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terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25140: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte III: 45 crianças, refugiadas (e provavelmente judias), polacas, alemãs, austríacas e uma russa, embarcam em agosto de 1941 no "Mousinho" a caminho da América



Legenda; "Depois de alguns dias de permanência em Lisboa e na Parede, partiram para a América do Norte 45 crianças, polacas, alemãs, austríacas, e uma russa, fugidas aos horrores da guerra. A foto mostra-nos algumas das mais pequeninas refugiadas no momento em que embarcavam a bordo do "Mousinho".






Legenda: "Um aspeto da entrada para o 'Mousinho' das 45 crianças refugiadas que há dias chegaram a Lisboa e seguiram para a América"



1. O drama dos refugiados de guerra é de ontem e é de hoje, é de todos os tempos, de todas as guerras.  Por Lisboa, última porta para a liberdade, passaram muitos refugiados durante a II Guerra Mundial.  Não se sabe como é que estas crianças chegaram a Portugal. O mais provável é terem sido acolhidas pela Comunidade Israelita em Lisboa, que mantinha uma cantinha económica, um albergue e um hospital... E entre os membros ilustres e solidários dessa comunidae, destaque-se o avò do nosso querido amigo Pepito (1949-2012), o eng. Samuel Schwarz (1880-1953), e irmáo do nosso João Schwarz da Silva, que vive em Paris e é membro da nossa Tabanca Grande.

Orfãs ?  Muito provavelmente judias (a avaliar pelo fenótipo de algumas). A "Vida Mundial Ilustrada" omite essa informação, não por  razões éticas ou de segurança, mas mais provavelmente por imposição da omnipotente e farisaica censura do regime... 

Sabemos que o regime de Salazar teve dois pesos e duas medidas em relação aos judeus. Por exemplo, em relação aos judeus com nacionalidade portuguesa, sefarditas, ou seus descendentes, na Holanda, nos Balcãs, na Turquia, na África do Norte..., muitos poderiam ter sido salvos... e não o foram...

Nesta foto, as crianças parecem  estarem  enquadradas por elementos da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), antecessora da PIDE (Polícia Internacional e Defea do Estado)...

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Notas do editor:

2 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25128: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte II: embarque de tropas expedicionárias para os Açores, em maio de 1941

29 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25120: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte I: embarque de tropas expedicionárias para Cabo Verde, em junho de 1941.... "Partiram alegres e confiantes"...

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23532: A galeria dos meus heróis (47): O tio Ortiz (1906-1944) (Luís Graça)


Luís Graça, ilustração gráfica, Entropias (1999)


Outubro de 1941 > Execução, pelo exército alemão, de prisioneiros civis sérvios... Na sequência da morte de 22 soldados alemães, atribuída à resistência sérvia, foram executados, em represália, 2100 (!) sérvios (na maior parte, judeus, comunistas e ciganos)...


1945 > Campo de concentração de Bergen-Belsen > 19 de abril de 1945 > Guardas femininas das SS, feitas prisioneiras pelo exército britânico... Três delas serão depois condenadas à morte e executadas.

Berlim > 21 de março de 2015 > Centro de Documentação "Topografia do Terror". Localização: Niederkirchnerstraße 8 10963 Berlin, metro: Potsdamer Platz ou Kochstraße. 

Fotos: Luís Graça (2015)


A galeria dos meus heróis > 

O tio Ortiz (1906-1944)

por Luís Graça (*)


1. Partimos de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Eu e a Manuela. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar comigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguimos fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não nos víamos há muito tempo. E íamos estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa dos 100 anos do seu pai e aproveitara para rever o mano mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. Tinha uma vaga ideia que a Manuela já me falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 eu tinha andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Fui  de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. Alguns desses sítios “tocaram-me” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, com os nomes das localidades, então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos".  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O meu amigo V... (que infelizmente já morreu) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os antifranquistas radicais...

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância e sentir a tal "saudade" e perder-se no  "labirinto" de que fala o Eduardo Lourenço... Como eu e o V..., mais as nossas caras-metade, que uma noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro, chegámos a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika, e quando estávamos a montar a tenda, começámos a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em a "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena"... Hà emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis e que nos marcam para sempre... Eu, pessoalmente,  que gostava da Amália q.b., passei a ouvi-la com emoção, desde que ela morreu...  Para o V..., a Amália era uma "reaça". E o fado uma "desgraça"...

− Morreu na Flandres, na I Grande Guerra.

− Quem,  o seu avô ?!

− Sim, o meu avô materno. Na Flandres. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa.

− O meu avô Ortiz… Sou de origem basca e francesa, pelo lado da minha mãe.

− Daí o apelido Ortiz, não ?!…E quando é que vocês vieram para Portugal ?

− A minha mãe e os irmãos vieram como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola.

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a minha interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 24 anos…

− Pelo que vejo, Manuela, é uma história comprida, a da vossa família. Comprida e dramáticamente cumprida.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

− Sei do que fala, também eu fui obrigado a vestir uma farda, a pegar numa arma e a fazer uma guerra, a guerra colonial, na Guiné. Contra a minha consciência, contra os meus valores...

− Uma tia, a mana mais velha da minha mãe, morreu no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961, já não posso precisar . Barbaramente assassinada, à catanada. (Catanada, é assim que se diz ?)... Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que conhecera a tia quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos, creio que nascera em 1908. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”. Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui.

