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segunda-feira, 30 de março de 2020

Guiné 61/74 – P20791: (Ex)citações (363): Os conflitos e a dedicação do povo (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Os conflitos e a dedicação do povo


Camaradas, 

O momento sanitário que irreversivelmente fustiga a humanidade global, por via de um inimigo invisível que dá pelo nome de Covid-19, leva-nos, amiúde, procurar no nosso baú eternas lembranças de outras guerras, Guiné em concreto, onde fomos simplesmente atores numa peleja onde existiam duas frentes em combate, conhecendo-se, então, quem era afinal o inimigo nas trincheiras da morte. Combatia-se com armas de fogo, cujos resultados foram catastróficos. 

Hoje, o figurino mudou e a invisibilidade do inimigo não conhece, por ora, a vacina para a sua cura.

Neste âmbito, resolvi debitar mais um texto que surge no meu último livro "Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74", para vos "matar" um pouco do vosso tempo da quarentena que, por força real das circunstancias, fomos submetidos. 

Os conflitos e a dedicação do povo
Gratidão
Olhares distantes das mulheres grandes

Há histórias hilariantes de vida onde a encruzilhada da guerrilha se cruzou com a nobreza exótica de gentes que compartilhavam sentimentos comuns. A gratidão do povo guineense, no dar e receber, era enorme. O confronto no terreno, sendo real, não eliminava de todo um contacto permanente com uma população civil que se desfazia no ato “de bem servir” a tropa tuga.
Não vou, por razões realmente díspares, debruçar-me sobre acontecimentos reais da chamada guerrilha no terreno a qual, na minha modesta opinião, estava, aparentemente, condenada ao fracasso. Negociar? Talvez! Restava saber quando e como o processo poderia eventualmente evoluir.
A Guiné apresentava, no seu todo, um cenário deveras perspicaz tendo em conta a sua curta dimensão territorial e a forma como o PAIGC controlava os buracos no espaço. As emboscadas, ou os ataques aos quartéis, teriam pressupostamente um maior ronco se os guerrilheiros fossem possuidores de conhecimentos mais profícuos sobre a sua minuciosidade em usar as armas, ou na conceção mais exata em preparar uma guerrilha que, para nós, se apresentava transversalmente desigual.
O PAIGC contava com a ajuda de guerrilheiros cubanos que comandavam alguns dos estratos operacionais. Comentava-se, à época, que a sua operacionalidade assumia-se deveras importante nos confrontos. Tinham largos anos de experiência na guerrilha, comentava-se no interior dos arames que delimitavam os aquartelamentos no mato.
O IN abastecia-se com armamento russo, sendo disso exemplo as kalachinikovs, normalmente utilizadas nos confrontos diretos, a que se associavam armas de calibre superior. Ainda assim, as nossas tropas debitavam capacidades quando deparadas com o conflito. Foram heróis!
Esta minha análise, embora sintética, enquadrou-se em absoluto quando pela primeira vez me deparei com a fragilidade, penso eu, do IN. Estávamos no mês de novembro de 1973. Na transparência de um dia levado ao êxtase, tinha completado 23 risonhas primaveras, sendo que da metrópole tinham chegado queijos de ovelha e enchidos alentejanos, comestíveis enviados carinhosamente pela minha saudosa mãe, sendo que o “material”, embora escasso, foi de pronto devorado pelos meus companheiros de lides, lembro-me que pelo meio da festança e das muitas cervejas emborcadas, chegou, inesperadamente, uma mensagem que nos deixou algo desalentados.
Cerca das quatro horas da tarde, e sem que nada o fizesse prever, fui chamado ao capitão Ramalhete, o militar graduado que controlava o gabinete de operações, que me colocou a par das novidades acabadinhas de chegar: “temos conhecimento de um grupo IN perto da tabanca (não me lembro do seu nome), sendo urgente a nossa intervenção. Prepare o grupo de imediato e siga para o terreno”. E assim foi.
A estrada ligava Nova Lamego a Piche. Uma hora depois estávamos em contacto com a realidade da guerrilha. Em pé, e de peito aberto, o Jau (guia), já conhecedor do perigo que a situação impunha, aconselhava a deitar-me uma vez que o risco ganhava uma maior grandeza.
Vincando a minha condição de ranger, tentei apaziguar as hostes porque a reação do IN, à primeira vista, parecia-me algo dispersa. A sua cadência de tiro um pouco anárquica e os sons da sua algazarra confusa. O certo é que o tiroteio serenou e a malta, antes de anoitecer, retirou sem prejuízos de maior monta.
