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quinta-feira, 14 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23429: Frase do Dia (3): Na verdade, nós saímos da Guiné, mas a Guiné não sai de nós (José Martins, ex-fur mil trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70)

 1. Comentário (*) de Martins (ex-Fur Mil Trms, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), e nosso colaborador permanente, autor, entre outras, da série "Consultório Militar"; m histórico da Tabanca Grande, onde está desde 2005; tem jácerca de 460 referências. 

Caro Ramiro Figueira

Foi bom ter voltado a Canjadude e Che-Che, apesar de 
ser em pensamento, sítios por onde andei e onde permaneci dois anos, já lá vão mais de cinquenta.

Na verdade, nós saímos da Guiné, mas a Guiné não sai de nós.

Abraço.

Zé Martins (**)

13 de julho de 2022 às 09:27 (*)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23427: (Ex)citações (411): O calor e alguma ociosidade inerente levou-me a andar aqui pelo blogue a passear pela infinita quantidade de publicações que por cá há, com destaque para a região do Boé onde, em 1987, fui abrir uma missão com hospital de campanha, no âmbito dos Médicos Sem Fronteira (Ramiro Figueira, ex-Alf Mil Op Esp da 2.ª CART/BART 6520/72)

terça-feira, 10 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23253: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte I

1. Damos hoje início à publicação de um texto de memórias intitulado A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra, de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau Buba e Pelundo, 1969/71)[1]


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte I

Introdução

O meu objetivo com este texto é tão só, deixar um pequeno resumo, do que foi o meu dia-a-dia naquela época, para os meus filhos e netos. Como tal, e provando que não é ficção, menciono os nomes reais de cada um dos intervenientes neste meu texto.


Aproximava-se o fim do mês de Abril de 1969 quando, numa manhã, recebi um telefonema da Secretaria do Hospital Militar Principal dando-me a notícia que tinha dez dias para me ir despedir da minha família, comprar o fardamento e me apresentar, dia seis de Maio até às vinte e quatro horas no Porto Brandão, de modo a poder embarcar no dia seguinte para a Guiné no navio Niassa.

Tinha passado pouco mais de um mês a ser alvo de uma participação que me levaria também para a Guiné, mas, desta vez como soldado. O meu posto na altura era o de Cabo Miliciano, e a pouco mais de quinze dias de ser promovido a Furriel Miliciano.

Tudo aconteceu ao fim do jantar. Era Domingo e a refeição foi bife com batatas fritas.

O refeitório encontrava-se no edifício do Hospital Militar ao Jardim da Estrela. Aqui eram fornecidas refeições juntando no refeitório Cabos Milicianos, Cabos RD e Soldados.

Naquela noite de Domingo tudo parecia correr bem até ao momento que um dos Cabos Milicianos recém-chegados a este Hospital para realizarem o estágio de Enfermagem, resolveu acender um cigarro. Este esqueceu-se que não era permitido fumar no refeitório, mas, entusiasmado na galhofa com outros cometeu este lapso.

Nesse dia, encontrava-se de Sargento de dia à Formação o Primeiro-sargento de nome Nunes. Ao ver o Cabo Miliciano acender o cigarro, levantou a voz vinda do fundo da sala e da porta de entrada ordenando ao infrator que fosse fumar para fora do refeitório nestes termos:
- Ó nosso Cabo, não sabe que não se pode fumar no refeitório!
 
O Miliciano infrator, como havia dois tipos de Cabos no refeitório, não se apercebeu que era para ele a reprimenda. Eu, não gostando da forma como a ordem tinha sido dada, com ironia cheguei junto do Cabo Miliciano infrator dizendo-lhe em voz alta que o Sargento se estava a dirigir a ele. Como eu citei Sargento e não Primeiro-sargento, atirou-se a mim furioso, dizendo que lhe tinha faltado ao respeito perante todos os presentes e como tal, iria participar de mim. Respondi-lhe que para ser respeitado ele teria que se dar também ao respeito e ter chamado de cabo Miliciano ao infrator e não apenas de Cabo, dado encontrarem-se outro tipo de Cabos no refeitório. Mais, disse-lhe que as Ordens de Serviço ao Hospital ou à Formação para fazermos os mesmos serviços que ele estava desempenhando naquele momento nos referenciava com Cabos Milicianos e não apenas como Cabos. Se para ele, nós não passávamos apenas de Cabos também, me sentia no direito de apenas o tratar por Sargento e não como Primeiro-sargento. Mais eu já de cabeça perdida e olhos nos olhos lhe disse que quando eu saísse do Serviço Militar tinha um curso para trabalhar enquanto ele, acaso acontecesse o mesmo, restava-lhe ir para pastor de gado.

Saí de seguida porta fora numa pilha de nervos. Este homem, vim a saber, tinha fama e proveito de nos provocar.

Nessa noite fui vaguear por Lisboa tentando acalmar e, só de madrugada, me deitei um pouco.

Na manhã do dia seguinte, ao atravessar os portões da entrada principal do Hospital, soube que a minha situação como militar estava complicada porque só faltava a participação ser assinada pelo Director do Hospital.

Voltei de imediato a sair para o exterior do Hospital e dirigi-me de imediato à Escola de Serviço de Saúde, para solicitar ao Capitão que dirigia esta Escola o seu apoio.
Toquei à porta do seu gabinete pedindo para poder entrar já que tinha um assunto muito urgente que me envolvia e, para o qual necessitava do seu apoio.

Ao reparar no estado nervoso que eu apresentava, solicitou que com calma lhe narrasse os motivos que me levavam a pedir a sua ajuda. Contei-lhe então com todos os pormenores que levaram o Primeiro-sargento Nunes a querer participar de mim ao Director do Hospital. Despois de me ter ouvido, levantou o seu telefone ligando para aquele Sargento pedindo-lhe para que ele de imediato se dirigisse ao seu gabinete e fosse portador da participação que tinha em seu poder porque tinha urgência em falar com ele.
Enquanto o Sargento Nunes não chegou, o ajudante deste Capitão também um Primeiro-sargento, dirigiu a palavra ao seu chefe dizendo-lhe que eu era merecedor do castigo já que no entender dele, sabia de mais e, como tal, ao ser castigado, daria um exemplo a todos os outros Cabos Milicianos. Ao ouvir estas palavras, o Capitão levantou a voz dizendo-lhe que eu não tinha de ser castigado para servir de exemplo a ninguém! Tinha as melhores referências a meu respeito e, como tal, me iria defender a todo o custo. Olhou para mim dizendo-me para me acalmar pois tudo se ira resolver e, instruiu-me que, mal chegasse o Primeiro Nunes lhe pedisse desculpas pelos males entendidos por ele já que nunca tinha sido minha intensão faltar-lhe ao respeito o que era verdade.
Assim, mal o Primeiro Nunes entrou no gabinete, o Capitão estendeu-lhe a mão para que nela fosse colocada a referida participação. Surpreendido, recuou um passo dizendo que não o podia fazer. De novo o Capitão levantou a voz dizendo que fizesse o favor de lhe entregar a folha de papel para ser ali em frente de todos nós rasgada. Felizmente para mim assim aconteceu.

Mal me vi na rua e liberto daquele pesadelo, jurei para mim mesmo que doravante, nenhum filho da mãe militar me voltaria a pisar pois tinha acabado de levar um forte murro no estomago ao ter que pedir desculpas a um dos mais patifes Sargentos do Hospital Militar Principal.
Porém, o meu confronto com este militar não ficou encerrado naquele dia. Mais tarde e passado mais de um ano e encontrando-me de férias no Continente vindo pela segunda vês da Guiné, antes de embarcar de novo para aquele território Ultramarino, passei uns dias em Lisboa. Como namorava com uma Fisioterapeuta (mais tarde minha mulher), que naquela altura trabalhava no Hospital Militar Principal, fui visitá-la e, para isso, apanhei transporte num elétrico na Rua da Conceição que se dirigia para o Largo do Jardim da Estrela. Qual o meu espanto ao ver que na plataforma do elétrico se encontrava o dito Primeiro-sargento Nunes, que no passado tinha tentado destruir a minha vida. Não resisti e lancei-lhe as minhas mãos ao seu pescoço apertando-o e chamando-lhe todos os nomes que me vieram à cabeça. Dois outros passageiros me seguraram e, ao mesmo tempo perguntaram-me das minhas razões para te tomado aquela atitude. Contei-lhes e prontificaram-se a atirar com ele da plataforma do elétrico em andamento se fosse o meu desejo. Acalmei e segui a viagem sem mais olhar para ele.

Visitei a minha namorada combinando com ela me encontrar antes de apanhar o avião da TAP para Bissau. Contou-me mais tarde que o dito Primeiro-sargento ao ver-me falar com ela no Hospital, preguntou-lhe se me conhecia ao que ela lhe respondeu ser seu namorado. Remédio santo, sempre que a via a tratava com as melhores simpatias do Mundo.

