Mostrar mensagens com a etiqueta miséria. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta miséria. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3630: Banco do Afecto contra a Solidão (2): Ajuda ao João Santos, ex-combatente em Moçambique, que vive num contentor (Mário Fitas)

1. Mensagem de 13 de Dezembro, do Mário Fitas (ex- Fur Mil, CCaç 763, Cufar, 1965/66):

Meus caros,

Luís, Briote e Vinhal

(i) Estive com a máquina cheia de vírus, e depois uns dias na minha linda Planície onde convivi com os nossos camaradas (ainda vivos) da querida Guiné.

Não tencionava escrever ainda hoje, pois tenho alguns trabalhos em mãos. Estou a fazê-lo, porque recebi do nosso camarada e amigo José Brás que em Vindimas no Capim (*) descreve os arredores de Guiledge, e-mail que transcrevo:

“Mário

"Julgo que irás estar hoje no lançamento do livro do Cor Coutinho e Lima.
Através do contacto com o blogue recebi do Coronel, via correio electrónico, um convite.

"Planeei ir, por ele, pela justiça histórica e pela solidariedade que merece e, porque afinal depois do meu livro, nunca apareci nestas iniciativas ou na comunicação que se tem estabelecido entre camaradas desse tempo da história recente do jardim'.´

"A meteorologia aqui no Alentejo está péssima e nem sequer sairei do Monte onde estou sozinho com as minhas ovelhas, galinhas e patos.

"Se tiveres disponibilidade gostaria que entregasses ao Coronel o meu abraço.

"Um abraço também para ti. José Brás".


(ii) Infelizmente também eu não pude estar presente, embora como já escrevi no blogue esteja tecnicamente de acordo em termos da Guerra de Guerrilha na Guiné, com a actuação do Coronel Coutinho e Lima, e que reafirmo, como conhecedor daquilo que é uma guerra de Guerrilha.

Gostaria de estar presente, mas quem toca vários instrumentos, algum tem de desafinar. Portanto não é este meu escrito uma justificação, porque a presença noutro local julguei ser mais útil.

É verdade, há muitos problemas com todos aqueles que um dia (não importa a forma ou o porquê) tiveram de fazer a Guerra, por uma Pátria que os abandonou e atirou para o caixote do lixo.

Às 16hH30 de hoje, muito próximo do lançamento do livro do Coronel Coutinho e Lima, encontrava-me eu com o camarada João Santos, nascido em Moçambique onde cumpriu o serviço militar e pertenceu aos GEs. Tudo normal se... não fora o ex-militar Português viver num pequeno contentor, tendo como companhia apenas uma cadela que hoje debaixo da pseudo cama do João deu à luz uma quantidade de cachorros.

O João tem todos os documentos militares só que com a burocracia deste nosso querido País não conseguiu o BI.

É angustiante! Se todos os dias deveriam ser Natal, já que o próprio dia se aproxima, o João merece algo mais do que a indiferença de nós (alguns)que ainda conseguimos juntar a família.

Seria afronta à própria pessoa do João mandar a sua foto e da sua morada. Um amigo está tratando do assunto, se for caso disso, ao pessoal da Tabanca Grande pediremos ajuda.

Se algum camarada aqui de perto, quiser atenuar a solidão do João aí vai a morada:

João Santos
Rua das Rosas
Bairro dos Celões Lote 12 (contentor)
Bicesse – Estoril


Meus caros amigos, a vida é assim! Os caminhos que escolhi terão de ser percorridos. Espero ler o livro do Coronel Coutinho e Lima, e espero que o lançamento do mesmo tenha sido um sucesso.

Para Toda a Tabanca e hoje em especial para o Cor Coutinho e Lima, o abraço de sempre do tamanho do Cumbijã.

Mário Fitas

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 4 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3562: Banco do Afecto contra a Solidão (1): A última comissão do Coronel (Jorge Cabal)

(**) BRÁS, José: Vindimas no Capim. Lisboa : Publicações Europa-América, 1987.

(...) Um romance que o autor dedica "àqueles que todos os dias se perguntavam 'que é que eu ando aqui a fazer?', àqueles que se estoiravam, eles próprios, por dentro e por fora». Um relato que, afinal, diz respeito a todos os que, directa ou indirectamente, viveram a guerra do Ultramar. Mas também a todos os que, não a tendo vivido, sentem que não pode ser apagado da memória colectiva um período tão controverso da nossa História. Narrado na primeira pessoa, o relato caracteriza-se sempre por uma comunicabilidade imediata, directa, agarrando o leitor. Um excelente romance dum novo autor português" (...)