− O meu tio Ortiz, o único rapaz,  filho do meu avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos. Era o mais velho.

E depois confidenciou-me:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, acho que vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo com a ida ao Porto.

2. A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

− A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de alguma modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareci eu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História. 

A Manuela pegou nesta minha observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das nossas guerras. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, teriam a oportunidade, única, de conheceram uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensei eu... Em Angola, Guiné ou Moçambique...

− Não se esqueça – recordou-me ela – que eu ainda apanhei a “escolinha” do Estado Novo.

− Também eu, Manuela… E em boa verdade, ainda tenho saudades do bibe e do pião... Mas diga-me uma coisa: há fotos, ao menos, desse seu avô?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos, os seus tios,  o que lhes terá acontecido depois?

Tentando delicadamente, mas algo a  contragosto,  satisfazer a minha curiosidade intrusiva,  a Manuela disse-me que  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos, tendo ficado órfãos, e sendo menores, foi-lhes atribuído uma pensão de sangue do Ministério da Guerra.  Pôs-se, ao que  parece, a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria 12 ou 13 anos. A mãe, essa, já estava internada num hospício. Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra.

− Como vim, mais tarde, a descobrir, as duas famílias ainda eram aparentadas, com um trisavô comum. Daí nos tratarmos por primos… 

E aproveitou para me dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não me convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos só falavam o francês e o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do “Front Populaire”.  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de “chef de cuisine”.

Sobrevoávamos já a França, quando ela me começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe. 

Cozinheiro de profissão, militante comunista, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz teria sido preso,  em 1941,   logo a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. 

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, judeus e outros… 

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  deste campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme… Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

− A Manuela, então, não sabe em qual deles morreu o tio…

− Infelizmente, não sei, ou ainda não sei. Quando quis voltar a falar com a minha mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dois irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto. E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas... 

− Foi um ano difícil para todos.

− A minha mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas procurámos poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou sepultada na terra onde fora muito feliz.

− Se é que se pode morrer em paz – comentário meu, desastrado.

Procurei emendar, desviando o rumo da conversa e perguntando-lhe pela avó materna. Resposta algo evasiva e sobretudo seca e ríspida:

− Não sei nada dela. Pouco ou nada me contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família.

A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa (ela disse-me o nome, que não fixei) enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido. Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na sua morte. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  

– Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca.

− Uma família destroçada – comentei eu.

− A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

− A Manuela fala basco?

− Nunca falei. Nem a minha mãe. Como já expliquei, só o meu avô materno é que era basco,   Em Bilbau, comecei agora a aprender, já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialectos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os "defeitos de fabrico"... Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais "violentos" ou "truculentos" que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer insinuar...

– A ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a violência revolucionária seja da ETA ou de qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão terrorismo...

– Não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem a sua língua e transmiti-la aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados, tal como outras minorias...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos. na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, físicq e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem...

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os seus irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar em Portugal. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto. Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos “avós”. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a “baserri”, que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu primo, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

− Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da vossa família.

−Sim, a minha mãe conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus avós adotivos… Na Praia da Granja, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado comerciante de vinhos e espirituosas, grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro.

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha uma ascendência cristã-nova, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade israelita do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante”.  Foi o retrato que me fez a sua filha, já depois de chegarmos a Berlim.

3. Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes? 

Eu já conhecida de Lisboa, das “lides profissionais”. Se não erro, desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia. Ainda não havia a União Europeia nem o euro. Estamos a falar de 1986.

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (ministério do trabalho, que tutelava a área, empresas, médicos do trabalho, técnicos de higiene e segurança, Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Devo ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sei que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficámos em contacto. Reencontrávamo-nos agora, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuávamos a tratarmo-nos por você. Sentia que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estávamos os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Eu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho, se bem recordo.

Por sorte, estávamos alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que nos levava ao centro de conferências onde se realizava o nosso encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E depois ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para mim,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos nós, europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), demo-nos conta, já em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na nossa velha e adorada Europa de então. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselinni, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas à noite. Depois do jantar, ficávamos à conversa sempre que não havia “programa social”, e tínhamos o tempo por nossa conta. Já tínhamos feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais três ou quatro portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe do nosso.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-me ela, a mim, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que retomámos a nossa já longa conversa sobre o tio Ortiz, inacabada, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, eu teria a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabia ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazia críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspirava-lhe confiança. E nada como o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhei eu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

−Manuela,eu também não... Mas como vamos explicar aos nossos filhos e netos toda esta barbárie do nosso século?

Da sua vida privada, nunca me falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-me que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refractário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano lectivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”). Nunca soube se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez me perguntou pela minha família. Era uma mulher atraente-

4. Só uns dois ou três anos mais tarde, no virar do século, é que a Manuela me contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando nos voltámos a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que eu conhecera em 1981, quando a visitara pela primeira vez.

− Ah!,  sim, Berlim, 1997 ! − recordou ela.

E eu comecei por ficar feliz ao ver que ela tinha deixado de fumar... 

Afinal não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, c0nstruído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar...

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro.

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? − perguntei eu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau.  O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes.

