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sábado, 24 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24428: Os nossos seres, saberes e lazeres (578): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (108): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: visita a Xôxô e à Ponta do Sol, e subida até ao Paúl (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Aproxima-se o termo da viagem, tenho o coração contrito, dou comigo a pensar que Santo Antão merecia uma mais longa permanência, a velha estrada dos tempos coloniais é de uma insofismável beleza, percorrerei a ilha a cerca de metade, há quem me dissesse que visitei o que há de mais surpreendente, que não me esquecesse que há paisagens lunares, acredito que sim, aliás vindo de Porto Novo para a Ribeira Grande cerca de metade da paisagem só ganha realce por termos os penhascos do lado esquerdo e os desfiladeiros sobre o mar no lado esquerdo, mas houve oportunidade de ver o contraste entre o árido e o frondoso entre Corda e Esponjeira. Prometo seguidamente falar do trapiche e do grogue, das visitas destes dois últimos dias, meteram até dragoeiros e passeios no Paúl, aqui comi a melhor cachupa rica da visita, com o mar amistoso pela frente. E depois a viagem de regresso para S. Vicente e a despedida do Mindelo, o mínimo que eu posso dizer é que foram férias inesquecíveis, haja saúde e em tempos vindouros a viagem continuará, o viajante continua à escuta.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (108):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: visita a Xôxô e à Ponta do Sol, e subida até ao Paúl (7)


Mário Beja Santos

Só tarde e a más horas é que descobri umas folhas de apontamentos que precederam à organização desta viagem. Talvez valha a pena fazer aqui um bosquejo do que transcrevi, parecia-me dados de referência para estudar o homem e o lugar:
“Geologicamente, historicamente, culturalmente e até etnográfica e etnologicamente, as ilhas de Cabo Verde voltam as costas ao continente africano. Abismos submarinos de 2 a 3 mil metros as separam da África negra.” – Padre António Brásio, 1962.
“(…) No geral, a opinião que ainda hoje se forma destas ilhas não é nada favorável: terras desarborizadas, agrestes, com muitos montes e vales, assoladas por frequentes secas e fomes, ocupadas por muitos mestiços e pretos, e por alguma gente branca – naturais e imigrantes.” – António Carreira, Cabo Verde, Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata, 1983.

Deu-me também para tentar perceber em que se baseia o potencial literário do país, para ser honesto lera há dezenas de anos um livro com assunto passado em Santo Antão que muito me impressionara, "Os Flagelados do Vento Leste", de Manuel Lopes, 1960. Os estudiosos consideram que a literatura cabo-verdiana se pode dividir em dois períodos: antes e depois da Claridade, o suplemento cultural que teria revolucionado a mentalidade destes insulares. Cabo Verde teve o seu Liceu das Humanidades em 1848, depois tornado em Liceu Seminário de S. Vicente, os jornais sucederam-se uns aos outros, na segunda metade do século XIX havia só na Praia 13 associações recreativas e culturais; fora do espaço ilhéu havia manifestações jornalísticas, caso do semanário "A Alvorada", em New Bradford (EUA), o seu diretor, Eugénio Tavares não só fazia críticas à política norte-americana nas Filipinas, como clamava pela autonomia das colónias portuguesas. "A Claridade" surgiu em 1936, é dada como ponto de partida de uma visão específica sobre os problemas da região, a revista foi lançada por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes, aberta à literatura brasileira, a revistas portuguesas como a "Presença", etc.
E voltei a ler "Os Flagelados do Vento Leste" que tanto me impressionara enquanto jovem adulto, com as suas secas e as suas chuvas e a lestada – o harmatão, o vento leste, a dádiva do deserto do africano, e depois os problemas humanos, o amor e a morte.

Edição de 1960, Ulisseia, capa de Marcelino Vespeira
Encontrei as folhas do circuito em Santo Antão, bem mal garatujadas, por sinal. Saio de Porto Novo num coletivo para a Ribeira Grande, o apartamento tem vista, a proprietária é italiana de Bolzano, fala fluentemente crioulo, o marido é o sr. António, pescador e músico; fica prometida uma refeição de peixe, tudo apanhado ao amanhecer. Depois de laboriosa conversação telefónica entre esta charmosa senhora italiana e o senhor Adelino, e definido o preço, amanhã o passeio, saindo daqui, é rumar para a velha estrada de Ribeira Grande para Porto Novo, segue-se para Corda, as vistas das montanhas são de cortar o fôlego, impressiona-me muito Esponjeira, Lagoa, a visão ao longe da Cova do Paúl, parece um emaranhado de montanhas, almoçamos na ribeira do Paúl, depois Xôxô, o sr. Adelino chama a atenção que o cemitério da Ribeira Grande fica no alto da montanha sobre o mar. Estamos agora na Ponta do Sol, conheço estes barcos de pesca como se estivesse em Sesimbra ou noutro porto português, vê-se bem que o turismo aqui é muito influente; Ponta do Sol teve aeroporto, houve um enorme desastre aéreo, acabou-se o aeroporto.
Outra imagem da Ponta do Sol
Andava a bisbilhotar a abandonada pista do aeroporto, então vi gente a avançar para estas rochas de balde e faca na mão, temos lapas pela certa, o importante é que o mar é lindo, o céu azul pintalgado de nuvens brancas, e dou comigo a pensar nesta versatilidade que estas ilhas oferecem.
Da Ribeira Grande faz-se transbordo para o vale do Paúl, via sinuosa, entre pedregulhos, extensões de cana, milheirais, palmeiras, por mim esta subida íngreme podia ir até aos céus. A visão que se tem do apartamento é como se estivéssemos num balcão a ver a falda da montanha, muito gretada, cheia de caminhos, terraços cultivados, gente a subir e a descer, o mais impressionante será a noite, ouvir gente a subir e a descer em conversa em alta voz, até tremo a pensar o que seria uma queda por aqueles precipícios. A segunda imagem mostra o Chão de João Vaz, ao fundo em tons amarelos, a Aldeia Panorâmica, toda esta região é apreciada por gente que gosta de passeios pedestres e que vem de todo o mundo para aqui.
Subindo do Paúl para Chão de João Vaz encontrou-se um sítio bem pitoresco, O Curral, comida vegetariana muito bem elaborada, depois foi subir e descer a embasbacar-me com a paisagem, conversando com a malta que gosta de passeios pelos trilhos, alguns bem afogueados pelo calor, apeteceu-me voltar para casa, sentar-me ao balcão a saborear a paisagem.
Sinto-me no dever de alertar o leitor que esta imagem em que se vê lá no vale casario amarelo foi captada quando se descia para O Curral, esta última imagem sim é que avisto do meu balcão e que tanto me impressiona, e é por esta altura que ganho a noção de que há um odor penetrante no ar, alguém lá em casa até alvitra que pode andar por ali um incêndio, saio porta fora e vou falar com a D. Joana, dona de uma mercearia pegada à minha casa, que eu não me preocupasse, era o trapiche a funcionar, olhe, aproveite, vá lá beber um grogue, não abuse, para não ficar contente demais. Lá fui e pelo adiante vos contarei o que é isto do trapiche e do grogue, marcas genéticas de Santo Antão.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24407: Os nossos seres, saberes e lazeres (577): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (107): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: Ribeira Grande à noite, no dia seguinte em excursão com o sr. Adelino, não faltará Xôxô nem a Ponta do Sol (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24215: Notas de leitura (1571): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
"Revolta!" não é uma obra-prima, é um romance bem urdido, possui os ingredientes adequados daquele formato da literatura colonial que fazia o mister da observação, o mostrar da vida de mato, o deslumbramento das belezas naturais, incluindo na urdidura a presença das autoridades, e Fausto Duarte esteve sempre disponível para nos seus romances de teor guineense pôr paixões de autóctones, carregadas de drama. O que nos diz do régulo Monjur Jorge Vellez Caroço, bem como o trabalho de investigação de Eduardo Costa Dias, ambos aqui já tratados, acompanha de certo modo o que era a nova lógica da administração colonial, o Gabú tinha enorme peso, os Fulas, após os acontecimentos do Forreá, a submissão dos Mandingas, aceitaram na plenitude o poder da administração colonial, esta apercebeu-se rapidamente que o território do Gabú era estratégico, Monjur foi um aliado que acabou secundarizado e esquecido. Esquecido não, a descrição do seu funeral, o valor da sua bravura, jamais foi esquecido por todos aqueles que acompanharam o féretro ao longo dos quilómetros, era a despedida do herói deitado no caixote do lixo da nova filosofia colonial.