Voltando ao momento da minha mobilização para a Guiné, logo na manhã do dia seguinte, (7 de Maio de 1969) e após ter tomado o pequeno-almoço, encaminhei-me com outros militares para uma das camionetas que nos levariam com destino ao cais de Alcântara em Lisboa, onde se encontrava o navio que nos iria levar até à Guiné.

No local, uma multidão de pessoas se encontrava para uma despedida cheia de emoções. Despediam-se dos seus filhos, namorados ou simplesmente amigos, dado a incerteza que havia, de um regresso com saúde. Não nos podíamos esquecer que partíamos para um teatro de guerra.

Como as minhas origens familiares eram do interior Norte e de precários recursos, não tive nenhum familiar próximo na despedida, mas somente, uma namorada recente e uma grande amiga quase familiar.

Na altura das despedidas, e quando me preparava para iniciar a subida das escadarias para o navio, vi uma cara bem minha conhecida da minha terra natal que também ia embarcar no mesmo navio. Era o Alferes Jorge Fachada, natural de Foz Côa como eu. Também ia para a Guiné, mas fazendo parte de um outro Batalhão e para locais diferentes do meu.

Apesar de verificar que não iria fazer parte do Batalhão onde eu estava inserido, senti-me mais confortado porque já não me iria sentir tão só durante a viagem.
Ao lado dele e no convés do navio, fomos correspondendo ao adeus dos nossos à medida que o navio se ia desviando do cais. Os gritos de adeus eram muitos. Senti que o meu peito se apertava angustiado. Não consegui deitar uma lágrima. Todo eu era um vazio.

Durante os sete dias da viagem fui conhecendo aqueles que comigo iam estar próximos (Médico, Cabo Enfermeiro e os quatro Maqueiros) mais, alguns Furriéis Milicianos da Companhia CCS do Batalhão 2884. Também eu e o Jorge fomos aproveitando umas iguarias que a minha namorada e familiares dele nos deram antes do embarque.

A viagem decorreu sem sobressaltos. Ao aproximarmo-nos do Golfo da Guiné, um bafo quente e húmido se ia sentindo. Piorou ao entrarmos no estuário do Rio Geba com a Costa à vista e as águas turvas.
Antes do navio encostar ao cais em Bissau, despedi-me do Jorge Fachada para não mais o voltar a ver naquelas paragens. Voltei a vê-lo felizmente já em Lisboa.
Conforme o navio se preparava para atracar, via o cais cheio de pessoas, mas, principalmente, muitos garotos que nos solicitavam para atirarmos moedas para a água a fim de eles mergulhare apanhando-as. Estas imagens deixaram-me triste e meditei se Deus algum dia teria passado por aqueles locais. Foi o primeiro grande sentimento de mágoa ao começar a verificar o atraso daquele território.
Salta Periquito salta, gritavam os miúdos em coro conforme íamos descendo para o cais.

Fui levado dali para um Quartel Seiscentos em Santa Luzia que ficava perto do Quartel-general em Bissau. Aqui ficou instalada a Companhia CCS da qual eu fazia parte. As restantes três Companhias Operacionais foram respetivamente para o Pelundo, Jolmete e Có.

A primeira noite foi dormida em cima de uma manta que tapava as folhas de zinco da cama. Acordei todo marcado pelas folhas de zinco e pelas mordidelas de tantos percevejos. Resolvi fazer logo uma limpeza a estes parasitas. Procurei uma vela fazendo-lhes um belo churrasco.

No dia seguinte fui conhecer o Posto de Saúde acompanhado pelo Médico do Batalhão com quem vim a aprender muito de saúde ao longo da comissão, mais o restante pessoal de saúde da CCS.

O meu primeiro trabalho foi receber e verificar todo o material sanitário que iria ficar sob a minha responsabilidade durante o tempo que permanecesse naquele Quartel. Logo ali começou a minha grande lição no sentido de estar com os olhos bem abertos ao inventário daquele material. Este meu cuidado viria a dar-me muito jeito no futuro. Mesmo estando ao meu lado o Médico, conseguimos ainda ser enganados. Aprendi que a tarimba dos mais velhos e o meio militar em tempo de guerra é diabólico. Estes pequenos erros fui conseguindo resolvê-los durante o tempo que ali permaneci de modo que, no final, entreguei o material ao que me rendeu, deixando tudo bem resolvido.

Este Quartel era um centro de passagem de tropas. Umas que chegavam do mato de passagem para Lisboa, e de Lisboa para determinadas zonas da Guiné. Durante este tempo, a azáfama foi grande.
Ainda sobre o alojamento, logo no dia seguinte foi-me destinado um quarto amplo com a companhia de mais dois Furriéis Milicianos e de um segundo Sargento do Quadro Permanente. Eu ligado à saúde, os dois Furriéis à alimentação e o segundo Sargento era corneteiro.

Logo no primeiro fim-de-semana com folga, fui começar a conhecer a Cidade de Bissau e tentar encontrar alguma morada de ex-colegas de estudo naturais da Guiné. Fiquei logo a saber que um tinha moradia à saída da porta de armas do Quartel onde me encontrava, portanto, no Bairro de Santa Luzia.

Comecei por conhecer a família Baticã (não sei se é assim que se escreve). Fiquei a saber por eles que o Pai era o Régulo de Teixeira Pinto (Régulo significa ser o chefe da etnia local), portanto, a cidade à qual a aldeia para onde eu estava destinado ir pertencia administrativamente aquela cidade. Mais tarde, este conhecimento tornou-se útil.

Encontrava-me ainda na adaptação à nova vida militar, quando, numa manhã da segunda semana após a minha chegada a Bissau, fui chamado ao Comandante da minha Companhia que me informou ter para nessa tarde me apresentar no Quartel-General. Fiquei deveras apreensivo e receoso do destino que me iria ser dado. Todo eu era nervos. Mal cheguei já me vão dar outro destino? - Pensei para os meus botões.

O Quartel-General ficava logo nas traseiras do Seiscentos. Sendo o percurso mais curto. Como a minha apresentação era a um Oficial-General e o documento da convocatória tinha o seu nome, pedi à ordenança, que lá se encontrava, que me indicasse o gabinete do Oficial que me queria falar.

Bati à porta, pedindo licença. O Oficial mandou-me entrar e que me sentasse na cadeira em frente da sua secretária.
Tenho comigo um ofício de que é desejo do Comando-Chefe que o senhor vá fazer um estágio na Granja Agrícola aqui em Bissau e, deste modo, possa vir a utilizar os seus conhecimentos junto da população do Pelundo. Aceita? Não hesitei na minha resposta que lhe dei afirmativa. Então, a partir de amanhã, uma parte do dia será destinada ao seu estágio.

Fui assim portador de um ofício a entregar ao meu Capitão da Companhia que ficou de olhos em bico. Quanto aos meus companheiros de jornada, bem como os Furriéis da CCS, todos fizeram cara de espanto, ficando com alguma inveja que, em alguns, perdurou durante toda a comissão.

O meu Médico da Companhia (Dr. Dinis Calado) ficou com mais trabalho, mas contente pela oportunidade que me era dada. A partir daquele dia, todas as tardes a seguir ao almoço, uma viatura militar levava-me à Granja. No regresso, vinha em viatura civil daquela instituição.

(Continua)
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 9 DE MAIO DE 2022 Guiné 61/74 - P23249: Tabanca Grande (534): António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Bula e Pelundo, 1969/71). Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar n.º 861

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22796: (In)citações (194): Divulgação do Prémio Literário Antigos Combatentes - Ministério da Defesa Nacional (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos
Junto em anexo a este e-mail o Despacho e o Regulamento referente ao novo Prémio Literário dos Antigos Combatentes lançado pela Secretaria de Estado de Recursos Humanos e Antigos Combatentes.

Mais informação também disponível em: https://www.defesa.gov.pt/pt/comunicacao/noticias/Paginas/Defesa-Nacional-lanca-Premio-Literario-dedicado-as-memorias-dos-Antigos-Combatentes.aspx


PRÉMIO LITERÁRIO ANTIGOS COMBATENTES

MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22563: (In)citações (193): 125 exemplares do livro que publiquei há um mês, já estão despachados, já pedi mais 25 exemplares que espero receber em breve (Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879)

terça-feira, 9 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21985: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi ( João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte I: afinal, não consegui esquecer...


Companhia de Caçadores 1439 

(Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)

 

Ficha de Unidade

Unidade de Mobilização: BII 19 – Funchal                                            

Cmdt: Cap Mil Inf Amândio Manuel Pires

Partida:   Embarque em 10 Agosto 1965 | Desembarque em 06 Agosto 65

Regresso:   Embarque  em 18 Abril 1967


Síntese da Actividade Operacional


(i) Após o desembarque, em 6 de agosto de 1965, seguiu imediatamente para Xime, a fim de efectuar o treino operacional com forças da CCav 678 e assumiu a responsabilidade do subsector de Xime em substituição da CCaç 508, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 697, com a missão de intervenção e reserva do sector.

