fuzilados a seguir à independência: vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(7) Vd. posts anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã ;

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau

segunda-feira, 31 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1010: Pensamento do dia (6): O único rio a sério, na nossa terra, é o Corubal (Amílcar Cabral) (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Rio Corubal > 2001 > Os rápidos de Cussilinta

Foto: © David J. Guimarães (2005)

Texto de Amílcar Cabral (com adaptações de L.G.):

Na Guiné, terra cortada por braços de mar, que nós chamamos rios, mas que no fundo não são rios:
(i) Farim só é rio para lá de Candjambari;
(ii) o Geba só é rio de Bambadinca para cima, e por vezes mesmo para lá de Bambadinca há água salgada;
(iii) Mansoa só é rio depois de Mansoa para cima, já a caminho de Sara, perto de Caroalo;
(iv) Buba, esse não é rio de lado nenhum, porque até chegarmos a terra seca, é só água salgada;
(v) Cumbidjâ, Tombali, são todos braços de mar, a não ser na parte superior com um bocadinho e água doce na época das chuvas, sobretudo o rio de Bedanda, que vem a Balana buscar água doce.
(vi) O único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal.

Esta é uma realidade muito importante para nós, porque se, por um lado, temos muitos portos para entrar na nossa terra, com barcos, por outro podem ver o perigo que isso representa para nós. Se a nossa terra fosse toda fechada, com as andanças todas em que estamos nesta luta, o tuga já estava desesperado porque os quartéis não tinham comida. Mas como eles têm barcos e a nossa gente não ataca bastante os barcos, eles podem usar os barcos de mar para levar comida e material aos seus quartéis do interior" (...)

Fonte: Extractos de: CABRAL, Amílcar - A arma da teoria: unidade e luta. Volume I. 2ª ed. Lisboa: Seara Nova. 1978. (Obras Escolhidas de Amílcar Cabral. Textos coordenados por Mário de Andrade). p. 135.

Guiné 63/74 - P1009: Cancioneiro do Xime (1): A canção da fome (Manuel Moreira, CART 1746)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Esboço do sector, vendo-se a posição do antigo destacamento da Ponta do Inglês, abandonado pelas NT em Novembro de 1968, na nargem direita do Rio Corubal. Havia uma estrada que ligava directamente a Ponta do Inglês ao Xime.

Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971

Infografia: © Luís Graça (2005)


1. Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 52, Saltinho, 1970/72):

Mando-te a letra da Canção da Fome, da autoria do meu amigo e conterrâneo Manuel Moreira (1), ex-1º cabo do Pelotão comandado pelo Gilberto Madail, da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (2):


CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês (3).
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:

MANUEL VIEIRA MOREIRA.

Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968 (4)


______________

Notas de L.G.

(1) O Paulo Santiago e o Manuel Vieira Moreira são naturais de Águeda. O Paulo vive em Aguada de Cima.

(2) Vd. post de 23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P979: O Gilberto Madail pertenceu à CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (Paulo Santiago)

(...) "O mundo é pequeno. Tenho um amigo, aqui em Aguada, ex-soldado do pelotão comandado pelo Gilberto Madaíl. Telefonei-lhe há minutos, para me informar dos dados que procuravas.O Madaíl pertencia à CART 1746, transferida de Bissorã para o Xime. O grupo de combate, comandado pelo Madaíl, e do qual fazia parte o meu amigo Manuel Moreira, esteve destacado na Ponta do Inglês durante algum tempo, regressando ao Xime, visto ser muito difícil aguentar aquela posição. Conheço uma canção muito interessante, feita pelo meu amigo, durante a estadia naquele destacamento. Vou ver algo mais que possa ser publicado na Tertúlia, e que ele tenha em casa" (...).

(3) O estratégico aquartelamento da Ponta do Inglês , na margem direita do Rio Corubal, foi abandonado pelas NT em Novembro de 1968. Na altura era guarnecido por forças da CART 1746, a unidade de quadrícula do Xime: vd post de 19 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado

A queda (ou o abandono) da Ponta do Inglês significou a interdição do Rio Corubal à nossa navegação, quer civil quer militar. E, como muito bem lembrava Amílcar Cabral, "o único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal"...


(4) Pontuação da minha responsabilidade. Para o Manuel Moreira vai um grande abraço de um camarada, da CCAÇ 12, que muito penou nas idas à Ponta do Inglês... Aliás, quem, da malta que esteve no sector L1 (triângulo Xime-Bambadinca-Xitole), não tem dramáticas recordações da Ponta do Inglês ? Refiro-me aos operacionais das companhias de quadrícula (Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho) e das sub-unidades de intervenção, dependentes de Bambadinca como a CCAÇ 12 e os Pel Caç Nat (52, 53, 54, 63)...

O Manuel Moreira está automaticamente feito membro da nossa tertúlia, desde que ele nos possa disponibilizar um endereço de e-mail (ou caixa de correio electrónico) para onde a gente possa mandar-lhe as nossas mensagens...

Agora que está inaugurado o Cancioneiro do Xime, espero que a veia dos nossos poetas populares não seque (ou não seque tão depressa).

Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852


Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), à direita, com mais três elementos da sua sub-unidade. Legenda da foto: "Bissau, Outubro de 69. A uma mesa de café, junto das docas de Bissau, Barbosa, o herói das emboscadas, o condutor Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de grato convívio de gente que partilha com resignação os mesmos sacrifícios. A ver se se tomamos uma 'bica' nesta mesma daqui a 2 meses (...)".

Texto e foto: © Beja Santos (2006)


Texto do Beja Santos:

Caro Luís, aqui vai mais um naco de prosa. Dentro das tuas possibilidades, ilustra com fotografias. Tudo farei para que isto não seja uma conversa caquética nem cheire a memórias de um autoconvencido. O que mais me está a empolgar é o fio da memória. Pegando na história do Batalhão [de Caçadores] 2852 [Bambadinca, 1968/70], verifico com curiosidade que o sector L1 era exclusivamente considerado para cá do Geba, o que não era bem assim. Eu estava para lá do Geba, e sem tropas no [regulado do] Cuor a vida do L1 seria um inferno. Ironias do destino. Prometo escrever-te segunda e terça e depois faço férias. Abraços, Mário Beja Santos.


O Saudoso Pimbas,

Cheguei a Bambadinca ao anoitecer de 2 de Agosto de 1968. Foi uma viagem de mais de 10 horas pelo Geba, salvo erro com uma paragem em Porto Gole. Deram-me no cais de Bissau uma ração de combate e comprei três peças de fruta. Houve muitos protestos com o transporte das duas pesadas caixas onde eu transportava livros e discos. Viagem relativamente aprazível, com lindos palmares, muita quietude das águas e o prazer de observar as conversas dos djilas (1) que partiam com as suas mercadorias para o Leste.

Aliás, quando cheguei a Bambadinca e me apresentei ao Comando, informaram-me que eu estava no sector L1. A três, o oficial de operações informou-me que eu ia para uma colónia de férias, Missirá e Finete:
- O régulo vai tratá-lo bem, vai lhe dar umas raparigas para não andar chateado, o Furriel Saiegh fará a guerra por si.

Já se sabe que não foi nada assim e do Saiegh (2) falaremos mais adiante. Ao reler a história do BCAC 2852, com quem convivi ao longo de mais de um ano, saltou-me à memória o nome do seu primeiro Comandante, Manuel Maria Pimentel Bastos (3), de quem guardo uma saudade sem fim. Na caserna, ele era afectusoamente tratado por Pimbas. Conversar com ele era uma delícia, pela sua cultura vastíssima e dotes soberbos de colocar a voz e teatralizar as emoções.

Sobrinho de João Bastos, o famoso criador de revistas do Parque Mayer, conhecia o meio mas adorava igualmente música clássica e frequentava concertos. A sua relação com a guerra era vaga e difusa. Era um cosmopolita acidentalmente colocado num teatro de operações, mantendo notavelmente uma conversa com nexo sem nunca arremessar palavrões ou recorrer ao calão. Os que com ele conviveram recordam a Sra Dona Maria Alzira, a mulher que sempre o acompanhou e que nos fazia rissóis de camarão na cozinha da messe.