Um abraço do
Mário



O drama do régulo Monjur num belo romance de Fausto Duarte (2)

Mário Beja Santos

Fausto Duarte é um nome incontornável na cultura guineense. Cabo-verdiano por nascimento, ganhou as suas habilitações em topografia no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, aparece na Guiné associado à demarcação de fronteiras e mais tarde entra na administração local, revelou-se um divulgador de méritos excecionais, um colaborador profícuo do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, colaborador regular do Boletim Cultural, autor de dois anuários (1946-1948) de irrecusável importância e autor de três romances passados na Guiné, dois deles já aqui alvo de recensão, caso de "Auá" e de "O Negro sem Alma".

"A Revolta!" foi galardoada com o 2.º prémio do Concurso de Literatura Colonial (1942), Fausto Duarte deu o romance por concluído em maio de 1942, foi publicado no Porto em 1945. A trama anda à volta do prestigioso régulo Monjur, um régulo Fula que prestou relevantes serviços à Administração Colonial Portuguesa em termos de campanhas de ocupação, era a figura mais respeitada do Gabú, será enredado numa teia de invejas por régulos menores que ansiavam ver o seu poder diminuído e encontrou pela frente um administrador de Bafatá que lhe retirou o poder. O seu funeral terá sido um acontecimento ímpar em todo o Gabú, morrera o homem, ficara o mito. Recapitulando, um agente leal ao régulo Monjur, disfarçado de viajante, entra em Sare Bane e facilmente deteta que se prepara uma rebelião contra o bravo régulo do Gabú, foge e dirige-se ao posto militar de Geba, conversa com o comandante, tenente Amílcar Teles, e foge de novo, pela calada da noite, para ir a Coiada, onde vive o régulo Monjur.

Fausto Duarte dá-nos uma impressiva nota do que era um presídio militar, descreve o posto de Geba, e aproveita esta autêntica de Suleimane Gadiri para descrever o feitiço florestal guineense. A selva é igualmente brutal, há crocodilos que comem gente, mesmo quando toda a Natureza parece repousar e até um flamingo permanece imóvel enquanto o crocodilo vai desfazendo com as suas fauces uma mulher, é como se estivesse a registar a lei suprema do mato, que ele assim define: “Quando a cobra contrafazendo o cacarejar da galinha consegue iludir a ave e trazê-la ao alcance das suas mandíbulas; quando o caçador imitando o grunhido da fêmea de certos bichos atrai o macho, confiante e talvez orgulhoso da preferência, até que ele sirva de alvo e mostre o ponto mais vulnerável do corpo à arma em espreita, é a lei do mato, a lei da astúcia e do mais forte”.

E assim chega ao seu destino este mensageiro, um habilidoso contador de histórias que deixa as crianças fascinadas, o autor dá-nos aqui páginas de encanto que bem mereciam ser conhecidas por portugueses, tal o poder de riqueza desta literatura luso-guineense. E aqui começa uma história de amor com Iobá, filha de Monjur, o destino de ambos ficará selado por uma tragédia, no final da obra o responsável por esta será severamente punido. Fausto Duarte discreteia sobre os usos e costumes de Fulas, a estranheza que esta etnia sente face às ambições dos brancos, mas percebendo que a administração colonial era de facto a nova lei, não só no Gabú mas como em todo aquele espaço territorial a que chamavam Guiné Portuguesa.

Monjur prepara a defesa e no aceso dos combates surge a coluna de Geba, irá ter lugar a indispensável reunião, uma tentativa de apaziguamento, mas o tenente Amílcar Teles, após ouvir a argumentação dos dois lados confere direitos ao régulo Monjur, assim fica abortada a rebelião. Romance sem tragédia é pão sem sal, há um sargento que sucumbe, impunha-se um parágrafo altamente emotivo:
“ - Dá-me licença, meu tenente? - rogou ele, unindo os calcanhares.
- Dize.
- É que há ali um papel para si, uma carta e uma bolsa que têm destino. - informou Raul. O oficial consentiu com um movimento quase impercetível da cabeça.
Ajoelhou-se o cabo. Tremiam-lhe as mãos. Os soldados mais afastados procuravam compreender a cena. Raul retirou do dólmen dois envelopes dobrados e uma bolsa de coiro. Guardou um dos envelopes depois de ler o endereço, entregou o outro ao oficial e abriu a bolsa para lhe ver o conteúdo. Tinha dentro uma madeixa de cabelos loiros, duas moedas de prata com a efígie dos reis, um recorte de jornal gasto nos vincos e uma pulseira, obra de ourivesaria indígena. Era essa toda a sua fortuna”.


E a coluna regressa com o corpo do sargento Domingues Alves, morte que a todos chocou. Fausto Duarte aproveita a oportunidade para desferir uma dura crítica à sociedade colonial, transpõe-se na pessoa do tenente Amílcar Teles: “Sempre que era obrigado por razões de serviço, inadiáveis, a ir à capital, fazia-o com profundo desgosto. Nas receções oficiais a que casualmente assistia, funcionários untuosos e mesureiros atropelavam-se, procurando chamar sobre si a atenção do governador, e suas mulheres, criaturas banais, muito arrebicadas, ciosas das precedências e da hierarquia dos maridos, temendo o contágio das inferioridades do mundo, faziam-no suspirar pelo mato. Tal como elas, aquela sociedade que se pretendia transplantar para ali com os mesmos ridículos da Europa estava deslocada”. Na recensão, permito-me pequenas alterações, estes apartes vêm antes da conversa conciliatória que só não falha porque o tenente Amílcar Teles profere sentença justa.

Temos de novo drama à vista, Suleimane Gadiri desapareceu, bem como Iobá, o régulo Monjur sente-se desconsiderado, no entanto ele recebera com júbilo a decisão do oficial português, que era verdadeiramente conhecedor das sociedades Fulas, escolhera com equidade entre Alarba Seilu e Monjur Embaló, mas a dor iria persistir durante muitos anos. Entretanto chegou a nova lógica de poder à colónia, Monjur percebia perfeitamente que as autoridades pretendiam retalhar todo o vasto Gabú, esquartejar o território para fazer perder a influência, obrigando os pequenos régulos a sentirem-se altamente dependentes de Bafatá, ou de Bissau. Mas não fora assim, como o autor descreve: “Doze anos dobados, depois que Iobá desaparecera e Alarba Seilu, o seu rival, morrera prematuramente, Monjur sentira crescer com o prestígio do seu nome uma indiscutível autoridade sobre o regulado compreendido por sete territórios. O governador entregara-lhe o de Boé como recompensa dos serviços por ele prestados nas guerras de Xime, de Cuor e de Badora. Alguns tinham sido valiosos. Auxiliara os portugueses com o apoio de Cherno Cali a bater os rebeldes Boncó e Infali Soncó que haviam tido a audácia de obstruir o rio impedindo a passagem das canhoneiras e de prender em uma palhota o comandante militar que substituíra o comandante Amílcar Teles. Fora então promovido a alferes de 2.ª linha. Da sua cabaia, o galão dourado dava-lhe um aspeto mais majestoso”.

