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quarta-feira, 16 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23084: Passatempos de verão (28): Nova Lamego, CART 2479/CART 11 (1969/70), escola de cabos: duas fotos, sete diferenças (Valdemar Queiroz)


Foto nº 1 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > Escola de cabos

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.] (*)


Foto nº 2 > "Escolarização nas imediações de um aquartelamento, Guiné-Bissau: um graduado do Exército português ensina Matemática, numa escola improvisada a africanos radicadis naquela colónia"

In: Renato Monteiro e Luís Farinha > "Guerra Colonial: Fotobiografia". Lisboa, Publicações Dom Quixote e Círculo de Leitores, 1990, pág 166.



1. O Valdemar Queiroz mandou-nos, na passada quinta feira, dia 10, estas duas fotos que são parecidas, tiradas no mesmo local, mas são de fotógrafos diferentes... Ou de álbuns diferentes... Ele foi capaz de identificar sete diferenças entre uma e outra...

Ele é um excelente observador, está sozinho em casa, gerindo com estoicismo e inteligência emocional uma doença crónica, tramada, como é a DCOP - Doença Crónica Obstrutiva Pulmonar. A família mais próxima, a do seu filho, está na Holanda. Só vem à rua em caso de extrema necessidade, para abastecer a despensa, por exemplo, ou ir às urgências hospitalares. Muito menos pode abrir as janelas em dias como estes em que o céu de Portugal está estranhamente alaranjado por causa da tempestade de areia que vem do deserto do Saara.

Vamos colaborar com ele neste "passatempo"... Vamos ajudá-lo também a amenizar a sua dura jornada diária. Ele já nos confessou que o nosso blogue é, para ele, uma companhia diária imprescindível. E está grato a quem, de vez em quando, se lembra dele e lhe telefona.

Ainda não é verão (há de chegar, no seu devido tempo, haja saúde e paz!), mas vamos publicá-lo na nossa série "Passatempos de verão" (**).

Criada em 22/7/2012, a série chamava-se originalmente "Passatempos de verão: Hoje quem faz de editor é o nosso leitor"... Continua a ativa e a fazer apelo à (cri)atividade do leitor. Curiosamente, foi lançada na véspera do "nosso querido mês de agosto", que já não sabemos o que é desde 2019. 

Na altura queríamos chegar, no final do mês de agosto, aos 4 (quatro) milhões de visualizações... e no final do ano  de 2012 aos 600 (seiscentos) grã-tabanqueiros (membros registados na Tabanca Grande). 

Neste momento (março de 2022)  já chegámos aos 13,4 milhões de visualizações e aos 858 membros da Tabanca Grande.

PASSATEMPO

"Bom Observador: Quais as sete diferenças entre as duas imagens?" (Foto nº 1 e foto nº 2)


Soluções num próximo poste.


Saúde da Boa,
Valdemar Queiroz

PS - Luís: quando publicares no blogue este meu Passatempo, se quiseres podes fazer referência à fotografia que aparece no livro "Guerra Colonial: Fotobiografia", mas essa foto [a nº 2] é do Cândido Cunha que a emprestou ao Renato Monteiro para o efeito.


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Notas do editor:

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22455: Passatempos de verão (27): Humor negro: "Coitadinho de quem morre, morre e para a glória vai; quem cá fica, come e bebe e o pesar logo se vai"... Epitáfios para todos os gostos e feitios...


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Cemitério de Paredes de Viadores > 1 de novembro de 2017 > O mais sumptuoso jazigo, da família dos "fidalgos da Casa da Igreja", como lhes chamam as gentes locais; grandes proprietários rurais da região, donos de muitas quintas, outrora exploradas por pobres  rendeiros... (nos tempos da agricultura pré -capitalista em que só havia quatro classes sociais: fidalgos, pequenos lavradores proprietários, rendeiros e cabaneiros).   É um jazigo capela, em mármore, em estilo revivalista, neogótico, com a seginte inscrição em latim: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" (Lembra-te, ó homem, que és pó e que em pó te hás-de tornar) (*)....

Até na morte os homens tentam reproduzir as desigualdades sociais que existiam em vida: esta capela, dos "fidalgos da Casa da Igreja"  é a única que existe, para além da de outra família não fidalga, neste pequeno cemitério rural, cuja construção remonta a 1894... Logo nos finais do séc. XIX, os ricos e poderosos procuraram contornar a aplicação lei liberal do enterramento público (que proibia o enterramento em espaço privado: palácios, conventos, igrejas, ermidas, capelas...) erigindo no espaço do cemitério público uma "jazigo capela", uma espécie de minicasa de Deus, reservada aos seus mortos queridos...

Há algo de patético neste encarniçamento em manter, na morte, a segregação socioespacial que existia em vida... Mas, na realidade, os cemitérios públicos, que só surgem no séc. XIX, com o liberalismo, são (ou deviam ser) verdadeiros "campos da igualdade", já que metaforicamente falando, a "gadanha da morte" ceifa tudo e todos, ceifa rente a vida, e não poupa tanto a espiga de trigo como a erva do campo, o rico e o pobre, o herói e o cobarde, o novo e o velho, o são e o doente, o amigo e o inimigo... Afinal, "na morte ninguém finge nem é pobre"...

Foto: © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Dizem que não se deve brincar com a morte, porque dá azar... O ser humano é um animal supersticioso. E na verdade lidamos mal com a morte... Não conseguimos rir dela. Porque a nossa cultura baseia-se, afinal, na negação e na ocultação da morte, que é parte integrante da vida.

Quando andámos na guerra, não falávamos da morte, tínhamos "vinte anos e a vida toda à nossa frente" (sic)...mas aprendemos a avaliar o risco de morrer ou de ficar para sempre "deficiente", sem uma perna, sem um braço, cegos, surdos, mudos, paraplégicos, tetraplégicos... 

Afinal, "temer a morte é morrer duas vezes"... Pelo que, caros leitores,  em boa verdade não há aqui "humor negro", há apenas humor, puro e duro, humor de caserna:  rindo de nós e da nossa condição mortal, estamos a exorcizar os nossos medos, fantasmas, pesadelos... que esta pandemia (e a morbimortalidade a ela associada) veio reavivar.