No dia seguinte, em reconhecimento ao local, constatou-se que se tratou de um grupo, quiçá em instrução, que deixou antever inexperiência, permitindo que o pessoal no terreno não tivesse sofrido sequelas físicas, nem tão-pouco baixas para engrossar o rol de jovens infelizes tombados em combate.
Lembro a maneira como o meu camarada ranger Rui Fernandes Álvares, furriel miliciano, e do meu curso em Lamego, ironizou a situação quando chegado ao quartel e comentou o diabólico contacto: “vi um turra a fugir, apenas com uma perna, de arma na mão e a dar tiros em todas as direções. Fugia que nem uma lebre”.
Depois, embevecia-se a fazer o filme ao pormenor e a malta ria que se desunhava. O Rui era um rapaz de bom trato, com um coração enorme e oriundo do concelho de Boticas. As suas telas cinéfilas, entretanto desenhadas, eram divinais. O seu nome jamais me fugiu da memória. A sua inclinação para criar um bom ambiente era brilhante. Um moço porreiro. Brincava com as fatalidades da guerra.
O Rui, tal como a maioria da rapaziada que pisava o palco da guerrilha, não meditava, creio, a preceito com os buracos impensáveis que a guerra impingia ao infeliz soldado chamado “carne para canhão”, propunha-se, isso sim, a disfarçar os confusos e agrestes contornos que o conflito colocava no terreno.
Éramos jovens. Não temíamos as adversidades que o rosto da mata adensada e das estreitas picadas impunham. E tantas foram as ocasiões em que a despreocupação em cima do Unimog, já caquético, nos conduzia a uma pura brincadeira não temendo o momento seguinte.
Recordo uma tarde a caminho de Piche a viatura que seguia atrás embater na traseira daquela que rolava à sua frente e a malta a atirar-se para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca, do morteiro 60 e das G3 que transportávamos nas mãos. Um arrepio entrou-me no corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas. Um “acidente” que, felizmente, não causou vítimas a bordo. Tudo correu bem. Mas… ficou o aviso.
Colocando de parte as ações da guerrilha, e as vitimizações que ela provocou, vou referir uma alegação que sempre considerei nobre: A GRATIDÃO! Não me recordo que em tempo algum tivesse sentido a nefasta opinião que a população guineense se mostrasse desordeira sempre que solicitada a um eventual pedido para uma pontual colaboração e humildemente reconhecia que a nossa tropa era um meio intervencionista para a sua própria sobrevivência.
Dar e receber apresentava-se como uma reciprocidade maioritariamente perfeita. Reconheço que a sua posição no meio territorial não se apresentava nada fácil. Lidar com duas frentes da guerrilha, manifestava uma assimetria desigual. De um lado os guerrilheiros do PAIGC, homens eventualmente conhecidos na tabanca, filhos da terra, familiares, e com quem amiúde trocavam opiniões, assumindo-se estes como os verdadeiros mestres para libertarem o território dos ditos invasores brancos; do outro, a tropa “tuga” que lutava para defender pressupostos direitos alheios, desconhecendo por completo as razões pelas quais expunha o seu corpo à bala. Uma situação dúbia que determinava a neutralidade de uma população carenciada e sobretudo sofrida.
Neste contexto, ter-me-ei apercebido da verdadeira ação do povo. Lidar com as duas faces da moeda não era fácil. Um dia tivemos conhecimento que numa tabanca situada na zona de Gabu o PAIGC se havia ali instalado. A aproximação à tabanca careceu de cuidados redobrados. Mesmo assim lá chegámos sem problemas que afligissem o grupo. A nossa ação foi pronta.
As informações recolhidas no local foram, a princípio, escassas. O chefe de tabanca dizia desconhecer a existência de guerrilheiros inimigos naquele local e era convictamente apoiado por quase toda a população. Só que pelo meio da conversa alguém se descuidou. O Jau, perito nestas andanças e sempre atento, apercebeu-se e toca a pôr o homem que bufou a confessar.
Ficámos a saber que um grupo de guerrilheiros pernoitou na noite anterior na tabanca, mataram uma vaca, comeram e beberam, fizeram uma festa e ao romper da aurora partiram para um novo rumo.
Esta conceção, tida como perfeitamente atendível, sublinha o reconhecimento de um povo em guerra que brigava, apenas, pela sua sobrevivência. Aliás, a forma como toda a população se entregava a uma missão plenamente percetível, deixava antever que o seu sentimento puro de dar e receber não suspendia os começos que a guerrilha, desde o seu início, lhe propusera.
Numa viagem memorial aos idos da década de 1970, recordo os tempos passados na Guiné em que recebi e dei momentos de enorme gratidão. Um abraço sentido para o povo da Guiné!