(ii) Em 10 de setembro 65, por troca com a CCav 678, foi deslocada para Bambadinca, onde continuou com a missão de intervenção e reserva do sector e assumiu cumulativamente a responsabilidade do respectivo subsector de Bambadinca;

(iii) Nestas funções tomou parte em diversas operações de que se salientam, pelos resultados obtidos, a operação “Bravura”, de 14 a 24 de agosto de 1965, na região de Galo Corubal e a operação ”Avante” de 29 a 30Ago65, na região do rio Burontoni.

(iv) Em 9 de outubro de 1965, por troca com a CCaç 556 assumiu a responsabilidade do subsector de Enxalé, com destacamentos em Missirá e Porto Gole, mantendo-se na dependência do BCaç 697 e depois do BCaç 1888. 

(v) No princípio efectuou várias operações nas regiões de Madina Belele, Bissá e Porto Gole em que capturou bastante armamento e material.

(vi) Em 8 de abril 1967, foi rendida no subsector de Enxalé, por troca pela CArt 1661 e recolheu seguidamente a Fá Mandinga, onde se manteve temporariamente, como subunidade de reserve do sector.

(vi) Em 17 de abril de 1967 seguiu para Bissau a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações : Tem História da Unidade (Caixa no 74-2ª  Div/4ª.Sec, do AHM - Arquivo Histórico Militar).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pp. 349


1. Texto, de 45 páginas, ilustrado,  enviado em formato pdf,  em 4 de fevereiro de 2021, pelo nosso amigo e camarada João Crisóstomo, que foi alf mil at inf, CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), e que vive em Nova Iorque desde 1975, tem dupla nacionalidade e tem sido um ativista causas como a autodeterminação de Timor Leste, as gravuras de Foz Coa ou a reabilitação da memória de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul de Bordéus em 1940 (*):


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque)
 
Parte I

O que me proponho neste trabalho não pode na verdade  ser considerado uma “história" da  CCAÇ 1439.

 Passados  cinquenta e cinco anos do nosso regresso da Guiné,  isso é tarefa quase impossível. Durante muito tempo tentei propositadamente "esquecer” e não quis saber mais desse tempo que estive na Guiné. O ter decidido "tirar uns anos fora de Portugal para aperfeiçoar línguas" (, eu queria dedicar-me ao turismo em Portugal,) de certa maneira ajudou mesmo a esquecer esses meus tempos de serviço militar.

Houve alguns esporádicos momentos em que o assunto vinha à tona. Lembro-me, por exemplo, pouco depois de chegar a Londres, ter encontrado no "Hyde Park Corner" um indivíduo em cima dum escadote a falar sobre Portugal e o colonialismo português na Guiné… Mas eu quase nem liguei: estava farto.

Quando aconteceu o 25 de Abril (, estava eu no Brasil na altura,) fiquei curioso e esperançado, mas logo essa esperança começou a desaparecer: o pouco que ouvia fora de Portugal sobre o assunto era geralmente negativo e que em Angola, Moçambique e em quase toda a parte, Portugal só tinha deixado uma grande confusão e guerras civis. E eu de jeito nenhum queria ouvir falar desse aspecto da nossa “herança.”

A tal ponto era a minha vontade de não querer saber de nada que, mesmo quando houve o massacre em Timor, eu andava tão alheado de tudo que nem apercebi de que tinha havido uma invasão da ilha pelos indonésios e que o que se passava em Timor não era resultado de guerra civil. E quando em 1996 um estudante luso-americano que, no ano anterior, eu tinha convencido a envolver-se na defesa das gravuras de Foz Coa, veio ter comigo pedindo-me para eu me envolver no caso de Timor Leste, a minha primeira e rápida resposta foi de que eu não queria saber de nada que estivesse relacionado com as lutas nas nossas ex-colónias.

Ele ficou espantado com a minha ignorância e foi perseverante; e, passados dois dias, quando me apercebi da verdadeira situação em Timor — e de que os Estados Unidos, Inglaterra, França e quase todo o mundo, mesmo Portugal, estavam todos mais ou menos a fazer o jogo da Indonésia —, eu também não tive dúvidas em me embrenhar a fundo nessa polémica.

Em bom momento o fiz. Foi esse envolvimento que me levou a começar a prestar atenção ao que se estava a passar em outros lugares, incluindo a Guiné.

Um dia uma de minhas irmãs ao telefone contou-me que tinha encontrado numa excursão de autocarro um indivíduo que ao saber o nome dela disse que me conhecia pois ele "tinha estado comigo na Guiné". "Chamava-se Abrantes", disse. Ela disse-me e eu lembrando-me bem de quem se tratava, comecei então a lembrar os outros que que lá estiveram comigo e de quem nunca mais tinha ouvido falar. E a lembrar com um misto de revolta, mas paradoxalmente também de nostalgia e saudades esses tempos.

Passados uns tempos ao chegar a casa encontrei um papel onde a minha esposa antes de sair tinha escrito : "Um indivíduo que diz ser teu amigo, Abrantes, telefonou: que te dissesse que o capitão Pires morreu”. Mas não dizia mais nada. Respirei fundo, mas foi um respirar de tristeza, sentindo-me culpado de nunca ter sequer tentado saber dele nem de mais ninguém. Agora, pensei eu, já é tarde demais para o reencontrar.

Não sabia de ninguém mais nem de que havia encontros de antigos camaradas; vim a saber mais tarde que os havia, que tentaram mas nunca me conseguiram contactar, talvez em resultado das minhas muitas mudanças de Pilatos para Herodes. Mas eu pouco a pouco comecei a interessar-me mais, procurando algum livro, jornal ou revista que falasse da Guiné; mas sem sucesso.

Cheguei a encontrar alguns cabo-verdianos, em New Jersey, mas não guineenses. Mas se tenho um defeito grande (, alguns dizem que é virtude,) é o de ser teimoso. Ano após ano eu vasculhava livrarias, bibliotecas e nada… Eu queria saber do que se passou depois que de lá saí. E um dia de férias em Lisboa, na véspera de voltar aos Estados Unidos, na feira do livro na estação da Portela, deparei com o primeiro livro do Beja Santos "Diário da Guiné: 1968-1968, Na Terra dos Soncó.” Foi como se me tivessem dado um murro do qual acordei estremunhado. E cedo eu estava à procura do Zagalo, e logo tomei conhecimento deste blogue e comecei uma nova vida contactando os meus colegas que tinham estado comigo na Guiné.

Lembro que, quando estava na Guiné, o comandante da minha companhia CCaç 1439, Capitão Amândio Manuel Pires, queria a toda a força que alguém escrevesse um “diário” da CCaç 1439. Parece que ninguém estava pelos ajustes, e cada um tentou livrar-se, empurrando o fardo para outro. No meu caso, quando ele me abordou eu disse-lhe da minha quase aversão a tudo o que era coisa de escritas. E sugeri que ele falasse com o Alferes Freitas, que era mais dotado e parecia não ter aversões a escrever. Mas parece que ninguém mesmo se deu a esse cuidado.

Há meses atrás lembrei-me de tentar fazer/escrever uma história desta Companhia, pequena e resumida que fosse. Cedo me apercebi da minha ilusão. Felizmente há algumas fontes escritas já, como são os casos do Beja Santos, Henrique Matos e outros, mas não o suficiente para um trabalho compreensivo e abrangente a que se possa chamar história. Vários contactos que tenho feito vieram-me confirmar isso, pois o tempo leva a que na maioria dos casos venham razões e desculpas como: “a minha memória já não me ajuda’; “já não me lembro bem’ e “não me recordo dos pormenores”.

Recebi, porém uma boa ajuda com um caderno (20 páginas) intitulado "Resumo descritivo dos factos e feitos mais importantes da Companhia de Caçadores 1439” que o alferes Freitas  [, natural do Funchal e a viver lá.] me mandou. A princípio pensei que tinha sido ele que o tinha escrito. Mas há pouco esclareceu-me que o autor não é ele,  mas sim é da autoria do Capitão Pires (que, a avaliar pelo texto, o deve ter ditado a alguém) e de que conseguiu dele uma cópia para si.

É sem dúvida um documento de valor, até porque pelo que sei (ou não sei!) é o único "documento oficial” abrangente sobre o assunto. Mas se eu não tivesse conhecido bem e estar certo da muita honestidade e idoneidade do Cap Pires (, o único defeito dele era não saber e não admitir perder no jogo de dados e de cartas; mas mesmo aí, salvo o perder o controle do seu temperamento, levantando-se repentinamente da mesa para nunca ter de admitir ter perdido, nunca o vi agir desonestamente), eu diria que era impossível este documento ter sido escrito por ele.