Chamado a Bafatá, temendo a fatalidade de ir ser posto em prática a repartição de regulados, Monjur desloca-se com a sua cavalaria. Não ia a Bafatá desde a derrota dos régulos do Cuor e Badora, fora nesta vila que apertara com orgulho a mão do governador Oliveira Muzanty, era o grande momento do seu prestígio. É recebido no gabinete do administrador de Bafatá com visível indiferença e informado que de futuro não deverá deixar a povoação sem o seu prévio consentimento, caberia sempre ao administrador doravante a nomeação de chefes de territórios.

O poder de Monjur definha, e um dia Suleimane regressa e explica ao régulo e à assembleia que começa por receber com duas pedras na mão e que no fim o acolhe com triunfo, toda a verdade do que acontecera naqueles anos. A amizade foi retomada, Suleimane Gadiri assistirá aos últimos momentos de Monjur. E assim termina o romance: “Ficou na memória de todos a cena inolvidável do seu funeral. Ao longo dos três quilómetros que separam Gabú Sara de Oco, colocaram-se milhares de antigos vassalos aguardando a passagem do corpo que foi transportado de mão em mão até à aldeia onde tinham residido os grandes régulos oriundos da família Embaló Cunda. Quanto a Suleimane Gadiri o destino marcou-lhe outro caminho. Enrolou a sua esteira, tomou a chaleira de esmalte que continha água para as abluções e abalou novamente decidido a correr mundo”.

Dir-me-ão que este livro de Fausto Duarte não é literariamente famoso, ao que responderei que é um documento que em caso algum pode ficar no esquecimento, como se procurou destacar.

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24205: Notas de leitura (1570): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24205: Notas de leitura (1570): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Fausto Duarte recebera em 1934 o 1.º prémio de Literatura Colonial, com este romance A Revolta! obteve o 2.º prémio em 1942. Agradece ao Brigadeiro Carvalho de Viegas, antigo governador da Guiné a sugestão de pôr em romance a vida do régulo do Gabú, Monjur Embaló, um fiel acompanhante da potência colonial durante muitos anos, oficial de segunda linha. Chamemos-lhe romance histórico, de facto existiu o posto militar de Geba e Monjur acabou por cair na desgraça de um administrador de Bafatá que determinou, seguramente com o beneplácito do governador, que o imenso regulado do Gabú fosse retalhado. Fausto Duarte garante que todos estes personagens existiram, pode-se especular quem era o tenente de Geba (Marques Geraldes?) e o administrador de Bafatá (Calvet de Magalhães?), mas pouco importa, este romance histórico já devia ter sido reeditado há muito tempo, dá-nos um quadro notável, aos olhos de um funcionário colonial, de diálogos entre guineenses, nomeadamente conversação Fula, como se poderá ver neste texto, descreve-se um presídio, a constituição da força militar do mesmo, seguramente que o autor não anda longe da verdade. A força militar de Geba, veremos mais adiante, vai ajudar o régulo Monjur, teremos páginas preciosas de descrição. No termo da obra, assistir-se-á ao inesquecível enterro de Monjur, um bravo guerreiro que acabou cilindrado por uma nova lógica de dividir para reinar que se instituíra na administração colonial.

Um abraço do
Mário



O drama do régulo Monjur num belo romance de Fausto Duarte (1)

Mário Beja Santos

Fausto Duarte é um nome incontornável na cultura guineense. Cabo-verdiano por nascimento, ganhou as suas habilitações em topografia no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, aparece na Guiné associado à demarcação de fronteiras e mais tarde entra na administração local, revelou-se um divulgador de méritos excecionais, um colaborador profícuo do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, colaborador regular do Boletim Cultural, autor de dois anuários (1946-1948) de irrecusável importância e autor de três romances passados na Guiné, dois deles já aqui alvo de recensão, caso de Auá e de O Negro sem Alma.

"A Revolta!" foi galardoada com o 2.º prémio do Concurso de Literatura Colonial (1942), Fausto Duarte deu o romance por concluído em maio de 1942, foi publicado no Porto em 1945. A trama anda à volta do prestigioso régulo Monjur, um régulo Fula que prestou relevantes serviços à Administração Colonial Portuguesa em termos de campanhas de ocupação, era a figura mais respeitada do Gabú, será enredado numa teia de invejas por régulos menores que ansiavam ver o seu poder diminuído e encontrou pela frente um administrador de Bafatá que lhe retirou o poder. O seu funeral terá sido um acontecimento ímpar em todo o Gabú, morrera o homem, ficara o mito.

Tudo começa com o preparativo de armar uma cilada a Monjur, vamos conhecendo os conspiradores e alguém que vem de longe e que observa que algo de grave se está a passar, um aliado de Monjur, Suleimane Gadiri. O conspirador Alarba Seilu e o sacerdote Ibraima Dara, e seus aliados, preparam um ataque ao posto de Geba. Muitos desconfiam de Suleimane, ele revela-se um excecional contador de histórias que fascinam as crianças que o escutam. Aproveitando a noite, Suleimane escapa-se, prosseguem maratona a caminho do Forte de Geba. Fausto Duarte disserta sobre soldados, missionários e negociantes, a presença dos brancos e tem um acorde sobre os valores da colonização, escreve:
“Raros são aqueles que ao topar as ruínas de antigos presídios, pedras soltas afogadas por plantas bravias e às quais a patine do tempo deu o seu quê de recolhimento e tristeza, evocam os martírios e heroísmos que elas presenciaram. Porque imaginações ardentes fizeram de África desde cedo um continente de mistérios, rico de tudo quanto a Europa carecia, não houve enseada, embocadura de rio ou ponta de terra saliente no recorte do Litoral que não fossem esquadrinhadas. Foi esta a primeira fase do contacto”.

E, mais adiante:
“Verdade era que no fundo de todo o colono desembarcado na Guiné havia um aventureiro por ser esta terra temida entre todas as outras, mal afamada, o inferno de África, só boa para degredados. Porque escasseavam voluntários, muito contribuíram para a vitória do homem sobre a Natureza, fechada, hostil e inóspita, a condenação em pena maior e a repressão da vadiagem em Cabo Verde e na Metrópole. O mal insidioso estava em toda a parte, sobretudo no que era mais necessário à vida: o ar e a água. O ar dos aquartelamentos pobres e dos casebres de taipa que vinha varrido dos pântanos, e a água leitosa, salobra, tirada dos poços. Só a deportação ou a cobiça do lucro rápido podia explicar o desejo mórbido de viver nesses povoados. Em vagas sucessivas, criminosos, vadios e agitadores expulsos do reino como anarquistas confessos aportavam à Guiné nos porões sujos de brigues e escunas, para preencherem os claros, ficando célebre a carga humana da corveta ‘Duque da Terceira’ por ter sido dizimada poucos dias depois do seu desembarque, vítima de acessos fulminantes de biliosas e outras doentes palustres, de prática diária, que aterrorizavam a colónia”.