Quando dizemos que "o temor da morte é a sentinela da vida", no fundo estamos a querer dizer que "o humor faz bem à nossa saúde mental"....É também um forma de resiliência contra a doença e a morte, no fim da picada da vida, já de si tão cheia de "minas e amadilhas"... 

Os provérbios populares ajudam-nos nessa tarefa, enfatizando a inevitabilidade da morte mas também a igualdade no morrer (e, para os crentes, "a honra e a glória" da eternidade):

"A vida é um sono de que a morte nos desperta"
"Hora de morrer não tem retardo"
"Mais vale andar neste mundo em muletas do que no outro em carretas"
"Muita saúde e pouca vida, que Deus não dá tudo!"
"Nada mais certo do que a morte; nada mais incerto do que a hora da morte"
"Quem de novo não morre de velho não escapa"
"Só uma porta a vida tem, enquanto a morte tem cem".

Passei praticamente todo o tempo desta pandemia, desde março de 2020, na Lourinhã... No adro da igreja matriz local, junto à estátua do papa João XXIII, há um placar onde se afixam as notícias necrológicas, 

Houve semanas em que o placar estava cheio. Em tempos surpreendi um fulano, meu conhecido, a comentar: "Ainda não foi desta!"... Perguntei-lhe, intrigado: "Ó fulano, não foi desta... o quê ?!"... Resposta pronta: "Não foi festa que li, em primeira mão, a notícia da minha própria morte"... 

E o fulano ainda lá anda, sempre com medo de ser "co(n)vidado", usando dupla máscara, e espreitanto de soslaio as últimas novidades necrológicas... E eu adivinho o que ele diz entre dentes: "Bolas, ainda não foi desta!"...

A pandemia também tem os seus "apanhados do clima" como o fulano da Lourinhã... Mas, mais do que isso, marcou-nos  a todos e matou alguns dos nossos amigos, camaradas, conhecidos, vizinhos e parentes... Falando só dos membros da Tabanca Grande que faleceram  (107, no total, em 17 anos): um em cada quatro morreu em 2020 e 2021, ou seja, em apenas ano e meio...

2. Reproduzo, abaixo, uma lista de epitáfios ou lápides funerárias, de A a Z, uns da minha lavra (a maior parte), outros recolhidos da Net, e depois livremente adaptados ou reformulados ... Alguns leitores poderão não achar muita graça... sobretudo para aqueles para quem a morte é do domínio do sagrado... 

Mas este poste é um mero (e inocente) passatempo (de verão). Às vezes é preciso "tapar buracos" para o que o blogue cumpra a meta dos 3 ou 4 postes diários em média... (**).

Se tiverem tempo, pachorra, saúde e boa disposição (tudo coisas de difícil combinação na nossa idade...), "entrem no jogo" e "façam vocês mesmos o vosso próprio epitáfio"... Há coisas que não podemos deixar para o último dia e muito menos para o último minuto, "à portuguesa"... 

E não deixem essa tarefa aos vivos, que são capazes de maltratar a vossa memória, sabendo nós quão verdadeiro é o provérbio, "Coitadinho de quem morre, morre e para a glória vai; quem cá fica, come e bebe e o pesar logo se vai"... (LG)


Epitáfios ou lápides funerárias, de A a Z:


Almirante: O grande naufrágio!...


Amigo do Peito: À volta... cá te espero!


Antigo combatente: A última batalha!


Astronauta: Bolas, chego por fim ao fim... do mundo!


Ateu: Mas porquê eu, o escolhido, meu Deus, se eu nem sequer acredito em Ti ?!


Barqueiro de Caronte: Última viagem, uma moeda para o ceguinho.


Bombista suicida, anarquista: Abaixo o Estado! Viva o Nada!


Bombista suicida, islamista radical: Virgens, cheguei!


Budista: Transmigro, logo existo!


Calceteiro: Erros meus e do meu médico... a terra os cobre!


Caloteiro: Que Deus te pague, que eu estou liso!


Capitalista:  Esqueci-me da taxa de depreciação do meu corpo enquanto forma de capital!


Catastrofista: Que pior me há de acontecer ?!...


Católico: Obrigado, Pai, vou por fim conhecer-Te, ao vivo e a cores!


Cemitério Judaico, Ilha de São Miguel, Açores: ”Campo da Igualdade”


Chef: Minhas estrelas Michelin!... Trocava-as por uns jaquinzinhos fritos!... Que no Céu não há disto!


Claustrobófico: Por favor, tirem-me daqui!


Cobrador de impostos: Afinal, não é só o fisco, também a morte não perdoa!


Comerciante: Liquidação Total. Preços de saldo. Motivo: força maior.


Comodista: O último a morrer que feche... a tampa do caixão!


Contabilista: Fiz mal... as contas!


Contador de histórias: Era uma vez...


Coveiro: De pés para a cova!... Não se aceitam mais encomendas!


Diabo: Tinham-me prometido a eternidade... antes das alterações climáticas!


Ecologista: Espécie extinta!


Epicurista: Morro  de papo cheio, gozei em vida


Fadista: "Com que voz chorarei meu triste fado" ?!...


Filósofo: Ser ou não ser ?!... Era... a questão!


General: Bolas, lerpei!


Gourmet: Acabou-se o que era doce!


Herói: Saltei para o lado errado da barricada!


Historiador: Desempregado. Motivo: fim da História.


Humorista: Ói, pessoal, afinal onde é que está a piada ?


Informático "covidado": Vítima do pior vírus do mundo!


Jogador de Futebol: Arrumei as botas!


Latinista: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris! (Lembra-te, ó homem, que és pó e que em pó te tornarás!)


Marido Fiel: Até que a morte, por fim, nos separou!


Marido Infiel: Agora foi "ela" que me pôs...os cornos!


Médico: O cangalheiro e o coveiro são sempre os últimos... a rir!


Metereologista: No inferno deve estar... um frio de rachar!


Negacionista: Não acredito!...Recuso-me a acreditar!


O (E)terno Apaixonado: Voltaria a morrer por ti, meu amor!


O Caçador: A última armadilha!