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

Vd. também o último poste desta série: 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13380: Manuscrito(s) (Luís Graça) (35): Viva o po(l)vo!

Viva o Po(l)vo!

por Luís Graça 
[foto à direita]



Agora o polvo, o povo,
Serve-se
Com batatas assadas
A murro,
Pum!,
Anuncia o cozinheiro
Mor
Do reino.
Já lá vai o tempo das favas contadas,
Do bico calado e pé ligeiro,
A era do cheiro a esturro,
O regime do come e cala-te.
Agora a dieta é chique, é mista,
Cale-te e não comas,
Muito menos fillet mignon,

Nem sequer rosbife,
Que já não há almoços grátis,
Avisa o vedor,
Ameaça o almoxarife,
Aconselha o dietista.

Urra!,
Sim, senhor,
Pois se o reino é porco e glutão,
E se o tesouro está sem tostão,
Então que viva  o polvo, o povo,
À lagareiro,
Alarve, 
E que à sobremesa
Se sirvam passas
Do Algarve,
Manda sua alteza
El-rei,
De todos o primeiro
Cãocidadão.
Mas agora quem está no pedestal,
E mija de alto,
É o banqueiro,
Croupier do casino real.

Viva o povo dos polvos,
O terceiro estado da nação,
Morra o polvo dos povos,
Sem eira nem beira,
O polvo apanhado nos covos,
Nas minas e armadilhas

Dos senhores da terra e do mar,
E depois afogado
Em puro azeite virgem de oliveira,
No caldeirão de todas as batalhas
Travadas e por travar.



O polvo, o povo, 
Apanhado nas malhas
Da história,
Em contramão,
Nos buracos negros da memória,
Nas falhas da terra opaca,
Nas marés rasas.
Sem honra,
Sem glória,
Sem grandeza!
Bom povo, 

Grande besta de carga,
Pobre polvo,
Cuja rede neuronal tentacular
É comida à mesa, de garfo e faca,
P'lo pregador predador.
Resta-te a triste consolação
De seres tema de quinzena
Patriótica e gastronómica.
E quiçá a vitória amarga
De ires à mesa
Do senhor comendador,

Industrial de exportação,
Que fez do globo uma banda filarmónica.
Acabaram-se os privilégios do sangue,
Morte ao arroz de cabidela,
Morte ao frango,
Morte ao capão,
E que o coelho não se zangue
Por ser roubado e despromovido
No tacho e na panela.
Ladrão mais finório é larápio,
Diz o léxico do tempo novo
Que aí vem,
Viva o funcho e a beringela!

E vai de frosques, o senhor doutor,
Dos cânones e das leis,
Que de fraque senta-se o regedor,
No chão do piquenicão,
Onde quem mais ordena 
É o polvo, o povo,
No cardápio,
Democrático, do barracão do petisco.
Mas, atenção, 

Mais vale prevenir o risco
De o poder cair na rua
Sob o tentáculos do inteligente polvo
E os alvoroços do estúpido povo.