E estamos no posto militar de Geba, comandado pelo tenente Amílcar Teles. Fausto Duarte que já fez uma apresentação do que era um presídio, dá-nos agora um retrato do capital humano:
“Europeus, a quem aqueles climas afogueados limavam a saúde e consumiam a energia, eram imagens grotescas de homens que tinham sido; cabo-verdianos, engoiados, perfis crioulos em cujos olhos a saudade tinha plantado a lembrança permanente das ilhas esfumadas na distância; gentes importadas dos litorais de Angola e Moçambique que viviam na incerteza de voltar a ver um dia libatas e sanzalas; macaístas e timorenses, de olhos oblíquos, que deixaram nas populações mestiças vestígios indeléveis da sua passagem; Mandingas e Fulas, guerreiros de profissão, constituindo a tropa de 2.ª linha. Era heterogénea a guarnição do posto. Se algumas praças se tinham oferecido para servir nas guarnições ultramarinas, o maior número pertencia na verdade do batalhão disciplinar sabiamente composto por soldados e graduados que os conselhos de guerra da metrópole ou das possessões coloniais tinham condenado à deportação militar”.

Neste posto militar entra velozmente o fugitivo Suleimane Gadiri que explica que veio de Sare Bane, informa que Alarba Seilu prepara-se para fazer guerra ao régulo Monjur em Coiada. Fausto Duarte aproveita igualmente a oportunidade para nos dar um retrato do que era o posto militar de Geba, estão naquele momento a entrar alguns fascinas que tinham ido ao mato buscar lenha, outros traziam água de um poço a uma légua de distância, onde era menos salobra. “Duas metralhadoras Nordenfeld, já avariadas, ladeavam a entrada. A casa do comando era de adobe, coberta a zinco e dividida em três compartimentos. Dois deles eram ocupados pelo oficial, o comandante do posto, e o terceiro servia de secretaria. Dali partia tudo o que interessava à administração dos territórios sob a jurisdição dos bancos. O tenente recebia os régulos, derimia as questões entre indígenas. A palavra ‘Comando’ exercia no indígena uma singular influência. Se ela chegava aos ouvidos de gente desavinda, logo os ânimos se apaziguavam. O ‘Comando’ significava segurança, tranquilidade nas aldeias e nas veredas que se cruzam pelos matos”.

Fausto Duarte dá-nos também um quadro rápido da vila de Geba bem perto do posto militar. E voltamos à conversa entre Suleimane e o tenente, quem vem pedir ajuda à potência colonial lembra que Monjur é um amigo fiel dos portugueses, paga impostos, Alarba Seilu é um pérfido rebelde, juntou muita gente de regulados do Leste, tem dois mil cavaleiros. O tenente isola-se, quer tomar a melhor decisão e Fausto Duarte volta à carga para dissertar sobre o islamismo da Guiné, sabe que Monjur é filho de Alfa Bacar Guidali, o fundador do regulado. E depois de muito meditar, o oficial ordena os preparativos, conversa com os sargentos, a força fica organizada.

E descobre-se que Suleimane Gadiri volta a desaparecer, é o momento apropriado para Fausto Duarte revelar o êxtase que lhe provoca a luxuriante vegetação da Guiné, Suleimane Gadiri vai em fuga, observa as planícies, os cursos de água, a linha do horizonte, o afogueado do nascer do dia:
“Os contornos da vegetação alta foram-se precisando. A luz vinda do clarão que de rebate incendiou os longes varreu a névoa baixa, espessa, que ao rés da terra lembrava novelos brancos de neve. O domínio da terra ia pertencer ao sol e toda a natureza se lhe entregava inteiramente com voluptuoso prazer. Um frémito de asas seguido de alegre chilreada anunciou a manhã.
São então animais espantadiços, prontos no vento, de talhe esbelto e pernas nervosas, metidos nos refolhos do mato, se aventuraram a procurar nos espaços cobertos de capim a liberdade de movimentos. A luz fora-se tornando cada vez mais intensa, e, em tanta maneira, que dali a pouco a terra já parecia crestada. Árvores louçãs, de grande porte, cujos troncos desapareciam sob o estreito abraço de cipós flexíveis e coleantes, serpenteando por entre a ramagem alta como que em busca de claridade, acusavam a influência regeneradora cacimba, fonte de vida da vegetação africana. As aves vão acudindo ao chamamento de macacos gageiros, de ar trocista, que fazem baloiço dos ramos mais dobradiços e parecem fugir às leis de gravitação, descendo e subindo com incrível destreza pelas gavinhas de trepadeiras que recordam pelo aspeto cordas grossas caídas dos mastros de uma embarcação”
.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24192: Notas de leitura (1569): "Jasmim", de Amadú Dafé; Manufatura, 2020 - A identidade, a multiculturalidade, o transcendente (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24192: Notas de leitura (1569): "Jasmim", de Amadú Dafé; Manufatura, 2020 - A identidade, a multiculturalidade, o transcendente (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
A literatura luso-guineense tem-nos pregado as suas partidas. Na fase de arranque, houve as laudes pela vitória da independência, hossanas aos libertadores, a poesia foi o principal eixo dessa marcha triunfal. Seguiu-se o desalento, basta recordar o importantíssimo livro de Filinto Barros Kikia matcho, o próprio cinema de Flora Gomes dava conta de que aqueles combatentes vitoriosos tinham passado a viver na obscuridade. É nisto que Carlos Lopes, um dos maiores investigadores guineenses, se lança na crítica mordaz a descrever a corrupção das novas elites, os negócios escuros, os aproveitamentos dos fundos de cooperação, a exibição dos carros luxuosos a passearem-se em estradas esburacadas. Tony Tcheka, poeta inconformado, relembrava que não se perdia a esperança no sonho de Cabral, a despeito de todos os desmandos, com a economia no fundo. É neste contexto que vai surgir a prosa mais consistente da Guiné-Bissau, Abdulai Silá, um desmontador do mundo colonial e das suas sequelas na contemporaneidade, usando com perícia absoluta o teatro para descrever a violência das novas fações que procuram aproveitar-se do poder, saqueando, traficando, intimidando. E temos agora Amadú Dafé, cujo Ussu de Bissau é uma denúncia pungente de negociatas envolvendo altas esferas da religião islâmica e máfias organizadas em vários pontos da África Ocidental, o que ele denuncia é mercado internacional de crianças. E agora o Jasmim, um guineense que reflete sobre as questões da identidade, a encruzilhada cultural, o pensamento religioso e filosófico.
Uma obra singular, deixará seguramente muita gente estupefacta, não era propriamente isto que se esperava de alguém que nasceu e cresceu no Ingoré.

Um abraço do
Mário



A identidade, a multiculturalidade, o transcendente, o Jasmim…

Mário Beja Santos

O rio, essa serpente que nos traz o caos e nos devasta esperanças, os irãs, os feiticeiros, o poder da escrita em revelar poderosas recordações íntimas, como se um livro se pudesse transformar numa sala de conversa de convergência multicultural, pois é assim o que "Jasmim", de Amadú Dafé, Manufatura, 2020, nos expõe em itinerância, com muitas culpas e remorsos figurativos, invade a cena gente do Norte da Guiné (Ingoré), cabo-verdianos e brancos, faz-se a exaltação da mulher e a denúncia da violenta discriminação de género que acontece naquele ponto da África Ocidental, mas não só, e, acima de tudo, este livro dá-nos um quadro confessional que jamais foi tentado por qualquer outro escritor da lusofonia, as suas crises de consciência são postas frente a múltiplos espelhos, e o que se pensa e o que se transmite é por vezes muitíssimo doloroso.