O Corrupto: Incorruptível!


O Crente: O melhor ainda está por vir!


O Dorminhoco: Descanso eterno!


O Hipocondríaco: Eu bem avisei que... estava doente!


O Homem Mais Velho do Mundo: Arre, custou mas foi, o sacana do... velho!


O Malcriado: A vida... é uma merda!


O Optimista: É só um momentinho, por favor!


O Pessimista: Nunca mais vou sair daqui!


O Politicamente Correcto: Tudo acaba!


Padre: Porquê, meu Deus, meu Pai, entre tantos os chamados, fui logo eu o escolhido ? E porque não antes o sacristão ou o Papa ?


Paleontologista: De fóssil em fóssil... até à jazida final!


Papa: Porquê, meu Deus, meu Pai, entre tantos os chamados, fui logo eu o escolhido ? E porque não antes o bispo da minha terra ?


Pedófilo: Meus queridos anjinhos, meus fofos... cheguei!


Perfeccionista: A repetição leva à perfeição... exceto na roleta russa!


Predador: Agora a presa... sou eu!


Poeta: Saudade eterna!


Poeta Bocage 1: Já Bocage não sou!... À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento...


Poeta Bocage 2: (...) Ah! Se me creste, gente ímpia, / Rasga meus versos, crê na eternidade!


Poeta Camões: Lembrem-se de mim, ao menos, quando eu morrer no 10 de junho!


Poeta Fernando Pessoa: O eterno desassossego!


Poeta Ruy Belo: Adeus, Terra da Alegria!


Portuga (Pobre): Nunca mais vejo a tal luz... ao fundo do túnel!


Portuga (Rico): Uma suite...para a eternidade!


Racista branco: A coisa está preta!


Racista negro: Branco... como a cal da parede!


Rambo: Sempre me avisaram, em Lamego, no curso de "rangers", que não se pode abusar da sorte!


Rei: Destronado e... desterrado!


Retornado: Bom filho...  a casa torna


Revolucionário: Os vermes ao poder! A terra a quem... a trabalha!


Romancista: Ponto final parágrafo. The End.


Suicida Arrependido: Porra, esqueci-me de comprar bilhete de ida e volta!


Último habitante da terra:  Tenho pena de não ter sido o primeiro


Soldado Desconhecido: Levantado do chão!


Toxicodependente: Enfim, meu, é só pó!...


Velho militante comunista: Até sempre, camaradas!


Viciado na raspadinha: Não jogo mais ?!...


Viciado no jogo: Bingo!


Virgem (Resistente): Maldita terra que por fim me hás de... comer!


Virologista: "Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega"


Zarolho: Se no céu for tudo cego, quem tiver um olho será rei.


3. Camarada, acrescenta aqui (, em baixo, na caixa de comentários...) uma lápide da tua lavra (do latim lapis, -idis, pedra). 

 Afinal, à morte ninguém escapa nem o rei nem o papa... E, a menos que queiras ser cremado, alguém vai pôr uma pedra, uma lápide, em cima do teu caixão...


Pelo sim, pelo não, é melhor deixar as tuas instruções pessoais em vida, com antecedência... Para o que der e vier... Mete o teu epitáfio no testamento vital.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41): Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris

(**) Último poste da série > 10 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22446: Passatempos de Verão (26): A cabra Joana de Nhacobá e o cão Tigre do Cumbijã, uma fábula que pode ser entendida como uma metáfora das relações coloniais do passado (Lucinda Aranha)

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22446: Passatempos de Verão (26): A cabra Joana de Nhacobá e o cão Tigre do Cumbijã, uma fábula que pode ser entendida como uma metáfora das relações coloniais do passado (Lucinda Aranha)


1. Mensagem de , Lucinda Aranha (, nossa amiga e grã-tabanqueira, escritora, filha do Manuel Joaquim dos Prazeres, o homem do cinema ambulante no nosso tempo, na Guiné, autora de uma biografia ficcionada do pai, a que chamou "romance":  "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", Alcochete, Alfarroba, 2018, 165 pp.; tem página no Facebook, Lucinda Aranha - Andanças na Escrita.

É também autora do livro "No Reino das Orelhas de Burro", recheado de histórias e memórias dos tempos em que o seu pai viveu, em Cabo Verde e na Guiné, desde os anos 30 até 1972. Tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue e integra a Tabanca Grande desde 15 /4/2014 (Vd. poste P12991).

Data - terça, 3/08, 12:29
Assunto - Desafio aos/às nossos/as escritores/as: a fábula da cabra Joana e do cão Tigre


Luís, tudo bem?

Recebi o teu repto e estive para não responder por dois motivos. O primeiro respeita à fase horrível por que estou a passar, desde Março perdi três irmãs, um sobrinho por afinidade ( nenhum com Covid) e uma outra irmã fracturou um joelho e o colo do fémur. O segundo porque não me via a fazer pesquisa pelo Boletim Cultural da Guiné para me inspirar nos hábitos dos animais africanos.

Finalmente e até para tentar arejar a cabeça lembrei-me de escrever um pequeno texto que, embora passado em Portugal, pode, penso eu, ser entendido como uma metáfora das relações coloniais entre Portugal e a Guiné. Tens toda a liberdade, não me ofenderei se entenderes que não cabe no Luís Graça & Camaradas da Guine.

Enfim, foi o que saiu. Tu dirás de tua justiça  
Beijos saudosos e até um dia destes. Lucinda Aranha


A cabra Joana e o cão Tigre

por Lucinda Aranha


Matreiro, o Tigrado estava de tocaia à presa, a atrevida cabra Joana, uma pérfida dada ao latrocínio.

Quando lhe dava na real gana, lá vinha ela numa expedição de saque,  atacando a propriedade dos donos de que ele, cão cumpridor, se via como fiel guardador. Invariavelmente impunha-lhe pesadas derrotas com os seus ataques de supetão, de bate e foge.

Mas hoje não o havia de fintar. Estava preparado para dar uma lição àquela guerrilheira lusitana. Hoje é que iam ser elas : a grande gulosa havia de ver as verdes e tenras alfaces da Florinda por um canudo. Hoje é que havia de provar no corpo os seus dentes afiados, quais bisarmas. E com os olhos semicerrados, antevia com deleite o momento em que a poria definitivamente KO. Ela havia de saber o que era a paz tigre à romana.