Vd. também o portal Guerra do Ultramar: Angola, Guiné, Ultramar > Livros > José Brás

domingo, 28 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2225: Antologia (65): Tribulações de um balanta, um conto de Fernando Rodrigues Barragão (1951) (A. Marques Lopes)




BARRAGÃO, Fernando Rodrigues
Tribulações de um balanta / Fernando Rodrigues Barragão
In: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.- vol. 6, nº 22 (Abr. 1951), p. 399- 404


1. Mensagem do A. Marques Lopes, de 25 de Outubro:

Caros camaradas:

Neste período em que a guerra colonial e as guerras de libertação das
ex-colónias portuguesas têm estado em algumas parangonas ("Prós e Contras" e "A Guerra"), em altura em que muitos, e jovens, já viram "As Duas Faces da
Guerra", tão especial para nós que estivemos na Guiné, dou-vos a conhecer
este texto, que muito me espantou.

Na Guiné, sabemos, havia a Casa Gouveia (CUF), que explorava os seus
naturais na mancarra e no coconote, os comerciantes libaneses (Taufik Saads
e outros...) que os exploravam pelo comércio. Mas este texto fez-me lembrar
o Landorf, nazi fugido da Alemanha, que tinha um comércio em Geba e actuava como o "caixeiro" deste texto.

E o meu grande espanto vem do facto de isto ter sido publicado no "Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa", Volume VI, nº 22, de Abril de 1951, relatando
as agruras de um balanta esfaimado e a forma como um comerciante branco se aproveitou disso para o explorar. Frisa a submissão dos mais velhos, por
força da tradição secular, e os desejos de liberdade deste balanta jovem
face à exploração a que era submetido.

O autor é Fernando Rodrigues . Do descobrimento aos dias de hoje. Encontrei o texto no blogue Senegâmbia (Boletim Cultural da Guiné-Bissau e regiões vizinhas - Senegal, Casamansa, Gâmbia, Guiné-Conakri e Cabo Verde) que recomendo.

Abraços
A. Marques Lopes


2. Tribulações de um balanta, por Fernando Rodrigues Barragão


Com o olhar morto, sem simpatia nem rancor, olhou a companheira estendida a um canto.
Acabara de sová-la. De sová-la ferozmente, numa ira súbita que não explicaria. Nem o álcool pode ser acusado. Há muito que não bebe. Onde o dinheiro?

Mas sovara-a. Por nada. Talvez porque a fome o aperta num círculo de fogo. Talvez porque a desordem que lhe vai no espírito se sinta acalmada depois de uma violência qualquer.

Ele sabe que o arroz, todo o arroz da sua colheita farta, se esgotou de repente. Sabe porque o não vê e sente no estômago a sua falta. Mas não compreende.

Por mais voltas que dê, pensando e pensando, não compreende. Servindo-se de pequeninas pedras, fez as suas contas. Mas, a meio já a confusão era tanta que as repetiu. E foi repetindo, vezes e vezes, até desistir.

Só então, entrando em casa, abruptamente sovou o primeiro ser que encontrou.
Os gritos da mulher, rasgando a quietude da «morança» e ecoando longe, mais o enfureceram. E a impunidade - que os vizinhos são sempre surdos - deu-lhe asas e forças.

E agora, olhando aquele corpo estendido, parou. Parou e ficou atónito sem saber o que fazer das mãos calosas que o escaldam. Rosnou qualquer monossílabo a meia voz e saiu.

Cá fora, o sol, a pino sobre a tabanca, empresta-lhe bafos de forno. E põe centelhas em todas as coisas. Pinta de cores gritantes as raras ervas, o colmo fumegante, o chão poeirento e vermelho. Longe, nas «bolanhas» desertas, flutuam vapores ténues e ágeis.

Bovinos famintos e sedentos mugem desoladamente. Um porco, vestido de crostas, refocila o chão ressequido. Crianças nuas amodorram nas raras sombras. Voejam, no ar parado, moscardos zumbidores. Nada mais.