Acredito que documento deve ter sido escrito bem depois de ter voltado e daí alguns bem evidentes lapsos e lacunas. Mas como o próprio título diz e bem: ele é um “resumo”; e por vezes é tão resumido que não chega a mostrar a importância que alguns dos acontecimentos mencionados tiveram.

São vários os casos em que o relato de operações se resume a isto:

(...) "Um grupo de combate da CCaç 1439 participou na Op [...]" (um ou mais pelotões? a palavra “participou” parece indicar que haviam outros grupos: era um oficial da CCaç 1439 que comandava ou era um oficial de outro grupo que comandava essa operação? qual/quem era esse grupo e que efectivo?, operação essas que consistiu numa "acção ofensiva na mata":

(...) "As NT detectaram um acampamento IN o qual se encontrava abandonado. Foram destruídas as casas de mato e culturas. No regresso as NT foram emboscadas duas vezes " (; eram uns simples tiros ou flagelações só para chatear, ou eram “emboscadas” mesmo?).... "não tendo sofrido qualquer baixa."


Por outro lado - e ainda bem que o aviso de limitação é feito - , este documento diz respeito (apenas) aos factos e feitos "mais importantes”.

Na verdade houve casos de acontecimentos que nem estão nele mencionados, mas que pelas circunstâncias em que sucederam vieram a ser mais importantes do que muitos que aqui estão mencionados. E pelo que posso eu mesmo testemunhar e que confirmei em conversas com outros meus colegas que os mesmos acontecimentos viveram, alguns dos relatos feitos são claramente descritos duma maneira muito subjectiva, umas vezes beneficiando, outras diminuindo ou de alguma maneira alterando o seu verdadeiro valor.

De novo quero deixar bem claro que “ponho as mãos no fogo” pela idoneidade do Cap Pires; se foi ele mesmo que escreveu este documento sei bem que estes lapsos na descrição de alguns acontecimentos não foram de maneira nenhuma propositados, nem as descrições foram manipuladas consciente e propositadamente. Ou se foram manipulados, não foi pelo Capitão Pires, mas por outros que o manusearam a seguir, como parece ter sido o caso mais do que uma vez. 

Dito isto o que segue pode e deve ser considerado apenas um “contributo” para a história da CCaç 1439 e não como uma "história da Companhia CCAÇ 1439". Embora eu siga cronologicamente e me baseie neste relatório, copiando grandes partes, sem falhar qualquer dia que nele vem mencionado, este é um contributo e relatório muito pessoal em que, sempre e à medida que a minha memória me ajuda eu relato com toda a honestidade os factos como os vivi, sem querer aumentar ou diminuir nada nem ninguém. E não deixarei de mencionar os casos em que eu e o que fiz deixou muito a desejar. E faço-o porque uma enumeração e relato cronológico simples não chega. Cada ataque, cada mina, cada emboscada ou acidente têm a sua história própria que os distingue de todos dos outros. E é isso que vou tentar fazer; e, se me não é possível apresentar a descrição da realidade absoluta, vou relatar pelo menos o que sobre ela eu sei e o que vivi.


A maior parte das fotos foram tiradas por mim, mas há fotos cuja origem pode suceder não ser minha. Lembro, por exemplo, que depois do ataque a Missirá eu e o furriel Viegas,  do Pelotão de Caçadores Nativos 54, e que tem muitas fotos no blogue, estávamos por vezes juntos a fazer as mesmas fotos ao mesmo tempo. E quando estivemos juntos há anos atrás depois do nosso reencontro de quarenta e picos anos, manuseamos, trocamos e partilhamos memos e fotos.

E isso sucedeu com outros,  e mais do que uma vez. É possível que em resultado disso hajam confusões da sua origem ou autoria. Mas qualquer discrepância ou engano não será nunca resultado de má intenção da minha parte. Sempre tenho oferecido e consentido que todas as fotos da minha autoria sejam reproduzidas em qualquer altura, sem necessidade de me mencionarem sequer como o seu autor.

Reitero que este meu trabalho é um testemunho de âmbito muito limitado pois que, embora intencionado como um contributo para a historia da CCaç 1439, é em grande parte um relato muito pessoal e por isso mesmo também subjectivo e parcial, feito/escrito passados já mais de 50 anos. 

 Para uma melhor compreensão não posso deixar de deixar de ir ao princípio onde no meu caso tudo começou, pois não sendo isto uma autobiografia, sem dúvida que toda a minha experiência militar foi marcada e influenciada por estes antecedentes que foram o ingresso e logo a preparação para o serviço militar.

(Continua)
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Nota do editor:

(*) A CCaç 1439 tem mais de 7 de dezenas de referências no nosso blogue. O João Crisóstomo, por sua vez, entrou para a Tabanca Grande, em 26 de julho de 2010, e tem mais de 130 referências. É o nº 432:

Vd. poste de 26 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6786: Tabanca Grande (233): João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/66), e grande português da diáspora

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21947: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (11): "O Mendes" e "A independência"


1. E assim damos por finda a publicação desta série de memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74) enviadas ao nosso Blogue no dia 29 de Janeiro de 2021:


30 - O MENDES

Era o furriel miliciano enfermeiro da nossa Companhia. Mais do que um camarada, mais do que um camarigo (camarada e amigo) era um camarigueiro (camarada, amigo e companheiro).

A sua ambição civil era estudar medicina mas, circunstâncias da vida, obrigaram-no a adiar o sonho que, todavia, manteve sempre.

Tirada a especialidade foi colocado em Tomar e veio connosco para a Guiné.

A sua competência, calma e humanismo no tratamento dos doentes, civis ou militares, era excecional e, ser tratado pelo Mendes, era cura rápida e certa.

Homem afável, falava baixo e sempre com muita seriedade, sem nunca perder a calma, em particular com os seus subordinados a quem tratava como iguais e que muito o respeitavam.

Já na vida civil, encontrámo-nos casualmente duas ou três vezes e falava-me sempre na possibilidade de se organizar um convívio para rever a rapaziada de que ele tinha saudades. Levou esse convívio 30 longos anos a acontecer e, entretanto, o Mendes tinha-nos deixado.

Lá, onde estiver, saberá com certeza a estima e gratidão que todos nós lhe temos.


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31 - A INDEPENDÊNCIA

Após o 25 de abril, foram estabelecidos acordos com o PAIGC para a transferência dos poderes territoriais.

Em Bissau, antes da independência, só pontualmente se via pessoal do PAIGC, nomeadamente à noite no edifício dos CTT.

As coisas foram sendo feitas gradualmente e com grande descrição até à independência da Guiné-Bissau que, creio, se processou a 10 de setembro de 1974.

Regressei à Metrópole, evacuado, no dia 5 de setembro de 1974 e a minha companhia no dia seguinte.

Nos meses que passei em Bissau, depois do 25 de abril e antes do regresso, assisti a várias manifestações da população, a propósito de tudo e de mais alguma coisa, que normalmente decorriam sob um manto de preocupação ou tristeza o que colidia com o que devia ser a alegria de um povo acabado de ser libertado.

As pessoas acomodavam-se de pé, em camionetas de caixa aberta, deslocando-se em marcha lenta, e recitavam uma ladainha qualquer que não entendia, estando ausente aquela alegria espontânea própria do povo africano, mais parecendo um velório.

Na minha opinião, este comportamento indiciava a consciência de que o caminho da liberdade tinha muitos perigos e incertezas, em particular para aqueles que viviam nas cidades e que de alguma forma beneficiavam com a estadia dos militares portugueses na Guiné, assegurando com alguma facilidade a sua subsistência e a da família, objetivo prioritário em qualquer sociedade.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21937: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (10): "A evacuação" e "A vida no Hospital Militar de Bissau"

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa

1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos hoje a última estória desta série enviada a 7 de Fevereiro de 2021 ao nosso Blogue.


8 - O VALOR DA SERINGA

Faltava sempre alguma coisa, na hora da rendição, fossem os atacadores de umas botas, o testo de uma panela, uma cavilha da G3, ou até a culatra de um obus. Quando havia um ataque a um aquartelamento era relativamente fácil, no respetivo auto, incluir a perda de parte de um produto, de um elemento de um qualquer equipamento ou mesmo considerar a sua destruição integral. Na tropa chamava-se a isso o desenrascanço, umas vezes seria uma forma expedita de alguém se livrar da injustiça de pagar por algo de que não tinha sido responsável, mas, nalguns casos não era senão uma vigarice para encobrir furtos.