Nestas cogitações, salta do nada a cabra Joana para a surtida habitual. O Tigrado investe e, num segundo, as suas expectativas de vitória saem goradas. Como sempre, ela finta-o, pula pelas serras e montes, arrastando-o, cego de fúria, numa corrida feita de trambolhões até o fazer dar com os costados num baixio onde cai feito prisioneiro.

– Com que então vais pelas nossas galinhas todo ancho como se fosses o pai da tua dona nas caçadas pelos matos da Guiné! – invetiva-o a Joana, enquanto o Tigrado tentava em vão saltar da sua prisão. – Aprende: todos temos de ser respeitados e termos a liberdade de fazermos o que queremos e como queremos. Muitas galinhas pagaram os teus donos aos meus e nem por isso eles te perseguem. Não dão eles volta e meia aos teus donos boas tronchas e até uns anhos? Porque és tão ganancioso?

Em transe tão aflitivo, o pobre cão cai em si.
– Tens razão, Joana, agora enxergo a minha soberba, realmente eu era um egoísta. Só via os meus interesses e os dos meus donos, achava que os dos outros não contavam.

Com dois coices, a cabra rebentou a cancela escancarando-lhe o portão da prisão e lá foram os dois serra acima, uma cabriolando, o outro correndo em grande companheirismo e cumplicidade.

Lucinda Aranha

2. Comentário do editor LG:

Querida amiga Lucinda:

Antes de mais, a minha solidariedade na dor pela perda dos teus entes queridos, as tuas manas cujas pequenas grandes vidas tu evocaste, com tanto talento e fina ironia no teu livro "O homem do cinema". 

A capacidade de fazer o luto faz parte da nossa condição humana. Desde que nascemos e temos consciência de nós e dos outros, aprendemos a lidar com a perda (, de que a morte é a mais dolorosa e irrversível). 

Quanto à versão que me mandaste, da fábula da Cabra Joana e do Cão Tigre, não podia ser mais original. Estou-te grato, em meu nome e em nome da Tabanca Grande. Espero que os nossos leitores a saibam ler e queiram comentar. 

Por outro lado, é bom saber de ti, depois de tantos meses de silêncio, em grande parte imposto pelas contingências da pandemia de Covid-19 (, que não nos deixou, por exemplo, concretizar a ideia de poderes vir à Lourinhã falar do teu livro e das memórias do teu pai).

Recorde-se o ponto de partida, real: A cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada pelo PAIGC, no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores. Foi levada, a Joana, para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o "Tigre de Cumbijã", mascote do pessoal. 

Não sabemos como esta história acabou, a pequena, insignificante, história destes dois animais domésticos, só sabemos, pelo Joaquim Costa,  que estavam vivos quando o aquartelamento de Cumbijã foi entregue ao PAIGC, em 7 de agosto de 1974. Em todo o caso,  sabemos também que não fazem parte da História com H Grande. (**)
Vd. também: 

1 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22422: Passatempos de Verão (24): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 2: "Ao que parece, nem os macacos se salvaram" (Joaquim Costa)

31 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22420: Passatempos de Verão (23): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 1: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo" (Luís Graça)

30 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22417: Passatempos de verão (22): A fábula da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, obrigados a coexistir pacificamente até ao final da guerra

(**) Vd. poste de 29 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22413: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago (Op Balanço Final)

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22424: Passatempos de Verão (25): Uma fábula diferente: o gato Olossato e o cão Maquezão em tempo de cólera (Paulo Salgado, ex-alf mil cav op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)


Guiné-Bissau > Região do Óio > Maqué > 20 de Novembro de 2006 > Poilão, árvore sagrada, habitada pelos irãs... Mais uma chapa do famoso poilão de Maqué. Tirada pelo nosso camarada Carlos Fortunato, ex-Fur Mil da CCAÇ 13 (Os Leões Negros), na sua viagem de 2006 à Guiné-Bissau e à região do Óio.

Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Maqué > 2006 > " O mais belo poilão que conheço da Guiné" (Paulo Salgado) [. na foto, o Paulo Salgado, sentado, e Moura Marques, de pé, ambos antigos militares da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72].

Foto (e legenda): © Paulo Salgado (2006). Todos os direitos  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região do Oio > Olossato > CCAV 2721 (1970/72) > 1970 > O Alf Mil Cav Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde. Mais tarde, tornar-se-ia administrador hospital e gestor de saúde (em Portugal, Guiné-Bissau e Angola).

Foto (e legenda): © Paulo Salgado (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Paulo Salgado (ex-alf mil cav op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72); é natural de Moncorvo, e membro da nossa Tabanca Grande, desde 18 de setembro de 2005; manteve, no nosso blogue, uma colaboração regular, com pelo menos duas séries, em 2005/2006, quando esteve em Bissau à frente do Hospital Nacional Simão Mendes: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) e Bombolom II (ver aqui através do marcador Bombolom); tem mais de cerca de 110 referências no nosso blogue; é autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier",


 
Date: domingo, 1/08/2021 à(s) 21:38
Subject: Uma fábula diferente
 

Meu Caro Luís e meus caros camaradas editores, todos desta Tabanca, afinal, 

Junto uma fábula antecedida de uma introdução.
Uma saudação amiga. De camarada.

Paulo Salgado

O 'Maquezão' e o 'Olossato'

por Paulo Salgado



Não vou contar uma fábula tradicional. As fábulas que escrevi para o meu neto – 4 Fábulas para o Pedro – levaram-me até a Esopo e, certamente, a La Fontaine. Sempre a ideia da moralidade daqueles autores, carregada de ideias utilitárias... 