Sob o sol impiedoso, a tabanca tem o ar fanado e triste das coisas mortas. Das coisas irremediavelmente mortas. Uma dor morrinhenta, constante e má, aperta-lhe o estômago e provoca tonturas.

Por momentos, uma indecisão suave e embaladora, leva-o a vacilar. Depois, um repente atira-o para a vereda, dura de muitos passos, que leva à loja. O caixeiro, gordo e vermelho, fuma tranquilamente. Tem uma camisa leve, de estreitas riscas azuis, enxovalhada e suja, e barba de muitos dias.

Quando Clodjê entrou, atirou-lhe um olhar indiferente e interrogou-o com um gesto de cabeça, violento como uma agressão. Clodjê, as mãos apoiadas no balcão, um esgar de dor a contorcer-lhe o rosto ossudo, não respondeu de pronto. Passou o olhar pelas prateleiras desconjuntadas, pelos panos garridos, por toda a loja.

Depois, de jacto, como se procurasse ver-se livre das próprias palavras, atirou:
- Arroz. Empresta. A fome é muita.

O outro teve um sorriso calmo. Chupou, deliciado, uma fumaça funda e semicerrou os olhos numa concentração grave.
- Já não empresto mais. Acabou. Acabou tudo.

Clodjê demorou a perceber. Apenas as últimas palavras lhe ficaram a martelar os tímpanos, repetidas, até ecoarem, surdas e átonas, no cérebro nebuloso.
- Fome é dor cansada. Tem paciência ...

E a sua voz chorosa, suplicante, tinha o som morno de melodia estranha. E aflitiva.
De novo a dor, funda e funda, roía-o. As pernas, que a fome tornara frágeis, tremiam. Todo ele tremia no receio da recusa, na perspectiva angustiosa de ter de internar-se no mato para devorar o que quer que fosse.

Foi só quando deitou a ponta pela janela que o caixeiro ditou as condições. Sem pressas. Sem interesse. Eram uns chatos. Arroz, arroz. Que diabo faziam às brutas colheitas? Vendiam ? Pagavam os empréstimos ? Bom. Mas porque não lavravam mais ? Sim, porque não lavravam? Não tinham? Lérias! Ralaços! Bêbados!

Resmungava, sonolento e acalorado, arrastando os chinelos de manufactura indígena. E, cínico, saboreava o seu poderio sobre aquele pequeno feudo que esmagava. Repetiu as condições. Pagamento a dobrar, uma galinha de gratificação por cada «bushel» [1] de arroz, promessa de compra de aguardente.

Clodjê hesitou. Voltava a ter de lavrar só para pagamentos ... Recuou até à rua, procurou pedrinhas, embrenhou-se em cálculos. Para comer e semear ... duas, quatro ... talvez vinte «bushels». As vinte pedrinhas comprimiam-se sob a sua mão trémula. Contou mais vinte e juntou-as. Era já um montículo considerável que o tornava atónito e derramava calafrios nas costas em arco.

Devia ainda - recordou de súbito - a manta que comprara nas chuvas para não esticar de frio. Mais duas pedras engrossaram a soma. Teria de vender algum, para arranjar dinheiro. Quanto?

Balançou, na mão em concha, quatro ou cinco pedras. Olhava, besta de pasmo, para o caixeiro sorridente e para a sua mão hesitante. Depois, atirou-as para junto das outras. Passou as mãos no monte e olhou em volta. Tinha o ar torvo e pânico de animal encurralado. O caixeiro ria e o pretito, praticante de balcão, gargalhava com pequeno gritos sincopados e histéricos.

Clodjê fitou-o. Era um garoto enfezado e petulante, rescendente a perfume. O riso alvar e ruidoso, doeu-lhe. E uma raiva funda, dolorosa como a fome, mais dolorosa que a fome, cresceu e toldou-lhe o olhar. Os seus músculos, longos como cordas, desenharam-se sob a pele suada. Um formigueiro estranho, como coceira de sarna, esquentou-lhe o sangue em ondas grossas que subiram até à garganta.