Guardo do Pimbas algumas histórias irresistíveis. A primeira, a visita que fez em Novembro de 68 a Missirá. Fui buscá-lo na cambança do Geba, a meio da manhã, com um esquadrão impecavelmente fardado. À chegada a Finete, o Pimbas deslumbrou-se com as reverências das mulheres grandes, muito ao jeito do protocolo mandinga. Fizemos os 14 Km a conversar sobre literatura, astronomia e etnografia. Em Missirá comeu assado numa espelunca transfigurada em refeitório. E pediu música. Ouviu deliciado a Aida, cantada por Nilsson, Corelli, Bumbry e Piero di Palma, dirigida por Zubin Mehta. Acompanhava os momentos triunfais e dramáticos com uísque puro ou copos de água Perrier.

A meio da noite mandou-me patrulhar à volta de Missirá, alegando que um Comandante não podia ser apanhado à mão. Falámos um pouco da guerra e ele tranquilizou-me:
- Menino, mantém-te assim, não há guerra que te aborreça!

O Pimbas voltará a Missirá em circunstâncias dilacerantes, nos momentos patéticos da Op Anda cá (4), submetido às pressões do Hélio Felgas (5), que o desprezava. Aos poucos, o Pimbas foi-se isolando e ficando isolado, se bem que muito apoiado pelo médico, o David Payne, e alferes como Ismael Augusto e o Taco Calado (6). Nunca fora agressivo, e via a guerra com grande distância (salvo erro estivera no Maiombe, talvez em Macau e Índia dos bons tempos) e relativa serenidade. Nessa espiral de isolamento, conversámos muito e fomos úteis um ao outro.

Trocávamos livros, confidências e outras notas íntimas. A operação Lança Afiada (7) foi o ponto culminante que levou à sua queda, acusado de incapacidade, negligência e nulo sentido das realidades. Foi graças ao Pimbas que aprendi que estar numa guerra não é só uma questão de cultura, de assertividade ou convicções. Havia o problema do sentimento. Por sensibilidade, o Pimbas não estava na guerra, mas moldou-se até ao limite das suas forças por se manter enérgico e determinado. Mais tarde, visitei-o em Lisboa e ele recuperara para a vida cosmopolita o que perdera definitivamente com a humilhação da passagem à reserva.
Creio que está por fazer um conjunto de inventários: os oficiais do quadro permanente que não podiam transformar-se em oficiais prussianos e contra-guerrilheiros inflamados, por razões da trajectória profissional e moral; os oficiais milicianos, sobretudo os capitães, que eram lançados na fogueira dos acontecimentos bélicos sem qualquer preparação, pondo entre parêntesis a vida pessoal, profissional e familiar, por vezes com uma violência inaudita. Foi o que foi dado a verificar com homens como o Capitão Maltez, com quem colaborei no Xime.

Vergo-me respeitosamente à memória do Pimbas e logo à noite vou ouvir a Aída em sua homenagem.

___________

Notas de L.G.

(1) Djila: comerciante ambulante, em geral fula, futa-fula ou mandinga, que percorria a Guiné, em especial a zona leste, que tinha acesso privilegiado aos países limítrofes (Senegal e Guiné-Conacri). Em geral falava nelhor o francês do que o português. Eram considerados agentes quer da PIDE, quer do PAIGC, sendo os seus serviços (de informação) disputados por uns e por outros.

(2) Segundo informação do Beja Santos, o Pel Caç Nat 52 esteve um ano sem alferes, sendo comandado por Zacarias Saiegh, então furriel miliciano, que mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência: vd post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
(3) Tenente coronel de Infantaria Manuel Maria Pimental Bastos, comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), transferido por motivos discipinares, tendo sido substituído em Julho de 1969 pelo ten cor inf Jovelino Pamplona Corte Real.
(4) Op Anda Cá: decorreu entre 20 e 22 de Fevereiro de 1969, com o objectivo de atacar as posições da guerrilha instalada em Madina / Belel. Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(5) Coronel, na altura, comandante do Agrupamento 2957 (com sede em Bafatá), mais tarde COP 2.
(6) Alf Mil médico David Payne Rodrigues Peereira; Alf Mil Manutenção Ismael Quitério Augusto; e Alf Mil Transmissões Fernando Carvalho Taco Calado. Pertenciam ao Comando do BCAÇ 2852.
(7) Vd posts de:
31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca

Guiné > 1968 > Mansoa > CCAÇ 2405 > Momentos de descontracção e de convívio. O Alf Mil Paulo Raposo é o único do grupo que está vestido à civil.

Foto: © Paulo Raposo (2006)


XV parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 42-43 (1).


AS COLUNAS

Das muitas colunas que faziamos de Galomaro a Bafatá ou a Bambadinca, há duas que me ficaram gravadas na memória.

Aquele itinerário não tinha qualquer perigo, era uma zona perfeitamente em paz. Geralmente ao lado do condutor segue o militar mais graduado.

1. Um dia segue connosco o Capitão Portugal e, como era o mais graduado, dei-lhe o lugar ao lado do condutor. Recusou e disse para ir eu nesse lugar e ele seguiu no banco traseiro do Unimog.

Um dos outros encantos de África é o convívio. Passamos a ser bons contadores de histórias. Como não há distracções é o convívio que prevalece. Histórias e episódios havia-os para todos os gostos. A televisão e as novelas não só mataram o convívio familiar como mataram também o convívio e as tertúlias de café.

O nosso Capitão Portugal contou-me ele, tinha estado no Comando Distrital da PSP, quando foi lançada a muita ao peão, em Lisboa. Sim, quem atravessasse uma rua sem ser nas passagens de peão, pagava uma multa de 2$50. Isto talvez se tivesse passado no ano da 1955. Era um pouco caricato. As histórias da reacção de cada um eram sensacionais.

Houve um Senhor, contou ele, que ao ver-se confrontado com a multa de 2$50 pediu ao polícia para lhe vender toda a caderneta das multas. Cada um reage de forma diferente às situações que se deparam e estas variam também consoante o momento.

2. O nosso Capitão [da CCAÇ 2405, Cap Mil José M. N. Jerónimo] não tinha carta de condução, mas não se confessava. A muito custo conseguiu arranjar um jeep para andar nas suas voltas em Galomaro.

Numa ida a Bafatá ele lembrou-se de ir a conduzir o Unimog e eu seguia ao lado. Surge uma curva, ele não abranda, o carro foge-lhe, entra terra dentro e vira-se sobre o meu lado. Por esse facto não consigo saltar. Agarro-me ao banco e abaixo-me. Como os taipais eram mais altos, Nossa Senhora me salva.

Atrás nos bancos que estavam montados costas com costas, seguiam vários militares. Todos saltam excepto o Furriel Vagomestre (2). Teve medo, não saltou, e o carro passa-lhe por cima e parte-lhe a coluna. Segue para Bissau em heli, mas vem a falecer no dia seguinte.

Como a Companhia ficou sem Vagomestre, eu cedo um Furriel do meu Grupo, o Ferreira (3), e o Cândido, que era do Alferes David, vem substituir aquele.

Fiz uma grande amizade com o Cândido (4), que era de Beja. Terminada a Comissão convidei-o para vir trabalhar comigo. Ainda estamos juntos.

Ele é o responsável pela minha fábrica. É uma jóia de rapaz, posso-lhe confiar tudo e ele pode contar comigo seja para o que for.

Já vai para 27 anos que trabalhamos juntos sem nunca ter havido qualquer atrito.

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. post anterior, de 10 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa

(2) Arnaldo R. Fonseca (Fonte: História do BCAÇ 2852)

(3) Adriano M. Ferreira (Fonte: Idem)

(4) Cândido R. Trombinhas (Fonte: Idem)

Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)


Guiné > 1968 > A bordo do Uíge: da esquerda para a direita, os alferes milicianos Raposo, David, Felício e Rijo, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852. O Uige transportava dois batalhões, o BCAÇ 2851 e o BCAÇ 2852. Largou em finais de JUlho de 1968 do Cais de Conde de Óbidos, em Lisboa e chegou a Bissau nos princípios de Agosto. A CCAÇ 2405 seguiu depois para Mansoa onde chegou à noite, sendo saudada com um salva de artilharia pelos velhinhos da CCS do BCAÇ 1911 (1).