Aquela de a raposa estar à conversa com o corvo, ou de a lebre apostar com a tartaruga, ou da formiga trabalhadora a dar um raspanete à cigarra, apenas lembraria a fabulistas mais castigadores do que solidários – penso eu. Quis dar uma outra versão ao meu neto. Aos meus netos. (*)

Aliás, é na esteira de Alçada Baptista que se deve entender que as fábulas, mais do que premiar ou castigar, poderão servir para provocar solidariedades…O Zeca (1929-1987), que faria anos neste dia 2 de Agosto, dizia que "a formiga no carreiro ia em sentido contrário"…

O que se passou no Olossato por volta de Setembro de 1970 foi o seguinte: grassou a cólera. Foi preciso andar a proceder a higienizações menos espaçadas, e alargar à tabanca a necessidade de limpeza e de cuidados de remoção de lixos (algo que equipas mistas de militares e população faziam diariamente). E mais: era preciso 'acabar' com alguns cães e gatos escanzelados e cheios de doenças. Uma matança era exigida.  O alferes encarregado do feito teve o cuidado de ser ético na 'limpeza' de animais doentes. (Hoje, o PAN revoltar-se-ia…). (**)

Entra aqui uma conversa entre o cão 'Maquezão' e o gato 'Olossato' – duas criaturas que não se davam muito bem, mas que encontraram um forte motivo para se aliarem num momento de visível e tormentosa aflição.

O 'Olossato', gato finório, que frequentava a casa do comerciante abastado, foi procurar o 'Maquezão':

 Sabes, andam a dar cabo de cães e gatos. É hora de nos entendermos. Proponho que nos acoitemos em Cansonco onde está uma tabanca que não ardeu totalmente. E se fugíssemos à mortandade, nós que estamos sadios? É que um humano anda com um instrumento e pode não distinguir os animais doentes dos animais sadios.

 Claro, 'Olossato'. Vamos até perto da floresta. Os dois havemos de arranjar maneira de sobreviver, até que nem precisamos de muito conforto…é claro que tenho um humano que me faz festas e vou sentir a falta dele, paciência – aquiesceu o 'Maquezão'.

E lá foram os dois. De vez em quando, espreitavam ao povoado para ver como paravam as modas. Apesar de terem coelhos e ratos e passarada com fartura, que caçavam com êxito, aliando-se na tarefa de sobrevivência, sentiam a falta de outro convívio…

Um dia, entraram pela entrada que vem de Farim, cortada por causa das minas…o cavalo de pau estava desviado. Bem nutridos, limpos. E os humanos reconheceram-nos…

 Vês, 'Maquezão'?! – segredou o 'Olossato'.

E sorriram…

Nota: 'Maquezão' vem de Maqué – um posto avançado (?) do aquartelamento; 'Olossato', o nome da bela tabanca/aquartelamento Olossato.

_________


(**) Vd. poste de 10 de julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (3): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

(...) Comentário de L.G.:

Alberto: É uma história fabulosa!!!... Manda mais, temos tão poucas referências aos primeiros tempos da guerra... Dá-me mais elementos sobre a tua companhia. E fala-nos da Bambadinca desse tempo. Como sabes, eu estive lá em 1969/71, seis anos depois de ti... No meu tempo tanbém havia muitos cães, famélicos e vadios... Não nos deixavam dormir... Um dia, às tantas da noite, pegámos num jipe, nas pistolas Walther, e matámo-los todos... Ainda hoje essa cena me incomoda... Evoquei-a ou tentei exorcizá-la num dos meus poemas, Esquecer a Guiné (...).

(...) Nessa noite nem o pobre do Chichas, que era a nossa mascote, escapou da morte anunciada.

Segundo esclarecimento posterior do Humberto Reis [vd. poste de 17 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - P62 Op Noite das Facas Longas ], meu camarada da CCAÇ 12 e meu companheiro de quarto em Bambadinca, "o cão, que dormia à porta do nosso quarto, era o Chichas, alcunha vinda do 2º sargento corneteiro do BCAÇ 2852, que também era o Chichas. O condutor do jipe nessa Noite das Facas Longas era o major de operações do BART 2917 (o tal que mandou ir para lá a mulher quando se casou) e o assassino... fui eu".

Acrescento eu: esse tal major era conhecido como o B.B. [hoje cor art ref Jorge Vieira Barros  e Bastos],

domingo, 1 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22422: Passatempos de Verão (24): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 2: "Ao que parece, nem os macacos se salvaram" (Joaquim Costa)


1. Dando continuidade aos nossos devaneios de verão, aqui vai mais uma versão da história fantástica da  cabra Joana e do cão rafeiro Tigre, contada aos meninos da escola,  desta vez da lavra do escritor minhoto de contos infantis Joaquim Costa, com residência oficial em Fânzeres, Gondomar (*)




A cabra Joana e o cão Tigre

por Joaquim Costa


Era uma vez, numa terra distante, de uma beleza que se entranhava no corpo e alma, como a areia no corpo  numa tarde de vento na praia,. 

Aqui viviam duas famílias desavindas por causa de uma bandeira (quando forem mais crescidos vão perceber porquê… ou talvez não). Uns eram a família IN, que viviam em Nhacobá, outros a família Tigre, que morvam em Cumbijã.

Os arrufos eram constantes com investidas ousadas a casa uns do outros,  tentando a expulsão dos mesmos.

Entretidos nestes arrufos,  os DDT,  os Donos Disto Tudo (ou melhor, os Donos Daquilo Tudo, daquela terra), decidiram (,sem consultar ninguém, ) que os Tigres investiriam em força sobre a família IN, impondo a sua lei.

Assim foi, mas com perdas irreparáveis e inocentes de um lado e do outro.

Como é comum, desde os primórdios, quem vence tem direito aos despojos: Arroz, cigarros, fósforos (que se acendem riscando na sola da bota, em estilo John Wayne), livros escolares com mensagem estilo Estado Novo (mas cujos heróis eram outros) e... uma cabra que chamou a atenção pela sua indignação pela invasão da sua privacidade,  levantando as patas a qualquer um sem receios.

Esta irredutível cabra passou a fazer parte do despojos,  pelo que acompanhou os Tigres de volta a casa, em Cumbijã. 

Aqui quem reinava era o cão rafeiro Tigre,  pelo que, no dia da chegada, a cabra foi apresentada ao rei. Não foi um encontro fácil e só não se chegou a vias de facto dada a pronta atuação da guarda pretoriana.