− A imaginação, a capacidade de resistência e  abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, que nunca seremos seremos deuses, também somos capazes de nos transcender e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói grego...

E conclui o meu pensamento:

−  O seu tio Ortiz foi um herói.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento.

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua inteligência, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante o pelotão de fuzilamento: Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive la... France! [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias, o nome da minha interlocutora, que ainda está viva,  é fictício. LG]

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Nota do editor:

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23483: Ser solidário (249): Divulgação de uma campanha de recolha de fundos que visa construir uma escola em Sincha Alfa, Leste da Guiné-Bissau (Renato Brito)

1. Mensagem enviada ao nosso Blogue, em 27 de Julho de 2022, por Renato Brito, voluntário na Guiné-Bissau, pedindo a divulgação da campanha de recolha de fundos para construção de uma escola em Sincha Alfa no Leste da Guiné-Bissau:

Boa tarde,
Chego ao vosso blogue através de uma publicação do Senhor Mário Beja Santos que a 08 de Março 2013 publica um artigo sobre o músico Lilison di Kinara.

Desde 2015 trabalho no norte de Itália num centro que acolhe refugiados, em grande parte oriundos da África Sub-sahariana, alguns da Guiné-Bissau.
Em fevereiro de 2020 fui conhecer a Guiné-Bissau. Viajei durante 1 mês de bicicleta pelo país. Sincha Alfa é a aldeia de onde é originário o pai de um dos requerentes de proteção internacional que vive onde trabalho.
Constatando as condições deficitárias da escola, resolvi pôr em prática uma campanha de recolha de fundos que visa construir uma escola nesta.

Partilho convosco os “bilhetes-postais” preparados para divulgar esta ideia.
Se acharem pertinente, agradeço o vosso contributo para divulgar este projecto.

Cumprimentos,
Renato Brito


Guiné-Bissau > Localização de Sincha Alfa
Guiné-Bissau > Sincha Alfa > Exterior da Escola
Guiné-Bissau > Sincha Alfa > Interior da Escola
Guiné-Bissau > Sincha Alfa > Regresso da Escola
Cartolinas - Clicar nas imagens para facilitar a leitura


OBS: Em relaçao aos conteúdos da “cartolina 02” deixo o formato texto onde espero possam aceder directamente aos “links” assinalados:

LILISON DI KINARA - Bamatulu (1999) – Luciana
https://www.youtube.com/watch?v=WPfcxOgTiwA

LILISON DI KINARA - Bamatulu (1999) – Fidjus (Soronhas di Lili)
https://www.youtube.com/watch?v=RQMqIr7YCVk

ZÉ MANEL - African Citizen (2003) – Mindjer i um Kumpanher
https://www.youtube.com/watch?v=9n5Z1OyeoQs

IBRAHIMA GALISSA - Tafettas (2004) – Saudade do meu amor
https://www.youtube.com/watch?v=n6j8mNJro34

IBRAHIMA GALISSA - Tafettas (2004) – Yay Balma
https://www.youtube.com/watch?v=SnXcf3JHQgU

BIDINTE - Iran do Fanka’s (2001) – Considjo di Garandis
https://www.youtube.com/watch?v=h3AyKBkoFfI

ENEIDA MARTA - Lôpe Kai (2006) – Mindjer Doce Mel
https://www.youtube.com/watch?v=QGrseiVptSE

ENEIDA MARTA - Nha Sunhu (2015) – Na Bu Mons
https://www.youtube.com/watch?v=Z5YQ4y-fO9A

KARYNA GOMES - Mindjer (2014) – Amor livre
https://www.youtube.com/watch?v=pGyZvhiy-Ts&t=15s

KARYNA GOMES - Mindjer (2014) – Mindjer di Balur
https://www.youtube.com/watch?v=wiIxk1fPCa8

KARYNA GOMES - Mindjer (2014) – Mindjer i Namê
https://www.youtube.com/watch?v=PBJ6tnFMLDA

BINHAN - Lifante Pupa (2017) – Amor so Amor
https://www.youtube.com/watch?v=2URysJEzy5g

Documentário “Kora”
Filme de Jorge Carvalho, rodado na Guiné-Bissau, conta a história de um dos mais importantes instrumentos musicais da África Ocidental.
Documentário completo com legendas em Inglês:
https://www.youtube.com/watch?v=qy1sKOaWZL8

Renato Brito

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23475: Ser solidário (248): Pedido de apoio para a instalação de painéis solares na Escola Humberto Braima Sambu e angariação de fundos com o objetivo de construir um pavilhão multiusos (Marta Alegre)

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23311: Agenda cultural (812): Exposição no Palácio da Cidadela de Cascais, de 13 de maio a 28 de agosto de 2022: "Portugal e Luxemburgo: países de esperança em tempos difíceis"

 

Cartazes da exposição

1. Informação que nos chega por via do nosso amigo e camarada João Crisóstomo (Nova Iorque) que está em Portugal há mais de um mês, devendo partir no domingo para  a Eslovénia, terra da sua esposa Vilma. Visitou esta exposição, no dia 27 do corrente, na companhia de amigos, adorou e recomenda aos nossos leitores.