Foto: © Paulo Raposo (2006)


Continuação (cronologicamente, neste caso, antecipação) das estórias de Dulombi (2)... O Rui Felício foi alf mil na CCAÇ 2405, juntamente com o Paulo Raposo e Victor David, outros dois membros da nossa tertúlia. Os três estiveram em Mansoa, no início da comissão da respectiva unidade, a CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, de Agosto a Dezembro de 1969.


MANSOA III

CCAÇ 2405

Agosto de 1968


O Vitor David e eu, juntamente com os nosso respectivos Grupos de Combate, fomos destacados para dirigir e fazer a segurança de cerca de 200 trabalhadores balantas, recrutados pelo Chefe de Posto de Mansoa para procederem à capinagem da estrada Mansoa-Jugudul.

Era um autêntico exército de homens armados de catanas, enquadrados por meia dúzia de cipaios que os obrigavam a não perder o ritmo do trabalho.

O mato na Guiné cresce a um ritmo alucinante e, quando menos se espera, devora as bermas e até a própria estrada se esta não fôr utilizada regularmente.

Para prevenir emboscadas do IN tinha que se fazer a capinagem desse mato umas duas ou três vezes por ano, limpando uma faixa de cerca de 50 a 100 metros de cada lado da estrada.

A tropa requisitava mão de obra para o efeito à autoridade administrativa que se encarregava de a mobilizar.

Era um trabalho duro, realizado sob um sol escaldante, desde o amanhecer até ao pôr do sol…

Os homens brandiam ritmadamente as catanas contra os tufos de capim e arbustos, provocando um som cavo que inundava os ouvidos durante todo o dia, e os seus corpos negros, musculados, luzidios de suor, brilhavam sob o tórrido sol da Guiné…

E tinham que beber água muitas vezes para matar a sede e prevenir desidratação…

Por isso, eram colocados ao longo da estrada, mais ou menos de 30 em 30 metros, bidons de 200 litros cheios de água, para que, quem quisesse, ali se dessedentasse.

Sucede que esses reservatórios eram nem mais nem menos que bidons usados de combustivel, que depois de esgotados serviam para encher de água e levados para a capinagem.

E, claro, quando não havia cuidado na sua lavagem, a água neles despejada podia misturar-se com alguns restos de combustível que tivessem ficado no fundo.

Pois foi exactamente isso que aconteceu com os bidons que estava a ser usados na tal capinagem de que falamos.
Guiné > 1968 > Mansoa > CCAÇ 2405 > O Alf Mil Victor David no regresso de uma operação
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Inesperadamente, um dos balantas assomou-se junto ao David e disse-lhe num crioulo arrevesado:

- Alfero! Água num stá bom! – e, para melhor traduzir o que dizia, fazia uma careta de vómito….

O David, pensava para os seus botões:
- Esta gajo é muito fino… Deve querer água Perrier, com certeza…

Tentou despachá-lo:
- Está bem, está bem… Vai mas é continuar o teu trabalho e deixa-te de esquisitices!

Mas o homem não desistia:
- Alfero! Bardadi! Água num sta bom mesmo! Num sabi!
- Eh pá.. Explica lá de uma vez o que é que tem a água - condescendeu o David.

E o balanta, num esforço para se fazer compreender, puxou dos seus rudimentos de português e despejou:
- Água sabe a gasolina, Alfero!... Bardadi!

Uma flash iluminou o cérebro do David que rapidamente compreendeu o que se passava… Aqueles bidons tinham sido mal lavados e ainda continham restos de combustivel…

Não querendo admitir essa falha (a tropa portuguesa precisava demonstrar a sua grande capacidade de organização…), o David, inspirado, rematou:

- Claro que sabe a gasolina.. É de propósito e para vosso bem! Assim, vocês no trabalho, andam mais depressa e cansam-se menos, percebeste?

Nunca saberemos se o pobre do trabalhador balanta acreditou na justificação do David ou se, entre dentes, lhe rogou alguma praga… A verdade é que acenou afirmativamente com a cabeça e voltou ao trabalho.

E, passado pouco tempo, veio de novo beber água com gasolina do bidon.. A tal que fazia andar depressa…


Rui Felício
Ex Alf Mil Inf
CCAÇ 2405
Mansoa

________________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de

7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa


8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca
(2) Vd. posts anteriores:

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral


(...) "O Natal aproximava-se… Antes da data prevista, chegara-nos um presente inesperado! Um periquito….

"O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia…

"O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos.

"Natural de Bissau, de etnia pepel, um verdadeiro e retinto preto da Guiné" (...)

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

(...) "O Carvalho Araújo já estava em Bissau para nos levar de volta à Metrópole… Viera cheio de tropa para substituir os velhinhos, ansiosos pelo fim da sua comissão.

"O tempo custava a passar para finalmente se dar a rendição, e por isso, cada um à sua maneira ia encontrando formas de apressar o tempo, de esquecer a lentidão inexorável do relógio…

"Ao cair da tarde, com a luz alaranjada do sol a começar a esconder-se na linha do horizonte poente, o Paulo Raposo, alferes da CCAÇ 2405, de quem guardo as mais pistorescas histórias, estava sentado perto do bunker do Capitão, com o olhar fixo num ponto afastado a sul do aquartelamento, perto do arame farpado" (...).

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

(...) "20 de Julho de 1969. Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transistores que nos mantinham ligados ao mundo.

"Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo.

"Mas nos confins da mata, longe de toda a civilização, a importante notícia precisava de ser partilhada e divulgada... Os soldados se encarregariam de o fazer à sua maneira, junto das bajudas" (...).

domingo, 30 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Foto tirada no centro da povoação, atravessada pela estrada (ou picada) que vai para Bafatá... Uma autêntica autoestrada, diz o Albano Costa que por lá passou em 2005, onde o jipe pode chegar aos 120!.

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


Segundo texto (1) do Renato Monteiro, de uma série de cinco, que intitulei estórias de Contuboel, pequenos apontamentos que o meu amigo escreveu com base na sua experiência de instrutor de recrutas guineenses, em Contuboel, no 1º semestre de 1969. O Renato Monteiro foi furriel miliciano na CART 2479 / CART 11, Cuntuboel e Piche; e depois na CART 2520, Xime e Enxalé (1969). É autor, com Luís Farinha, do livro Guerra colonial: fotobiografia. (Lisboa,D. Quixote,1998,307 pp). É também autor de livros de poesia e de fotografia. Conheci-o e tornámo-nos amigos nos meses de Junho e Julho de 1969 em que estive (eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590, mais tarde CCAÇ 12) a dar a instrução de especialidade aos nossos queridos nharros...



SEGUNDO PELOTÃO


Divididos por quatro pelotões, faço parte do segundo bem como o alferes Ilhéu, açoriano, ex-seminarista, os furriéis Paz de Alma, do Norte, o Bera, de Cabo Verde, por quem nutro uma antipatia correspondida e o nosso cabo, ainda sem alcunha, e a quem um dia destes hei-de perguntar donde é. Feita a contabilidade, o que temos? 53 Guineenses, 2 insulares, 3 europeus continentais. Ou cromaticamente falando: 53 negros, 4 caras pálidas e um que nem é uma coisa nem outra, e sim as duas. Mas adiante...