Em 2019, Amadú Dafé deu-nos um livro portentoso, Ussu de Bissau, uma amostra daquela tragédia que dá pelo nome de tráfico de crianças, fenómeno internacional onde as escolas corânicas não estão isentas de culpas e os responsáveis islâmicos também não. "Ussu de Bissau" é ponto alto da literatura luso-guineense, bom seria que fosse melhor conhecido e seguramente melhor apreciado.

"Jasmim" tem outra complexidade, está enxameado de metáforas e simbolismos, faz entrelaçar fenómenos de culturas africanas com atitudes filosóficas da cultura ocidental, o discurso direto é acessório, os números dos personagens são, Lua, Pipa, Fé, Banna, Jacinto. Amadú Dafé lança mão a propósito de expressões crioulas, gosta do português vernacular, a Natureza ofusca-o em permanência, e há o rio que é o rio da consciência, o rio do desaparecimento, o rio formado por muitos riachos, tratado como mistério indecifrável, por ser fonte de vida e de morte.

Num mercado de Ingoré dá-se pela chegada de Fé, fez uma longa e estranha viagem, Lua e Pipa ficam fascinadas por ele, pelo adiante iremos saber que todos estes personagens acarretam vários ingredientes da tragédia grega ou também do teatro francês do tempo de Corneille, pois na vida desta gente há algo de Édipo e de Fedra. Há ponderações com carga metafísica, a componente animista tem o seu magnetismo nas componentes islâmica e cristã. Fé procura a mãe, Pipa fugiu e deixou um filho para trás. O encontro é numa barraca de mercado, um símbolo: “A minha barraca é frequentada por pessoas de culturas diversas e todos aqueles que são capazes de coabitar com a diversidade são bem-vindos”.
O animismo prepondera:
“Tenho no interior da barraca garrafas cheias de terra venerável e chifres de todas as espécies de misticidades, cujos gargalos adornei com retalhos envergonhados, garras e penas de tchoka (perdiz), pele de irã-cego e dentes de onça obediente. Nesta terra, incrédulos ou não, velhos, crianças ou senhores, cabo-verdianos, nánias (cidadãos da Guiné Conacri), nares (cidadãos da Mauritânia) ou senegaleses, todos são vulneráveis aos olhos dos senhores feiticeiros. À porta, tenho uma estatueta do irã do Sul, a tal que foi dada ao meu pai por uma senhora que se dizia dona desse irã trazido de Guiledje. Foi esse irã que deu a vitória na luta de libertação contra o kolom (colono). É um irã respeitado. Nele, todas as manhãs deito água e rogativas de proteção e afortunação. Nos quatro cantos da barraca estão tal-qualmente enterrados amuletos e pequenas garrafas com sal, malagueta e carvão nos respetivos interiores”.

Nisto entra em cena Banna, caber-lhe-á o papel de negociante da condição da mulher em toda a África, parideira, vendedora, agricultora, cozinheira, objeto de troca, morre-lhe o marido e é entregue a outro marido. Em contraste, veremos ao longo da narrativa um tipo de tensão onde o amor e o sexo ganharão peso específico, o leitor precisa de os dimensionar à lupa e perceber que aquele incesto, aquele marido estéril, aqueles segredos bem guardados e que só a ficção permite revelar são acertos de identidade no quadro da violência contida, e não é imagem de retórica, faz parte daquela violência latente, submergida, em que vive a Guiné-Bissau, e não só. A questão da identidade, o sentido da vida e as suas fases iniciáticas atravessam toda a narrativa, implicando uma escrita oficinal de diálogos simulados num contexto edénico, cruzam-se os povos, discute-se as suas origens, uns procuram interpretar o castigo dos deuses, outros aceitam resignadamente o destino.

Nos meandros de todo este processo intimista, somos ofuscados pela natureza do rio, em permanente diálogo com o coberto vegetal:
“O rio brilhava e refletia cores obsequiadas pela pequena floresta que o cingia. Do céu decaiam espetros de luz de pouco cio, que em contato com aquela água salgada reverberavam em ondas de baile (…) A bruma estendia a sua mortalha escura sobre a lala do rio Jasmim, enquanto kikias (corujas) e lobos ululavam difusamente. De repente, o tempo transformou-se. Um vendaval assobiava, aproximando-se em velocidade de pensamento. Em cima das árvores tronchudas, polons, palmeiras e cajueiros, sobre as nossas cabeças djambatutus (pássaro da espécie dos cucos) e kikias faziam espetáculos e alertavam para iminentes danos que a chuva iria causar. Sempre que o vento assobiava como um bêbado, a chuva fazia estragos e arrastava consigo vidas e sonhos. O assobio do vento é sinal de mão feiticeira no tempo. Ao lado, uma luz imitando um ciclope em busca da ribanceira, à espreita de um irã que se acusasse, inspirava-nos, no modo de desviar tempestade”.

Como na tragédia grega, nada nesta narrativa pode evitar o inevitável, posto e disposto pelos deuses. Cruzam-se as mensagens do adeus, questiona-se todo o sofrimento que atravessa as nossas vidas, a tragédia encaminha-se para o rio, alguém mais partiu do nosso convívio, alguém tinha aparecido como um milagre e logo a seguir desapareceu como um sonho. É assim que acontece em toda a condição humana, em Jasmim, provavelmente no mundo inteiro.

Um jovem escritor que decidiu enfrentar uma prova de fogo, foi bem-sucedido ao agarrar pelos cornos as questões da identidade e da multiculturalidade, do transcendente e da aceitação da vida. É uma grande promessa confirmada do que há de melhor na literatura luso-guineense.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24180: Notas de leitura (1568): Arroios à Mesa não esqueceu as especialidades guineenses (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24083: Notas de leitura (1557): "Reportagem, uma antologia", por Jorge Araújo; Assírio & Alvim, 2001 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
O sucesso obtido em sucessivas edições do "Comandante Hussi" que começou por ser uma reportagem do conhecido jornalista cabo-verdiano Jorge Araújo acerca de uma criança que foi envolvida no conflito político-militar de 1998-1999, um estafeta-mascote que recusou abandonar o campo de batalha para ficar ao lado do pai, antigo combatente que aderiu à causa de Ansumane Mané. António Hussi vai viver em cheio a guerra desde junho de 1998 a maio de 1999, e enquanto em Bissau e um pouco por todo o país se sente o vento libertador do fim de uma tirania, Hussi veio a correr a casa à procura do seu tesouro, uma bicicleta desconjuntada, comoveu-se ao ver que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. "Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta". Metáfora de uma criança contente com a simplicidade do seu tesouro, e temos aqui algumas das páginas esmaltadas da literatura da lusofonia.

Um abraço do
Mário



Comandante Hussi: uma reportagem que deu brado, inesquecível

Mário Beja Santos

Comandante Hussi[*], uma das obras mais dramáticas e ternas do que se pode designar por literatura de guerra, antes de aparecer sob a forma de livro foi editado como reportagem num jornal, e por tal razão, atendendo à altíssima qualidade do texto, José Vegar [foto à direita], selecionador, prefaciador e anotador do livro "Reportagem", uma antologia, Assírio & Alvim, 2001, deu primazia ao trabalho de Jorge Araújo, experiente em cenários de guerra. Como Vegar escreve: 

“No caso do conflito na Guiné-Bissau, Jorge Araújo – profissional desde 1986, na Televisão de Cabo Verde, BBC, Já e O Independente – foi particularmente feliz. Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a Batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta”

Mas antes de se falar das aventuras de António Hussi, retorne-se ao prefácio de Vegar:

“Das vinte reportagens reunidas nesta antologia, seis são sobre a guerra, uma, a de Timor, sobre uma operação militar contra um povo indefeso, oito sobre problemas ou acontecimentos sociais importantes, duas sobre personagens ou factos na nossa História contemporânea, uma sobre um tycoon dos media, outra é puro jornalismo de viagem e uma última sobre política”

Elogia o papel que a reportagem tem no jornalismo, deplora cada vez menos espaço que a reportagem tem na substância dos jornais, mas também recrimina o jornalista, assim: 

“A restante parte da culpa pertence aos próprios jornalistas portugueses, à sua cultura profissional. Por não considerarem o jornalismo como uma Arte, que tem história, estilos, períodos, ruturas e mestres, que importa conhecer. Por ignorarem que nenhuma história se faz sem alma, essa entidade imaterial que gera curiosidade, paciência e o supremo gozo de encontrar os factos e as pessoas a escrever sobre eles”.