Quando cheguei a Mampatá tive que acusar a receção de uma série de equipamentos onde se incluía um atrelado sanitário, material para pequenas cirurgias, seringas e outras miudezas. O meu antecessor queria que eu assinasse tudo, quase sem ver e, não sei se propositadamente, deixou tudo para o último dia, o dia de todos as pressas. Fui muito claro e franco:
- Venho avisado para o comportamento costumeiro das rendições, sei que vão faltar algumas pequenas coisas, aliás de pouca monta, como já confirmei, também não sou pessoa para estragar a vida a ninguém, quero por isso que me apresentes uma relação escrita do que falta, só para meu uso pessoal.
Assinei então o auto de receção, confirmando a existência da carga sem qualquer falta, permitindo que o meu camarada regressasse a Lisboa sem problemas. Ele dizia-me que já assim tinha acontecido aquando, dois anos antes, da rendição, entre ele e o seu antecessor.

Nenhum prejuízo resultou da falta daqueles objetos, alguns deles já em desuso, razão pela qual não fazia sentido adotar outra atitude eventualmente mais rígida. Mais tarde, pensava eu, logo se veria a volta a dar ao problema. Os meses foram lentamente passando sem que eu me quisesse sujeitar a pedinchar ao Sargento e ao Capitão da Companhia a colaboração na elaboração de um auto de destruição de forma a que o material em falta fosse abatido à carga. Fui empurrando com a barriga, porque, naquelas circunstâncias, quanto mais tarde melhor, e eu até podia, com o meu dinheiro, comprar o material em falta, quando julgasse oportuno, que não era nenhuma fortuna.

A inesperada chegada do 25 de Abril, quase concomitante com o fim da comissão, veio, num primeiro momento, facilitar-me a vida, porque, julgava eu, que acabada a guerra, já não me teria que submeter à operação da transmissão dos materiais a nova companhia, mas, simplesmente, seria feita a doação de todo o equipamento e medicamentos remanescentes aos representantes do novo governo. Enganara-me, o material seria ainda entregue a uma companhia recém-chegada ao território. De pronto, evitando a sujeição aos trâmites burocráticos da tropa, encarreguei o meu amigo 1.º Cabo Enfermeiro Celso Mendes, de, na sua ida a Bissau para uma consulta, adquirir com o meu dinheiro, o material em falta, livrando-me de qualquer problema, aquando da rendição da nossa companhia ou de fazer a outrem o que não gostaria que a mim me fizessem. Por outras palavras: quando o dinheiro puder resolver não devemos, por causa dele, arranjar problemas de consciência ou outros.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21937: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (10): "A evacuação" e "A vida no Hospital Militar de Bissau"

HM 241 de Bissau


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


28 - A EVACUAÇÃO

A situação vivida em Canquelifá era prenúncio de doenças e tocou-me a mim mais uma dose de paludismo e, na recuperação, uma apendicite aguda com peritonite brava que me ia deixando lá ficar os ossos.

Após uma noite de vomitório constante o furriel enfermeiro, o nosso amigo Mendes, pelas seis da manhã do dia 20 de Abril de 1974, pediu a minha evacuação para o Hospital Militar de Bissau (HMB). O heli chegou pelas doze horas tendo saído quase de imediato em direção a Nova Lamego (Gabu) onde fui visto pelo médico que não concordou com o diagnóstico. Após uma longa espera pois um paraquedista tinha aproveitado para dar um salto, lá me levaram numa Berliet para a pista e, para esperar à sombra, puseram-me em cima da maca debaixo da traseira do veículo. Quando o heli baixou apanhei tanta poeira e terra que, semanas depois, hospitalizado, ainda possuía vestígios da poeirada.

Mas a coisa não ficou por aí, ainda piorou, pois o heli foi a Bambadinca buscar correio e a tripulação aproveitou para se refrescar, enquanto eu, ardendo em febre, ia chupando água com compressas molhadas.

Cheguei a Bissalanca já era noite e fui de ambulância para o HMB. Como era hora de jantar o atendimento demorou algum tempo. Por fim lá fui operado mas a recuperação correu mal.

HMB: lendo o correio

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29 - A VIDA NO HOSPITAL MILITAR DE BISSAU

A vida no Hospital Militar de Bissau [, HM 241,] era, em muitos casos, perfeitamente surrealista para quem estivesse atento.

Entrei no HMB a 20 de abril e, ainda nos cuidados intensivos, onde não me apercebia do decorrer do tempo, tomei conhecimento do 25 de abril que, a princípio, ninguém ali sabia o que era.

Já em recuperação, fui para uma enfermaria com outros camaradas onde, mesmo em mau estado, passei momentos inesquecíveis, tivesse eu arte para os contar. Mas, mesmo assim, atrevo-me a dar um lamiré.

O comer era basicamente arroz (bianda) pelo que me socorria de sandes, leite e sumos que o Martinho, o auxiliar da enfermaria, me ia comprar à cantina. Frequentemente o almoço não me chegava pelo que interpelava o Martinho sobre o assunto o qual me dava uma qualquer desculpa esfarrapada do género: como eu estava acamado e o almoço era servido na varanda da enfermaria decerto alguém o tinha comido. Até que, um dia, lá me consegui levantar e, de facto, o Martinho, que era desarranchado, batia-se prazenteiramente com o meu almoço.

Havia uma auxiliar, bajuda, muito bonita e elegante, trajando minissaia, que nos fazia a cama. Era certo e sabido que cada cama que a Carol fazia a visão que transmitia revigorava os doentes, principalmente os vizinhos do lado, um dos quais se debruçou tanto que caiu no chão da enfermaria.

O Lemos, furriel de outra Companhia do meu Batalhão, baixou ao HMB para a ala psiquiátrica. Nunca percebi se foi por doença ou estratagema mas de facto cada vez que me visitava parecia-me mais apanhado. Entretanto, teve alta, e, no mesmo dia, na Praça do Império, houve zaragata que meteu arma branca e o Lemos que nada tinha a ver com o assunto foi esfaqueado tendo de novo baixado ao HMB, agora para outro serviço. Passados dias foi visitar-me e transmitiu-me a sua grande preocupação com a cicatrização da costura pelo que perguntava frequentemente a minha opinião sobre o assunto, além de passar a vida ao espelho para aquilatar da evolução daquela marca corporal.

Um oficial superior foi operado às amígdalas no HMB. Porém, o quarto reservado para as maiores patentes estava ocupado por um militar de patente mais alta pelo que lhe terá sido proposto passar um curto período pós-operatório num quarto de oficiais de menor patente. Creio que recusou e foi recuperar para onde vivia. De noite, a situação ter-se-á complicado e, sem assistência adequada, terá falecido. Conto como me foi transmitido pois, embora estivesse internado no mesmo hospital e tivesse conhecimento geral da situação, não testemunhei os pormenores.

Havia um soldado que estava internado por ter apanhado com estilhaços de granada que, embora pequenos, eram muitos e lhe apanhavam grande parte do corpo, incluindo a cara. Porém, o seu estado não exigia que lhe fossem ministradas injecções, que normalmente eram fortíssimas e os efeitos da toma algo dolorosos o que fazia com que o pessoal procurasse fugir na hora da injecção. Ora, o rapaz acordava cedo e deambulava pelas instalações acompanhando o enfermeiro para observar o seu desempenho na aplicação dos medicamentos. Mas, não só fazia isso como tirava prazer em controlar os camaradas que procuravam fugir ao acto denunciando ao enfermeiro a sua localização.

As Senhoras do Movimento Nacional Feminino visitavam semanalmente os doentes hospitalizados no HMB. Levavam consigo sempre uma palavra amiga e cigarros ou leite, ofertando a cada um de nós uma coisa ou outra. A maioria dos doentes metropolitanos optava pelos cigarros (as enfermarias eram também salas de fumo), em contraste com alguns doentes africanos que agarravam ambas as coisas não percebendo, ou fingindo não perceber, que tinham que optar por uma e, perante isto, as Senhoras, lá transigiam desfalcando as suas reservas.

As visitas dos familiares aos doentes incidiam naturalmente sobre os de origem africana. Em muitos casos, o doente dormitava durante a visita e a família alimentava-se com o que o militar tinha disponível, bebiam o leite ou o sumo, comiam as bolachas, fumavam os cigarros e, a finalizar, ainda levavam algum dinheiro que este tivesse na gaveta. Uma hora depois iam-se embora sem que, nalguns casos, tivessem sequer falado com o doente.

Pouco passava de meados de maio de 1974 entrou no HMB um soldado do grupo “Os Vingadores”, liderado por Marcelino da Mata, hospitalizado na sequência de um acidente em Mansoa quando uma granada caíu de uma bolsa de transporte e explodiu. Esteve alguns dias internado e, diariamente, passava pela enfermaria um 1.º sargento metropolitano que, creio, dava apoio logístico ao grupo, abastecendo o doente de produtos alimentares e de higiene de acordo com os pedidos que este fazia.