Sem o poliglota do Carlos, entretanto integrado noutro pelotão, lançamos mão ao Jaló que, apesar de menos apto para intérprete do que o primeiro, sempre vai desenrascando em fula e em crioulo, a nossa pretendida comunicação com o grupo. Para levantarem os joelhos, c’um raio, se possível até ao queixo, darem meia volta volver, distinguir o que se toma por esquerda e por direita, manter o peito erguido e cheio de ar, por nada mexer quando em sentido, porra, sequer tossir; enfim, toda a panóplia de movimentos exigíveis numa formatura estacionada ou em marcha. Porque com má execução, há merda: 10, 20 ou mais flexões de bruços, mantendo a regular distância da barriga ao chão, quando não mesmo rastejar até aquela mangueira ou cajueiro ainda mais afastado. Punições tão sabidas de cor, por força da aprendizagem para a guerra levada a cabo nos quartéis, como os nomes dos rios aprendidos durante a instrução primária.

Por mim, e apesar de exigente quanto à execução dos exercícios, dispenso a aplicação de castigos sem crime, achando mil vezes preferível, nesta fase inicial de instrução, antes fomentar a troca com que todos crescem: umas lições básicas de português pelos depoimentos prestados, com o apoio do Jaló, sobre a experiência vivida na guerra por um bom número de recrutas que, havendo sido milícias, já se envolveram em confrontos. Com o fogo a doer fora da carreira de tiro, mas no cenário real da mata. Ou tão só os que foram alvo de flagelações dirigidas aos aldeamentos donde são originários.

E quem sabe se, deste modo, não evitaríamos mais facilmente confundir o Ali com o Guilage, estes com quaisquer outros já que, à excepção do Malagueta, excessivamente franzino, e do Turé, de desmedida altura e de voz apagada, todos se apresentam indistintos aos nossos olhos. Como se fossem cópias fisionómicas do mesmo padrão, cheirando desagradavelmente à maior parte dos camaradas a catinga. Ou não fosse natural um cão tressuar a canino; um gato transpirar a felino; os cravos marcarem o ar com o seu perfume... Sem nunca perguntarmos a que cheiramos nós. Mais tarde ou mais cedo, hei-de sabê-lo...

__________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
Tenho dúvidas se era CART 11 ou CCAÇ 11... Já alguém me chamou a atenção para esse facto: as companhias africanas era todas de caçadores (CCAÇ 5, CCAç 6, CCAÇ 12, CCAÇ 13, CCAÇ 15, CCAÇ 21...). Bom, vamos ter que esclarecer isto.

sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1004: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (1): o pudor das nossas recordações

Esposende > Fão > 26 de Novembro de 1994 > Convívio da CCAÇ 12, da CCS do BCAÇ 2852, do Pel Caç Nat 52 e outras unidades destacadas em Bambadinca, entre 1968 e 1971... Na imagem, ao centro o Beja Santos, rodeado por malta da CCAÇ 12, os furriéis milicianos Humberto Reis (à direita), o Tony Levezinho (de costas, à esquerda) e o T. Roda, ao fundo, sorridente. Na 4ª feira passada, dia 26, reencontrámo-nos doze anos depois, e revivemos o nosso passado comum por sítios míticos da Guiné: Bambadinca, Xime, Enxalé, Rio Geba, Rio Corubal, Missirá, Cuor, Finete, Mato Cão, Madina/Belel, Nhabijões, Ponta Varela, Madina Colhido, Ponta do Inglês, Baio/Buruntoni...

Foto: © Humberto Reis (2006)




Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança. Neste rio, ou nesta parte do rio que ainda é de água salgada, dois soldados da CART 3494, aquartelada no Xime, desapareceram, apanhados pelo macaréu numa operação ao Mato Cão, em 1972. Um terceiro camarada, doutra companhia, também desapareceu (Informação do Sousa de Castro).

Foto: © David J. Guimarães (2005)

Texto do Beja Santos:

Caro Luís, foi muitíssimo agradável ter-te revisto ontem [4ª feira, dia 26 de Julho], passadas estas décadas. Do muito que falámos, estou neste momento publicamente comprometido com todos os parceiros do blogue a depor sobre o que vi e conservei da minha experiência na guerra colonial.

Durante anos, acalantei a ideia de escrever um romance sobre a minha experiência (na ficção, como em todas as manifestações de arte, escrevemos sempre sobre nós, condicionando a nossa imagem, seleccionando o que queremos comunicar aos outros). Assim, escrevi na cabeça Soncó, que teria como base os Soncó, a família dos régulos do Cuor. Com os empregos antes do 25 de Abril e os estudos, a ideia esmoreceu.

Aí pelos anos 80, ocorreu-me A Rua do Eclipse. Nem imaginas como. Um dia estava numa reunião num edifício da Comissão Europeia, em Bruxelas, olhei para a cabine de tradução, bati à porta e disse a uma senhora que gostava de almoçar com ela para lhe pedir ajuda para uma obra de ficção que estava a preparar. Ingrid Schorkps (vamos imaginar que é este o nome) ouviu-me com os olhos arregalados. Pretendia conhecer um casal belga com alguma profundidade, pois tinha imaginado um português que se apaixonara por uma belga, num contexto de triângulo amoroso. Precisava da ajuda dela e do marido, o romance iniciar-se-ia por um encontro de interesse fulminante, seguir-se-ia muita correspondência do português para a sua apaixonada (um flamenga), as vicissitudes dos encontros esperádicos, a dor das distâncias, as visitas à casa de Ingrid na Rua do Eclipse.

Na correspondência para Bruxelas, falaria da Guerra da Guiné. A verdade é que visitei a família de Ingrid, ao princípio estranharam, depois tomaram-me como um escritor a sério quando eu comecei a abrir mapas em cima da mesa, explicando os encontros que teríamos pelas ruas da Antuérpia e arredores.

A ideia também esmoreceu. As guerras coloniais que Portugal travou devem ser as mais documentadas das últimas décadas, com excepção da guerra do Vietnam. Temos os aerogramas, as fotografias, as cartas, os filmes, os relatórios. Não temos é o pano de fundo. Ontem, durante o almoço, avançámos algumas explicações. Uma delas tem a ver com a falta de rigor nos relatórios. Outra, com a privacidade e o pudor das nossas recordações.

Quando, aqui há uns anos, num ambiente recatado me pediram uma recordação inviolável, intrasmissível, falei de um enterro de uma massa encefálica numa caixa de sapatos, num cemitério em Missirá. Explico. Depois de uma grande flagelação, ao amanhecer, patrulhei as imediações do quartel. Encontrei um soldado manjaco do PAIGC morto, com a massa encefálica ao lado do corpo. Fora seguramente um tiro na nossa resposta que produzira aquela morte assim.

Pedi imediatamente uma caixa de sapatos e anunciei que iríamos enterrar o corpo com honras militares. A reacção dos meus soldados foi enorme:
- Turra é para ser comido pelos jagudis!

Mas houve mesmo enterro militar. Este é um dos muitos exemplos do pudor que nos faz calar experiências que nos mudaram o curso da existência, logo em jovens adultos.

Vou pois escrever memórias, sempre balizado pelo pudor de que os nossos camaradas, ou outros leitores avulsos, pensem que o que aqui se escreve é produto de uma mente delirante que se disfarça de herói da guerra. Nada disso. Eu fui eu e a minha circusntância: uma guerra que se travou muitas vezes a um ritmo alucinante, e com uma aprendizagem dolorosa.

Por exemplo o macaréu. Eu estava em Mato Cão, quando ouvi as águas do Geba a entrar em ebulição, com ronco medonho. Fugi apavorado para uma colina, com os meus soldados a gargalhar enquanto eu olhava vidrado as águas a espumar no terrafe. Aprendi depois o que era o macaréu, fenómeno raríssimo no mundo daquela água que vem em torrente pelo Corubal e emerge no Geba gelado.

Pois fica sabendo que a operação Macaréu à vista, as minhas memórias desorganizadas de um registo fotográfico onde às vezes ainda capto cheiros e oiço vozes, acaba de começar neste blogue. Sem data fixa e com calendário muito volúvel. Amanhã seguem mais histórias. Pode-se dar a esta carta a publicidade que entenderes.

Mário Beja Santos
(ex-alf mil Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (II): tirem-me daqui!