Produto gourmet,
Produto manufaturado
De todas as maneiras e feitios,
Batido,
Dançado,
Algemado,
Açoitado,
Degradado,
Exportado,
E outrora (em)bebido
Em sangue suor e lágrimas.
Povo desalmado,

Acéfalo,
Povo (en)cantado,

Afadistado,
Cefalópode,  
Grelhado
Alimado,
Escalado.
Escalfado,
Esfolado,
Escalpelizado,
Salteado
Em fricassé
E até enlatado
Em óleo vegetal
Na ração de combate
Do soldado da guerra colonial
Na Guiné.
Ou era óleo de fígado de bacalhau,
Camaradas ?
Que a gente sempre ouviu dizer mal

Do rancho, 
Do vaguemestre,
E do comandante,
Mas quem diz, ufa!, 
Que  não aguenta, 
Na tropa amocha,
Na terra ou no mar
Que, quando bate na rocha,
Quem se lixa é o polvo, o polvo!

Enchamuçado,
Encapuçado,
Emboscado,
Enforcado,
Fatiado,
Espalmado em filhós,
Embrulhado em pataniscas,
Frito,
Fuzilado,
Seco ao sol no telhado,
Teso que nem um carapau,
E até, imagine-se, pizzado!
Sim, muitas vezes pisado,
Humilhado e ofendido.
Que o polvo, o povo,

Pouco esquelético mas mimético,
Na ausência de espinha (dorsal),
Adapta-se bem à nouvelle cuisine
E aos caprichos dos novos chefs.

Mas, o que mais irrita,
O amigo secreto do polvo, do povo,
Que não tem limousine
E anda  a pé, 
São os donos da cozinha, os magarefes,
Mal entroikados,
Que falam em nome dele, o povo,
E que, de garfo e faca em riste,
Ou até à espadeirada,
O imolam pelo fogo,
E o guarnecem, com a batata frita
De Bruxelas!...
Abaixo o fascismo sanitário,
Viva o cardápio proletário!
Glória ao arroz de polvo, 
Malandrinho,  
De coentrada...
E saúde e longa vida para o povo,
Agora pobrezinho,
Que dantes também comia 
Iscas... com elas!

Lourinhã, 

Quinzena Gastronómica do Polvo, 
10 de junho de 2014,
data, por enquanto, patriótica

___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13360: Manuscrito(s) (Luís Graça) (34): Aerograma para a Sophia que me emprestou o Livro Sexto, quando o T/T Niassa me levou para longe da minha praia

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P340: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (3) (José Neto / A. Marques Lopes)

1. Caro amigo A. Marques Lopes

Aceito a sua divergência de opinião quanto ao que escrevi sobre aquilo que vem sendo tratado por alguns por "o demónio das Etnias" da Guiné-Bissau.

Prometo não voltar a "meter o pé na poça", porém, como última intervenção neste escaldante tema quero dizer-lhe (e a todos os bloguistas) que o meu escrito, muito ligeiro, foi motivado pelo post "Guiné 63/74 - CCCXLIII: Respeito pelos manjacos, se faz favor", subscrito por João Tunes.

É minha convicção que uma das ajudas que podemos dar aos nossos "ex-amigos e inimigos" não será propriamente "estar de fora" a enaltecer esta ou aquela etnia. A Internet também chega à Guiné-Bissau... E, muito ao contário que o mesmo senhor diz, "nós portugueses temos MUITO para ajudar os guineenses".

Cumprimentos do
Zé Neto

2. Amigo José Neto

Não me parece que tenha havido qualquer divergência entre as nossas duas posições sobre os povos da Guiné. Pessoalmente apenas tentei dar uma explicação sobre os objectivos que, na altura, teria aquele memorando do EME - Estado Maior do Exército, o qual, pelos vistos, como diz o Sousa de Castro, foi distribuído profusamente às NT em 1971.

Com mais este dado, acrescentarei que, dada a escalada da guerra, havia mesmo necessidade de cavar divergências entre os guineenses. Foi essa estratégia, "sabiamente" delineada, que terá contribuído, juntamente com o papel inestimável (ou inestimado ainda) da PIDE, para o assassinato de Amilcar Cabral; e que terá igualmente levado à desastrada manobra spinolista causadora da morte dos majores (e do esquecido alferes) em chão manjaco.

De resto, estou completamente de acordo consigo.