Durante a estadia no HMB tive oportunidade de assistir a situações curiosas mas, para mim, o cúmulo do non-sense era uma espécie de praxe que alguns militares amputados faziam a doentes periquitos no Hospital.

Se podiam andar, todos os doentes gostavam de visitar as enfermarias procurando alguém conhecido. Nos locais onde havia pessoal amputado acontecia, por vezes, o doente nestas condições solicitar aos camaradas que por ali apareciam o favor de lhe coçar um dos membros inferiores, naturalmente o que tinha perdido, embaraçando deveras a vítima da brincadeira.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21916: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (9): "O relógio do Matos", "Há homens que metem medo" e "Canquelifá"

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

Nhacobá, entrada norte
© Foto: Vasco da Gama


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sétima.


7 - O MILAGRE DE NHACOBÁ

Naquele dia os medos não me deixavam dormir e as piores antevisões do que poderia acontecer, nas horas pesadas que se aproximavam inexoráveis, sucediam-se na minha corrente de pensamento, não deixando espaço para admitir um só cenário otimista que fosse. Se no primeiro dia da tomada daquela tabanca tinham morrido quatro camaradas, quem acreditaria que não morressem dois ou três mais, no dia seguinte. E podia até ser eu! Porque não? Ou então podia calcar uma mina, como tinha visto acontecer ao Albuquerque, ir pelos ares e voltar ao chão, já sem uma perna, sob uma espessa nuvem de pó. Depois viria o helicóptero para me levar para o Hospital Militar. Nesse caso podia até ter mais sorte que o Albuquerque, sobrevivendo sem uma perna, a direita ou a esquerda, tanto fazia. Mas, sem a perna, ainda jovem, a minha namorada gostaria de mim assim? Bem pior, muito pior, era ficar sem as duas pernas ou morrer mesmo. Porque é que me resignei em ir para ali, para o meio do mato de África, lutar numa guerra sem fim? Afinal, não havia ali brancos que precisassem que os defendêssemos das catanadas dos pretos. Aquilo era um verdadeiro suplício de Sísifo, a uma vitória de hoje sucedia amanhã uma derrota, numa interminável caminhada sangrenta, iniciada, naquela pequena colónia, em 1963, e sem fim à vista.

Tinha-me sentado, já a noite tinha feito adormecer as mulheres e as crianças daquela morança, numa espreguiçadeira igual a muitas que havia por toda a tabanca, nalguns casos mais do que uma por casa. Acordado estava só o More, o homem da casa, soldado do pelotão da milícia, combatente desde a primeira hora, do lado de Portugal. Era assim que ele gostava de dizer:
- Eu sou português, eu não quero governo de PAIGC, eu gosto de General Spínola.
Ele escutava-me pacientemente, como se não tivesse que se levantar antes das seis horas do dia seguinte. Não era um soldado qualquer, tinha sido condecorado pelo Governo de Portugal com uma Cruz de Guerra e era talvez o melhor combatente de Mampatá. Baixo e magro, aliava a sua destreza felina à experiência adquirida desde os primeiros recontros da nossa tropa com o inimigo Eu sabia que, na madrugada seguinte, ambos sairíamos a caminho da tabanca de Nhacobá, integrados numa força equivalente a duas companhias, que tinha sido tomada , no dia anterior, pela nosso exército, onde permaneceríamos por um dia e meio, até sermos substituídos por outras forças. Quem melhor do que ele me poderia fortalecer o ânimo, naquelas horas que precederam a arriscada operação. Dizia-me, na sua islâmica convicção, que tudo iria correr bem, porque eles tinham fugido deixando mortos no terreno e assim demorariam algum tempo até se recomporem da derrota.. Que me fosse deitar no meu quarto, porque no outro dia nem um tiro seria preciso dar.
Posição relativa de Nhacobá-Cumbijã.
Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné

E lá fui apalpando a escuridão por entre carreiros que me levaram até à solidão da minha cela que ficava justamente ao lado da enfermaria. Refrescado o corpo por um minuto debaixo do chuveiro deixei-me cair no catre onde já dormira cerca de trezentas longas noites. Mas, perturbado por pensamentos cheios de mutilações e morte, só por intermitentes momentos tinha passado pelo sono, durante aquela madrugada, quando ouvi, em frente à janela do meu quarto, o barulho que faziam os meus camaradas a levantar munições, granadas e algum armamento especial para aquele dia. Estava na hora de fazer a minha parte. Não podia dar sinais de fraqueza, por isso aprovisionei a minha bolsa de enfermagem, de tudo o que poderia ser precioso em caso de ferimentos graves, onde não poderiam faltar garrotes, soro fisiológico, ampolas hemostáticas, morfina, pensos e os mais diversos comprimidos. Carregaria ainda a minha G3, que um rapazinho da tabanca tinha lubrificado no dia anterior, as cartucheiras e uma caixa com a ração de combate. E aí vou, de medo disfarçado, ao encontro dos meus camaradas. Olhava-os como se fizessem parte da minha família, e eram mesmo, porque desde que o avião nos despejara, em Bissau, largos meses antes, estávamos ali entregues à nossa sorte, no meio do mato, sem que os nossos pais, irmãos, avós, esposas e namoradas pudessem imaginar as agruras dos nossos longos dias. Em camiões militares depressa percorremos aqueles quinze quilómetros, pela estrada recentemente concluída, até à tabanca nova de Cumbidjã, onde dois ou três meses antes se tinha instalado uma nova companhia. Empreendemos então, apeados, o trajeto até Nhacobá, pelo itinerário já desbravado pelas máquinas da engenharia, onde nos esperavam os camaradas de outras companhias que íamos render. Ante os nossos olhos havia um conjunto de casas de planta quadrangular cobertas de capim, abandonadas pelos seus moradores de etnia balanta. Era uma comunidade de gente dedicada à cultura do arroz de bolanha, ao contrário dos fulas, nossos amigos de Mampatá, que cultivavam o arroz de sequeiro. Se o ambiente era, aparentemente, seguro, para tanto contribuía a vastidão de mata capinada e terraplanada, permitindo abranger um extenso horizonte visual. O perigo, por certo, não viria enquanto a noite não chegasse e nos impedisse de vermos o inimigo, porque ele, escondido lá longe, aguardaria, pacientemente, pelo momento propício, como o leão espera pela gazela.

Segundo o plano previamente estabelecido, cada grupo de combate ocupou o seu lugar, no interior de valas, constituindo-se numa formação de quadrado defensivo, ficando no centro o espaldão das peças de artilharia e um abrigo subterrâneo onde o Capitão Marcelino, o More, o Pinheiro das transmissões e eu próprio iríamos passar aquela noite em alerta permanente. O More estava ali como guarda-costas e conselheiro do Capitão. Quem como ele conhecedor daquelas matas desde pequeno, habituado a distinguir os ruídos dos animais da mata, poderia melhor perscrutar os sons da selva e interpreta-los? Por isso estava ali, ao nosso lado e transmitia-nos confiança. Por momentos eu dormitava escudado pelo estado de vigília permanente do More, mas quando me tirava do sono ele dizia-me, em crioulo, quase paternalmente :
- Durme, perigo não tem gora.
As castanhas de cola, que continuamente mascava, mantinham-no arrebitado, como a todos convinha. Vi-o rezar, dentro do abrigo, balbuciando em palavras árabes, orações que sabia de cor. Não pediria a Deus, em absoluto, que o salvasse da morte, antes lhe rogaria que, caso morresse, o acolhesse no paraíso celeste. Pedi eu, igualmente, ao mesmo Deus, que me salvasse da morte, mas já não me importei em pedir-Lhe o paraíso celeste, caso não me quisesse ou pudesse livrar da morte. Na verdade o único paraíso que eu queria era o que eu conhecia bem, a minha família e aquela que eu desejava ardentemente constituir, nada de paraísos metafísicos. Ele era muçulmano, mas ambos sabíamos que o Deus de Moisés era-nos comum e que só Jesus Cristo e Maomé nos separaram nos catecismos que nos formataram na infância.

De repente, um tiro, dois, muitos, logo seguidos de rajadas, interromperam o sono de uns e as evocações e invocações de outros. O ataque tinha começado. Os clarões dos rebentamentos de granadas faziam da noite dia e ouvia-se gritaria indecifrável no meio da trovoada das armas. O Pinheiro, da Vila das Aves, deixou o rádio e saiu do abrigo, indo instalar-se a fazer fogo num sector que lhe pareceu mais desprotegido, sendo secundado pelo More.

No fim, caladas as armas, só por milagre não teríamos um ou mais mortos, e, por certo, muitos feridos, pensava eu. Na verdade só arranhões! Um milagre!

O More, esse fidelíssimo e intrépido soldado do exército português, admirado e protegido por nós, foi fuzilado pelo PAIGC, passado pouco mais de um ano, por ter apostado no lado errado – aquele que lhe parecia o certo.