João Tunes, ontem e hoje: na Guiné, foi Alf Mil trms (primeiro, na CCS do BCAÇ 2884, Pelundo,1969/70; e depois, na CCS de outro Batalhão, Catió, 1970/71). Engenheiro - químico, escreve diariamente, com lucidez, paixão e talento, contra a corrente do(s) tempo(s), no seu blogue Água Lisa (já vão vai na versão 6).


Fonte: Bota Acima, blogue de João Tunes, 7 de Abril de 2004

I - TIREM-ME DAQUI !

Os civis fardados à força que tinham habilitações consideradas suficientes, eram militarizados como soldados cadetes durante seis meses e o seu aproveitamento era coroado com o título (modesto) de Aspirante a Oficial Miliciano.

Esta patente, uma espécie de grau de estagiário em oficialato, durava até chegar a ordem de envio para África. Quando a guia de marcha era recebida, era-se automaticamente promovido a Alferes Miliciano. Todas as regras têm excepções. O Barros foi despachado para a Guiné como Aspirante. Ficou famoso por ser a excepção à regra e porque era meio xoné. Em rigor, perto dos quatro quintos xoné. Licenciado em Filosofia, o Barros era incapaz de se adaptar às regras da vida militar. A instituição castrense bem tentou fazer dele um homem de armas mas o sujeito era relapso à farda, aos procedimentos, à ordem unida e ao espírito guerreiro.

Quando cadete em Mafra, o Barros era sempre o último a chegar à formatura e, quando chegava, os atavios estavam sempre mal amanhados e quantas vezes a Mauser ao ombro vinha com o cano a apontar para o chão... Porque, o que o Barros gostava mesmo era de discutir Sócrates e Platão. A instituição teve de resolver o problema do Barros. Nada fácil. Deve mesmo ter sido caso para reunião de generais reumáticos no Estado Maior General ou coisa parecida. A guerra aquecia e as frentes de combate não paravam de aumentar. Era precisa mais gente, cada vez mais gente, para conter a guerrilha. Começava a haver escassez no recrutamento. A procura de mancebos ultrapassava a oferta. A decisão foi sábia: o Barros ia mesmo para a guerra (mas para a Guiné, porque ele só merecia o pior) mas não era promovido a alferes. Seria Aspirante para sempre. Logo ele, que o que mais aspirava era voltar aos livros e às discussões filosóficas, coisas bem alheias aos trabalhos da guerra.

Na Guiné, andou de quartel em quartel, acumulando punição atrás de punição. O Aspirante Barros não servia, cada vez servia menos, pois a cachimónia cada vez ia trabalhando pior. Como era um perigo nas operações, ia sendo dispensado de sair para o mato, acumulando detenções sobre detenções até o Comandante pedir a Bissau a sua substituição. Então, o Aspirante Barros enchia o saco do fardamento com os seus livros e rumava a outro quartel. Até que a cena se repetia. E repetiu-se muitas vezes.

Uma vez, o General Spínola visitou um quartel onde estava o Aspirante Barros e quis conhecê-lo. O Barros apareceu mal amanhado e com olhar ausente. Spínola disparou a censura:
- Você não tem vergonha de ser o único Aspirante na Guiné?

O Barros concentrou-se, olhou Spínola de frente e disse mansamente:
- Estamos em igualdade, o senhor, que eu saiba, é o único General na Guiné.

Puseram o Barros numa prisão em Bissau por ter insultado o General. O Barros, então, deixou de ler. Podia ler, quem já pouco olhava? O Tenente Coronel Melo, comandante do Batalhão no quartel de Catió, era um oficial com pretensões intelectuais (por onde passava, estudava os costumes étnicos e ia escrevendo livros sobre os usos e costumes das tribos africanas). Era opositor ao regime e não gramava o Spínola, embora fizesse a guerra com todo o profissionalismo. Era também um católico devoto. Em resumo, o Tenente Coronel Melo era um católico progressista, gostava de armas e de paradas, não gramava o fascismo e tinha bom coração. Sabendo da história do Barros, o Tenente Coronel condoeu-se e pediu para o colocarem no seu Batalhão. E o Aspirante Barros lá veio com o seu saco (agora vazio de livros) parar a Catió. E passou a ser meu companheiro de quarto. Companheiro silencioso. O Barros quando chegou a Catió também já tinha deixado de falar.O Barros foi dispensado de serviços e passava os dias deitado na cama. Dispensado de todos os serviços, não. Para lhe dar algum sentido de utilidade militar, o Barros entrava na escala de oficial de dia ao quartel com a missão única de presidir ao içar e ao arriar da bandeira (havia outro oficial que fazia o serviço restante).

O Barros cumpria a sua única tarefa militar segundo um ritual tacitamente assumido por todo o quartel. O sargento de dia perfilava a tropa, dirigia-se à janela do quarto do Barros e berrava enquanto fazia a continência da praxe:
- Meu Aspirante, apresenta-se a guarda de dia.

O Barros, ouvindo o berro do sargento, levantava-se em cuecas, assomava à janela, e naqueles preparos, imitava uma espécie de continência. Então, o sargento de dia mandava içar ou arrear a bandeira portuguesa e o Barros voltava à solidão do seu silêncio.A partir de certa altura, o Barros passou a instalar-se, durante o dia, no bar dos oficiais, bebendo copos atrás de copos. Tinha, como companhia, o Tenente Coronel Melo que preferia escrever os seus livros e fazer os seus despachos ali, no silêncio diurno do bar enquanto o resto dos militares cumpriam as suas rotinas de serviço. O Tenente Coronel escrevia, pensava, escrevia. Barros bebia em silêncio.

De tempos a tempos, o Barros arremessava o copo contra a parede e gritava:
- TIREM-ME DAQUI! 

O Tenente Coronel comentava,  paciente:
- Calma, nosso Aspirante.

E o Barros acalmava até novo arremesso, novo grito e novo apelo à calma por parte do Comandante.

E a cena ia-se repetindo ao longo do dia e dos dias, num ritual assumido pelos dois oficiais e respeitado por toda a tropa sem dar lugar a galhofa. A única consequência negativa destas cenas era a redução assustadora no stock de copos no bar de oficiais. Mas, isso não era problema sem solução: na guerra, para beber é preciso copo?

Era habitual que, a meio da noite, o Nino Vieira se lembrasse de mandar os seus rapazes mandar-nos morteiradas para dentro do quartel. Ao primeiro rebentamento, havia que agarrar a G3, nossa companheira inseparável, e correr para irmos cumprir funções defensivas e contra-ofensivas. Para que o Nino não se ficasse a rir de nós. O Barros não se mexia. Limitava-se a abrir os olhos e fixá-los no tecto. Imóvel. O Aspirante Barros já tinha deixado de aspirar a sobreviver.O Barros esteve duas semanas em Catió, sem castigos que avermelhassem mais a sua caderneta disciplinar.

Um dia, o Tenente Coronel Melo apareceu sorridente. Tinha conseguido (com a ajuda do médico do Batalhão) uma consulta de psiquiatria para o Barros com vista à sua evacuação da Guiné. O Barros não acabou o tempo da sua comissão na guerra da Guiné. Foi libertado para a vida civil como Aspirante a Oficial Miliciano.

Não voltei a ver o Barros. Mas, volta e meio, o Barros entra-me pela memória dentro. E então, a raiva, ai a raiva, a raiva aos que alimentam guerras, faz-me um nó na boca do estômago. Não sei sequer se está vivo, onde está e o que faz o meu antigo camarada e companheiro de quarto. Espero bem que não ande a passear, sem olhar, sem falar, sem ler e a gritar TIREM-ME DAQUI!, ouvindo os palermas saudosistas do Império a clamarem contra o crime da descolonização e caçarem votos aos ex-combatentes. Porque esses merdosos não valem um caracol ao pé do Barros. Desejo sinceramente que o Barros esteja recuperado e a discutir Sócrates e Platão. Algures. Em paz.
___________

Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P1002: Tabanca Grande: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)


Guiné > Mansoa > CCS do BCAÇ 1912 (1967/68) > O capelão, Mário de Oliveira, alferes miliciano, entre soldados. Viria a receber ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968.