Um abraço
A. Marques Lopes

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P333: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (2) (João Tunes)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:

Um dos grupos de combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . De pé, na terceira fila, os furriéis milicianos António Levezinho e Humberto Reis, membros da nossa tertúlia. Os soldados, do recrutamento local, eram fulas e futa-fulas. Estes, em geral distinguiam-se dos restantes pela sua elevada estatura. A CCAÇ 12 fazia parte da "nova força africana" e, por sugestão do próprio Spínola, ficou afecta à Zona Leste (que correspondia, grosso modo, ao chão fula).

© António Levezinho (2005)

Camarada Luís, nosso Cmdt em Chefe do "Nosso Blogue",

Li com toda a atenção o texto do nosso camarada José Neto sobre a questão da diferenciação/divisão étnica. Penso que percebi a intenção nobre das suas palavras. Sobretudo sábias quando relativiza, e muito bem, a constituição de qualquer forma de hierarquizar superioridades ou inferioridades étnicas. Mas julgo que não me será levado a mal se disser que, no essencial, respeitando e admirando o seu espírito pacificador, discordo dele. Sobretudo, quando diz:

"É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus", "os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum. Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar"."

A diversidade étnica da Guiné, tendo para mais em conta o elevadíssimo número de etnias concentradas num pequeno território, é um problema, mas também um bem. Um mal, porque é favorável, ainda nas suas condições sócio-económicas locais, mais à divisão e aos egoímos do que à consolidação da unidade nacional. Um bem, na medida em que enriquece o mosaico cultural e usos e costumes da Guiné e exprime a força das persistências culturais e sociais das várias etnias ali presentes e que souberam, face à ocupação militar portuguesa e á proximidade de etnias muito diferentes, preservar as suas culturas e os seus hábitos.

E julgo que o "milagre" desta permanência de vizinhanças, mantendo-se intocáveis as endogenias próprias de cada etnia, foi possível pela conjugação de dois factores - a unificação de salvaguarda perante o ocupante europeu (quando ele existiu); o país ser pobre (não propício a processos de acumulação capitalista e á consequente estratificação social) e, simultaneamente, o terreno ser de tal forma fértil que os mais desvalidos não correm o risco de serem derrotados pela fome (a doença é o grande "exterminador").

O fim da ocupação portuguesa levou os guineenses a terem de resolver, entre si, dois problemas (novos mas que já existiam no seio da guerrilha):

- Por um lado, a questão dos "caboverdianos", cuja supremacia, pela sua escolarização, se manifestava - no lado colonial - pela sua ocupação dos lugares administrativos do aparelho de domínio colonial, e, na guerrilha, por ocuparem os maiores lugares de destaque entre os quadros destacados do PAIGC e, na altura da independência, serem os com melhores condições para substituírem os portugueses nos comandos do aparelho do Estado. Sabe-se como o problema foi "resolvido".

- Segundo, como, "resolvido" o primeiro, se iam arrumar as várias etnias em termos de prevalência social, contando aqui a superioridade numérica forte de uma das etnias (com um correspondente peso no aparelho militar) face a outras, com hábitos e tradições de se auto-atribuírem finalidades aristocráticas na escala de valores infra-africanas. Ao mesmo tempo que tinham de se entender com a afirmação virgem de um espírito de unidade nacional, por si próprios, desaparecido que foram os factores "unificadores" quer da oposição ao ocupante colonial e, depois, liquidada a "supremacia caboverdiana".

O domínio colonial tudo fez, dividir para reinar, para explorar e acirrar os conflitos infra-guineenses. A "psico" tentava virar as populações indígenas e os guerrilheiros contra os "chefes caboverdianos" do PAIGC; dava um claro favorecimento às etnias islamizadas (sobretudo, os fulas) por considerar que, por via dessa influência religiosa, seriam mais relapsos a aceitarem os fundamentos ideológicos do PAIGC, com maior capacidade de penetrarem no comunitarismo próprio das etnias de cultura animista (e não foi por acaso que o PAIGC penetrou mais profundamente nas regiões balantas e menos nas regiões fulas).

Entretanto, o assassinato de Amílcar Cabral, com as batutas e os dedos da Pide e de Spínola, foi possível como fruto das divisões inter-étnicas e da aversão aos caboverdianos que a "psico" conseguiu transportar para o campo inimigo. Uma das nossas heranças que ficaram na Guiné, foi essa.