Portugal e Luxemburgo – Países de Esperança em Tempos Difíceis


A exposição Portugal e Luxemburgo – Países de Esperança em Tempos Difíceis, com curadoria de Margarida de Magalhães Ramalho e Claude Marx, e que foi criada em 2020 para o Centre Culturel de Rencontre Abbaye de Neumünster na cidade do Luxemburgo, abre amanhã, 13 de Maio, no Palácio da Cidadela de Cascais.

Focada no papel de Portugal durante a II Guerra Mundial como porto de abrigo de refugiados luxemburgueses e de como o Luxemburgo, décadas mais tarde, se tornou o destino de muitos portugueses que fugiam da ditadura e/ou da miséria, a escolha da vila de Cascais prendeu-se com o facto de ter sido na Casa de Santa Maria, fronteira ao Palácio da Cidadela que, no início do seu exílio em 1940, a Grã duquesa Charlotte e a sua família viveram durante alguns meses.

A mostra está subdividida em várias secções relativas ao conflito mundial, que vão desde as razões da ascensão do nazismo e o desencadear da guerra na Europa até ao destino dos que fugiam. Relata também as dificuldades encontradas pelos refugiados na sua rota de fuga e o papel de Aristides de Sousa Mendes no salvamento de milhares de pessoas. 

Aborda ainda a política de neutralidade de Portugal e a passagem de milhares de refugiados por terras lusas, incluindo a estada da família Grã-ducal em Cascais. Por fim, debruça-se sobre a evolução do Luxemburgo no contexto europeu do pós-guerra e a ditadura repressiva portuguesa, que ditou o atraso económico do país e que obrigou muitos a partirem.

Em Cascais, a exposição foi ainda enriquecida com conteúdos contemporâneos ligados a artistas luso-luxemburgueses, como a instalação Memória Episodika do artista plástico Edmond Oliveira, baseada na experiência de vida do seu pai, um dos primeiros emigrantes a chegar ao Luxemburgo; ou as fotografias de Paulo Lobo, que refletem o impacto da presença portuguesa na paisagem luxemburguesa.

O design é da dupla Sara e Pedro Gonçalves e a museografia de Luísa Pacheco Marques. A reposição da exposição em Portugal foi possível graças aos apoios da Câmara Municipal de de Cascais, da Câmara Municipal de Almeida, do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Europeus do Luxemburgo, do Ministério da Cultura do Luxemburgo, do Centro Nacional de Audiovisual e das empresas luxemburguesas POST, WEALINS et LOSCH Digital Lab.


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Nota do editor:

Último poste da série > 8 DE MAIO DE 2022  Guiné 61/74 - P23245: Agenda cultural (811): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, 11 de junho de 2022, sábado, 11h00: Luís Graça apresenta o livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul"

domingo, 20 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23095: Antologia (85): Operação Crocodilo, Guiné-Bissau, junho/julho de 1998 (Revista da Armada, julho de 2013): Em 44 dias de missão e em 23 operações, foram resgatados 3487 refugiados, com o apoio do navio de carga "Ponta de Sagres" da Portline (Correio da Manhã, 17/2/2007)

1. OPERACÃO CROCODILO 

Revista da Armada, julho de 2013, pág. 20

(Com a devida vénia...) (**)

Em 7 de junho de 1998 desencadeou-se na Guiné-Bissau um conflito interno entre forças militares leais ao Governo do Presidente Nino Vieira e aquelas que se viriam a agrupar e torno de uma “Junta Militar” liderada pelo general Ansumane Mane.

A fim de efetuar o rápido resgate de cidadãos portugueses e de países amigos que, fruto da elevada insegurança criada pelo conflito, pretendessem abandonar a Guiné-Bissau, o Estado Português colocou em curso a Operação Crocodilo. (*)

Esta operação envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas, sendo a componente naval constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio. Comandava esta força naval o CMG Melo Gomes.

De forma intensiva e, muitas vezes, simultânea (1), as duas aeronaves foram utilizadas em diversas missões de embarque de cidadãos nacionais e de países amigos para os navios da força naval, na distribuição de ajuda humanitária em diversos locais do território guineense, e em algumas missões de reconhecimento.

Uma das missões de recolha de cidadãos nacionais realizadas pelos dois helicópteros levou-os a cruzarem grande parte do território da Guiné-Bissau até aos Rápidos do Saltinho, nas proximidadesda fronteira com a Guiné-Conacri. 

Após um trânsito realizado a muito baixa altitude, sobrevoandoas vastas e densas florestas guineenses e utilizando a cobertura dos braços de rio e das copas das árvores para evitar uma desnecessária exposição, os helicópteros tomaram imediato contacto com grupos armados da “Junta Militar” logo que aterraram no local de recolha. Desembarcada diversa ajuda humanitária e recolhidos os passageiros ali presentes,  regressaram à Vasco da Gama sãos e salvos.

De referir que as cartas de navegação aérea disponíveis eram fotocópias a preto e branco de cartas aeronáuticas que datavam do início dos anos setenta (2). Sendo que naquela área do globo ocorre frequente perda de cobertura GPS, as aeronaves realizaram grande parte da operação com recurso a procedimentos de navegação tática meramente visual (carta-terreno).

Os helicópteros tiveram ainda uma importante participação no processo inicial de mediação e negociações de paz entre as partes em confronto, realizando diversas aterragens em local sob controlo das forças da “Junta Militar”. Releve-se a missão de transporte de uma comitiva de representantes dos países da CPLP, liderada pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Jaime Gama, de Cape Skirring, no Senegal, para a fragata Vasco da Gama, então a navegar no leito do Rio Geba.