Foto: © Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)



Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > Um periquito em Mansoa... Também o Paulo Raposo passou por Mansoa, nos primeiros meses da sua comissão, devendo ter conhecido e privado com o Aires Ferreira. Era Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, unidade que foi depois colocada na Zona Leste, Sector L1 - Bambadinca, em Galomaro e Dulombi.

Foto: © Paulo Raposo (2006)



1. Temos aqui mais um ‘recruta’: o Aires Ferreira, que pede autorização para fazer parte da nossa caserna, a maior caserna virtual da Net - pelo menos, em português (esta nossa mania de querermos ser os maiores…). Há aqui uma surpresa, no final, para um tertuliano muito especial… Quanto ao Aires: É, pá, entra cá dentro, que lá fora está uma brasa… L.G.

2. Mensagem do Aires Ferreira:


Caro Luís Graça

Cá vim parar. Era inevitável. Há uns tempos, através de um qualquer link, descobri este notável blogue e desde então tenho lido com emoção tudo o que aqui se escreve, embora na situação de desenfiado.

Hoje, resolvi deixar essa situação, pelo que solicito a necessária autorização para me alistar na Tertúlia.

Sou um escrupuloso respeitador das NEPS (lembram-se ?) e, sendo assim, aqui vai a minha apresentação:

Aires Ferreira
Alferes Miliciano de Infantaria - Minas e Armadilhas
BCAÇ 1912 - CCAÇ 1686
Mansoa, 13 de Abril de 1967 a 13 de Maio de 1969

Para apoio a esta petição, parece-me adequada a seguinte história, que tem algo de dramático e que vou contar com o máximo respeito por todos os intervenientes.

MISSA EM CUTIA

Cutia era um destacamento que tinha um grupo de combate e ficava entre Mansoa e Mansabá e entre o Morés e o Sara - Sarauol [vd. carta de Mamboncó].

O Batalhão tinha um Capelão que, um certo Domingo, lá para o fim de 67, resolveu ir celebrar Missa a Cutia. Para isso, arranjou uma escolta de voluntários que, comandados pelo furriel S.S., lá foram, com 2 Unimogs e o jipe do capelão.

A missa foi celebrada e no regresso, um dos Unimogs despistou-se e uma grande parte do pessoal da escolta ficou com ferimentos muito graves, tendo os restantes seguido até Mansoa para pedir auxílio.

Nesse Domingo eu estava de Oficial de Dia ao quartel de Mansoa e desconhecia totalmente este assunto. Cerca da hora de almoço, passava junto à porta de armas, encontrei o Ten. Cor. , o Comandante do Batalhão, que me disse:
- Alferes Ferreira, o seu grupo está todo destroçado na estrada de Cutia, o que está aqui a fazer? Vá já para lá.
- Não posso, estou de serviço - disse eu e apontei a braçadeira.
- Dê cá, eu fico com ela. O piquete vai já atrás de si com a ambulância.

Assim foi. Lá fui, munido da pistola Walther, com um condutor que por ali apareceu e chegámos depressa. A cena era trágica. Havia 5 ou 6 militares gravemente feridos e deitados na berma. O único militar que ali estava capaz de dar uns tiros para defender o local, se o IN por ali aparecesse, era … o Capelão, que de joelhos na estrada, junto ao jipe, fazia as suas orações, de G3 ao lado.

Logo de seguida chegou o necessário auxílio e todos os feridos foram evacuados e tratados.

O Alferes Capelão que faz parte desta história era… o Padre Mário Pais de Oliveira (1), bem conhecido desta Tertúlia e a quem envio um grande abraço.

Se o meu alistamento for autorizado, prometo que envio as necessárias fotos, que não seguem já porque não sei fazer essa operação (por enquanto).

Cumprimentos
Aires Ferreira

_____________

Nota de L.G.

(1) Até à data, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio.... Vd. posts de:

27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )

Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos ( Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969 > Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Luís Manuel da Graça Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11, Cuntuboel e Piche; Xime e Enxalé, 1969):

Foto: © Luís Graça (2005)



Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969 > Os nossos queridos nharros... O 2º Grupo de Combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade .

Foto: © António Levezinho (2005)


Primeira parte de uma série de pequenas estórias - que intitulei estórias de Contuboel, em vez de eterno retorno (menos prosaico, menos bloguista, mais filosófico, mais metafórico), como vinha no mail que me foi enviado pelo meu amigo Renato Monteiro, o já famoso homem da piroga (1)...


RECEPÇÃO DOS INSTRUENDOS



São uma porrada deles. Para cima de centena e meia, perfilados na parada. Número excessivo mas justificável uma vez que, finda a instrução, serão repartidos por uma outra companhia, ainda na Lisboa (2), constituída tal como nós, apenas por quadros metropolitanos.

Vindos de Galomaro e de Gabu, que ainda não localizei no mapa; do Xime, de Bafatá e de Bambadinca por onde passamos sem que me ocorresse bater uma única chapa, e ainda das tabancas que povoam a região de Contuboel.

Mais fulas do que mandingas, perfilhando todos a crença em Alá, mas também o princípio que consagra para todo o sempre um Portugal daquém e além mar uno e indivisível, coisa para mim demasiado estranha ao dar conta dos raros falantes da nossa língua e dos muitos que a entendem menos do que a Segunda, a minha lavadeira.

Acaso não houvesse entre eles um Carlos, fula, de Bafatá, único cristão e com nome português, excepcionalmente dotado na comunicação com as línguas nativas, incluindo o crioulo - o esperanto da Guiné - para transmitir-lhes as nossas ordens, recomendações e outras tretas, bem poderíamos enterrar as palavras no bolso até às calendas, ir pregar para o deserto ou aos peixinhos do António Vieira.

Sequer a ordem de marchar (acaso fossem capazes de tal acrobática proeza) a partir da parada até uma área arborizada próxima do aquartelamento, utilizada para futura aplicação dos exercícios militares, é compreendida pela generalidade dos nossos instruendos.

Coubesse o mar num concha cavada na areia que, por certo, seria igualmente possível olhar para estes homens e reconhecê-los como nossos compatrícios.

E coubesse em mim próprio este sentimento absurdo, maior do que eu, que tanto me leva à rejeição deste mundo como, no instante seguinte, ao desejo de nele me confundir.

Como se coexistissem em mim, duas entidades antagónicas numa só. Sem a santíssima trindade em que não acredito. E nunca, espero bem, vir a pirar dos cornos.
Renato Monteiro
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de


23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)


23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)


(2) CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971). O Renato deu a recruta aos meus futuros soldados. Nós demos-lhes apenas a instrução de especialidade e treino operacional: vd. posts de

28 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (Junho de 1969)

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

(...) "Capri, c’est fini!... Ainda te lembras da velha canção do verão de há três anos, em Lisboa ? Pois é, estão a chegar ao fim as férias de Contuboel, o dolce far niente da tropa tropical... Cheguei à Guiné há mês mês e meio. E ainda não vi, não senti nem cheirei a guerra (a não ser talvez no percurso, em LDG, no Rio Geba, a caminho do Xime e depois no troço Xime-Bambadinca, no dia da nossa partida de Bissau para Contuboel: confesso que havia alguma tensão nos rotos dos periquitos...).

(...) "Acabámos os exercícios finais da instrução de especialidade, que decorreram entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel. Recebemos a visita do homem grande de Bissau. Consta que já nos deu destino, a nós e aos nossos queridos nharros.

"Acabaram-se os passeios tranquilos pelo Rio Geba, de piroga. As conversas, ao fim da tarde, debaixo do poilão, com os djubis, as bajudas e as mulheres grandes e os homens grandes. As conversas intelectuais com o meu amigo Monteiro. Os meus vizinhos aldeões com quem gostava de conversar. As pacatas idas às hortas das proximidades para comprar bananas e abacaxis...