Jorge Araújo [foto à esquerda] publicou "Comandante Hussi" no jornal “O Independente”, em fevereiro de 1999, e arranca com um parágrafo que captura imediatamente o leitor:

“Era uma vez um menino. Pobre mas feliz. Feliz porque tinha um tesouro. Não era um vistoso boneco do Rambo – daqueles que se transformam em carro de combate e em avião supersónico –, nem mesmo uma sofisticada metralhadora de brincadeira, que acende uma luzinha irritante e faz mais barulho do que qualquer arma de verdade. Muito menos um computador capaz de navegar pela Internet e com jogos que desafiam até as madrugadas mais longas. Era um tesouro que só uma criança pobre pode ter”.

E descreve esse tesouro, uma bicicleta reduzida a um escombro, pintada de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. Mas um tesouro, era o único presente que o pai algum dia pôde oferecer-lhe. “Porque era tudo o que dinheiro de pobre pode comprar”.

Segue-se o contexto familiar e um acontecimento inopinado, o princípio da guerra, as famílias em fuga, naquele dia 7 de junho rapidamente a população de Bissau se apercebeu que o inferno lhes batera à porta. Acompanhou a família, choroso por deixar a sua bicicleta, mas chegado a Nhacra, justificando saudades do pai, Ablei Sissé, um dos muitos antigos combatentes da liberdade da Pátria que se juntaram ao brigadeiro Ansumane Mané, deu meia volta, fugiu, fintou bombas e tiros e chegado a Bissau perguntou pelo pai, deu-se o reencontro, o pai furioso, sovou-o, aquilo não era lugar para uma criança, mas António Hussi insistiu em ficar, o pai cedeu. 

“Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante de cozinheiro. Aprendeu a cozinhar arroz de todas as maneiras e feitios, mas durante quase 11 meses o principal prato do dia era uma mão-cheia de nada. Não matou mas viu morrer. E conviveu com o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição”.

Assistiu à humilhação dos milhares de soldados do Senegal e da Guiné Conacri que morreram ou fugiram sem honra nem glória. Tentou-se a paz. Até que no dia 6 de maio de 1999, a Junta Militar lançou-se no ataque final, as tropas de Ansumane Mané puseram todos os apoiantes de Nino Vieira em debandada. Nino, considerado o maior herói da luta de libertação vivo, vencido, humilhado, procurou refúgio na Embaixada de Portugal.

O estado de Bissau era calamitoso, o Hotel Hotti e o Mercado de Bandim num perfeito abandono. Hussi estava exultante. 

“Durante toda a noite, deliciou-se com o fogo de artifício da artilharia. Quando a madrugada acordou, o menino-soldado pedalou com as suas sandálias de plástico até à Praça Che Guevara. Assistiu à confusão em frente ao Centro Cultural Francês, com a população a gritar por vingança e a querer reduzir o edifício a cinzas. Viu os civis franceses a abandonarem o local amedrontados e as tropas especiais de Paris encurraladas na sua arrogância a sair com o rabinho entre as pernas. Uns e outros refugiaram-se na Embaixada de Portugal. Viu também os livros, que nunca teve, serem consumidos pelas chamas assassinas. E a pilhagem que se seguiu. E apanhou uma fitinha tricolor, que agora coloca à volta da testa. É o seu único troféu de guerra”.

E depois do triunfo veio a redenção ou melhor o reencontro com a bicicleta, o seu tesouro, e se até agora acompanhámos as ditas e as desditas de uma criança que prestou serviço na guerra, uma mascote dos vitoriosos, tudo culmina quando António Hussi saiu daquela guerra e partiu para a guerra da sua vida:

“Uma das primeiras coisas que Hussi fez mal a guerra terminou foi dar um salto até à sua casa ali para os lados do Bairro de Santa Luzia. Foi uma viagem-relâmpago, que nem deu para abraçar os amigos ou participar num animado jogo de futebol. Como no início dos confrontos, todos os seus pensamentos continuavam amarrados a uma única coisa. Hussi quase chorou de alegria quando se apercebeu que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta”

Texto prodigioso que veio a dar edições ilustradas, e não menos comoventes. Aquela guerra de 1998-1999 deu azo a diferentes textos e relatos, mas nenhum deles possui a luminosidade e o prodígio de encantar como Comandante Hussi, estão ali, com marca-de-água, algumas das mais belas páginas da literatura lusófona, convém acarinhá-las e dá-las a saber às mais novas gerações para que não esqueçam o que a guerra custa e como uma criança, naqueles lugares de caos, de desespero, guarda como maior triunfo o escombro de uma bicicleta. Que texto maravilhoso, oxalá que circule na memória das novas gerações guineenses.
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Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 6 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23236: Notas de leitura (1443): Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24050: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - XIX (e última) Parte: Bibliografia



Contracapa do livro. Ilustração do mestre luso-guinense Augusto Trigo



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5





O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, 
é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga e também o autor do sítio.



1. Chegamos ao fim da transcrição deste livro (19 postes desde julho de 2021), reproduzindo as pp. 93/94,  respeitantes à Bibliografia. Estamos gratos à generosidade do autor que nos autorizou a utilização deste material, que faz parte de um belíssimo projeto da ONGD Ajuda Amiga – Associação de Solidariedade e de Apoio ao DesenvolvimentoONGD - Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (http://www.ajudaamiga). 

O livro teve a colaboração notável de grandes mestres da pintura e ilustração portugueses, luso-guineenses e guinenenses como Augusto Trigo, Ady Pires Baldé, José Hilário da Silva Portela, José Ruy e Lemos Djata, artistas a quem prestamos também a nossa homenagem. (*)

Como esvreveu, no prefácio,  o Leopoldo Amado (1960-2021), trata-se de "um livro em que se entrecruzam dois campos de pesquisa, em cujas intercessões torna-se possível divisar a constatação de que, infelizmente, persiste ainda um enorme muro de desconhecimento e de incompreensão que adejam África e, mais especificamente, sobre os guineenses e a Guiné-Bissau, donde a razão de ser do livro que agora o Fortunato dá à estampa, com o claro fim de reduzir os fossos de incompreensão existentes."

Por sua vez, o Carlos Fortunato no prólogo fala-nos da razão de ser deste projeto:

(...) Conheci a Guiné-Bissau em 1969, quando ali prestei serviço militar, e uma parte de mim lá ficou, obrigando-me a lá voltar, e ligando-me a ela para sempre, como uma segunda pátria.

A Guiné-Bissau é um país cativante, pois o guineense faz de cada visitante um amigo, recebendo como mais ninguém o faz. A Guiné-Bissau é o ponto de encontro de muitas culturas, e isso dá-lhe uma enorme riqueza humana e cultural. As lendas e os contos são uma pequena parte dessa riqueza.