A unidade nacional não se decide nem se decreta. É mais uma questão de tempo que de vontade. E de condições sociais, políticas, culturais e económicas, umas objectivas e outras subjectivas. O exemplo da "uniformidade" portuguesa, que o camarada José Neto invoca, não colhe, porque uma excepção nunca vale para valer como regra. Olhe-se aqui, para o lado, para os espanhóis. Para os belgas, os suíços, os franceses, os da Grã-Bretanha, os italianos, os jugoslavos, por aí fora. E como é nada (tirando a moeda e a liberdade de circulação de pessoas e mercadorias) a identidade e a unidade europeias.

Portugal, no quadro europeu, por razões que se podem discutir mas que levavam a uma outra conversa larga, é um caso quase único, verdadeiramente excepcional, beneficando da uniformidade longeva das fronteiras e do expansionismo ultramarino e migratório que aliviou tensões internas. E se o caso português não serve como exemplo para a Europa, como podia funcionar para África? Quando, exactamente, a herança que lá deixámos foi a do acirrar rivalidades para impedir o espírito de unidade nacional que nos era um factor adverso (em termos de domínio colonial e de actuação militar) e uma pedra de toque da ideologia independentista?

Voltando ao bem que é a riqueza da diferenciação étnica da Guiné. Se for possível, não sei se é, nem sei se não é, seria óptimo para os guineenses e para o mundo, que em vez de um quadro uniforme de africanos engravatados, de pasta numa mão, computador na outra e telemóvel ao ouvido, eles não perdessem a sua enorme e polifacetada riqueza cultural das suas diversidades e raízes.

De qualquer forma, tudo o que se faça para um povo se "alhear" das suas realidades, imprimindo-lhe uma uniformidade não aceite, é chover no molhado. É adiar e agravar o problema. Que só é problema se não for sublimado culturalmente e quiser serresolvido pela força das armas (o que, infelizmente, tem acontecido vezes demais). De qualquer forma, é um problema (até de soberania cultural) que só os guineenses devem e podem resolver.

Nós, portugueses, não temos nada para "ajudar" (deixámos maus exemplos e péssimas heranças, não temos "psico" para ajudar á festa). Persistir na ideia de "ajudar os guineenses" a resolver os seus problemas políticos é, parece-me ser, um paternalismo retardado. Perdemos essa oportunidade nos séculos que lá estivemos, e em vez disso, trouxemos escravos e o amendoim, dividimos e metralhámos. Agora, resta cooperar e confiar na sua capacidade de que resolvam, entre si, os seus problemas de diferenças. Desejando-lhes o melhor, é claro.

Abraços a todos os camaradas tertulianos.
João Tunes

Guiné 63/74 - P332: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (1) (A. Marques Lopes)

Guiné > Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > "Os Jagudis", o grupo de combate do Alferes Lopes :

"Na altura, o General Spínola deu indicação para se dividir a companhia em pelotões de acordo com as etnias (o tirar partido das rivalidades entre eles). Como eu era o alferes mais antigo, o comandante da companhia perguntou-me o que é que eu queria: 'Quero os balantas', disse eu. E o meu grupo de combate foi quase todo de balantas (tinha um cabo fula, o Mamadu, e três furriéis brancos, além de mim). Ouviam a rádio do PAIGC mas demo-nos sempre bem. Porque eu sempre fiz por isso. Por exemplo: um dia, fui com um que estava doente através da mata até Bigene, porque em Barro não havia médico; emprestei dinheiro a todos, mas todos me pagaram quando me vim embora"...

© A. Marques Lopes (2005).


Caros camaradas:

Percebo as intenções daquela monografia do EME- Estado Maior do Exército que o Sousa de Castro (1) nos trouxe ao conhecimento (as intenções do EME , as do nosso camarada também sei que foi o seu inestimável papel de informação de todos nós sobre como as coisas eram e como se gizaram para nos fazer estar lá): foi, com certeza um documento que chegou aos escalões superiores, não creio que tenha chegado aos alferes nem aos outros, pelo menos nunca tive informação de nada do género (eu não estava em 1971, mas é natural que tivesse havido mais coisas idênticas...).