"Vou ter saudades de Contuboel, das frondosas margens do Geba, da paisagem luxuriante, das amáveis lavadeiras mandingas, de mama firme, que encontrávamos pelo caminho. Mas, como diz a canção, é muito pouco provável cá um dia voltar. Em contrapartida não penso neste momento em Lisboa nem no meu regresso. Contuboel acabou: há agora muitos milhares de quilómetros para palmilhar, numa prova que é, para mim, para todos nós, o grande teste de resistência... e de sobrevivência" (...).


21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)

Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)

Guiné > Zona Leste > Sector da Galomaro > Saltinho > 1972 > Pel Caç Nat 53.

Foto: © Paulo Santiago (2006)



1. Mensagem do Paulo Salgado, de 27 de Juho de 2006:

Luís

Como te disse ontem pelo telemóvel, falei com o Sado. Disse-me para o Jorge Neto o procurar na Direcção Geral das Alfândegas, que ele o encaminhará para o Paulo Malu. Esqueci-me de perguntar se já tinha sido promovido,masa não há problema, o Jorge Neto que procure o Major Sado Baldé , ou possivelmente Tenente Coronel. O meu amigo já sabe o motivo para o encontro com o Malu.

Fiquei muito sensibilizado com a tua Carta Aberta (1). Bem Hajas.

Mando-te uma foto do Pel Caç Nat 53. Atrás de mim [eu, de boina castanha, bigode, ao meio, na primeira fila] , está o Fur Mil Mário Rui [de barbas], tendo ao seu lado direito, com uma bazooka o Bobo Embaló e, do lado esquerdo, o Mamadú Sanhá. Na última fila, à esquerda da foto, com um sumbea na cabeça está o 1º cabo Suleimane Baldé, actual Régulo de Contabane, tendo a seu lado, atrás, o 1º cabo Pina.

Um abraço
Paulo Santiago

PS- O Sousa e Castro é capaz de ter razão quanto ao camarada das transmissões, apanhado à mão. Tenho ideia alguém me ter dito que era do Porto e trabalhar (ou ter trabalhado) no Aeroporto em Pedras Rubras. Não tenho a certeza sobre este assunto.

2. Comentário de L.G.:

Paulo: Ainda não contactei directamente o Jorge Neto que, pela leitura do seu blogue, o Africanidades, está a caminho de Portugal, via norte de África, para passar as suas férias de verão. Mas vou contactá-lo. Se ele puder, no regresso, irá decerto procurar o Sado e fazer uma belíssima entrevista ao comandante Paulo Malu. Faço-lhe daqui já a proposta e o convite.

Como prometido, reservei-te o nº 1000 ao teu IV (e suponho que último) post sobre a tragédia do Quirafo, dos seus antecendentes até à sua consumação. Como eu disse, na carta aberta (1), é a minha pequena homenagem a ti, ao Mário Rui e ao aos demais bravos do teu Pel Caç Nat 53, ao Armandino e aos restantes camaradas da CCAÇ 3490, bem como aos milícias e civis de Madina Bucô que estavam lá, na maldita picada do Quirafo, nessa maldita segunda-feira, 17 de Abril de 1972 e que – muitos deles – não voltaram a casa para contar aos seus filhos e netos o que era uma emboscada nas picadas da Guiné"… (LG)


3. Quarta parte do texto do Paulo Santigao sobre a tragédia do Quirafo (2) :

Segundo alguns sobreviventes, africanos, à explosão seguiu-se o silêncio. Quem não foi atingido, procurou refúgio afastando-se em direcção a Madina Buco, onde entretanto chegara o Unimog, que fizera meia volta aos primeiros disparos e rebentamentos e que terá transmitido através do rádio do destacamento a notícia da emboscada para o Saltinho.

Nessa mesma manhã o Pel Caç Nat 53, comandado pelo Fur Mil Mário Rui, deslocara-se ao Pulom, ao encontro de uma coluna vinda de Galomaro. Esperavam esta, quando começaram a ouvir o tiroteio e os rebentamentos e imaginaram de imediato quem era o alvo.

O Mário Rui já não esperou pela coluna, voltou para trás e em Chumael cortou para Madina, onde encontrou o pessoal do Unimog que dizia, desvairado, ter morrido todo o grupo de pessoas transportado na GMC. Choravam, cada um para seu lado. Do quartel fora pedido apoio aéreo. Dois FIAT passam à vertical de Madina Buco, seguindo rumo ao Quirafo, sobrevoam o local da emboscada, visível para eles, fazem várias passagens, sem largar qualquer bomba, ninguém pode com segurança indicar-lhes onde está o IN, e onde estão as NT.

O Mário Rui, logo secundado por todos os homens do 53, resolve seguir em busca dos possíveis feridos e mortos, no que é acompanhado por alguns milícias que tinham ficado na tabanca. Seguem nas viaturas até ao local onde se encontra a GMC da CCAÇ 3490 (3), seguindo depois apeados a partir deste local. É pedido apoio de heli-canhão, que chega entretanto. Começam a aparecer sobreviventes saídos da mata, quase todos em estado de choque. Falam sem nexo. Avistam, passados alguns minutos, a GMC, ainda fumegante, algumas dezenas de metros à frente. Ninguém correu, apesar de ser essa a vontade, socorrer alguém que necessitasse, redrobando as cautelas.

Aí a uns trinta metros, o Bobo Embaló, que ía na frente, estaca: há terra recentemente remexida na picada, onde normalmente passa um dos rodados das viaturas. Descobre-se uma mina anti-carro, montada após emboscada. Se o Mário Rui tivesse continuado a progressão em cima das viaturas, poderia ter acontecido outra tragédia.

Há um episódio que ninguém gosta de contar, e cada um imaginará como foi: a recolha dos corpos.

Um dos sobreviventes fala no caso do transmissões que viu ser apanhado à mão, e que estaria ferido num braço.Procurando a existência de minas anti-pessoais ou armadilhas,que não encontram, vasculham o local onde o IN esteve emboscado e a mata circundante. Não encontram ninguém ferido ou morto. O homem das transmissões desaparecera e iria ser dado como morto.

Da parte da tarde o comandante de batalhão chegou ao Saltinho, de heli, mandou formar o resto da companhia e disse:
- Apesar da emboscada, a abertura da picada [Quirafo-Foz do Cantoro] vai continuar; não continua amanhã porque as moto-serras ficaram destruídas ; assim que as novas chegarem, continuamos, quando chegarmos à foz do Cantoro colocamos uma placa com o nome dos nossos mortos.

Grande besta criminosa era este anormal! O proveta Lourenço não põe em causa esta barbaridade, tudo o que o Lemos diz é para se cumprir. Ele precisa do Lemos para entrar para a GNR no fim da comissão.

Passados uns oito dez dias, chega logo pela manhã um heli ao Saltinho de onde sai o Castro Lemos [o tenente-coronel, comandante do BCAÇ 3872, sedeado em Galomaro], acompanhado por um militar com duas moto-serras novas. No dia seguinte seria retomada a abertura da picada Quirafo- foz do Cantoro. O Lourenço mais uma vez disse amen.

Acabara de sair o heli com o Lemos, eis outro a aproximar-se para aterrar, era o Spínola, chegado na véspera da metrópole. Entra de chancas com o Lourenço :
- Quem fora o incompetente com a ideia de construir a picada ? Queriam mais mortos ? Queriam minas ?

O capitão desculpa-se com o comandante, mas o Caco pergunta-lhe se não tem cabeça para pensar, se não sabe onde está a população, não conhece a sua zona de acção ? Isto passa-se na parada, para quem quiser ouvir. O Lourenço diz-lhe :
- O nosso comandante quer que continuemos amanhã com a picada.

Aí o General empertiga-se e diz-lhe :
- Será que você não sabe que sou seu comandante ?! Se mexer um dedo para continuar a picada mando um heli com a PM para o prender. Todos os acontecimentos irão ser averiguados através de um auto.

Passou-se uma semana entre esta última cena e a minha chegada. O Lourenço tinha vindo de férias.

O Mário Rui andava sempre agarrado à guitarra. Nunca mais lhe pegou após o 17 de Abril de 1972.