A razão é sempre a dos vencedores, ávidos de vingança, ciosos, das suas conquistas e dos seus despojos, os do lado certo.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados

HM 241 de Bissau

1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sexta.


6 - O SOLDADO DOS PÉS INCHADOS

O rapaz apareceu-me tão cedo, na enfermaria, que me tirou da cama. Aquele assunto era mais do que urgente para ter que esperar pela hora oficial da abertura dos serviços. Dentro de poucos minutos ele tinha que estar na formatura, incorporado no seu grupo de combate, ali junto à árvore grande dos passarinhos, bem no centro da tabanca, fardado, com a arma, cartucheiras, cantil e ração de combate. A saída para o mato incutia-lhe algum receio, porque tinha já ouvido o alferes, no dia anterior, à noite, avisar que iriam montar uma emboscada num carreiro, onde era altamente provável a interceção de um grupo inimigo.
Há dias assim, em que mesmo o combatente mais afoito, nas suas elucubrações, tem uma premonição que o adverte para uma desgraça fatal. E foi isso mesmo que o atormentou a noite toda. E como havia ele de se livrar do mato, pelo menos naquele dia que lhe parecia poder ser o último dos seus verdes vinte anos? Tinha que engendrar um plano. E quando acordei, atordoado, com aquelas pancadas repetidas na janela, ao mesmo tempo que chamava por mim como se estivesse com muitas dores, foi só o tempo de calçar os chinelos e abrir-lhe a porta.
- Então, que se passa Sousa, perguntei-lhe?
- Olhe para os meus pés. Acha que eu estou em condições para sair para o mato, assim, com os pés inchados?

O problema parecia-me grave, até porque ele não me ajudava mesmo nada a diagnosticar o mal. Na verdade isso era o que menos lhe interessava. Que não estava em condições de cumprir aquela missão era a única certeza que eu tinha. E era isso, apenas, que interessava ao Sousa. Apressei-me a comunicar ao Alferes que aquele homem não estava operacional, partindo o grupo para a operação, sem ele.

Não me achando capaz de debelar aquele mal, nem lhe conhecendo a origem, encaminhei-o para o médico, colocado na sede do batalhão que, por sua vez, na ausência de meios complementares de diagnóstico o fez evacuar para o Hospital Militar de Bissau. Ao fim de alguns dias regressou o Sousa a Mampatá, já sem inchaço.

Só há meia dúzia de anos o Sousa me contou como me enganou, assim como ao Alferes médico. Naquela noite ele tinha aplicado uma espécie de garrote em cada perna, que desapertou imediatamente antes de me bater à janela, “aflito”.

Não fiquei agastado com o Sousa, nem tinha que ficar. Afinal, na operação em que ele não participou correu tudo bem, mas podia ter corrido mal.

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21916: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (9): "O relógio do Matos", "Há homens que metem medo" e "Canquelifá"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


25 - O RELÓGIO DO MATOS

Num qualquer domingo de janeiro de 1974, fomos a Bissau vários camaradas em cujo grupo se incluía o Matos, regressado na véspera da Metrópole, onde tinha gozado férias.

Perto da Amura, quando íamos descer a escada de acesso à esplanada do Pelicano, que dava para o cais, estava um guineense vivaço a querer vender um relógio vistoso a preço de combate.

Ninguém se mostrou interessado no artigo, com exceção do Matos, que, por acaso, trazia no pulso um relógio que lhe fora oferecido dias antes, durante as férias, mas que não era tão vistoso. Feito o negócio que, para além de dinheiro vivo, incluiu a transferência do relógio do Matos para o vendedor, descemos a escada para a esplanada a fim de tomar um refresco adequado ao final de tarde que se aproximava.

Sentados à mesa há poucos minutos, alguém repara que os ponteiros do relógio acabado de adquirir não tinham movimento e alertou o Matos. Este, subiu a escada num ápice à procura do vendedor para desfazer o negócio por incumprimento de uma das partes. Nunca mais o viu.

Também aqui a necessidade aguçou o engenho.

Bissau: Esplanada do Pelicano (estou de costas) e, da esquerda para a direita: o Machado da 3.ª CCAÇ, o Cibrão, o Carmo, o Caetano e o Matos (já falecido)


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26 - HÁ HOMENS QUE METEM MEDO

Em janeiro de 1974, tendo já passado por Bolama e pelo Setor de Aldeia Formosa, ter feito uma dezena de colunas a Farim e uma a Guidaje, sem ter tido confrontos e baixas, o Cardoso, 1.º Cabo, resolveu pedir para o PIFAS a passagem de um disco dedicado à Companhia cujo cognome seria, no seu entender, “Há homens que metem medo”, verso retirado de uma cantiga interpretada por um conjunto musical na altura com alguma popularidade na Metrópole e cuja passagem ele solicitava.

Continuamos a fazer colunas a Farim sem qualquer problema. Porém, sempre que éramos substituídos, e isso aconteceu por duas vezes, a coluna tinha problemas.

No final de março de 1974 fomos para Canquelifá substituir a 3.ª Companhia do nosso Batalhão, que por lá passou um mau bocado, e o grande problema que enfrentámos foi sobreviver naquele buraco onde faltava quase tudo.

Perante isto, o tal cognome arranjado pelo Cardoso pegou entre o pessoal e até parecia que era ajustado porque nos 14 meses passados na Guiné apenas tivemos dois ou três militares evacuados por doença.

O facto de termos comandante e graduados muito atentos e rigorosos na forma cuidada como as tropas se deviam movimentar no terreno, ajudou certamente a evitar alguns conflitos. De resto, foi pura sorte, ou estivemos sempre à hora certa no local certo.


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Canquelifá - © Foto de Adão Cruz

27 - CANQUELIFÁ

No final de março de 1974, fomos para Canquelifá substituir a 3.ª Companhia do nosso Batalhão, que tinha lá passado um mau bocado onde, creio, ficamos em sobreposição com a CCAÇ 3545 que ainda passou um bocado pior.

Lá fomos de LDG até ao Xime e, depois, em coluna, passando por Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche e Canquelifá.

Entre Piche e Canquelifá a coluna parou várias vezes para se proceder à desativação de minas anticarro. O pessoal deslocava-se apeado, fora dos trilhos habituais. Mesmo assim, um dos paraquedistas que fazia segurança, a quem faltavam poucos dias para terminar a comissão, acionou uma mina anticarro e ficou quase desfeito.

O cheiro dos legumes frescos em decomposição chegava ao aquartelamento muito antes da coluna.

Lá chegámos ao destino. Um buraco com condições indescritíveis ocupado por jovens cujo recente sofrimento lhes estava estampado nos rostos e que, apesar disso, ainda conseguiam dar alguma alegria tocando e cantando, nomeadamente uma adaptação do fado do estudante às vicissitudes passadas naquela terra.

Os vários poços de água ficaram incapazes pois devido às constantes flagelações continham no seu interior animais domésticos em decomposição. A captação de água ficava a algumas centenas de metros e exigia forte segurança e, mesmo assim, a água tinha que ser filtrada. Ora, não havia filtros pelo que a purificação da água era feita num latão com uma torneirita no fundo e, de baixo para cima, com diversas camadas de pedras, areia e cinza. Por este processo conseguiam-se apenas poucos litros de água por hora o que em situação de carência de outras bebidas, como cerveja e leite, que era frequente, tornava o ato de matar a sede muito complicado.

Ao nível da alimentação as coisas também estavam más por escassez de reses e as que havia tinham tal magreza que era difícil tirar delas mais do que os ossos. Aliás, as vacas que por ali andavam mais pareciam mortas que vivas.

O ambiente naquele espaço era doentio e assustador. Vivíamos em abrigos onde mal nos podíamos mexer.

Fui encarregado de receber a cantina que a CCAÇ 3545 explorava e, suprema ironia, do seu conteúdo constavam três garrafas de espumante “Fita Azul” que ainda há pouco tempo vi à venda num supermercado.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quinta.


5 - DORMIR COM O INIMIGO

Conhecia-os bem, porque passavam, de vez em quando, pelo nosso aquartelamento de Mampatá, a caminho do mato, sempre que as operações decorriam na área do sector atribuído à nossa companhia. A sua companhia era de intervenção, o que significava que não tinha apenas uma área fixa à sua responsabilidade operacional, mas intervinham às ordens do comando do batalhão, ora num subsector ora noutro. Era na verdade uma companhia muito prestigiada e com uma atividade operacional muito intensa a Companhia de Caçadores n.º 18, designada por nós a CCaç 18, a que aqueles dois furriéis pertenciam.