Era o elemento para o trabalho psicológico dos mais responsáveis, para a sua actuação junto da população, para o tratamento e saber que partido tirar junto de cada etnia. Não vejo mal nisso como método, pelo contrário, acho que eram fundamentais acções desse género, é dos livros: há que conhecer o meio em que nos movemos.

De um modo geral estou de acordo com o documento, sobretudo nos aspectos da organização sociológica de cada etnia, dos usos e costumes de cada uma, das vivências e relaçõe internas, do passado e conflitos históricos entre elas. Creio que tudo isso foi tirado de trabalhos de investigadores e historiadores da época mais remota do colonialismo. E seria assim na altura, não tenho dúvidas.

Já as tenho quando se transmitiu, intencional ou intencionalmente, não sei, ideias já não acertadas, em minha opinião, sobre o comportamento individual dos elementos de cada etnia. Possivelmente, a transmissão dessas ideias, vindas do colonialismo antigo, não teve em conta que durante os anos da guerra alguma coisa mudou no comportamento das populações, que pela situação em si quer pela própria acção político-pedagógica do PAIGC. Transmitiram-se, como diz o Luís Graça, alguns estereótipos já não consentâneos com a realidade.

Alguns exemplos da minha experiência:

- como já vos disse num dos meus posts anteriores, dos mais antigos, quando me foi dado escolher, escolhi os balantas para o meu pelotão em Barro; porque sabia que trabalhavam de sol a sol nas bolanhas, uma práctica adquirida nos tempos em que foram escravizados pelas etnias islamizadas, ainda antes da chegada dos portugueses à Guiné, eram esforçados trabalhadores; porque sabia da sua frontalidade, se gostassem de mim mostravam, se não gostassem eu também o veria - mas gostaram de mim; ladrões? também ouvi falar nisso, e não digo que não seja essa a sua tradição "com a consciência de um acto não criminoso", como diz a monografia, no entanto, também vos contei num post anterior, emprestei dinheiro a todos quando estive em Barro e, quando me vim embora, todos me pagaram - certamente uma situação diferente da "manifestação de perícia própria da tribo";

- mas tinha no meu pelotão um cabo fula, o único, o Mamadu, um grande amigo meu e amigo de todos, na paz e na guerra; o Lamine Turé, um guineense do meu pelotão em Geba, era fula e grande guerreiro, ficou ferido quando eu o fui; preguiçosos, os fulas? penso que se referem, sem explicações, à situação decorrente dos cânones da sua religião: o homem manda, tem profissões dignas (ourives, ferreiro...), a mulher trabalha no campo (na bolanha...), por isso eles estão à porta da morança, na sua arte, ou a falar e a jogar, e a mulher (ou mulheres) a trabalhar;

- quanto aos felupes, Susana, Varela e também da zona de S. Domingos, entrando pelo Senegal, é verdade que eram conhecidos por terem hábitos guerreiros característicos: cortavam a cabeça do inimigo, seccionavam a calote superior do crâneo e bebiam por aí o sangue do morto, como forma de adquirirem as suas potencialidades; com arco e flechas, alguns dos incluídos nas tropas portuguesas eram mais temíveis em acção do que com G3; quanto a casamentos, a felupe que casou com Luís Cabral (caboverdeano) deve, então, ter cometido uma "falta muito grave"...

Há diferenças, evidentemente, e por alguma razão tem havido acusações de tribalismo em várias situações conturbadas da Guiné-Bissau. O próprio Amilcar Cabral escalpelizou essas diferenças no livro "Unidade e Luta" e apontou caminhos para o seu encontro.

De um modo geral, acho que aquela monografia dá uma ideia, para quem não sabe nada. Terá sido esse o objectivo.

A. Marques Lopes
__________

(1) E-mail posterior (9.12.2005) do Sousa de Castro: "Não há dúvida nenhuma que a minha intenção foi informar a tertúlia do que se escrevia na época, nem me incomoda se alguns tertulianos estão de acordo ou não, nem tenho conhecimento nem vivência para poder opinar sobre esta pequena monografia. Esta brochura foi distribuída a todos os combatentes que embarcaram, em Janeiro de 1971, mas não me recordo se foi no RAP 2 ou nos ADIDOS em Lisboa. De qual quer modo dentro de algum tempo vou enviar mais um capítulo desta pequena monografia".