Paulo Santiago
ex Alf Mil do Pel Caç Nat 53
Saltinho (1970/72)

__________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 27 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P995: Carta aberta ao Paulo Santiago: Nenhum relatório militar falava do nosso 'sangue, suor e lágrimas'

(2) Vd. posts anteriores:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)


26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)


(3) CCAÇ 2406, no original: deve ter sido lapso do Paulo Santiago. A CCAÇ 2406 esteve no Saltinho, entre 1968 e 1970,pertencendo ao BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca. Na akltrura o Saltinhoa fazia parte do Sector L1. Só mais tarde foi integrado no Sector de Galomaro.

Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

Guiné > Pelundo > Dezembro de 1969 > João Tunes (no jipe, do lado esquerdo, o caixa-d'óculos), na altura Alferes Miliciano de Transmissões da CCS do BCAÇ 2884, e já apanhado do clima, apesar dos bons ares do chão manjaco... Mas o pior, foi quando o mandaram, com guia de marcha, para o reino do Nino, lá para as bandas de Catió...

Foto: © João Tunes (2005)


Mensagem do João Tunes:

Caro Luís,

Difícil, muito difícil, resistir aos teus desafios (2). Talvez por esse dom de mestria, tão teu e transpirando sinceridade, de nos fazeres psico pela via do companheirismo sedutor. Tão bem o fazes que dou frequentemente cá comigo a pensar que ao Caco lhe faltou perspicácia suficiente para te aproveitar os talentos e substituir, sob tua inspiração, o raio daquela guerra estúpida e inglória por uma imaginária Guiné Melhor que metesse em convívio alegre, culto, amigo e solidário, o Amílcar e os seus rapazes, a nossa malta das tropas-macacas mais das operações especiais, Alpoim e outros heróis e os não tanto, os guineenses e os caboverdianos de um e outro lado e até de lado nenhum, as bajudas lindas até serem mães precoces, mais os cubanos e outros mais, até os que tais.

Teria sido bem melhor, um ronco do tamanho de todas as bolanhas juntas, voltávamos todos excepto os acidentados, porque - como hoje tão bem se demonstra - até fomos e somos todos, os de um e outro lado, não só bons rapazes como amigos até não mais podermos ser. E, assim, o cacimbo seria, apenas, uma simples imagem meteorológica. Não aquilo que foi, um desarranjo mental, mas vital, na medida em que foi um grito de nojo humano em estar na guerra, fazer a guerra, acreditando eu que não há mãe no mundo que ande a parir filhos com o fito de os meter a matar, muito menos para morrerem.

Pedes tu, caro Luís, contributos para estórias de cacimbados. Difícil, digo em resposta à chamada. Por um lado, julgo que cacimbados teremos sido todos nós porque não tomei até hoje nota de algum camarada que por lá tenha perdido a humanidade. Por outro lado, falece-me a capacidade de não me repetir e nisso muito te devo mais ao blogue, na exacta medida saudável de tanto teres ajudado à catarse que nos liberta da memória traumática ligada aos melhores anos das nossas vidas. E, com a catarse, ganhando-se em paz e em distância, perde-se a piada do acicate de mexer e remexer nas feridas. Ou seja, em termos criativos e comunicacionais, há bens que vêm por mal.

Pela minha parte, encontrei cacimbados em tudo quanto era sítio guineense. E havia um que encontrava todos os dias, logo pela manhã, quando me punha a olhar o espelho para praticar as artes do barbear. Mas, como tudo é relativo, os mais cacimbados entre os cacimbados encontrei-os no Sul da Guiné, no chamado reino do Nino (3). Em Catió, em Guileje, em Gadamael-Porto, em Cacine. Piores que estes só mesmo os metidos em Bissau, no Depósito de Adidos, vindos dos pontos quentes e aguardando regresso, a gerirem uma espécie de loucura sincrética entre as feridas na alma e no corpo em mistura com o alívio ansioso de dali saírem vivos, tentando ainda treinarem os gritos, as lágrimas, os abraços, os beijos dos seus no regresso ao seu meio e viver naturais.

Como disse, já se me secou a capacidade de contar mais que o tanto e tão bem contado pelos outros camaradas. E se não acrescento um ponto, para quê somar mais um conto? Mas, para que não digas que me baldei à chamada, envio-te, com a companhia de um abraço amigo, dois textozinhos que publiquei em Abril de 2004, exactamente sobre estórias de cacimbos e de cacimbados (os factos são veros, só os nomes dos personagens foram alterados) e em que o tom de escrita é notoriamente o da pré-catarse (hoje escreveria diferente, mas preferi manter as versões originais porque o cacimbo se nota mais, ou demais) (2)

I - TIREM-ME DAQUI !


II - E O JIPE NUNCA VOOU


Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.

João Tunes
Blogue > Agua Lisa (6)
_____________

Notas de L.G.:

(1) Resposta a um pedido meu, de 17 de Julho:

Amigos & camaradas:

Há um desafio meu e do Mexias Alves para falarmos do cacimbo da Guiné e dos seus devastadores efeitos... Quem nunca se sentiu cacimbado, que atire a primeira pedra... Estórias sobre o cacimbo, aceitam-se e pagam-se alvíssaras (...)

(2) A publicar, em breve.

(3) Vd. post de 12 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVI: No 'reino do Nino': Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970)

quinta-feira, 27 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P998: Antigos combatentes: sem pernas, sem braços mas com memória (Jorge Neto)

Guiné-Bissau > Bissau > Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira > 17 de Julho de 2006 > Manifestação de antigos combatentes do Exército Português, por ocasião da chegada, com intervalo de 2 minutos, do Presidente da República de Portugal, Aníbal Cavaco Silva, e do Primeiro Ministro, José Sócrates, no âmbito da VI Cimeira da CPLP. "Nós, os antigos combatentes, exigimos o cumprimento do acordo de Argel", é a mensagem que se podia ler no belíssimo pano que foi feito para a ocasião (LG).

Com a devida vénia > Excerto do Africanidades, o blogue do nosso amigo Jorge Neto , agora em férias (e possivelmente contactável em Évora, dentro de dias; hoje ainda estava na Mauritânia; todos nós lhe desejamos um bom regresso a casa e umas retemperadoras férias):

18 de Julho de 2006 > ESQUECIDOS PARA SEMPRE

Cerca de 40 antigos combatentes guineenses do exército português juntaram-se à saída do aeroporto para tentar colocar algumas questões a Cavaco Silva e José Sócrates. Instado pela imprensa a comentar a situação destes homens, José Sócrates limitou-se a dizer que não tinha reparado neles. Vistas curtas, para o que não interessa. Ao fim da tarde, quando Vítor Constâncio anunciou o bom desempenho económico do país, Sócrates ouviu perfeitamente e fez questão de comentar!

O problema dos antigos combatentes africanos nunca será resolvido, para vergonha de quem é português e pouco pode fazer para ajudar estes homens que ainda hoje vivem sem pernas, braços... mas com memória. O passado não se apaga nem se esquece. Por muito que os políticos tentem.

Texto e foto: © Jorge Neto (2006)

Guiné 63/74 - P997: Paulo Malu, o comandante da emboscada do Quirafo (Paulo Santiago)

Guiné-Bissau > Jugudul > Fevereiro de 2005 > O Paulo Santiago, à esquerda, com o Ten Ká, da Guarda Fiscal e o Sado, seu grande amigo e oficial superior da mesma força.

Foto: © Paulo Santiago (2006)


Luís:

Segundo o meu amigo Sado, quem comandou a emboscada no Quirafo, foi o comandante Paulo Malu.

Em Fevereiro de 2005, na véspera de regressar a Portugal, cheguei a ter um encontro marcado com ele, inviabilizado à última hora por uma deslocação urgente que teve de fazer ao interior do País.

Na altura era Coronel e estava colocado na Direcção Geral das Alfândegas.

Podes pedir ao Jorge Neto (é o delegado da Lusa ?) que procure falar com o Paulo Malu.

Um abraço
Santiago

PS- Falei há pouco ao telefone com o Mexia Alves. Aguentámos juntos o ataque ao Xitole, em 3 de Agosto de 72.