Depois, inexplicavelmente, deixou escapar um riso gutural, forçado, que mais parecia um soluço. Resolveu-se a contar as pedras. Eram muitas. O desânimo tomou conta do seu corpo, machucou-lhe os ombros e atirou a cabeça de encontro ao peito opresso.
Não. Não dava jeito. Mal acabasse a colheita ficaria, de novo, a braços com a fome. Para as chuvas ainda faltava um tempo comprido. Luas e luas viriam antes que chegasse o tempo da sementeira. E todos os dias tiraria arroz para comer. Sabe que é assim. Quem passa fome com arroz em casa?

Quando a «bolanha» tivesse água, já pouco haveria para semear. E só para pagamentos eram aquelas pedras todas. Não. Não dava jeito!

O caixeiro viera até à porta e acendera outro cigarro. E ficou-se a sacudir a caixa de fósforos, compassadamente, com um solo de massas em rumba idiota. Clodjê dispersou as pedras com um pontapé distraído e deu alguns passos. Mantinha ainda o queixo colado ao peito. Os braços tombados balouçavam rente ao corpo, ao abandono.
No largo, o sol irisava o chão de pequenas centelhas faiscantes. E a tal ponto, que dir-se-ia que o solo havia sido tauxiado de seixos. O ar, morno. e irrespirável, vinha em lufadas. Um cajueiro, em frente, parecia vergar sobre o braseiro.

O rio, ao fundo, corria calmo, barrento e sujo, sob o mangal enorme e compacto. Duas garças olhavam as águas estupidamente. Sob o peso da perspectiva atroz, Clodjê caminha quebrado, os nervos tensos, o espírito alvorotado e confuso. Nos olhos parados, uma luz baça de melancolia. E fome!

Mas não. Não pode receber o empréstimo. Ficará, daqui a pouco quase sem semente. Terá uma colheita pobre, de míseras espigas que a loja absorverá. E aquela história das galinhas, dadas assim sem mais nem quê, turva-lhe, mais e mais, o raciocínio lento e emaranhado.

Sob o cajueiro imóvel, estaca de chofre, agarrado por uma ideia súbita que o sacode. E se, de noite, entrar no armazém? Deve ser fácil. Os portões enormes, seguros por um cadeado pequeno e ridículo, serão fraco obstáculo. Mas logo, volumoso e quente, cresce um receio. E a tal ponto o sufoca - esse receio pueril.- que sacode, angustiado, a cabeçorra enorme. O lojeiro queixar-se-á no Posto. E os trabalhos virão. Ainda há pouco pediu o empréstimo. Será o primeiro a ser procurado, ele sabe. E teme.

O lojeiro aumentará - tem a certeza - a quantidade do roubo. Quando o Encanha roubou, uma vez, dois cabazes de arroz, aquele «branco» cachorro foi ao Posto dizer que lhe faltavam dois sacos. E Encanha, que confessou, pagou mesmo dois sacos. O Chefe não acreditou na história dos dois «balaios»[2]. Ladrão não merece confiança. Ninguém mais ouve suas razões.

E se... Ah! Assim, sim. Porque só agora se lembra desta saída? Os olhos brilham. Os seus músculos relaxam-se. Uma avalanche de calma derrama-se sobre ele. Deixa de notar a luz hílare da tarde, as crianças que amodorram, o calor asfixiante que esmaga os homens e as coisas.

Agora, só tem olhos e sensibilidade para a ideia que lhe surgiu e se impõe. Um riso sereno rasga-lhe o rosto cansado. Irá ao Posto queixar-se do lojeiro. Contará aquela conversa das galinhas e da «cana» [3] . Não se deixará roubar. O Posto fará justiça. Quem sabe se até aquela história do pagamento a dobrar não é malandrice?

Pronto, irá ao Posto. Pelo caminho do mato, andando teso, chegará ao cair do sol. Exultava. De soslaio, olhou a loja. Pachorrento, o caixeiro coçava o peito cabeludo e bocejava alto, roído de preguiça. O aprendiz. de olhos vermelhos, efeminado e parvo, afagava a carapinha perfumada e piolhosa.

Sente que os odeia. Com ódio frio e lúcido que tem anos e anos e que geraçôes acumularam. Tem agora o passo rápido e elástico, o andar felino das horas boas.
Sob a calabaceira [5] enorme, dormitam quatro «grandes» [4]. Urna necessidade imperiosa de dar largas à íntima satisfação, leva-o até eles.

Sincopadamente, narra a ideia feliz e o intento inadiável. Riem-lhe os olhos, de novo brilhantes, e a boca sequiosa. Todo ele se distende e crispa em gargalhadas sonoras que anavalham a paz morna da tarde.