A razão de ser do presente livro é, preservar o passado e promover a compreensão intercultural, mostrando alguns momentos de grandeza da história da Guiné-Bissau, alguns dos nomes que a marcaram e um pouco da sua cultura.

As lendas e contos apresentados neste livro, são histórias que continuam a ser contadas à volta da fogueira ou cantadas pelos artistas, povoando o imaginário de quem as ouve. As recolhas das lendas e dos contos foram feitas ao longo dos anos, em contactos que tive na Guiné-Bissau, e em Portugal junto dos imigrantes guineenses.

Este livro foi escrito a pensar nos jovens, e tem por isso uma escrita simples e muitas imagens. O estudo do período histórico onde se desenrolam as lendas, permitiu acrescentar informação adicional, complementando e enquadrando um pouco as mesmas. (...) 


Bibliografia

 • A Babel Negra, de Landerset Simões - Edição do autor.

• A Descoberta de África - Catherine Coquery - Vidrovitch - Editora: edições 70.

• À Descoberta do Passado de África - Basil Davidson - Editora: Sá da Costa.

• Agricultura e Resistência na História dos Balanta-Bejaa - Cornélia Giesing

- Revista Soronda nº 16 - Editora: INEP.

• A Guiné do Século XVII ao Século XIX - Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha - Editora Prefácio.

• As Campanhas Coloniais de Portugal 1844-1941 - René Pélissier - Editoria; Estampa.

• Conflitos interétnicos – Carlos Cardoso, Comunicação apresentada na Reunião Internacional de História de Africa IICT/Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, realizada em Outubro de 1998, em Lisboa - Revista Soronda nº 7 - Editora: INEP.

• Dynamique de L´art Bidjago - Danielle Gallois Duquette - Editora: Instituto de Investigação Cientifica Tropical.

• Etnologia dos bijagós da ilha de Bubaque - Luigi Scantamburlo - Editora: Instituto de Investigação Cientifica Tropical e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa.

• Fulas do Gabú - José Mendes Moreira - Editora: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

• Grandeza Africana - Manuel Belchior - Editora: Ultramar.

• Guiné Portuguesa I e II – A. Teixeira da Mota - Editora: Agência Geral do Ultramar.

• Contos do Caramô – Lendas e Fábulas Mandingas da Guiné Portuguesa – Agência Geral das Colónias.

• História da África - F. D. Fage - Editora: edições 70.

• História da África Negra - Joseph Ki-Zerbo - Editora: Publicações Europa-América.

• História da Guiné I e II - René Pélissier - Editora: Estampa.

• História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde - PAIGC, 1094 - Editora: Afrontamento.

• Kaabunké - Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais - Carlos Lopes - Editora: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portuguesas.

• Mandingas da Guiné-Portuguesa - António Carreira - Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

• O Kaabu – Mamadú Mané, texto de uma conferência inicialmente previsto para a semana cultural organizada pelo AIGLON de Kolda (Senegal) em fins de Agosto de 1988 - Revista Soronda nº 7 - Editora: INEP.

• O Império Africano 1825 - 1890 - Valentim Alexandre e Jill Dias - Editora: Estampa.

• Organização Económica e Social dos Bijagós - Augusto J. Santos Lima - Editora: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

• Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África - 3º Volume - Edição do Estado Maior do Exército.

• Resistência Africana ao controlo do território – Carlos Lopes, Comunicação apresentada na Reunião Internacional de História de Africa IICT/ Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, realizada em Outubro de 1998, em Lisboa - Revista Soronda nº 7 - Editora: INEP.

• Sundiata – An Epic of Old Mali - Djibril Tamsir Niane - Editora Longman African Writers.

• Sundiata – Lion King of Mali - David Wisniewki - Editora: American Library Association.

• Sundiata – Uma Lenda Africana - Will Eisner - Editora: Cia. das Letras.

• Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo-Verde, do capitão André Álvares d´Ameida - Editora: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.

• Uma história da Escravatura - James Walvin.- Editora Tinta da China.

• Usos e Costumes Jurídicos dos Mandingas – Artur Augusto da Silva - Editora: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 18 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23994: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVIII: Breve história do império do Cabú

Vd.  restantes postes da série:

18 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23992: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVII: Breve história do império do Mali

20 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23629: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVI: Conto - O menino e patu-feron

11 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23607: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XV: Conto - O lobo que queria comer os filhos da lebre

11 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23254: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XIV: Conto - O lobo e a lebre vão à pesca (pp. 75/78)

12 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23160: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XIII: Conto - O leão e o javali no tempo da sede

9 de março de 2022 >Guiné 61/74 - P23061: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XII: Conto - O hipopótamo dá boleia ao lobo

30 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22950: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XI: Conto - O casamento do lebrão

17 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22914: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte X: Conto - O camaleão ganha a corrida ao lobo (hiena)

9 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22791: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IX: Conto - A lebre e o lobo no tempo da fome

18 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22726: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VIII: A lenda da canoa papel (...ou a maldição da pátria de Cabral)

28 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22577: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VII: A lenda de Alfa Moló

4 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22510: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VI: A lenda de Djanqui Uali, o último Mansa Bá (imperador) do Cabú 

5 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22433: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte V: A lenda de Sundiata Keita
 
26 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22405: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IV: Lendas mancanhas

20 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22390: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte III: Lendas bijagós

10 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22359: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II A: Comentário adicional sobre os balantas: "Nhiri matmatuc Fortunato. Nhiri cá ubabe. Nhiri god mara santa cá cum boim. Udi assime?"...Traduzindo: "O meu nome é Fortunato. Eu sou branco, não sei falar bem balanta. Percebes o que estou a falar?"... Uma conversa com Kumba Yalá, em Bissorã, a dois dias da sua morte, aos 61 anos

9 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22354: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II: Ficha técnica, prefácio de Leopoldo Amado, lendas balantas (pp. 1-14)

8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22349: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte I: Vamos dar início a uma nova série, um mimo para os nossos leitores

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23784: Notas de leitura (1516): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Prossegue a viagem em torno da escrita das novas gerações que praticam com talento e inspiração o luso-guineense à luz dos seus sonhos e das quimeras, tratam sem complexos do direito dos costumes, o sentido de família, o conflito entre uma moral sexual muito disponível e as terríveis doenças sexualmente transmissíveis que avassalam o continente africano; retomam a linha de literatura oral em que os bichos podem ser criaturas humanas, nenhum dos autores envereda corajosamente pela abordagem do lesbianismo; e não se esconde a mágoa pelo modo como são tratados aqueles combatentes que deram o corpo a uma pátria invadida por ratos, como escreve um autor, numa denúncia cáustica, direta às novas elites políticas que se movem pela pura ganância, estando-se nas tintas pelos interesses básicos do seu povo. Uma antologia que mostra a boa saúde em que se encontra a literatura luso-guineense. Sinceros parabéns à Editora Ku Si Mon na pessoa do grande escritor Abdulai Sila.

Um abraço do
Mário



O vigor de uma expressão literária emergente: o luso-guineense (2)

Mário Beja Santos

Serve de pretexto para reflexão de uma nova geração de escritores que encontraram um modelo de comunicação o livro que rememora os 25 anos da Ku Si Mon Editora, uma iniciativa que tem por detrás o nome consagrado da literatura guineense, Adbulai Silá: "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo, Ku Si Mon Editora, 2019.