Para poder manter e operar as duas aeronaves que embarcaram durante a Operação Crocodilo, o MUTTLEY, nickname do destacamento de helicóptero atribuído então à fragata Vasco da Gama, recebeu um reforço de dois tripulantes e três técnicos de manutenção.

Num ambiente de elevada volatilidade, o emprego criterioso e eficaz dos dois helicópteros embarcados na Vasco da Gama, associado à sua rapidez e versatilidade, revelou-se de importância muito relevante para o cumprimento da missão da força naval durante a Operação Crocodilo.

P. Conceição Lopes CFR

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Notas

1. Muitas das missões aconselharam à operação simultânea dos dois helicópteros. Sempre que possível, o convés de voo do Bérrio era usado em apoio à operação simultânea. Contudo, quando os navios não estavam em companhia, o que aconteceu várias vezes, a realização de operações de voo das duas aeronaves obrigou a uma coordenação e precisão concertada de todo o navio em geral, em particular de toda a equipa de convés de voo, sem margens para erros ou atrasos.

2. Fotocópias tiradas, na véspera da largada da força naval de Lisboa, de cartas da Esquadra 501 (C-130) da Base Aérea nº 6 do Montijo.


2. Informação complementar do jornal "Correio da Manhã", de 18/2/2007 (***), excertos selecionados (e negritos)  pelo editor LG, com a devida vénia:

(...) "Quando a guerra acaba, o pesadelo resiste na memória dos sobreviventes: 10 de Junho de 1998 – Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas –, o País é surpreendido com o agravar dos conflitos na Guiné-Bissau. O então líder da Junta Militar – brigadeiro Ansumane Mané –, que comandava as tropas amotinadas no país, acusava a França de conivência com a intervenção militar do Senegal e da Guiné-Conacri. Por seu lado, o presidente ‘Nino’ Vieira, suportado por 1500 militares (parte deles senegaleses), combatia os revoltosos. 

O nosso País acordava para uma missão imperiosa: a de resgatar os cidadãos portugueses ameaçados por fogos-cruzados

Melo Gomes foi o oficial superior escolhido para comandar a Força Naval envolvida na operação ‘Crocodilo’; na semana passada, sob a égide do hoje Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), a Marinha simulou, em Tróia, um cenário semelhante para testar a intervenção da Força de Reacção Rápida[Exercício ‘Intrex’]

(...)  Recuando à África onde há nove anos se desenrolou uma missão real , desvendam-se contornos, até políticos, decisivos para fazer avançar a operação ‘Crocodilo’. “Criou-se logo uma célula no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e reuniu-se o primeiro-ministro, António Guterres, com o ministro da Defesa e MNE, Jaime Gama, e os respectivos gabinetes”, recorda José Lello, na altura secretário de Estado das Comunidades. Fizeram-se contactos diplomáticos, só que não era possível esperar mais. Pela primeira vez, ponderou-se a hipótese de pedir auxílio a navios civis que estivessem na região.

O feriado festivo – de quarta-feira – ligava por ponte o fim-de-semana do oficial de operações Braz de Oliveira (hoje porta-voz da Marinha). “Recebi a notícia quando estava dentro do carro, com a minha família, a caminho do Algarve”, recorda. Inverteu a marcha em direcção à Base Naval do Alfeite, em Almada, e embarcou na fragata ‘Vasco da Gama’ com o comandante Melo Gomes. “Foi feita a ordem de operações, promulgadas as instruções de coordenação e preparada a largada.” A Marinha tinha 48 horas para se aprontar e fazer--se ao mar quando a tutela decidisse.

O Aeroporto Osvaldo Vieira, em Bissalanca, era palco de confrontos – dominados pelos rebeldes –, impossibilitando que os cidadãos portugueses fossem resgatados por via aérea.

Contra-relógio, do lado do Governo, o secretário de Estado das Comunidades recebia dos Serviços de Informação os dados para avaliar o conflito. “Os relatórios permitiam fazer uma avaliação a cada momento. De antemão, já se sabia que a situação era complicada. Só que África é imprevisível. E, de repente, como não havia organização táctica [nos combates], aconteceu” – disse José Lello. Mas a situação agudizou-se.

“Acordámos com o som dos bombardeiros; a primeira coisa que fizemos foi ligar para a Embaixada”, relata ‘Amir’ Carmali, um português que residia em Bissau. “Ainda não tinham informações concretas para nos dar, só nos aconselharam a não sair de casa.” Ouviam-se rajadas, bazucadas, bombardeios, que tinham como alvo os militares. Na capital, as ruas eram controladas por senegaleses ao serviço de ‘Nino’ Vieira.

Em Portugal havia a certeza: o resgate impunha-se. A Marinha precisava de mais de três dias para alcançar Bissau. Só restava pedir ajuda a navios civis.

 “Houve um contacto que é das coisas extraordinárias: sabíamos que havia um navio lá e não é que o primeiro-ministro [Guterres] consegue, ele próprio, falar com o comandante”, revela Lello.

(...) Na Guiné, a distância obrigou a que fosse o navio de carga ‘Ponta de Sagres’  [ da Portline] o primeiro a tirar portugueses de Bissau.