Mas os velhos não acompanham a sua alegria ruidosa. Ficam a olhá-lo, incrédulos e pasmados, levemente curvados em atitude hostil. O velho Ranga Inteque, indolentemente - que o calor pesa nos homens e esmaga-os - sacode a cabeça, branca e branca como se, sobre ela, houvesse poisado toda a sumaúma que o vento arrancou dias atrás, E baixo, quase em murmúrio - que o silêncio fechou o mundo e deu à tabanca o ar triste das coisas mortas - sentencia:
- Que tem o Posto com a tua vida? Branco de loja é «branco» mau, tu sabes ? Não, tu não irás.

Nada mais. Recuou para o silêncio, fechou os olhos e, serenamente, aspirou o tabaco que picara. Clodjê olhou-o atónito. O velho parecia ignorá-lo. Bem encostado ao tronco da árvore, fechara-se num mutismo de morto. Olhou os outros. Guardavam também um silêncio opressivo e tácito. Como se dormissem, tinham as pálpebras caídas, o corpo imóvel, a respiração compassada. Lentamente, recompôs-se da surpresa. Teve um leve erguer de ombros, e seguiu.

Os velhos não o compreendiam. Não podiam sentir a sua sede de libertação, a sua ânsia de .justiça. Pesavam, neles, séculos de fatalismo e de muda resignação. Não se habituariam, jamais, a contar com as autoridades.

Entrou em casa, atirou para os ombros a manta garrida, agarrou no terçado [6] e saiu de novo. A tarde em meio, animou-o. Chegaria antes da noite. Atravessou a tabanca, contornou a vedação e rumou direito às «bolanhas». Depois delas, quando passasse a prancha sobre o rio, a vereda abrir-se-ia no matagal.

O restolho queimava-lhe os pés. Dir-se-ia que, momentos antes, uma queimada gigantesca varrera a planície dourada. De longe em longe, minúsculos tufos de vegetação raquítica e amarelada faziam negaças aos bovinos infelizes. Do rio negro de lama subia um gemer monótono de remos.

De súbito, uma ameaça de vómito levou-o a contrair-se. Ondas de fogo, volumosas e coleantes, sobem-lhe do estômago revolto e enovelam-se na garganta. Em momentos, o sofrimento cavou sulcos profundos e estampou, nos olhos sem brilho, o estigma da derrota.

Acocorado, aperta a mãos ambas a cabeça que parece estalar a cada pancada que o peito recebe. Por momentos, tem a impressão que o velho Ranga, sereno e indiferente, está mesmo ali, falando naquela voz ciciada e fria que todos acatam. Sente agora que é mau escutar os «grandes».

O Posto é longe, muito longe, lá do outro lado do mato. Não chegará. Nem hoje. Nem nunca. O velho disse. E ali a dois passos, quase junto de sua casa, os armazéns abarrotam. Todos foram à loja e aceitaram. Nos outros anos foi ele também? Porque não aceitar agora?

Vida de negro é vida cansada. E lojeiro branco mau ... Os armazéns estão perto. Mas talvez o caixeiro já não o atenda. Esquecido de tudo, num esforço violento que arranca lágrimas, retrocede. E caminha agora aos sacões, como um cavalo mal ferrado em rumo à manjedoura. Uma névoa translúcida parece aureolar as copas e as casas, como se o mundo se houvesse fechado numa rodoma de vidro levemente embaciado. E uma pontada aguda e cáustica raspa-lhe o estômago.

Quando, trôpego e sem fôlego, entrou no estabelecimento, o caixeiro sorriu e teve uma piscadela cúmplice para o negrito perfumado e imbecil que o acolitava.

Fernando Rodrigues Barragão

_________________________

Notas de A.M.L. / L.G.:

[1] O “bushel” é uma medida de capacidade usada para os cereais, equivalente a, mais ou menos, 35 litros; ou, como medida de volume, equivalente a cerca de 27 quilos. (AML)

[2] O “balaio” é um cesto de palhinha ou verga. (AML)

[3] Aguardente de cana (LG)

[4] Homens grandes (LG)

[5] Baobá, embondeiro (LG)

[6] Uma espécie de espada curta e larga; catana (LG)