Esta irredutível cabra ganhou a simpatia de toda a população, ou quase,  já que em todo o lado há ovelhas ranhosas em qualquer rebanho.

Tinha esta irreverente cabra, de seu nome Joana,  4 predadores:

(i) O rei Tigre que nunca aceitou partilhar o protagonismo com este estranho animal (, contudo, neste caso,  não se sabia quem era o predador de quem);

(ii) O vagomestre Ferreira, que tratava dos comes & bebes, e  que fitava a Joana com os olhos vermelhos de quem já a está a ver a ser esfolada e transformada em estilhaços de carne para o arroz;

(iii) Os três agricultores improváveis , estes com razão, já que a Joana não resistia às viçosas alfaces, saltando a cerca das três hortinhas, e  lambusando-se toda com a frescura das mesmas com a compreensível indignação dos proprietários das plantações.

Na defesa da Joana passou a haver, 24 sobre 24 horas, um guarda-costas, armado de G3 com bala na câmara.

Foi assim que a mesma resistiu até ao dia em que os Tigres abandonaram a  sua casa, no Cumbijã,  a caminho de Bissau, para apanhar o barco (que os levaria finalmente a sua terra de origem),  e em que todos, sem exceção, verteram uma lágrima, já com saudades da cabra Joana e do cão Tigre.

Não se sabe o que aconteceu depois, mas teme-se que esta história, infelizmente, dos relatos que foram chegando aos Tigres, não tenha acabado nada bem...

Ao que parece,  nem os macacos se salvaram....

Joaquim Costa

30 de julho de 2021 às 17:00

___________

Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

sábado, 31 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22420: Passatempos de Verão (23): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 1: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo" (Luís Graça)



Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > Diz o Joaquim Costa: "Oj encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre”... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo."... Mas segundo o Luís Graça, esta história  terá acabado mal... Foto acima: um típico pratod e chanfana, cortesia da RTP.




A Joana e o Tigre (1973). Foto:
cortesia de Joaquim Costa


1. Já temos pelo menos  dois textos, em resposta ao nosso desafio,  lançado no poste anterior desta série, "Passatempos de verão" (*)


Fábula 1: 
"Não se pode servir dois senhores 
ao mesmo tempo"

por Luís Graça



Sou a cabra Joana de Nhacobá. Minha terra fica no sul da Guiné-Bissau, na região de Tombali, dizia minha dona.

Já não cheguei a conhecer a Guiné-Bissau. Sou do tempo dos “tugas”. Tive um amigo, o Tigre do Cumbijã, um cão rafeiro,  que pertencia aos “tugas”. Mas ele era tão guineense quanto eu.

A minha história é triste. Fui apanhada pelos “tugas” quando bombardearam com aviões e atacaram por terra a minha querida tabanca, Nhacobá. Fui levada para Cumbijã, como prisioneira.  Não me trataram mal, a princípio. Mas, no fim, acabei morta e cortada aos pedaços num alguidar, coberto de vinho do Cartaxo (, não havia vinho do Dão, dizia o malvado do cozinheiro.)

Se bem percebi pelas conversas que marcaram os últimos minutos da minha vida, queriam fazer, comigo, um prato “tuga”, horrível, a que chamavam “chanfana”, da cor do alcatrão. Uns desgraçados de uns milícias aproveitaram a minha linda pele para fazer um ou mais jambés.

Não fui morta à moda dos fulas, degolada. Deram-me um tiro de pistola Walther, 9 mm de aço. Fechei os olhos. Não quis ver a cara do carrasco. Não sei se era branco ou negro. No quartel havia milícias.  Estava nervosos, e com pressa.

A minha história é triste mas também tem um lado exaltante e até heróico. Dizem que eu vim de um tabanca mais a norte, ainda no quarto crescente da lua da guerra. No início da luta, o Cabra Matcho Nhô Vieira chegou lá e disse: “Partido manda pessoal procurar abrigo nas matas do Cantanhez que tem árvore grande. Se não, vem avião ‘tuga’ e lança bomba e mata povo”. 

Eu era pequenina, ainda de leite. Mas minha dona trouxe-me ao colo para a nova morança.  Só me lembro de Nhacobá onde cresci e por onde passava coluna grande do Partido com armas e bianda. Manga de canseira.

Um dia dei leite para Cabra Matcho Nhô Vieira que estava com febres. Ele ficou muito agradecido e deu ordem: “Ninguém faz mal à cabra Joana. É uma grande combatente da liberdade da Pátria”. 

Todas as vezes que ele passava em Nhacobá (, raramente cá ficava,) ia-me visitar à minha morança e fazer uma festinha… Não sei se “tugas” sabiam desta história. Não deviam saber, se soubessem mandavam logo  lá o Marcolino da Mata para me apanhar à mão. O Marcolno também era um cabra matcho, dizia o povo de Nhacobá.  Odiava o Nhô Vieira, eram irmãos  da mesma tribo mas rivais. 

Um dia quiseram apanhar Cabra Matcho Nhô Vieira, mas em vez dele apanharam capitão cubano. Foi coisa dos paraquedistas de que tínhamos muito medo. Até que um dia manga de tropa cercou a tabanca, houve mortos e feridos, minha dona não conseguiu mais segurar-me. E um tal “tuga” Djoquim Costa me prendeu com corda grossa e me trouxe para Cumbijã. Vim  o caminho todo a dar marradas, até ficar exausta.   Chorei, nesse dia.  Cabra Matcho Nhô Vieira estava mais abaixo, na batalha do Guiledje, não me pôde defender nem salvar.

Fiquei no quartel dos “tugas”, em Cumbijã, mais de um ano. E confesso (, que os camaradas aqui não me ouvem!): fui lá feliz e diverti-me. Eu e o meu amigo, o cão rafeiro Tigre do Cumbijã. Só queríamos mesmo era brincadeira. E fazer estragos na horta dos "tugas".  Davam-me de comer mas eu também trabalhava. Dava leite aos doentes e limpava os chão do quartel: apanhava tudo o que fosse comestível,  de trapos a papel.