Contrariando o noticiado na época, o comandante do ‘Ponta de Sagres’ afirma que o navio não foi mobilizado. “Tínhamos carga para Bissau e fundeámos no limite das águas territoriais”, conta Hélder Almeida (#). Foi Stanley Ho – o magnata de Macau e principal accionista da Portline – quem assumiu todos os riscos da operação.

“A Embaixada (##), que tinha os contactos de toda a gente, foi inexcedível no apoio”, garante o refugiado ‘Amir’ Carmali. Os estrondos da guerra aterrorizavam. Mais: tinha chegado o momento de abandonar as casas. A representação portuguesa aconselhou-os a levar panos brancos e pertences leves. Correram até à Sé de Bissau, que servia de ponto de encontro, e seguiram para o cais. “Estavam lá centenas e centenas de pessoas brancas, pretas, tudo.”

Dia 11, perto da hora de almoço (cinco dias depois do estalar da crise) zarpou a ‘Vasco da Gama’. Antes, às 09h00, o ‘Ponta de Sagres’ avançou para Bissau. “Tive noção do risco. Mas decidi sozinho, porque há alturas em que o comandante decide sozinho.” Chegados ao cais, dois navios, um cubano e outro russo, cerravam o espaço. Mais de seis horas depois, o russo cedeu lugar ao cargueiro – ainda com 300 contentores cheios de alimentos, material de construção, roupa e outros produtos. O embaixador Henriques da Silva e a cooperação portuguesa assistiram ao embarque e à filtragem de refugiados feita por senegaleses. Só embarcavam portugueses e cidadãos de países amigos.

“Íamos de calções e camisa; o calor apertava”, conta ‘Amir’, que agarrava apenas uma garrafa de água e um saco com o que se salvou. Para trás, o irmão deixava negócios de importação e exportação. “No porto, as granadas caíam muito perto – nem na Guerra Colonial em Moçambique vi bombas cair tão perto.” Soavam alertas; o chão e o ar vibravam assustadoramente; o assobiar dos tiros atirava os refugiados, encobertos pelas mãos na nuca, para terra. Os estrondosos morteiros só encontravam resposta nos gritos de pânico.

‘Amir’ e mais 30 refugiados, zarparam à boleia do navio russo que transportava para a Índia as cinco mil toneladas de castanha de caju, vendidas por ele e o irmão. Foram para Banjul, Gâmbia. À partida, antes de darem lugar ao ‘Ponta de Sagres’, o agora dono de um restaurante lisboeta, com 54 anos, disse: “Olha, oh Deus, nós já estamos a safar-nos. Agora, Ajuda estas pessoas.”

No ‘Ponta de Sagres’ caberiam cerca de mil pessoas. Embarcaram 2250. Os refugiados, de 30 nacionalidades, fizeram 24 horas até Dacar, no Senegal. “A bordo, a habitabilidade era precária: casas de banho, só algumas mulheres e crianças lá chegaram; eles faziam onde calhava; as messes foram abertas também às mulheres e crianças com alimentação à base de massas, grão e bolachas; à noite passaram frio e, muitos, fome e sede; devem ter dormido sentados”, conta o comandante.

Dia 15 de Junho de 1998, a ‘Vasco da Gama’ entrou em águas territoriais da Guiné – o pior dia, o do ataque da Junta Militar ao quartel de Brá e ao aeroporto. “Estivemos sempre sob ameaça e a própria Força Naval foi bombardeada e alvo de morteiros”, lembra o oficial de operações do Estado Maior. 

Durante os 44 dias de missão foram evacuados, em 23 operações, 1237 refugiados. A fragata ‘Vasco da Gama’, as duas corvetas ‘João Coutinho’ e ‘Honório Barreto’ e o reabastecedor ‘Bérrio’ foram a localidades distantes, como Bubaque, Ponta do Biombo, Varela (**) e Rápidos do Saltinho, buscar pessoas. Faltou um navio polivalente à Marinha.

 (...) Uma semana depois de terem começado os confrontos na Guiné, a população da capital guineense baixou de 300 mil para 130 mil residentes. Fugiram para o interior do país.

“Quando a fragata ‘Vasco da Gama’ se fez ao mar, parti para o Senegal com uma equipa médica e jornalistas”, relata o então secretário de Estado das Comunidades. “Levava um telemóvel satélite para me manter em contacto com o MNE.” O embaixador português em Dacar estabeleceu a ligação entre os refugiados e os voos da TAP que os trariam, sãos e salvos, para o nosso País.

No centro de refugiados, em Dacar, “fomos bem tratados”, garante ‘Amir’, embora muitos portugueses se tivessem queixado das condições. Havia um pavilhão amplo e cheio de camas de campanha para descansarem; comiam ração de combate e uma refeição quente por dia. 

Mais tarde, com as saudades a apertar, embarcaram com destino ao Aeroporto Militar de Figo Maduro, Lisboa. As autoridades verificaram os documentos; os refugiados descansaram e alimentaram-se; quem não tinha casa em Portugal recebeu dinheiro, alimentos e produtos de higiene.

A missão na Guiné terminou com recordações amargadas pelas circunstâncias, mas felizes pelo sucesso no resgate de 3487 refugiados. 