Esta nova geração de talentos literários usa como ferramenta de comunicação um português plástico, moldado com a riqueza dos vocábulos próprios inerentes à formação do escritor, seja da Guiné, de Moçambique ou do Brasil, torcem e retorcem a língua de Camões, de António Vieira e de Fernando Pessoa, imputam-lhe a fala do coração, o orgulho da cultura-mãe, polvilham tudo de ingredientes da literatura universal: o humor cáustico, a fábula, as ternuras de infância, a crítica política e social; manipulam a topografia, as crenças, o passado colonial, remexem nos sonhos de ver os filhos prosperar, denunciam os mercados da droga, estão atentos aos fenómenos do radicalismo religioso que começam a aproximar-se da África lusófona. E por aí adiante. O produto final, é essa África misteriosa assistir à entrada em cena de um processo literário que faz transbordar a língua portuguesa para um admirável mundo novo da escrita.

Depois de Marinho de Pina e de Claudiany Pereira, temos o conto "Zé Crocodilo" de Amadu Dafé, um comprovado bom escritor na rampa de lançamento. Numa atmosfera da ainda guerra colonial, Zé Ntchabré entra furioso em casa, pede explicações a Nnami, a mulher, que é lavadeira do capitão. Zé soube pelo capitão que Nnami, a sua noiba (a mulher mais nova) está grávida, e dele, o capitão, ao princípio Zé pensou que se tratava de uma brincadeira, o capitão dava a sua palavra de honra. Saiu de casa e abeirou-se no rio Mansoa, atirou-se às águas. E passou a haver falatório na tabanca: “Zé virou crocodilo”. O capitão enviou um contingente militar para resgatar Zé Crocodilo, parecia não haver resultados, o capitão preparava-se para se atirar sozinho ao rio, nisto apareceu Zé que energicamente o dissuadiu. A conversa girou à volta de duas meninas que Zé tinha salvo das águas, houvera metamorfose, Zé pede ao capitão para ser promovido, ele prefere nomeá-lo Zé Crocodilo. Nnami teve uma menina linda e mulata. E assim termina a história: “Em mistério ficou a admiração ao Zé Ntchabré, capaz de virar crocodilo, ao que tudo indicava, e permanecer nas profundezas do rio, talvez com o fito de apanhar almas brancas para as transformar em filhas próprias”.

Marinho de Pina volta à carga com um tema explosivo, desta vez aborda o lesbianismo, uma mulher fala na primeira pessoa depondo que desde menina não tinha nenhuma curiosidade acerca do sexo masculino, interessantes eram as suas amigas. O pai apercebe-se da situação, mesmo quando a menina ficou grávida. Procurava a camuflagem e o alívio da sanção pública dormindo com rapazes. “Comecei a acreditar que o lesbianismo podia ser curado, e quanto mais dormisse com rapazes mais gosto pelo pénis teria e assim me iria libertar da minha atração por mulheres. Mas não é nem sequer do pénis que eu não gosto, mas da pessoa a quem o pénis está anexo. A questão é mesmo eu não sentir atração sexual pelo homem”. A sua vida é um desbragamento. Mas depois de ter dado à luz, o lesbianismo não a enganou, voltou com toda a força, mas houve mudanças no seu caráter, como ela confessa: “Eu achava o lesbianismo como uma doença ou algo assim que se possa passar para os filhos, como um defeito genético, e tinha muito medo de que o meu filho viesse a ser gay (…) O meu filho quebrou os meus medos, eu seria o que era, não o que acham que devesse ser. Eu transformaria aquele meio para que quando o meu filho viesse a ser gay encontrasse uma sociedade melhor e não tivesse os mesmos problemas que eu, e se viesse a ser, que soubesse respeitar e lutar pela normalidade deles, se tivesse de ser”. O pai manda-lhe fazer as malas, irão a caminho de Maputo, ela não sabe para onde. Na estrada, parece vir um carro em perseguição, é uma condução agressiva, quem vem atrás buzina de forma aterradora, acaba por capotar. O pai teme vinganças, deixa-me numa pensão, escreve ela, voltou para casa para ir buscar a mulher e o neto. Batem-lhe à porta freneticamente… E quem aparece não é o pai, fim de conto, todas as suposições são possíveis, fica o eixo central da questão que leva ao desenvolvimento desta trama, a coragem de versar um tema tabu na África negra.

Uma questão de liberdade, de Edson Incopté, fala de Martinho N’fanda que viera estudar para Portugal, filho de chefe de tabanca, profundo conhecedor da cultura e das tradições do seu povo. A vinda para Portugal livrara-o temporariamente do compromisso de casamento com Maria N’tombikté, compromisso estabelecido desde o dia em que esta nascera. Mas Martinho conheceu em Portugal Rita Alexandre, viveram anos da mais quente paixão. Então um dia o pai ordenou-lhe que arrumasse as trouxas e voltasse para o país. Martinho pôs a questão a si próprio: Estava mesmo disposto a voltar para a Guiné-Bissau? Martinho anda à deriva, está confrontado com decisões, mas apercebeu-se pela primeira vez que tinha a liberdade de fazer uma escolha sobre o seu destino. Talvez o destino o tenha obrigado a tomar uma decisão de sorte madrasta, como culmina o conto:

“Ao voltar para casa no final do dia, encontrei-o sentado no sofá da sala com o semblante de quem esteve assim o dia inteiro. Obviamente que não me atrevi a questioná-lo. Mas olhei para os olhos dele e vi neles um brilho invulgar. Era lágrima. Percebi que tinha chorado todo o dia. E foi então que compreendi que a decisão estava tomada. Qualquer que fosse, estava tomada.

Predispus-me a ouvi-lo, mas desta feita quem não estava para conversas era ele. Seguiu para o quarto no preciso instante em que o telemóvel tocou. Mas ele nem para trás olhou. Entrou no quarto e bateu a porta. Não sei por que razão, mas não me atrevi, sequer, a olhar para a chamada”.

Esta surpreendente antologia irá prosseguir com obras de Claudiany Pereira, Edson Incopté, Amadu Dafé, Marinho de Pina, o leitor poderá comprovar que estamos diante de uma literatura refrescada, mesmo quando as temáticas relevam o fatalismo, a crítica política frontal, a indiferença por quem combateu pelas causas da liberdade, o espantalho da SIDA, face ao qual a sociedade ainda reage com imensa indiferença.

Não hesito em voltar a Edson Incopté e ao seu conto "Invasão de Ratos", em que uma criança entra esbaforida em casa dizendo que o professor falara numa invasão de ratos que se tinham espalhado por toda a parte, no bairro do Bandim passou a acontecimento mediático, opinavam jornalistas, profissionais de saúde e políticos, até que chegou o momento de indagar junto da fonte da notícia que provas tinha o professor para colocar uma cidade, um país inteiro em estado de pânico. E o professor respondeu:

“– O senhor acha que preciso de alguma prova? Não vê ratos espalhados por toda a cidade de Bissau? Se não vê, então é cego...! É só subir até à praça, verá aí os ratos todos. O senhor não vê…! Os ratos invadiram a cidade, povoaram as casas mais luxuosas deste país, roeram e roem, todos os dias, o coração das pessoas. Roeram sonhos e valores. Roeram toda a honestidade, a hombridade, até a humildade das pessoas. Já não resta quase nenhuma esperança, roeram quase tudo”.

Parabéns pelos 25 anos da Ku Si Mon, esta antologia é mais uma confirmação de que a literatura luso-guineense não só está em boa forma, cresceu e mostra pujança. É um dos maiores bens da lusofonia, esta festa da palavra.

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Notas do editor:

Vd. poste de 4 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23762: Notas de leitura (1513): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23776: Notas de leitura (1515): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (3) (Mário Beja Santos)