Um dia quis saltar o arame farpado para ir até à bolanha, desentorpecer as pernas, mas fiquei lá presa, no arame.  O cão rafeiro Tigre do Cumbijã foi a correr, a ladrar, chamar o “tuga” Djoquim Costa, que era o meu novo dono. Lá me safou. Levou-me à enfermaria. Furriel enfermeiro, manga de bom pessoal, cuidou de mim.

Acho que quase todos os "tugas" gostavam de mim. Até o general Caco Baldé foi ver a cabra do Cabra Matcho.  Mas havia alguns que andavam sempre a rosnar: "A fome é negra"...Nunca cheguei a saber qual era a cor da fome: se era negra para os brancos, ou branca para os negros.  Para mim, era de todas as cores. Eu sou cabra, não sou burrra...

Mas chegou a véspera do fatídico dia de entrega do quartel de Cumbijã aos camaradas do Partido. A data estava aprazada para 7 de agosto de 1974. 

Os “tugas” sabiam que o Cabra Matcho Nhô Vieira estava farto de procurar por todo o lado a sua cabra favorita. Que era eu. Com medo de alguma surpresa desagradável, ou contratempo de última hora, os “tugas” deram-me a sentença de morte. Não sei quem foi. E para mostraram que eram imparciais e justos como o  rei Salomão, ¥¥  mandaram matar também o pobre do meu amigo cão. A mim comeram-me, de chanfana. Ao Tigre do Cumbijã fizeram-lhe um funeral com honras militares e tudo. 

Quando chegaram os camaradas do Partido, para a entrega do quartel, perguntaram por mim. Os “tugas” responderam, cinicamente, que eu não fazia parte do inventário. E que por azar tinha saltado o arame farpado e pisado uma mina. O que era mentira. Eu era endiabrada mas não era suicida. 

Entregaram apenas um embrulho com os meus ossinhos, todos pretos. Sei, já no céu dos animais, que  o "tuga" Djoquim Costa, bom pessoal,  chorou por mim,  e que o Cabra Matcho Nhô Vieira também teve um grande desgosto. Como se tivesse perdido uma das suas mulheres. 

Em minha  homenagem, o Partido mandou-me inumar no Panteão Nacional, lá em Bissau, debaixo de um grande poilão, com uma placa a dizer o seguinte: “Aqui jaz a cabra Joana de Nhacobá, grande combatente da liberdade da Pátria”.

Moral da história,: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo.  Um dos dois fica mal servido".

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Nota do editor:

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22417: Passatempos de verão (22): A fábula da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, obrigados a coexistir pacificamente até ao final da guerra


Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre”... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.

Foto (e legenda): © JOaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. A foto da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, da autoria do Carlos Machado, é um espanto!... Um "instantâneo" muito feliz!...

Dá para os "miúdos da escola" (aqui ou na Guiné-Bissau) escreverem uma fábula sobre a "estupidez da guerra" ou qualquer coisa parecida... (O que é que será mais parecido com a "estupidez da guerra" ?  A guerra e a estupidez.).

Ou então dá, também, para os nossos leitores escreverem uma história para os seus  netos, partindo das suas memórias já muito esbatidas daquela terra, que era outrora era verde e vermelha, e estava a ferro e fogo... 

Leitores de Portugual, leitores da Guiné-Bissau, ou outros, que a "estupidez da guerra" é de todos os tempos e lugares... Fica aqui o desafio, retomando uma série, já antiga,  do nosso blogue, "Passatempos de Verão", ams inactiva desde 2017 (**).

A cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada  pelo  PAIGC,  no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores.

Foi levada, a Joana,  para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o "Tigre de Cumbijã", mascote do pessoal. Não sabemos como esta história acabou, a pequena, insignificante, história destes dois animais domésticos. 

Enfim, mais uma pequena história que não cabe na grande História com H. Ou será que cabe (ou devia caber) ?... Talvez um dia os senhores historiadores se lembrem de juntar, aos homens, as cabras e os cães, que os acompanhavam na paz e na guerra. Tal como os vírus, bactérias, parasitas, protozoários, fungos e bacilos que os dizimavam, aos homens e aos seus animais domésticos.

O Valdemar Queiroz comentou (**): 

"A cabra Joana e o cão Tigre,,, Até dava uma fábula, 'tá bem, mas atenção que as crianças são curiosas e poderiam atirar com: a Joana ao ataque e o Tigre encolhido. Ou os habituais reparos: mais uma a deitar abaixo a nossa tropa (um tigre) a encolher-se a um ataque no IN (uma cabra)." (...)

O nosso editor Luís Graça, mauzinho, também deu a sua dica (**): 

"Aposto que a cabra Joana acabou no prato dos Tigres do Cumbijã. Chanfana, de cabra velha. Mesmo nascida depois da guerra,  no final, em 1974,  já devia ser dura que nem um corno. Se assim foi, e o Joaquim confirmará, a pobre Joana terá sido um dos últimos despojos do império. Como a malta não comia cão (a menos que houvesse algum macaense na CCav 8351), o resultado só pode ter sido Tigre 1, Joana 0. Mas pode haver outras narrativas"...

E são essas narrativas, de preferência sob a forma de "fábulas", 
bem humoradas, mais ou menos infantis, politicamente incorretas, que esperamos da parte dos/as nossos/as leitores/as... 

Para já o poste não tem numeração (, será o P00000, volante, de modo a aparecer todos os dias em destaque na página de rosto do blogue). Queremos assim dar oportunidade (e visibilidade) aos nossos leitores para que os seus  talentos literários (incluindo a sua imaginação e sentido de humor) se manifestem, este fim de semana, de preferência sem quaisquer entraves nem  censuras...

Toda a gente já leu ou ouviu uma fábula do grego Esopo ou do francês La Fontaine... Fábula (latim fabula, -ae, conversa, lenda, conto, narrativa) tem várias aceções ou significados. Por exemplo: 1. [Literatura] Composição literária, em verso ou em prosa, geralmente com personagens de animais, com características humanas, e em que se narra um facto cuja verdade moral se oculta sob o véu da ficção.

Fonte: "fábula", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/f%C3%A1bula [consultado em 29-07-2021].