A maioria dos seus militares era natural da Guiné, e só a minoria composta pelo capitão, quatro alferes, 1.º sargento, alguns furriéis e uns tantos cabos especialistas, eram oriundos da então chamada metrópole portuguesa. Mas estes dois furriéis que viajavam comigo num batelão de mercadorias, em pleno rio Grande de Buba, eram guineenses de pele bem escura. E se nos conhecíamos de Mampatá e até de encontros fortuitos em Aldeia Formosa, durante aquelas longas horas entre Buba e Bissau, com escala na ilha de Bolama, falámos de tudo, mas especialmente da guerra e das previsões que dela faziam aqueles dois meus camaradas de armas. Sim parecia-me que entre nós os três havia muito em comum, embora não deixasse de considerar que eles estavam no seu solo e no seio da sua cultura.

Ambos eram manjacos, um dos grupos étnicos não islamizados, combatentes do exército português, tal como eu. Os três iríamos desfrutar de um mês de férias, eu em Medas-Gondomar, eles em Bissau. Pelo que tenho presente nenhuma reserva mental se interpunha entre o meu pensamento e as ideias que exteriorizava sobre aquele conflito sugador de bens, ávido de sacrifícios e predador de vidas. Parecia-me, pelo lado de ambos, algum desconforto na impossibilidade de me dizerem tudo o que lhes ia na alma. Sentir-se-iam eles de consciência absolutamente tranquila, cientes de que lutavam dentro do seu território contra, pelo menos, uma parte do seu próprio povo? Ou criam naquela ideia, utópica para uns, realizável para outros, de uma Guiné integrada num espaço pluricontinental e pluricultural, beneficiando da proteção de uma metrópole europeia capaz de assegurar a formação de quadros técnicos e apoio na construção de infraestruturas, num território delas tão carente? Mas como poderia Portugal, então sob um regime de ditadura, garantir a uma ou a todas as suas parcelas dispersas pelas mais diversas geografias, um governo autónomo resultante de uma escolha democrática?

Um era o Furriel Baticã, do outro já se me varreu o nome da memória, mas ambos me pareciam apreensivos quanto ao seu futuro, vestindo uma roupagem que não lhes assentava na perfeição. Mesmo assim, no decurso daquela viagem até Bissau, muito aprendi da sociologia da Guiné, dos usos e costumes, dos dialetos, do comércio esclavagista, do fluxo demográfico da Guiné para Cabo Verde e, posteriormente, da migração de cabo-verdianos para a Guiné.

Desembarcados em Bissau, combinámos beber umas cervejas no Café Bento, logo ali à direita, no início da avenida mais importante da capital guineense, onde daríamos os últimos retoques à conversa e nos despediríamos. E foi assim, na despedida, que os dois camaradas da CCaç 18 me convidaram para passar, na casa que tinham na cidade, os dois ou três dias que teria que esperar pelo meu embarque para o Porto, via Lisboa.
A casa era modesta, para os padrões europeus, mas boa no contexto da Guiné. Num amplo quarto estavam dispostas meia dúzia de camas de ferro ladeadas por uma mesinha de cabeceira. Tudo muito sóbrio num chão de cimento coberto aqui e ali por esteiras de confeção artesanal.

Naquela casa entravam e saiam, continuamente, familiares e amigos dos meus anfitriões, aceitando com naturalidade e até simpatia a minha presença. Por certo todos estavam informados de quem eu era. Pela minha parte sentia-me à vontade, mais seguro até do que se estivesse num local onde predominassem militares de pele clara. Bissau começava a ser um local pouco seguro, a que chamávamos a Saigão da Guiné, sobretudo desde o ataque, com foguetões, ao aeroporto.

Mais tarde, depois das férias que correram vertiginosamente na metrópole, e regressado ao mato, reencontrei estes hospitaleiros camaradas guineenses e até ao fim da comissão tive oportunidade de lhes reafirmar a minha gratidão pela forma simpática como me receberam em sua casa onde passei dois ou três agradáveis dias, num bairro onde só se viam pessoas de pele escura.
Alguns anos depois da independência da Guiné, vim a saber, com algum espanto, que o Furriel Baticã, foi integrado no governo do PAIGC, ao contrário de muitos outros guineenses que foram fuzilados por terem integrado as Forças Armada Portuguesas. Posso então dizer que dormi na casa do inimigo.

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"


Guiné > Região do Oio > K3 > 1973 > O José João Domingos: paragem da coluna para Farim

Foto (e legenda): © José João Domingos  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


22 - AS COLUNAS PARA FARIM E GUIDAJE

A partir de outubro passamos a fazer segurança às colunas de Bissau para Farim, às quintas-feiras, com passagem em Nhacra, Mansoa, Cutia, Mansabá e K3, tendo substituído uma companhia independente de açorianos (ou madeirenses) que, já com a comissão cumprida, estava a ser bastante castigada.

Em novembro ou dezembro, uma das colunas estendeu-se a Guidaje. Lá fomos andando, um bocado receosos, porque uns meses antes tinha sido um fim do mundo naquela zona. Até Binta tudo correu bem mas, a partir daí, as coisas complicaram-se porque o comandante do esquadrão das Panhard, com justa prudência, exigia um carro rebenta minas com um rodado semelhante ao daqueles veículos. O rodado da Berliet que desempenhava tal função não cobria o rasto daqueles carros. Vai não vai, anda não anda, e lá foi um Unimog a desempenhar a função.

Pelo caminho, metia respeito observar os sinais dos combates ocorridos em maio de 1973, quando ainda estávamos na Metrópole, com várias viaturas militares consumidas pelo fogo, perto da picada. Mas, enfim, lá chegámos a Guidaje sem contratempos.

Enquanto nos instalavamos fomo-nos apercebendo do estado psicológico de grande desânimo em que se encontravam os camaradas ali colocados, apesar de seis meses passados sobre a ocorrência. Mostraram-nos um dos abrigos onde teriam morrido vários camaradas, as valas onde também morreu gente e, mais impressionante, as campas de algumas das vítimas das flagelações e combates que, creio, repousam hoje nas suas terras de origem, graças ao trabalho de camaradas que não os esqueceram.

Estivemos até tarde à conversa, ouvindo camaradas a contar as situações horríveis por si vividas, contadas de forma dorida, não para impressionar periquitos, antes buscando uma palavra de ânimo e solidariedade de outros que, mais novitos e não tendo passado por situação semelhante, estavam ainda com alguma força psíquica para os animar.

De manhã cedo, o regresso, que tardou porque quem tinha a incumbência de fazer a segurança não estava para isso. Conversa e mais conversa, lá chegaram a um consenso, mas fiquei com a impressão de que segurança não houve, apenas sorte, mais uma vez.



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23 - OS ENGRAXADORES

Nas deslocações a Bissau tinha por hábito frequentar o café do Bento, 5.ª Rep, embora também fosse, por vezes, ao Império e à Ronda.

Mal o cliente se sentava na esplanada apareciam miúdos guineenses a oferecer os seus préstimos, de engraxador de sapatos ou de fornecedor de mancarra.

No caso dos engraxadores, se o cliente estava recetivo, acordava-se o preço, conforme fossem sapatos ou botas o calçado a engraxar. Se o cliente não queria o serviço o garoto mantinha-se perto dos sapatos, normalmente com bastante pó, e, como quem não quer a coisa, ia passando a escova num dos sapatos e insistindo na prestação do serviço que o eventual cliente ia rejeitando. Porém, quando este olhava para os pés verificava que um dos sapatos estava bastante mais limpo que o outro e acabava muitas vezes por contratar a engraxadela.

Um exemplo concreto de que a necessidade aguça o engenho.


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24 - AS OSTRAS DE BISSAU

Instalados no Ilondé, desde outubro de 1973, passamos a usufruir de vez em quando do consumo de ostras em Bissau.

Vários estabelecimentos de Bissau vendiam ostras mas, não sei porquê, frequentava sempre um estabelecimento que ficava no passeio do Pelicano, mais ou menos ao meio da rua, quase em frente ao Mussá, e tinha uma pequena esplanada.

Pedíamos travessas de ostras, que eram enormes, e, munidos de uma pequena faca, lá íamos abrindo as ostras que mergulhávamos no molho de limão bem picante e acompanhávamos com cerveja que, na altura, já era fabricada na Guiné. As cascas eram depositadas numa enorme caixa de cartão.

Mas, para além do petisco, a casa apresentava outra atração consubstanciada no jovem guineense que servia os clientes, de seu nome Joãozinho, que por acaso já tinha estado em Lisboa.

Dava gosto ouvir as suas histórias das quais me lembro de duas.

A primeira: Joãozinho não acreditava que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, tivesse sido feita com intervenção humana, antes tinha brotado espontâneamente do mar e ninguém o convencia do contrário.

A segunda: na sua estada em Lisboa, Joãozinho foi visitar o Jardim de "Orloge", como ele dizia, e, durante a visita aos répteis, saiu disparado (“no goss”) do recinto com medo “dos cobra”.

Perante a amostra é fácil perceber porque nunca mudei de fornecedor de ostras.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"