Na semana passada, o ‘Intrex’ deu provas da capacidade de reacção da Armada. E a ‘Vasco da Gama’ seguiu para o Mediterrâneo Ocidental para integrar uma força com o porta-aviões espanhol ‘Príncipe das Astúrias’, em mais um exercício. (...)

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Notas do CM e do editor LG:

(#) Hélder Almeida, de 64 anos, comandava o navio de carga ‘Ponta de Sagres’, durante o resgate na Guiné. Recebeu de Jorge Sampaio, ex-Chefe de Estado, a Ordem Militar de Torre de Espada.

(##) Recomanda-se a leitura dos 3 postes que aqui publicámos há mais de 10 anos sobre a origem deste conflito político-militar... São da autoria do antigo embaixador português e nosso camarada Francico Henriques da Silva, membro da nossa Tabanca Grande:

17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)

18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

19 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7818: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (3) (Francisco Henriques da Silva)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)

 (**) Último poste da série > 15 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23082: Antologia (84): Poema dedicado ao Tono d'Amelita, meu companheiro de carteira no velho colégio, morto em combate em Moçambique (Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3853, Aldeia Formosa, 1971/73)

(***) Vd. CM - Correio da Manha - Guiné em Tróia a ferro e fogo: A operação que levou a Marinha à Guiné, em 1998, é mais do que uma memória: é um exercício militar para testar a capacidade de reacção rápida. 18 de Fevereiro de 2007 às 00:00

segunda-feira, 7 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23054: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - III (e última) Parte: 14-15 de junho de 1998, "lar, doce lar"...


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Instrução Militar de Contuboel > CCAÇ 2479 / CART 11 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece (mas parece ser uma cara "familitar", a de futuro soldado da CCAÇ 12) ... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas, anorte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...
 
Foto (e legeenda) © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > c. 1972/74 > Rua principal de Fajonquito. Foto do álbum do José Cortes, ex-Fur Mil At Inf (CCAÇ 3549, Fajonquito, 1972/74 

Foto (e legeenda) © José Cortes (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


III (e Última) Parte - De 14 a 15 de junho de 1998:  
De Bafatá a Fajonquito


por Cherno Baldé (*)


8º dia, 14 de junho, domingo, Bafatá: recordações dos tempos de estudante e da OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi (1975/79)

Na tarde do dia 14 de junho de 1998, uma semana depois do inicio da guerra ( a 7 de junho), chegámos à cidade de Bafatá. E durante a viagem, para já, o único acontecimento de relevo tinha sido o facto do jovem condutor decidir voltar, ainda, até Nhacra antes de virar o rosto do camião para leste. 

Tive medo sim, por algum momento, por causa dos imprevistos e imponderáveis a que estava sujeito qualquer veículo equipado de motor e assente sobre um monte de ferralha e rodas de borracha. Se acontecesse alguma avaria ao camião seria uma grande desgraça para nós que voltávamos para trás depois de termos alcançado lugares seguros. 

Era uma aventura perigosa. Para me acalmar, dizia a mim mesmo que não havia razão para entrar em pânico e repetia isso várias vezes à minha consciência, mas sempre que olhava para as crianças o medo voltava a me invadir de novo.

Ao atravessarmos a ponte de Finete, perto de Bambadinca, entrámos na zona controlada pelos governamentais que, a acreditar naquilo que tínhamos visto no caminho, oferecia maior segurança as populações civis. Junto à ponte estava um destacamento de tropas da Guiné-Conacri e alguns tanques de guerra dissimulados no meio do arvoredo. Tudo novinho em folha. 

Depois de Bantandjan, finalmente, chegámos à cidade de Bafatá.

Mas antes, o camião atravessou a ponte sobre um braço do rio Geba, por onde corria a água turva carregada de material orgânico com que fertiliza as bolanhas nas suas margens, passou pela antiga fábrica de cerâmica, atravessou a rua Porto, passando pelo Liceu, o nosso velho Liceu onde está situado o memorial de Amílcar Cabral e foi parar no Bairro de Sintchã Bonódji, na saída para Gabú.

Sem contar com o número de pessoas que tinha afluído a esta cidade leste do país, fugindo da guerra de Bissau, não se notava qualquer diferença. Sim, Bafatá era ainda a mesma cidade de sempre, preguiçosamente estendida no dorso de um planalto meio adormecido que tínhamos deixado 27 anos atrás, quando partimos para continuar os estudos em Bissau (em 1979).

Esta cidade não será, certamente, a pior localidade da Guiné, mas para mim foi um inferno durante uns longos anos dos quais conservo uma péssima recordação dos tempos de estudante. Aqui, de rafeiro saído de um antigo quartel de brancos e filho querido de um lojeiro de uma pacata aldeia que, no fulgor da sua inocência, pontapeava o prato de farinha de milho que a avó lhe trazia à noite, tinha-se transformado num verdadeiro cão vadio. Nunca e em lugar algum tinha merecido tanto este animalesco cognome.

Lembrei-me de Boma (situada à frente do quartel), suas árvores frondosas e a água fresca das suas nascentes onde íamos esconder-se das brasas do calor que arrasavam os Bairros situados na parte mais elevada do planalto e a Ponte Nova e onde, também, íamos enganar a fúria das nossas fomes insaciáveis de estudantes sem tecto, fingindo estudar. 

O guarda da plantação de mangueiras e cajueiros nas profundezas de Boma cujo nome era Sekuel (1), nos conhecia de cor e deixava-nos assaltar a sua horta, na certeza de que não adiantava muito tentar impedir-nos. Era uma pessoa dotada de grande humanismo e de bom senso, vacilando entre as suas obrigações de guarda e os sentimentos de piedade para com crianças deserdadas. No princípio ainda tentou, mas rapidamente teria notado que, empurrados pela fome, a nossa insistência e capacidade de resistência eram fora do comum.

 Não tínhamos alternativa. Acabou por nos aceitar como se aceita a presença de animais roedores dentro da própria casa. De facto, durante mais de cinco anos, conseguimos sobreviver graças a nossa perícia em roubar e mendigar peixe e frutas, ora nos mercados ora nas hortas à volta da Cidade.

Foto à esquerda: OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi. Foto de perfil, página do Facebook (com a devida vénia...)


Ali estava Bafatá com os seus habitantes avaros e a sua juventude implacável que aceitava mal a invasão da mocidade mal fardada,  vinda das tabancas ao seu redor a quem apelidavam de mocidade treco (2). 

O certo é que, por qualquer razão, as nossas fardas destoavam sempre dos da cidade. Foi assim no tempo da mocidade portuguesa e foi assim com os pioneiros Abel Djassi. A farda era a mesma, mas a tonalidade das cores era sempre diferente. As meias, calções e sapatilhas não eram tão castanhos como se devia, a camisa era verde ou azul mas não tão verde ou azul como se devia e isto era motivo de chacota e de corre-corre entre os jovens incautos que tinham aceitado a aventura das paradas e acampamentos na cidade. Faziam-no de propósito, para se divertir.

Vindos de Contuboel, Gabú, Sonaco, Cossé, Pirada, Bajocunda, Paunca, Pitche, Bambadinca, Quebo, entre outras localidades, e abandonados numa cidade inospitaleira, o nosso bando era formado por jovens de todas as regiões, de todas as cores, com uma particularidade bem marcante. Todos tinham nascido e crescido com a guerra colonial e todos eram originários de antigos centros de aquartelamento de tropas portuguesas e muitos tinham aprendido as primeiras letras com soldados e oficiais portugueses.

Esta era, para todos os efeitos, a primeira geração formada nas escolas portuguesas dentro da comunidade Fula e talvez de todos os grupos étnicos (chamados gentílicos) na zona leste da Guiné-Bissau. 

A administração portuguesa só tardiamente (com o General Spínola), se tinha resolvido a seguir os conselhos de Teixeira Pinto, ainda no princípio do século XX, de criar escolas para os nativos em todos os postos militares, convencido que, a coragem e irredutibilidade do Guinéu estaria ao mesmo nível do seu obscurantismo (R. Pélissiér – História da Guiné).Mas, no fim, foram o PAIGC e a independência que colheram os louros da formação de quadros,  iniciada na década de 60 e acelerada a partir de 70.

Quando apanhavam um dos nossos durante os saques, os outros vinham em grupo ajudar o companheiro infeliz. Tínhamos regras a que éramos muito fieis, ajudar um ao outro e nunca faltar às aulas, com ou sem fome. Era a mesma lógica no enfrentar das situações de perigo e de necessidade. Roubar ou morrer de fome.


9º dia, 15 de junho, segunda feira, Fajonquito:  "lar, doce lar"...

A nossa estadia em Bafatá, não demorou muito, estávamos apressados. Dormimos uma noite e na manhã seguinte partimos para Fajonquito

Antes de partir, acompanhámos a Djenaba e as suas crianças a fim de apanharem o transporte que os conduziria até Bambadinca donde partiriam para a aldeia dos pais em Cacine, no sul do país. Despendi parte do meu dinheiro para os ajudar a alimentar-se durante o trajecto que seria, longo e, certamente, difícil nessa altura. (Distância Bambadinca-Cacine, 103 km).

Podia estar orgulhoso do meu trabalho, pois apesar das dificuldades, tinha conseguido tirar de Bissau duas famílias, ou seja,  10 pessoas. Também, já não restavam dúvidas que esta guerra iria durar. Foi com este pensamento que me despedi deles e da cidade de Bafatá, rumo à minha terra natal.

Engraçado, agora que estava a alguns quilómetros da minha tabanca, lembrei-me que o meu filho, nascido e criado na cidade, não sabia falar a nossa língua, como dizem os Fulas, era macaco que não sabia trepar

Também eu, alguns anos antes, não sendo filho de gente da cidade, quando me mudei para Bafatá, ainda não falava o crioulo. O meu filho fazia o percurso inverso num contexto e condições diferentes, porém, havia uma constante, era o mesmo país de sempre, a Guiné-Bissau como a Guiné de Cabo Verde, no desequilíbrio da balança, oscilando entre a guerra e a paz.
                                                                   
Bissau, de Junho a Dezembro de 2000
                                                                          
Cherno Abdulai Baldé
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Notas do autor:

(1) O sufixo el depois de qualquer nome na língua fula- Sekuel, Gadamael- Contuboel- significa pequenino e, logo, lindo. A beleza, entre os fulas, é algo intimamente associado ao que é pequeno, que não é grande.


5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998