Mandem os vossos textos (, curtos, dois ou três  parágrafos, meia página A4) para os endereços dos nossos editores que estão de serviço neste final de julho / princípio de agosto do ano da (des)graça de 2021:

(i) Luís Graça (Lourinhã):

luis.graca.prof@gmail.com

(ii) Carlos Vinhal (Leça da Palmeira / Matosinhos):

carlos.vinhal@gmail.com


2. Operação Balanço Final, Região de Tombali, Nhacobá, Sector S2, 17 a 23Mai1973


Com a finalidade de ocupar Nhacobá, S2, em que intervieram forças das CCaç 3399, 3ªC/BCaç 4513/72, CCaç 18, CArt 6250/72, CCav 8351/72, 2° Pel Art (10,5 cm), 14° PelArt (14 cm), e 1 Pel/ERec 3431, quando se deslocavam no itinerário Cumbijã-Nhacobá, tiveram 2 contactos com o inimigo de que resultaram 7 mortos para este e 1 morto, 5 feridos graves e 9 ligeiros para as NT. 

Foram apreendidas ao inimigo 1 esp autom "Simonov", 3 esp autom "Kalashnikov", 1 esp "Mauser", l LGFog "RPG-7" e 1 gran de LPFog  "RPG-7", além de material diverso.

Três dias depois pelas 09H50 as nossas forças foram emboscadas por um grupo IN na região próxima de Guileje. As NT sofreram 1 morto, 1 ferido grave e 2 ligeiros. O inimigo sofreu baixas prováveis.


Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015), pág. 304

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17951: Os nossos passatempos de verão (21): Cantigas de escárnio e mal-dizer, à desgarrada... Parte VI: Glosando o mote "Sois os últimos moicanos, / Os do Como e do Cachil, / Se a guerra vos tirou anos, / O bom irã dá-vos mil! (Luís Graça / Francisco Santos / José Colaço)


Ponte de Sor > 5 de novembro de 2016 > Convívio anual do pessoal da CCAÇ 557 (1963/65) > O  Zé Colaço, à esquerda; o Chico Santos, à direita.

Foto (e legenda): © José Colaço (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Troca de 'mimos poéticos' entre o nosso editor, Luís Graça, e o poeta popular Chico Santos, o bardo do Como e do Cachil, ao tempo da CCAÇ 557 (1963/65)... Como o Chico, mesmo sendo nosso grã-tabanqueiro com todo o mérito, não tem email, é o Zé Colaço que serve de pombo correio...





Mote (Luís Graça)



Sois os últimos moicanos,
Os do Como e do Cachil,
Se a guerra vos tirou anos,
O bom irã dá-vos mil!



Glosa(Chico Santos)

Fomos os últimos moicanos,
No Como cheios de sebo,
O bom irã dá-nos mil anos,
De seres do além não percebo.

Errar resposta não quero,
Por isso à box me encosto,
A minha educação é zero
E, como nada sei, até gosto.

A escola para mim foi pouca,
Só respondo à m'nha maneira,
É que ás vezes eu abro a boca,
Entra mosca ou sai asneira.




Mote (Chico Santos)




A escola p’ra mim foi pouca,
Só respondo à m’nha maneira, 
É que ás vezes eu abro a boca,
Entra mosca ou sai asneira.



Glosa(Luís Graça)



A escola p’ra ti foi pouca,
Mas és poeta popular,
Fizeste uma guerra louca,
E estás cá para a contar.

Só respondes à tua maneira,
És forte na desgarrada,
Tens sempre uma na algibeira,
E outra melhor artilhada.

Ainda bem que abres a boca,
P’ra fazeres prova de vida,
Não és dos de orelha mouca,
Dás a resposta devida.

Entra mosca e sai asneira
Na boca de alguns senhores,
Que até falam de cadeira,
Armados em professores!

... Com um alfabravo fraterno para os dois bravos da CCAÇ 557, o Francisco Santos e o José Colaço. (**)



Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > Cachil > Março de 1964 > CCAÇ 557 (1963/65) Construção do aquartelamento de Cachil na sequência Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > À boa maneira do faroeste americano...  uma paliçada, neste caso feita de troncos de cibe!

Foto: © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

domingo, 3 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17725: Os nossos passatempos de verão (20): Cantigas de escárnio e mal-dizer, à desgarrada... Parte V: O sexo dos anjos... ou 'a anjinha de Ancede', em Baião (Luís Graça)



Foto nº 1


Foto nº 2



Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


 Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8



Foto nº  9


foto nº 10

Baião > Ancede > Mosteiro de Santo André de Ancede > Mosteiro, masculino,  cuja origem remonta aos primórdios da nacionalidade,,, Vale a pena uma visita,,, Está em restauro, com projeto de Siza Vieira... São quase mil anos de história que nos contemplam e nos confrontam ... Faz parte também da "rota do românico" (Vale do Tâmega)...  (Fotos nºs 7 a 10).

Mas tem também uma capela, octognal, do séc. XVIII, chamada do "bom despacho" (foto nº 6), que merece uma visita especialmemte guiada... Foi lá que encontrámos a 'anjinha de Ancede' (fotos nºs 1 a 3I)...  Uma delícia, essa e todas as demais peças da arte barroca popular, sob a forma de cenas de teatro,  relativas  aos mistériso da vida de Cristo... com destaque para a cena da circuncisão do menino Jesus (fotos nºs 4 e 5)... Repare-se na figura do "cirurgião", de "bisturi" na mão, e óculos (!).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O sexo dos anjos

por Luís Graça




Com a idade, um homem tem mais sede
De saber, que da morte é refrigério;
Daí eu ter ido ao mosteiro d'Ancede,
P'ra lá esclarecer um certo mistério.


Há uns tempos, um nosso camarada
P’ró nosso blogue, propôs certos arranjos:
"Quando a Pátria se vê ameaçada,
Que ninguém discuta o sexo dos anjos!"...


Concordo com o nosso patriota:
Querer saber se os anjos têm pilinha,
É coisa totalmente idiota…


Mas os d' Ancede têm uma anjinha,
Lá no céu, bem nuinha, em pelota,
Fui lá espreitar, achei... uma ternurinha!


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Nota do editor: