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quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17948: Agenda cultural (603): Tertúlia de antigos Combatentes, subordinada ao tema "Histórias Com Rosto", a realizar no dia 17 de Novembro próximo, às 21,30 horas, no Auditório Municipal de Esposende (Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art da CART 1689)



Mensagem do nosso camarada Fernando Cepa, (ex-Fur Mil Art da CART 1689/BART 1913, Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), dando-nos notícia de uma tertúlia de antigos Combatentes, subordinada ao tema "Histórias Com Rosto", a levar a efeito no próximo dia 17, às 21,30 horas, no Auditório Municipal de Esposende.

Caro Amigo Carlos Vinhal. 
Logo que possível, agradeço que estudes a possibilidade de inserir no nosso blogue, TABANCA GRANDE, o cartaz anexo, referente a uma tertúlia sobre Ex-Combatentes que se realizará no dia 17 de Novembro de 2017 no Auditório Municipal de Esposende. 

Grato pela atenção. 
Um grande abraço 
Fernando Cepa 
Ex-Furriel Miliciano 
Cart 1689 - Bart 1913 
Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17946: Agenda cultural (602): Hoje, às 18h30, no Porto, FNAC Santa Catarina: lançamento do último livro do escritor Carlos Vale Ferraz (e nosso camarada de armas, Carlos Matos Gomes),"A Última Viúva de África". Apresentação por David Martelo

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15467: Lembrete (15): Lançamento do livro "História(s) da Guiné Portuguesa", da autoria de Mário Beja Santos, com apresentação do Prof. Eduardo Costa Dias e Dr. António Duarte Silva, amanhã dia 10 de Dezembro, 5.ª feira, pelas 18 horas, no Palácio Conde de Penafiel, Rua de S. Mamede ao Caldas, n.º 21 - Lisboa

LEMBRETE para o lançamento do livro HISTÓRIA(S) DA GUINÉ PORTUGUESA, da autoria de Mário Beja Santos, com apresentação do Professor Eduardo Costa Dias, do ISCTE, e Dr. António Duarte Silva, investigador, amanhã dia 10 de Dezembro, 5.ª feira, pelas 18 horas, no Palácio Conde de Penafiel, Rua de S. Mamede ao Caldas, n.º 21 - Lisboa.



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos:

A todos os meus amigos, 
As "História(s) da Guiné Portuguesa" procuram avançar com mais hipóteses que venham no futuro a ser consideradas com alguma pertinência pela equipa de historiadores que meter ombros nessa tremenda lacuna da nossa cultura que é a ausência de uma história da Guiné Portuguesa. 
O meu livro procura introduzir dados novos que a moderna historiografia tem vindo a considerar, entre outros: a presença dos judeus na região da Senegâmbia; a natureza do tráfico de escravos na região; o impacto das guerras de pacificação, do século XIX para o século XX, na natureza de uma Guiné transformada em colónia-modelo; mais alguma iluminação sobre a natureza dos movimentos nacionalistas e o desenvolvimento da luta de libertação. 
Carreei, em sequência cronológica, muita documentação que não utilizei no livro a quatro mãos que escrevi em 2014 "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro". Pedi a dois investigadores eméritos, Eduardo Costa Dias e António Duarte Silva, que na sessão de apresentação procedessem a um debate sobre as lacunas existentes e o modo de as preencher. 
Havendo hoje tanta investigação sobre o período colonial, tantas obras referentes à guerra colonial da Guiné, não se conhece nenhum estudo que abarque os quatros anos da governação de Arnaldo Schulz. 
Conto com a vossa companhia nesta sessão de lançamento e dentro das vossas possibilidades agradeço-vos a mais ampla divulgação possível. 

O reconhecimento e a cordialidade do 
Mário

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15379: Lembrete (14): Lançamento do livro "O Fedelho Exuberante", da autoria do Mário Beja Santos, dia 18 de Novembro, pelas 18 horas, no Auditório do Museu da Farmácia, Rua Marechal Saldanha, n.º 1, ao Calhariz, em Lisboa

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5709: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (2): A(s) guerra(s) e a(s) maneira(s) de a(s) fazer

1. Mensagem, com data de 15 do corrente, enviada  pelo ainda recente membro da nossa Tabanca Grande, Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), empresário hoteleiro, camarada e amigo do nosso JERO

Assunto - A(s) Guerra(s)

A Guerra é, provavelmente, o alvo mais recriminado pelos Humanos; no entanto ela existe, prolifera e espalha-se intensamente por todos os cantos do mundo. Muitos a contestam, a detestam, a abominam... mas milhões a praticam todos os dias.

Uma coisa é matar para não morrer – uma inevitabilidade. Mais recriminável é matar aos milhares, cidadãos indiferenciados que nada de mal fizeram para que tal lhes acontecesse... apenas estavam no local certo (errado) à hora certa.

A Guerra é, digo eu, a mais antiga profissão do mundo!

Há quem defenda que a mais antiga é aquela outra actividade... a "da perna aberta" ou "à vela" que se praticava (pratica?) largamente na mata de Monsanto e continua abundantemente na margem de muitas estradas deste nosso rectângulo à beira mar plantado.

Os defensores desta são principalmente as "rachistas" que gostam muito de dizer coisas. Eu, porém, continuo a defender a "minha dama" e apresento argumentos.

Vejamos!: Caím, em tempos bíblicos, talvez com um único pontapé, não se sabe bem onde – mas suspeita-se, - enviou o irmão, Abel, para o Jardim das Tabuletas.

Terá sido esta a guerra mais mortífera e a mais curta de que há memória; uma elevadíssima percentagem dos habitantes do planeta foi, naquele momento, prestar contas ao Criador. E nessa altura ainda não havia sido inventada aquela terrível arma devastadora a que se convencionou chamar "coup de poing".

A arte de lutar, porém, evoluiu "rapidamente" durante os milénios que se seguiram. Mais ou menos sequencialmente, usaram-se pedras, facas (de madeira, antes e metálicas, depois) espadas, lanças e setas; no lado oposto apareceram os antídotos: os escudos (primeiro de couro... depois metálicos), elmos, capacetes e as pesadas armaduras que atingiram o auge na Idade Média. Surgem os castelos fortemente resistentes construídos em pontos estratégicos e/ou de difícil acesso.

A cavalaria foi durante séculos a implacável decisora de vitórias e derrotas.

Com a Guerra dos Cem Anos, em França, e a sua ramificação na Península Ibérica (a Luso Castelhana Guerra da Independência) a Infantaria passou a ser – defendem os Infantes – a rainha de todos as armas.

De facto quer em Poitiers e Azincourt quer em Aljubarrota e Valverde a Infantaria dizimou as fortíssimas cavalarias francesa e castelhana.

A evolução acelera com os canhões, as espingardas, os carros de combate (os substitutos das romanas catapultas) e os castelos passaram a ter interesse apenas para o turismo; aparece a aviação, as bombas atómicas e quejandas... e os mísseis; surgem outros antídotos: abrigos, bazucas, ati-aérias e os anti-mísseis.

Quando parecia que tinham sido já inventadas todas as belicosas armas mortíferas e os diferentes modos de as usar... eis que surgem outras variantes: a guerra fria, a psicológica (era a que meu pai – que Deus o tenha em bom lugar – usava comigo – só contarei a pedido) os movimentos autonomistas e emancipalistas que trazem consigo a guerrilha e por fim os homens-bomba. Será o fim? No mínimo é o fim dos que se fazem explodir. Isto não é guerra... é doidice!

É na guerrilha que vamos deter-nos; com ela todos convivemos cerca de dois anos. A guerrilha é mais uma maneira "legal" de matar em que pequenos grupos armados (bate e foge), militarizados ou não, substituem batalhões, divisões e exércitos numerosos.

Na nossa guerrilha não consta que houvesse homens-bomba mas havia minas e armadilhas, armas altamente perigosas e nada selectivas. A diferença é que aqui o seu autor, em princípio, não vai accioná-las.

Na guerrilha (talvez mais que nas guerras de numerosas gentes) a inteligência, a esperteza, a imaginação e o conhecimento do terreno são atributos da maior importância, ultrapassados, talvez e só, pela "posse" da população não combatente – como defendia Mao Tsé-Tung. Como afirmei em texto anterior, pertenci à CCaç 675 e pertencerei até ao fim dos meus dias.

O nosso capitão, além de "secreto" estudioso de Mao, era extremamente inteligente e sabia muito de guerrilha; ensinava-nos quanto podia; não seríamos tão bons receptores como ele era bom emissor; fazíamos o que podíamos.

Normalmente os nossos instrutores da E. P. (Escola Prática) sabiam apenas (ou quase) o que vinha no Guia Oficial Miliciano – creio que era este o nome. Mas também o(s) seu(s) autor(es) pouco mais seriam que aristarcos de outros aristarcos e nós... carne para canhão.

Se seguíssemos à letra o que vinha no livro, na Guiné não poderíamos montar emboscadas segundo aqueles cânones.

Sendo o terreno quase completamente plano (o ponto mais alto – cerca de 220 m – chamava-se Cuntima que significa colina do Norte) não existiam os tais obstáculos na berma da estrada para evitar a fuga de quem era emboscado. Esquecendo as regras ensinadas na E.P. montaram-se muitas emboscadas bem sucedidas.

Lembro aqui um alferes, meu instrutor em Mafra, que, quando chegou à Guiné, em Janeiro de 1966, me perguntou, no QG de Bissau, como reagíamos, lá às emboscadas. Resposta directa:
- Tal como me ensinaste em Mafra! Lembras-te?!

Ao que ele retorquiu:
- Lá, cada um "largava a posta" como podia!
- Havia muitas maneiras de "largar a posta" e tu não respeitavas sequer os teus subordinados, o que molestou muita gente.

De seguida, no café do Bento, contei-lhe como na CCaç 675 reagíamos às emboscadas e outras coisas de interesse... e logo ali o diferendo ficou sanado.

Há varias maneiras de fazer guerra segundo a imaginação e o saber de cada um:

A - Guerra "amorosa" e respeitosa

Um dia aprisionámos uma mulher de 30/40 "chuvas" (esta veio connosco). Dias depois o "capitão, com a necessária e prestimosa ajuda do nosso guia, perguntou-lhe se preferia continuar junto da tropa ou regressar ao mato. Desculpa atrás de desculpa... manifestou vontade de voltar ao seu "chão"... por causa da família.

O capitão ofereceu-lhe cerca de uma arroba de arroz e uns "panos" – manga de ronco – e transmitiu-lhe o seguinte recado:
- Vais dizer ao pessoal que retire os abatises entre Banhima e o rio Buborim (limite oeste de nossa zona); caso tal não aconteça destruirei os vossos acampamentos e não há mais arroz nem panos para ninguém !

Este vosso escrevinhador foi incumbido de transportar a "prisioneira" (ex) até ao primeira abatis. Lembrei-lhe ali o recado do capitão e imformei-a que não podia levá-la mais além porque as viaturas não podiam passar.

Uns dias mais tarde voltámos àquela zona e já não havia obstáculos na estrada; como não podiam retirar as árvores... queimaram-nos no local.

Até Abril de 1966 não houve mais abatises na estrada... mas eles abandonaram a zona.

A isto chamamos "Respeito"!... É bonito!


B – Avisar o Inimigo


Pode fazer-se guerra (não convencional) avisando amável e amigavelmente o IN dos reais perigos que pode encontrar em determinado local.

A cerca de 7 km de Binta, na estrada de Bigene, havia uma pequena ponte de madeira; os independentistas queimaram-na. Sempre que por ali nos deslocávamos (o que era frequente) usávamos pranchas de madeira e/ou as vigas em "U" metálicas das Mercedes para cruzar o ribeiro. Com aquele "toma a viga", "coloca a viga" e "recolhe a viga" perdia-se muito tempo e, com o ruído dos motores, acordávamos o IN fora de horas.

Os independentistas eram muito sensíveis! Por vezes amuavam e até faziam "birra" porque não podiam dormir a sono solto.

Era urgente mudar de rumo.

O capitão incumbiu-me de fazer ali uma ponte para que, sem dificuldades acrescidas, pudéssemos visitar os "turras" nos seus "aposentos" (covis, dizia o Alf Mendonça) enquanto iam permanecendo (por pouco mais tempo) naquela zona.

Como escrevi em texto anterior, na vida militar, especialmente em campanha, éramos "pau para toda a colher" (*).  Desta vez saiu-me na rifa ser engenheiro e empreiteiro de pontes... sem direito a apresentar a conta ao dono da obra.

Mandei rebaixar o piso da estrada cerca de 20 cm nas duas margens; derrubámos cinco palmeiras; cortámos os troncos à medida e com a ajuda do Unimog, colocámo-nos sobre o ribeiro; e qualquer das nossas viaturas já podia passar em segurança e sem mais delongas.

Aqueles troncos eram demasiado pesados para serem removidos à mão.

Na berma da estrada coloquei uma placa de "sinalização" com a seguinte informação com letra garrafal e a vermelho: "Atenção! – há armadilhas!" E desenhei toscamente dois ossos e uma caveira – sinal de explosivos.

Armadilhei apenas a placa com uma granada de mão instantânea de fabrico nacional e outra com retardador, de fabrico canadiano.

O IN passou por ali; achou graça àquela informação... real e sincera; arrancou a placa e... pum-pum... a armadilha funcionou.

Inicialmente não acreditaram na veracidade do aviso mas convenceram-se que haveria ali mais explosivos porque nunca mexeram naquela ponte rústica e obtusa construída por um engenheiro improvisado.

Como se depreende, do que atrás foi dito, a guerra pode ser feita com carinho e respeito – 1º caso e pode ser um aviso e de forma quase lúdica – 2º caso.

Nota: quase quarenta anos depois soube por um guineense (tinha naquela época 7/8anos) que os habitantes de Binta (os naturais e os "retornados" do mato e/ou do Senegal) me apelidaram de "olho de gato" porque as minhas armadilhas funcionavam sempre.

Cumpre informar que eu não tinha o "curso de minas e armadilhas" que era ministrado a um oficial de por companhia durante 3 ou 4 horas de instrução. Pensem nisto! Era mesmo assim!

Sexta, 15 de Janeiro de 2010

Belmiro Tavares (P)
Ten Mil

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]

2. Comentário de L.G.:

Sobre a guerra haverá centenas, milhares, de citações... Gosto de algumas, mais sociológicas e pragmáticas como de Clausewitz (1780-1831), o general prussiano que combateu Napoleão: "A guerra é a continuação da política de Estado por outros meios", o que implica a subordinação do poder militar  ao poder político e primado das questões éticas... Ou se quisermos o objectivo da guerra não é levar à destruição total do inimigo, mas levá-lo à mesa de negociações, onde os termos de troca são sempre mais vantajosos para os vencedores...

Outras definições são mais morais e filosóficas como a do nosso  Padre António Vieira, grande mestre da lusofonia:  “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”. (In: Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, II).

E gosto da definição do Belmiro, pura e dura: "A guerra ?  Há muitas, tantas quantas as maneiras de a fazer....". Alguns dirão que é uma definição "cínica"... Mas, e a guerra de guerrilha e de contra-guerrilha ?  Também aqui vale  tudo ?

A segunda história trouxe-me à memória o debate que ocorreu em França há muitos anos (talvez nos anos 70 ou 80) a propósito de um caso que deu brado na comunicação social, no sistema judicial e no meio político... Farto de ver assaltada a sua casa de campo, um antigo veterano da guerra da Argélia lembrou-se de armadilhar a porta de entrada... Mas não descurou a sinalização de segurança: "Cuidado, entrada armadilhada"... O ladrão seguinte teve azar: não sabia ler...

Um Alfa Bravo, Belmiro. LG
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Nota de L.G.:

Vd. primeiro poste da série de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5336: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (1): Quatro Histórias com Mural ao Fundo

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho


1. Continuação da publicação das memórias do Cherno Baldé, menino e moço em Fajonquito (1970/75), hoje quadro superior da administração pública da República da Guiné-Bissau (*):


Os amigos conhecem-se pelo volume da dádiva, ou....das sobras


Após a última partida [de futebol] da tarde e depois do toque da corneta das 19H30, voltava para o meu cantinho no quartel[,em Fajonquito,] a fim de recolher as sobras do jantar.

O meu barulhento patrão, o Dias, raramente trazia alguma coisa do refeitório, ele comia tudo e nem sequer se lembrava de pedir uma segunda dose, ocupado em pôr pitadas nos mexericos e conversas alheias, brigando as vezes quando tomava alguns copos de tinto a mais. Mas, mesmo assim, era ele que ordenava aos outros para me trazerem a comida, assegurava-me prontamente, atirando o seu prato no chão ainda por lavar.

Felizmente o Teixeira, um fino e aprumado lisboeta, mecânico-auto, vinha sempre atrás para salvar a situação. Ele trazia o prato cheio de comida que solicitava especialmente para mim no refeitório. De todos, era o mais calmo e ponderado, parecia também ser mais instruído. A destoar, todavia, era um pouquinho de nada loiro e muito solitário, passando a maior parte do tempo ocupado em leituras de jornais e revistas com figuras de mulheres semi-nuas, claro, quando o Dias estava a dormir ou se ausentava do quarto.

Ele não nos podia salvar de todos os perigos naquela concentração de jovens soldados endiabrados e mal humorados mas, à sua frente, nunca ninguém se atrevia a dar-nos um pontapé, ele intervinha de imediato, claro, quando o podia fazer. Era ele que se encarregava de recolher o meu salário ao fim do mês, 2 escudos e cinquenta centavos cada um (?), dinheiro que entregava à minha mãe quando não deixava perder no caminho. Não precisava daquele dinheiro para nada, pois, para mim bastava haverem as batatas, os frangos e o bacalhau que, de resto, pelo tamanho e qualidades, nunca mais voltei a encontrar em sítio nenhum.

Havia também o Silva, muito mais novo que os outros, moreno, óptimo futebolista e bom comilão, no dia em que se preparava um guisado de carne ou cozido à portuguesa, ele não trazia nada e encarregava-se, também, de lavar o seu prato.

O quarto homem, o Magalhães, era um empata-fodas de merda, sorriso amarelo e riso solto, sem amigos, sem princípios morais, trazia ou não trazia mas mandava-me lavar o seu prato na mesma e quando demorava a fazê-lo levava ainda um pontapé que fazia cair os óculos ao meu bom e gentil alfacinhas (Teixeira) em cima da sua cama.
- Filha-da-puta-barrote-queimado, ainda a resmungar!...

Ele estava bêbado a maior parte do tempo e não era a mim que ele se dirigia, seguramente. Não, ele dirigia-se a algo, invisível, que estava para lá de mim. De algo que o tinha obrigado a estar ali naquele cu-de-galinha-de-merda, como gostava de repetir, onde certamente não devia estar àquela hora do dia, do mês, do ano...e sei que mais.

Era uma revolta interior contra si mesmo e contra a sua impotência de mudar as coisas na sua maldita vida de soldado raso debaixo daquele calor tropical. Apesar dos momentos de mau humor frequentes, era bom profissional, conduzia um Unimog sempre limpo e impecável e nunca faltava às missões da coluna para Bafatá que tinham lugar uma vez por semana. Ao seu lado ia o Alferes Maia, chefe da missão.

Cherno Baldé

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

domingo, 28 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4598: Estórias avulsas (35): O porco que andava à solta (José Carlos Neves)

1. O porco que andava à solta é uma estória que o José Carlos Neves, (*), ex-Soldado Radiotelegrafista do STM, Cufar, 1974, nos enviou em mensagem do dia 26 de Junho de 2009:

O porco que andava à solta

Um belo dia resolvemos (eu e alguns Camarada da Intendência) ir tomar banho à piscina que era nem mais nem menos do que uma pedreira onde a água da chuva se concentrava e formava uma bela piscina. E por estranho que pareça até estava limpa.

Estávamos a refrescarmo-nos quando demos pela presença de um porquinho muito jeitoso na borda da água. Como a fominha apertava, não se pensou duas vezes. Um saiu da água pegou na G3 e zás, lá estava o porco morto. O pior é que um tiro de G3 faz barulho e logo quase de imediato a Senhora que andava a pastar os porcos apareceu.

Procurou o porco por todos os lados, só se esqueceu de o procurar debaixo de água, onde ele foi parar antes que viesse alguém. Até aqui tudo bem, só que a dita Senhora que não era parva nenhuma e já sabia com quem lidava, não saía dali. O porco tinha que estar em algum lado. E estava! Debaixo dos meus pés porque teimosamente queria vir à superfície.

O tempo foi passando até que passou uma viatura do Exército. Fizemos sinal e lá pararam. Explicámos a situação e eles fizeram-nos companhia até que a Senhora resolveu afastar-se por uns momentos. Foi o suficiente para o porquinho, num salto acrobático, saltar da água para cima da carripana.

O problema todo é que tivemos que repartir o bicho por mais gente o que ficou menos para cada um. Mas mesmo assim deu para matar a fominha.

Escusado é dizer que a tal Senhora no dia seguinte foi perguntar pelo porco ao Comandante, mas nós, que também não éramos completamente parvos, tratámos logo de enterrar as tripas e apagar todos os vestígios do crime.

Esta foi uma das estórias que vou tendo para contar.
Qualquer dia conto outra se virem interesse nisso.

Um Alfa Bravo para toda a Tabanca Grande
José Carlos Neves
Soldado Radiotelegrafista do STM
Cufar, 1974
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4546: (Ex)citações (31): Tenho pena daquele povo afável que vive hoje na miséria absoluta! (J. Carlos Neves)

Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4519: Estórias avulsas (34): Desertei depois de ter vindo da Guiné (Manuel Maia)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4432: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (7): 4 dias de inferno em Junho de 1969


Amigos e camaradas, 

QUARENTA ANOS estão passados. 

Vou tentar descrever o melhor possível como foram os 4 dias de Inferno (7, 8, 9 e 10 de Junho de 69) no Hospital Militar. 

Em Março, tentei obter algum apoio para que a história tivesse melhor composição, para ter nas datas as zonas de onde vieram as evacuações, mas como tal não foi possível, vou descreve-la da melhor forma que poder. 

Dia 07 (sábado) 

Começava o dia com manhã calma e serena, como já muitas anteriores, que nos levava por momentos a pensar que a Guerra tinha acabado. Haviam duas semanas passadas que as evacuações eram escassas, tanto por hélios como pela base, passavam dias e dias sem uma evacuação, a calma tornava-se surpreendente. 

Tinha por hábito passar as manhãs de sábado no hospital, só depois de almoço ia até á cidade, os que não estavam de serviço, na maioria, piravam-se logo de manhã. Almocei, fui lavar a camisa que queria vestir, cortei a barba, tomei banho, enfiei-a no corpo e dirigi-me para a entrada principal para ir na carrinha que nos levava para a cidade, atrasei-me, já tinha saído, fiquei a aguardar pelo próximo transporte. 

Passado pouco tempo sinto a meu lado o médico dia, que me pergunta: 

- Para onde vais? 

Em tom de brincadeira, lhe respondo: 

- Vou ás putas! 

- Ias ! E os que lá estão têm de vir, vamos ter muito trabalho. 

Pensei que ele estava a brincar, não sei como ele soube, mas era verdade. 

Talvez não tivessem passado 5 minutos, ás 13h e 17mn, vejo vir em direcção ao Hospital 2 hélios, sem que o tivéssemos previsto… ia começar o INFERNO. 

Começam as corridas desenfreadas das viaturas do hospital para a cidade, tinha-se de ir buscar médicos, enfermeiros e todo o pessoal que fizesse parte do HM. 

A paga dos dias de calma surpreendente tinha chegado. 

Começavam as perguntas sem resposta, pensamentos sem sentido, tudo isto tínhamos de deixar para mais tarde e dar ao cérebro a liberdade de ocupar-se com as orientações necessárias para o trabalho que íamos ter pela frente, tinha de ser feito. 

Não fui dos que corri á cidade por me encontrar á civil, mas desde o primeiro momento fazia a retirada dos feridos dos helicópteros para dentro do hospital. 

Pelas 3 e tantas da tarde, tenho que mudar de roupa para puder dar apoio á ambulância que está de serviço á base, pois para lá, também já tinha começado a corrida. A tarde não tinha começado bem, mas ia ficar pior, saí do hospital com destino á base onde já se encontrava o outro condutor o B (só ponho a inicial de seu nome) lá nos encontrámos e ao mesmo tempo recolhemos os feridos com destino ao hospital, eu saí pala ultima rua da base, ele pela do meio que vinha de frente á porta de armas, chegados ali, ele sai primeiro e lá fui a trás dele directos ao hospital, como devem calcular a boa velocidade, passado os Adidos, em frente á Engenharia dá-se o azar, o B atropela 7 africanos que se encontravam á beira da estrada, não parámos nem ele nem eu, teríamos que desocupar primeiro as ambulâncias, para os vir recolher, quando lá chegamos já tinham seguido num Unimog da Engenharia, se não me engano 5 morreram. A partir desse momento o HM fica com menos um condutor, quando mais falta fazia. 

Resto do dia, trabalho em força, começa o posto de socorros a não ter capacidade para tantos feridos, começasse a pôr macas em fila no corredor com os feridos menos graves, que prontamente ali são assistidos com os cuidados necessários, deixando assim um espaço maior no P S para os casos mais graves que posteriormente iam chegando, que não foram poucos, pudessem ser encaminhados com mais rapidez ao local adequado ao seu tratamento e recuperação, quero com isto dizer, SO, CI (cuidados intensivos), PC (pequena cirurgia) e BOs (blocos operatórios), aqui sim se terá instaurado o caos, não havia mãos a medir, nem médicos, nem enfermeiros tiveram o mínimo descanso pela noite dentro e restante pessoal tinha muito trabalho pela frente e ajudas a prestar. 

Posso dizer que, até dentro do posto de socorros, foram feitas massagens cardíacas (peito aberto) directas ao coração. 

Por muito que me custe, não posso fugir á verdade, alguns tiveram como destino a ultima morada. 

Cama, nem vê-la. 

Estava aberta a sala da messe de sargentos, durante a noite, para se ir petiscando qualquer coisa, mais que não fosse, pão com manteiga e copos de café com leite. 

Dia 08 (Domingo) 
 
Porra, mas que está a acontecer? 

Rompe o dia, sem termos tempo para um bocadinho de merecido descanso e a casa ainda um pouco desarrumada, com o som característico de hélices em rotação, tinha começado mais um dia sangrento não sei se pior ou igual ao anterior, mas melhor não foi. 

Chegada e partida de helicópteros todo o dia, corrida de ambulâncias para cima e para baixo, mas desta vez, com PM no percurso. 

Spínola, chega de manhã ao Hospital para se inteirar da situação. 

É levantada a ideia de se ter de montar um Hospital de Campanha. 

Não se concretiza. 

Corrida de dois Unimogues 404, durante o dia, para a cidade e Brá a fim de recolher militares para dar sangue. 

Entramos uma vez mais pela noite dentro com o mesmo esquema da anterior. 

Cama, nem vê-la! 

Talvez dada a circunstância de só termos entre 20 e 22 anos, pela força de vontade, com a ajuda de algumas chuveiradas que íamos tomando de tempos a tempos, conseguíamos levar a cruz ao Altar, com dignidade e respeito, mantendo a cabeça bem equilibrada no sitio para não haver nenhum descontrolo. 

A sala do copo de café com leite, continuou aberta toda a noite 

Há!... não posso esquecer que os médicos também precisavam, e bem, de serem tratados. 

Quando tinham a possibilidade de descansar um bocadinho, lá o íamos levar a casa para tomar um bom banho e mudar de roupa, era só esperar e traze-lo de volta, fosse de dia ou de noite, alguns médicos, num bocadinho que tinham durante a noite, vinham ao bar encostarem-se um pouco no sofá para descansar a pestana, mas o tempo era pouco até ao reinicio da próxima viagem. 

Éramos uma grande equipa, talvez possa mesmo dizer… que família! 

Dia 09 (2ª. Feira) 

A manhã surgiu mais calma, que alivio, mas a noite uma vez mais se tinha tornado bastante cansativa, ao encarar a claridade os olhos pediam uma boa chapinhada de água, lá os levei para baixo do chuveiro com corpo cabeça e tudo, pois o dia ainda prometia muito trabalho, não com tanta intensidade, mais compassado tanto por ar como por terra. 

Spínola chega de manhã para se inteirar novamente da situação. 

Chegou a ser posta a ideia de serem substituídos os condutores do Hospital por condutores dos Adidos ou da PM. 

Não foi aceite, nem tão pouco para um serviço daqueles faria sentido. 

O Hospital, se não me engano e creio que não, estava com 15 condutores, no mínimo. 

Alguns já tinham começado a descansar pela manhã. 

Cegada a noite, a 3ª foi de vez, fui para a cama, dormi que nem um anjo, nem o diabo me acordaria. 

Dia 10 (3ª. Feira) 

Levantei-me ás 7, a manhã estava calma no exterior. 

Mas o interior do Hospital continuava com bastante trabalho. 

Durante o dia ainda houveram muitas evacuações, mas nada comparado com os dias anteriores. 

Mas como o azar não podia ser só para os de fora, também teria de tocar uma vez mais a nós… não falhou!  

E calhou ao mesmo. 

Como algum pessoal estava a descansar, isto referindo-me a condutores, e os que não estávamos andávamos atarefados, e bem, com os trabalhos em curso, o B, ao ouvir dizer que era preciso ir arranjar mais malta para dar sangue, se ofereceu para ser ele a fazê-lo. 

Todos sabíamos e ele também que não podia conduzir, motivado pelo acidente de sábado atrás, mas tanto pediu e de boa forma o fez que o Tenente deixou. È claro, filho pede…pai cede! 

E lá foi. 

Levou o Unimog Grande com a parte de trás coberta com a capota. 

De regresso ao Hospital, onde só podia trazer 18, trazia 23, quando já estava perto do hospital, em frente ao Bairro da Ajuda, pelo que disseram, um cão aparece-lhe á frente ele guina para o lado da berma falha e tomba, capotando para a vala. Não podia ser pior. 

Se o trabalho no Hospital ainda andava bastante complicado, pior ficamos. 

Deu mortos, feridos e amputados. 

O 1º a socorrer foi um condutor da Base, vinha a passar e levou dois ou três, ao entrar com o autocarro bateu com o mesmo no ferro que levantava na entrada principal que o virou para o outro lado. 

Mais uma noite entrada por ai dentro. 

O condutor B, ficou bastante mal, teve de ser operado á cabeça e evacuado para Lisboa. 

Não sei se se salvou ou não, não soube mais nada dele. Por esse motivo só ponho a inicial de seu nome. 

NOTA: Se tivesse comigo os apontamentos que trouxe, estariam também aqui os nomes dos soldados evacuados e as zonas de onde vieram. 

Tivemos também o apoio da ambulância da base, a esposa de um médico do Hospital, que também era médica, esteve presente. 

Pelo que se falava, todos que eram médicos em Bissau, para lá foram encaminhados. 

Não foi montado Hospital de campanha, mas foram fretados á TAP aviões para fazerem as evacuações para Lisboa naqueles dias. 

As Nossas Queridas Enfermeira Pára-quedistas, não me lembro bem, depois de um dia bem estafadas, á noite ainda lá iam dar uma mãozinha. 

Houveram evacuações nocturnas. 

Fico por aqui. 

Um abraço para todos, 
António Paiva 

________ 

Nota de MR: 

Vd. último poste desta série em: 


sexta-feira, 17 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4203: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (6): É uma alegria a notícia de que se vai ser pai

1. Mensagem de António Paiva (*), ex-Soldado Condutor no HM 241 de Bissau, 1968/70, com data de 11 de Abril de 2009:

Caros Luís, Carlos e Virgínio

Como é do conhecimento de todos, o vencimento de um soldado na Guiné era fraquinho, com o prémio de especialidade que era de 500 pesos sempre ajudava a reforçar um pouco mais a algibeira. No hospital ainda tínhamos mais uma vantagem que era de três em três meses lhe podermos acrescentar mais 500 pesos com a dádiva de 0,500 litro de sangue, não dava para grandes aventuras, mas ia dando para umas cervejas, umas sandes, de vez em quando uns jantares fora e uns copitos na cidade.

Aos que eram casados, talvez isso não lhes fosse permitido, pois tinham que deixar cá para sustento da sua cara-metade uma parte elevada do seu vencimento.
Por este motivo vou contar o que se passou com um camarada:

Dormíamos na mesma caserna, eu na cama de cima e ele na de baixo mesmo ao lado, era o vizinho do r/c esquerdo, muito bom rapaz. Como era casado não se podia estender muito, se estava de serviço não estava na cama, se não estava de serviço lá o víamos estendido na cama ocupando o seu tempo com a leitura de umas revistas.
Nunca foi menino que se visse na Cantina a beber uma cerveja ou a comer uma sandes, não fumava e se por vezes o desafiássemos logo respondia que não podia, porque tinha a mulher para sustentar.
Não se podia dizer que fosse mau marido, pois tinha muito em conta o sustento de sua mulher.

Em Novembro de 1968, pela hora do almoço, quando estou a entrar na caserna, dou conta de haver uma grande alegria no seu interior. Fiquei surpreso, o meu vizinho do r/c esquerdo, estava alegre e bem disposto, queria pagar uma cerveja a alguns companheiros de caserna, não era para menos, pois tinha na mão uma carta da mulher a dizer-lhe que já era pai de um rapaz.

Posso dizer que fui um dos premiados. Sem ele, 4 ou 5 juntámo-nos e pensámos no caso.
Ele chegou ao hospital em Dezembro de 1967.
Ele era Enfermeiro.
Esqueci-me de lhe perguntar que data tinha a carta, podia-se ter atrasado na viagem.

Um Abraço
António Paiva
__________

Vd. poste de 5 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4143: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva ) (5): A Justiça Militar ou um processo... kafkiano

domingo, 5 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4143: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (5): A Justiça Militar ou um processo... kafkiano

1. Mensagem de António Paiva (*), ex-Soldado Condutor no HM 241 de Bissau, 1968/70, com data de 1 de Abril de 2009:

Caros Luís, Carlos e Virgínio

Vou falar de mim.
António Paiva


A Justiça Militar ou um processo... kafkiano

Soldado e Furriel

Tendo regressado em Junho de 1970 a bordo do Carvalho Araújo com destino à disponibilidade, senti-me feliz, missão cumprida. Estou livre.

Em Novembro do mesmo ano, 5 meses depois, algo me surpreende, recebo em minha casa um postal do Ministério do Exército a notificar-me com apresentação obrigatória, dia tantos de tal, no Serviço de Justiça em Sapadores.
- Mau, que querem de mim, que fiquei a dever, que tenho para pagar?

Muitas perguntas fiz a mim próprio e não encontrei respostas.
Comecei a pensar:

- Como me apresentei com um dia de atraso no CICA 5 em Lagos e ouvi dizer que dava uns dias de prisão, o que não veio a acontecer, segui em frente ficando registado na caderneta como Refractário, apresar de estar registado na caderneta a data certa 18 de Setembro de 1967.

- Por cá, nada mais de anormal se passou, só fui uma vez ao Cais da Rocha e duas ao aeroporto, na segunda vez embarquei por ter faltado um Oficial.

- Na Guiné, em Novembro de 1969, a faltar poucos meses para fim de comissão, tive um acidente com um táxi na Estrada de Santa Luzia, mesmo atrás do Hotel Avenida (penso que era assim que se chamava) tendo o mesmo batido na porta do prédio, a meu lado levava um camarada que me tinha pedido boleia no QG até á Amura, grande amigo, que ficou com leve ferimento na testa por ter batido no pára-brisas, o qual partiu, mas foi-se embora dali para me evitar um Auto de corpo-delito.
No dia seguinte estava no Hospital o senhor António, à minha procura, dono do Restaurante que havia na estrada entre os Adidos e a BA12, onde íamos comer o bacalhau assado, para me informar que tinha ido ao QG assinar um termo de responsabilidade pelo acidente e que o processo iria ser arquivado. Este senhor era também dono do Táxi. Dias depois saiu no Boletim Informativo do Hospital o arquivamento.

- No dia 31 de Dezembro de 1969, não por culpa minha, mas sim do whisky, sou apanhado na estrada do aeroporto com excesso de velocidade, levo 10 dias de detenção, a minha sorte foi não soprar no balão, senão os dias eram mais. Era fim de ano.

- No dia em que cá cheguei, fui aos Adidos, não me aceitaram, teria de ir ao RSS em Coimbra por ser a Unidade a que pertencia e só lá podia passar à disponibilidade e entregar a restante farpela militar.
Tudo bem, fui para casa tomar banho, que bem precisava, almoçar com meus pais e depois parti para Coimbra, onde cheguei pelas l6h e 45m.
Azar, bati com o nariz na porta, a Companhia a que eu pertencia, Auto Macas, tinha fechado mais cedo, só lá estava o cabo com quem falei e lhe disse:
- Já que aqui estou, vou lá cima ao Norte ver a família, Castro Daire, e amanhã mais cedo passo por cá.
E assim fiz, às 15h do dia seguinte lá cheguei, fui ter com o cabo que prontamente me diz:
- Estás f…, o Sargento não me deixou fazer o espólio do que cá deixaste, que vinhas à civil e não te apresentaste a ninguém, tens de ir falar com ele e podes ter 15 dias de prisão à perna.
Quem teve o corpo todo, 33 meses e 7 dias, preso à vida militar, 15 dias à perna não seria grave.
Lá fui ter com o sargento, figura cativa do quadro.
Depois de dizer tudo o que tinha para dizer, ao fim de alguma conversa entre ambos, volta a olhar para os papéis, pensei que antes não os tinha visto bem, olhando para mim me diz:
- Os c… que vem da Guiné, vem malucos, vá-se embora.
- Obrigado. - Agradeci.
Lá fui com o cabo entregar o que tinha.

Tudo isto era os meus pensamentos até ao dia em que tinha de lá ir. Algo teria ficado mal e eu não tinha pago no tempo.

Chegado o dia, lá me dirigi à Secção de Justiça em Sapadores, onde fui recebido por um Capitão.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Recebi este postal para me apresentar aqui.
- Sim, senhor. É o sr. António Duarte de Paiva?
- Sou.
- Com o numero mecanográfico O6243167?
- Sim.
- Esteve na Guiné?
- Estive.
- Veio cá de férias?
- Vim.
- Mas não voltou.
- Voltei, sim.
- Como pode ser, se você está aqui.
- Diga o que se passa.
- Você é Furriel, estava numa Companhia do Batalhão 1911 (penso ser este o número que ele disse) veio cá de férias e desertou, pode ficar detido.
- Se fui Furriel, o Estado deve-me dinheiro, recebi como Soldado, aqui tem minha caderneta.

O Senhor Capitão, examinou a Caderneta, só me disse:
- Desculpe, há aqui um lapso.
- Lapso não, erro e bem grande!

Resolvido o problema, lá vim embora em liberdade.

Será que esse Furriel existiu ou foi só imaginário? Se existiu, safou-se bem com o meu nome e nunca foi procurado.

O certo, é ter sido mais um erro dos muitos que se cometeram nesse tempo.

Um abraço
António Paiva


2. Comentário de CV:

É caso para dizer que um homem cumpre o seu tempo de comissão integralmente, já depois de estar a gozar a peluda, não merece apanhar um susto destes.

Sabendo nós como funcionam os burocratas, que logo pela manhã, quando começam a trabalhar, ligam a máquina de complicar e então na Tropa muito pior, devido a uma cadeia hierárquica, em que cada um pisa com prazer o de baixo, o nosso camarada António Paiva teve muita sorte em não ser graduado em Furriel, só para apanhar com a porrada destinada ao outro sortudo desenfiado.
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3917: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (4): Não cobiçar a mulher do próximo

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3913: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (3): Quanta chuva, Mário ?

1. Mensagem de Joana Santos, com data de 16 de Fevereiro de 2009:

Caro Luís Graça,

Remeto mais um texto que a minha mãe escreveu para o Blogue.
Ela lamenta que seja um pouco chocante. Mas foi assim que se passou.

Cumprimentos,
Joana


2. Em Bissau, controlado desespero (III)

Inquieta quietude

[Título e fixação do texto: Editores C.V. / L.G.]

Começaram as visitas. Primeiro, as minhas; depois, as dele, que tinha licença para ver-me em casa. Vivemos tardes de amor. E eu, sozinha, passava as manhãs na rua, comprando cajus e cocos no mercado, algumas folhas de cola, uma curiosidade.

Diziam que aquilo dava força e experimentei. Dava mesmo. Da experiência científica soltou-se um energético e solitário charleston (não há mais divertida – e difícil – dança de precário equilíbrio de pés, do corpo todo, aparentemente desconjuntado!). Nesse estado me encontrou, uma vez, a bajuda. Deitei-lhe a língua de fora. E ela abanou-me, empurrou-me para a casa de banho. E, no espelho, vi uma palhaça, de língua encarnada, que ria, ria… Bastava de loucuras. Lavei, escovei, o vermelhão fora-se. Mas, no meu sistema, dissipara-se a moleza tropical.

Claríssimas manhãs de Bissau.

Insomne, já nem dois comprimidos me ajudavam, atravessava as noites e, cedo, postava-me à janela que se abria sobre o pátio, aguardando a chegada da Joana. Dava-lhe escassas ordens e partia, buscando o sombreado das árvores, atenta à inigualável beleza dos nativos, fulas, futa-fulas, mandingas, os mais belos. Às sabadoras brancas, ao colorido dos panos femininos, ao comportamento dos periquitos e maçaricos, às crianças com os pequenos rostos manchados de tinha, às vozes agudas, às risadas, ao meu leproso. Não comprava nada, nada me induzia aos gastos em sedas libanesas.

Pessoas havia que já me conheciam:
-Corpo s’tá bom?
-S’tá bom.

Conhecera uma senhora cuja avó ainda fora animista. Decidi perguntar à minha bajuda Joana, manjaca era ela. Fui ao pátio, coloquei os dedos na terra, acariciei um cacto, abri os braços, fiz de pássaro… depois, o sinal da cruz:
– Eu, cristã… e tu? – um dedo no seu peito. E ela, muito séria, persignou-se:
- Avemaria... - disse.

Que sabia ela do significado daquela oração? Afinal, de animismo nada aprenderia, e só, muitos anos volvidos, assistiria a uma prática de culto animista, numa longínqua montanha da cadeia do Pamir…

De resto, outras coisas me ocupavam. Como matar a fome? Que cozinhar? Como chegar ao hotel, para jantar, fugindo aos assobios e a um provável beliscão da tropa branca?

Em breve, muito em breve, o Mário chegaria a casa. Faria transportar duas camas do Q.G. e armá-las-ia no meu quarto, com grande estrondo.

Andava inquieto, expectante.

A poucos dias do seu aniversário (31 de Maio), consegui, por intermédio de um vizinho, bacalhau. E foi, enquanto preparava o enorme pirex de arroz, receita longa e complicada, que, súbita, irrompeu a estação das chuvas. O Mário não estava.

Chovia em catadupas. Corri para a rua, molhei-me toda, voltei ao forno, a roupa a secar-se-me no corpo.

Trinta e um de Maio de 1970. Quanta chuva, Mário? Vinte e cinco.

Um dia, dois dias, quantos, antes que ele partisse? Não recordo. Na sua ausência, um outro amor crescera – Bissau, a suja, colorida, mal crescida cidade africana, o cinzento opaco do Geba, junto ao cais, o céu atravessado de helicópteros, suspensas notícias, indo e vindo, silêncio povoado pelo longínquo matraquear do medo.

Nela aprendi que o belo não é o perfeito, que o belo pode ser, também, o feio em ignota desmesura, estado de alma, inquieta quietude, inesperada transigência.

Mas foi, talvez, no segundo dia após o seu aniversário, que o meu marido começou, à noite, a tirar, de cima do armário, malas e sacos (“Eh, menino, esse saco é meu!”, perdi-o). Atirava, lá para dentro, roupas, os livros, os discos, todos os seus pertences. Olhava, espantada, o renascer da obsessão. Que dormisse eu, disse. Ele iria muito cedo. Virou-se para a parede, adormeceu. Mas eu, não.

E muito, muito cedo, já vestida, ao canto da janela, aguardava o dia. Ele enfiava o camuflado, bem passado. Corri à casa de banho, arrebatei a gilette, o creme de barbear, a pasta, o pente, a água-de-colónia que lhe dera. Saco adentro! Um beijo de raspão na face do "adorado amor”. Corri atrás dele, batera com a porta, não a abriria eu.

Despi-me de novo, sem fome. Dois comprimidos de Vesparax chegariam? Chegaram. E fez-se noite.

Não dera por nada, por ninguém. Arrastei-me, ensonada, até à cozinha. O interminável bacalhau, lá estava ele, no frigorífico. E, com o pano dos tachos sobre a mesa, a colher de sopa na mão, comi-o gelado, de dentro do pirex. Lá iria, de novo, o meu manjar para o frio.

Peguei num livro, atirei-o contra a parede.

Há coisas que nos ficam na memória. Essa de me levantar e afagar a capa do livro é uma delas. E, depois, outra: as luzes apagaram-se, calou-se a ventoinha. Tacteando, lá descobri o copo e os comprimidos. Dois? Três? – Já não sei.

Foi só com o barulho da porta da entrada, que alguém parecia querer deitar abaixo, que acordei.
- Joana - gritava - A porta. O meu… o meu….

Não era capaz de me lembrar de como se dizia “roupão”. Mas a bajuda, certeira, percebeu e atirou-mo, saiu correndo, abriu a porta.

Ali estava, já tarde, na soleira, o Alexandre, boininha debaixo do braço, prazenteiro.
- Então o que era aquilo? - perguntava, e eu:
- Que dia é hoje? Quando é que o Mário foi?- E ele:
- Ontem, não te lembras? Feriste-te nos pés?

Não, não me tinha ferido. Olhei de relance para os pés e para o chão da sala. Sangue. Deve ter percebido alguma coisa que eu não entendia. Queria que chamasse a Inês? O David?
- O David - concordei.

Disse-me que era tempo de voltar para Lisboa, que ia tratar, quanto antes, da passagem. Estava eu de acordo? Estava.

Em que logro me deixara escorregar de alma e corpo inteiros? Onde era essa cidade de Bolama, que me fora vagamente prometida? O talvez? Que fazia eu ali? Impunha-se-me a lealdade: se o meu marido voltara para donde viera, seria porque não podia fazê-lo de outro modo.

Entretanto, a minha gente já se mexia em reboliço. A bajuda e a engomadeira tiravam lençóis, lavavam o chão, mas, na casa de banho, ainda havia mais pegadas. Talvez tivesse sido esse o primeiro dos meus abortos espontâneos.

Uma perda é o impossível, sem remédio.

Breves, os cinquenta e três dias estavam a chegar ao fim.

Cristina Allen

Fevereiro de 2009
__________

Nota de CV:

Vd. postes da série de:

9 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...
e
8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!


O Marechal Spínola, a partir de retrato oficial na Presidência da República 
 

1. Mensagem de Joana Santos:

Caro Luís Graça,

A pedido da minha mãe, junto um texto seu,  destinado ao Blogue.
Depois seguirão mais dois e um outro para o Carnaval, segundo me disse.

Cumprimentos nossos,

Joana Beja Santos


2. Há uns dias atrás a Cristina Allen tinha-me respondido a um mail meu, em que procurava inteirar-me da sua saúde (ela acabava de ser sujeita a uma intervenção cirúrgica) ao mesmo tempo que lhe dava notícias de uma família com que ela havia privado na sua lua de mel em Bissau.

Caro Luís Graça,

Estou a recuperar bem, em casa, e agradeço o seu cuidado. Reenviou-me uma mensagem preciosa que me traz notícias da família que mais me acarinhou em Bissau.É interessante saber como o seu Blogue tem vindo a ser um ponto de encontro de pessoas que considerava perdidas para sempre. Já cumpri os meus 53 dias, e em breve receberá notícias minhas. Aterrei na Portela com todo o vigor.

Um abraço, Cristina


3. Os meus 53 dias de brasa em Bissau > Desespero controlado (II) (*)


Breve história do alguidar comunitário, com fim feliz

(Ao Cabral, que me desejou força!)


Referi, no último texto que enviei, que deixara o Alferes Beja Santos em “banho de Maria”, no Hospital Militar.

Para quem cozinha, nada de especial nesta comparação. O calor insuportável daquele quarto de três, a atmosfera carregada de fumo, o fervilhar dos ânimos, tinham qualquer coisa de um pudim, cozido em calor lento, que, por vezes, se deslaçava e tinha, lá no fundo, uma camada espessa, inexoravelmente queimada. O que estava certo. Aquela terapia só de leve se exercia, à superfície dos comportamentos. O resto descia ao fundo da memória e se, por vezes, se soltavam bolhas de agressividade libertadora e benfazeja, afadigavam-se logo os enfermeiros em alisá-las, à força de injecções e tranquilizantes comprimidos.

Considerações à parte, vivia-se o quotidiano.


Fachada do HM 241, Bissau


Nessa manhã em que seria hospitalizado, o Mário e eu faríamos as malas e procuraríamos outro quarto, na “Berta”. Estava ali um espaço fresco e sombrio, com uma larga cama. Sem desfazer as malas, desci para o almoço e deparei com uma execrável salada de feijão-frade com atum. Os feijões, minúsculos e mal cozidos, o atum, na prática inexistente, cebola avonde, a gritar pela intervenção rápida da escova e pasta de dentes! Pousei ainda os talheres, mas (“saco limpo cá tá firma!”) enfrentei o questionável cozinhado.

Uma mãozinha leve tocou-me no ombro. Era a Berta, untuosa, que me perguntava se gostara do almoço (“sim.”), se o meu marido vinha almoçar (“não, foi hospitalizado.”), por quanto tempo (“não sei”) e, por fim, o tiro certeiro: num quarto de casal, eu não podia ficar, seria perder dinheiro com uma pessoa que ocupava um quarto de duas… mas ela conhecia uma senhora que alugava quartos, pessoa muito decente, e eu poderia ir comer ali as refeições (“é o vais!”, pensei…).

A senhora trabalhava nos Correios, queria eu ir já? Respondi-lhe que me arranjassem um táxi, quanto antes, me dessem a morada, e ela prontificou-se. O motorista chegou e era ali mesmo, ao cimo de uma avenida, que terminava na Praça do Império. Conheci, assim, o João Carlos, e o seu táxi.

A nova senhoria mostrou-me um quarto em cuja cama eu mal cabia, e, de seguida, a casa de banho, à qual não chegava água corrente, e onde nada funcionava, a não ser um enorme alguidar onde, desculpava-se, eu teria que mergulhar a esponja. O democrático alguidar tinha um suspeito fundo de sarro, mas lá lhe fui dando a semana adiantada, que me exigia. Farejei o armário, que cheirava a desinfectante e a naftalina, espalhei pelo quarto umas gotas de Miss Dior (oh vanitas!) e adormeci exausta. Acordei a tempo de sair, comprar água “Perrier” (não havia “Vichy”) e mais um frasco de álcool.

Pior seria a noite. Comecei por secar a bacia do lavatório com a toalha comunal. Entornei-lhe dentro uma boa porção de álcool e acendi um fósforo. Ali estava a labareda das minhas desinfecções. Porém, daquela vez queimei a franja. E, de novo, a toalha me ajudou. Só então deitei a “Perrier” no lavatório, aguardando que as bolhas se desfizessem. Lavei a cara, limpando-a à fralda da camisa. 

Nessa noite, ainda tive que ouvir o Roberto Carlos, aos berros. E travei uma incansável batalha com uma grande barata de asas. Acendi a luz para ler e lá estava ela, em cima da mesa-de-cabeceira. Parecia olhar-me e saber, de antemão, o que faria. Tinha o chinelo na mão e, mal o erguia, a barata voava. Perseguia-a, brandindo a arma de arremesso, e ela voava, zumbia. Quando voltava a atirar-lha, ela saltava e, atraída pela luz do candeeiro, voltava, inocentemente, ao seu poiso. Recomeçava a batalha, e ficávamos na mesma. Deixei-a, enfim, gozar do espaço conquistado. Experimentando um “Vesparax” do David [Payne], dormi a sono solto.

Pois foi exactamente à esplanada da aleivosa Berta que, repetidos os rituais do álcool, dos fósforos e sumárias abluções, eu fui parar para um frugal pequeno-almoço, na manhã seguinte.

Talvez o Padre Afonso, que tinha sempre um cafezinho e biscoitos das suas “confessadas” para repartir comigo, conhecesse alguém que me albergasse com alguma dignidade. Pus-me a caminho, mas não fui longe. As tiras da sandália do pé direito soltaram-se quase todas da sola e, chinelando, fui até à praça de táxis – uma eternidade a alcançá-la. 

De novo, o João Carlos, o motorista que falava português. “Para o Pintozinho!”, disse, e ele: “Mas é já ali”. Mostrei-lhe a sandália e ele riu-se, dizendo que já tinha reparado. Ríamos os dois. Fiz-lhe um gesto com a sandália desfeita – ou parava de rir ou levava com ela! Ameaça vã, o rapaz não parava de rir. Recusou a gorjeta, e disse-me que, quando precisasse, bastava telefonar para a praça, estacionava sempre lá. Escreveu o nome e o número num papel. A pária da “Berta” encontrara transporte privado.

Tirei a outra sandália e subi descalça as escadas interiores. Da secção dos relógios e ourivesaria saltou uma mulher jovem, aos gritos: “MariCristina! MariCristina!” Reconheci o sotaque alentejano de Aljustrel, a minha terra. Houve um apertado abraço. Inesperada, estava ali a Fernanda Ramires, das mãos e agulha de ouro que, tão jovem, fazia maravilhas de costura. 

Desabei em lágrimas para cima dela, que também limpava as suas, comovida. Sua mãe, sua avó, tinham sido nossas vizinhas, acudido às nossas doenças, às nossas mortes, e havia, entre nós todas, uma cumplicidade amiga. Não tinha a Ilda, sua mãe, ajudado a amortalhar a minha avó? 

Contei-lhe da Berta, do alguidar, da franja queimada. Fizemos planos. O Quito, seu marido, havia de estar de acordo. E eu, já de sandálias novas, tinha na mão o molho de chaves da sua casa. Eram minhas. Tudo estaria por minha conta. Passava a ter uma sala, com aparelhagem para a minha música, cozinha, sala de jantar, um quarto fresco, uma casa de banho de luxo, pátio, lavadeira-engomadeira e a “bajuda” que escolhi, Joana. Bem podia o meu marido mandar-me embora, que eu não ia! Estava ali eu, a minha rocha, o meu respeito, o meu quartel.

Em uma dessas manhãs calmas que ali vivi, vi passar Spínola, quase nosso vizinho, num carro assustador (!), pernas abertas, entre sacos (de quê?) – outra pose para o seu retrato. Fiz-lhe um largo e divertido adeus. Um breve aceno seu – na minha rua, tinha ele público.

Foi o Luís Graça que colocou o seu retrato no Blogue? E, junto a ele, não estará o Bruno? – “Bruno, aponta!” (outro dito de Bissau).


Cristina Allen, Fevereiro de 2009

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Nota do editor L.G.:

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3608: Histórias de Vitor Junqueira (12): O Saco Azul

1. Mensagem de Vitor Junqueira, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), enviada no dia 11 de Dezembro de 2008, com mais uma das suas histórias, esta integrada nos arranjinhos que se faziam nas nossas Unidades, para haver sempre umas massas de reserva para o que desse e viesse, vulgo saco azul.

Amigos editores, Aleluia! O blog está como eu gosto. Menos erudição e mais histórias com gente lá dentro. Como o Natal do comandante Picado ou o segredo do José Colaço, que acabei de ler. Em tempos, disse ao Luís Graça que mais interessante do que a escrita em si, é, através dela, podermos conhecer o dono da mão que escreve. Esta é a minha onda, reafirmo-me nela através de mais um conto que conta uma cena verdadeira. Com um retrato. A todos os camaradas e amigos, obrigado por gostarem das minhas histórias. Aos que não apreciam, as minhas desculpas.


O Saco Azul

O senhor Manuel Carroça, é um sortudo. Entradote na idade, é proprietário, gerente e assistente de vendas num espaço comercial típico do Portugal da nossa meninice; uma tasca com secção de mercearia. O freguês vai à cata por exemplo, de um quilo – ratado – de prego de solho ou de um fedorento maço de tripa seca para a patroa fazer os chouriços e na volta, bota abaixo um penalty – com gola – do bom tintol da região. Como ainda não foi visitado pela ASAE, mantém-se no seu posto atrás do balcão, até ao dia em que lhe selem a porta. Tem vários problemas de saúde, incomodam-no principalmente as queixas de natureza reumatismal. A propósito, diz ele com a cara mais séria deste mundo, e com toda a propriedade, acrescento eu:

- Ó dótor, eu dos pés ainda tal, tal. Agora das mãos, sou um ladrão!

Quem pensa que foi a simpática presidente de uma ainda mais simpática autarquia do Norte que inventou e deu a conhecer ao mundo essa engenhosa criação que dá pelo nome de saco azul, está enganado. Para os ex-combatentes do ultramar, essa entidade é-lhes familiar, apesar de a maioria nunca lhe ter visto o forro! Para os que não sabem, tratava-se de uma espécie de fundo de maneio clandestino e como tal não escriturado, que servia para suportar contas de pequena ou média importância, despesas não elegíveis ou de difícil justificação.
Quem ficasse na liquidatária, liquidava o saco, sendo o respectivo inventário e processo de partilha top secret, como mandava a ética. Afirmam as más línguas que houve quem, através liquidação do saco, se tenha abotoado com umas massas e assim nasceu a atoarda dos apartamentos nas avenidas novas, tantos quantas as comissões.

Ao contrário do ti Manel Carroça, fui sempre saudável e jeitoso de mãos. Em criança, desmontava e reconstruía, geralmente com grande economia de peças, qualquer apetrecho em que pousasse a vista. Aos 11 anos confeccionei a partir de uma lâmina Nacet, a primeira gazua para a ignição do carro lá de casa. Como a sorte nem sempre protege os audazes, foi nessa idade e na qualidade de condutor que tive o primeiro acidente de viação de que resultou um ferido ligeiro, uma cabeça rachada. Apanhei-lhe o gosto. Qualquer chave comum, amorosa e pacientemente desbastada à lima, um apalpa-folgas e até os plebeus clips e corta unhas me permitiam materializar o sonho de montar tudo o que roncasse e bebesse gasolina. Por puro divertimento, fui-me aperfeiçoando. As viaturas de vizinhos e familiares pernoitavam onde acabava a gasosa, mas também podiam aparecer estacionadas sobre os relvados de jardins públicos ou encavalitadas em degraus de igreja.

Aos 17, já me encontrava num escalão mais especializado e competitivo, o das motos. Pilotando uma dessas máquinas, tive outro acidente que me podia ter custado a viola. Safei-me com uma tíbia e peróneo feitos num oito. Fui superiormente tratado pelo senhor Manuel Coelho de Porto de Mós, na altura o melhor endireita da região e, em dois meses, pude voltar ao activo com notável enriquecimento da minha colecção de automóveis escaqueirados. Até que, um encontro imediato de primeiro grau com o homem vestido de preto, no Tribunal Judicial de Ansião, pôs termo a uma promissora carreira. E ainda há quem diga que a juventude de hoje está perdida!

Como as outras, a CCaç 2753 era uma companhia séria, de gente séria, com uma administração acima de qualquer suspeita. Tirando o caso da trombadinha que o Sant’Amaro deu no baú onde o Santa Maria guardava os dólares remetidos pela família da América para o tabaquito, nunca dei conta de que alguém deitasse a unha ao do alheio. Foi por isso que, com surpresa, tomei conhecimento da presença no K3 de um senhor major vindo de Bissau para uma espécie de auditoria às contas da Unidade.

À porta da secretaria, detecto sinais de embaraço. Mãos nos bolsos, cigarro nos lábios à Bogart, o Leanito parece inquieto. E tem razões para isso. Lá dentro, está em jogo a sua reputação de militar impoluto. O Ribeiro mais o Marques, saem a voar baixinho e assim como quem não quer a coisa, vão até ao bar. Sozinho a enfrentar a fera, fica o Mexia. Senhor de uma barriguita cuja bitola já na altura não lhe permitia ver o coiso, transpira que nem um suíno, salvo seja. De cu para o ar e nariz enfiado nas gavetas da mobília, remexe a tralha. Sentado à secretária, entre o divertido e o furibundo, o major tem o ar de quem não acredita no que está a acontecer... o segredo do cofre levou tal sumiço que ninguém o encontra.

Vitor, eis o teu momento de glória, diz-me uma vozita ao ouvido. Agarra-o rapaz, porque esta merda de guerra pode não te oferecer outro. Decido avançar.

- O meu Major dá-me licença?
- ???
- Se me permitisse, gostaria de tentar abrir o cofre.
- Ah, faça favor.

O cofre, um matacão preto em ferro, deve pesar meia tonelada, seguramente. É do tipo monobloco com chave, tranca accionada por um volante central e fechadura secundária comandada por seis roletes alfabéticos. Isto vai ser canja!
Encosto-lhe o ouvido. Acaricio os roletes enquanto lhes observo as folgas e escorrências de óleo, assim como os movimentos quase imperceptíveis determinados pela pressão da tranca. Em menos de cinco minutos, o sistema rende-se. O major, excitadíssimo, salta como perdigueiro em cima da caça. Era vê-lo a farejar caixas, envelopes, papelada.

Inchado que nem um peru, afivelo uma expressão de fingida modéstia e peço autorização para me retirar. Preparado para receber o aplauso e agradecimento da multidão, muito justamente devidos a quem deu provas de tamanha expertise. Porém, oh mundo ingrato, sinto-me fuzilado pelo olhar reprovador do Leão que, do alto do seu metro e sessenta e cinco, resmunga entre dentes:

- O meu Alferes arranjou-a bonita, arranjou. Olhe, depois não se esqueça de dizer que a comida não presta.

Dizendo isto, saca a mão do bolso e vira-me a palma: R…S…T…
De braço dado com o major, lá se foram até Bissau os oito contitos do saco azul.

Nota: Personagens e glossário, pela ordem em que aparecem no texto:

Carroça – é a alcunha pela qual o senhor Manuel é mais conhecido.
Ratado – roubado no peso.
Com gola – mal cheio. Também se diz com fita.
Penalty – copo de 2,5 dl de vinho
Apalpa-folgas – instrumento semelhante a um canivete suíço com várias lâminas de aço, muito finas. Serve para ajustar a folga das válvulas na cabeça dos motores.
Manuel Coelho – o nome e morada são verdadeiros, assim como o facto de ter sido ele quem me tratou. Se tivesse ido para o hospital, o mais certo seria ter ficado coxo para o resto da vida.
Ansião – concelho do distrito de Leiria a que pertencia a minha freguesia, Chão de Couce. O julgamento deu-se em 1966. Estava relacionado com um passeio numa moto emprestada. Fui julgado à revelia (ai não…) e absolvido!!! E ainda há quem não acredite na justiça.
Sant’Amaro – por razões óbvias, o nome do santo não é este. O rapaz ganhou a alcunha porque logo no segundo dia de recruta, alegando o cumprimento imperioso e urgente de uma promessa ao tal santo, fez um peditório junto dos camaradas cujo produto gastou em vinho, cerveja e cavacos (marisco açoriano). Andou grosso durante uma semana. Após o saque irregular, não se conteve e viajou até Farim onde adquiriu alguns bens na casa Libanesa. A operação policial posta em campo descobriu rapidamente o rato através dos sinais exteriores de riqueza. Teve uma rebanhada de filhos, quase todos a residirem na América, aos quais se juntou recentemente depois de uma vida como pescador em Vila Franca do Campo.
Santa Maria – alcunha verdadeira do soldado Alves por ser natural daquela ilha, único aliás, na Companhia. Era um garnisé, asmático, incapaz de dar dois passos sem ficar com os bofes à boca. Contudo, fumava dois maços de tabaco por dia. Só por milagre é que ainda poderá estar vivo.
Bogart – Humphrey Bogart
Leanito – 1º Sargento Leão. Alentejano de Portalegre, andaria pelos cinquenta anos. Bom homem, faleceu há mais de duas décadas.
Ribeiro – 2º Sargento do QP. Fino que nem um rato, chegou a Chefe. Vive Lordelo do Campo, próximo de Vila Real.
Marques – amanuense, de Rio Maior.
Mexia – 2º Sargento do QP, alentejano de Vila Boím. Um gajo porreiro. Vi-o pela última vez há cerca de quatro ou cinco anos. Devido ao excesso de peso (200kg?), andava a ser seguido numa consulta de endocrinologia em Santa Maria.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3585: Histórias de Vitor Junqueira (11): Um conto (triste) de Natal

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3585: Histórias de Vitor Junqueira (11): Um conto (triste) de Natal

1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), com data de 5 de Dezembro de 2008:

Prezados amigos, camaradas e visitantes;
Caros editores,

Para o vosso sapatão, aqui vai mais uma das minhas histórias. Não sei se devido à quadra que estamos a atravessar, ou porque os velhos se tornam sentimentalões, não consegui fugir ao tema (Natal) nem às minhas memórias. Esta, está tão fresca que me interrogo se os factos narrados ocorreram há quase quatro décadas ou na passada semana. Chamo-lhe conto, mas dado que mexe com acontecimentos reais, construí-a segundo uma estrutura aparentada com a da narrativa. Acho eu, porque não sou muito entendido nessa área. Por isso usei e abusei do modo presente.
Desde já, obrigado pela atenção que quiserem dispensar ao meu escrito e Boas Festas.


Um conto (triste) de Natal

Ao meio dia, o sol impiedoso dos trópicos é avaro quanto a sombras. Como se fossem agulhas, os seus raios trespassam-nos a pele que se defende produzindo rios de suor. Toma-se a chuveirada da ordem e logo a camisette fica uma sopa. Sob uma atmosfera quase irrespirável devido ao calor e humidade sufocantes, homens e animais disputam qualquer nesga de frescura. Aos meus pés passa um lagarto em passo de corrida. Pára subitamente, parecendo hesitar quanto ao rumo. Três flexões rápidas, azimute a uma frondosa mangueira e aí vai ele tronco acima, fugindo à torreira. O desconforto rouba-nos o alento, corrói o moral. Entediado, mantenho uma conversa de chacha com um camarada das transmissões enquanto aguardo a chamada para o almoço.

A parada é um belo largo de terra batida, atravessado no sentido norte-sul pela estrada Farim-Mansabá. Do lado direito de quem sobe, situa-se um abarracamento esquálido coberto a chapas de zinco ferrugento, semi-arrancadas dos cibes e mais esburacadas do que um passe-vite. Alberga uma cozinha onde no meio da maior badalhoquice se enjorcam os mimos do cardápio: Do primeiro ao último de cada mês, batata cozida com cavala de conserva, tripas de vaca holandesa com feijão e gorgulhos e, em dias de cerimónia, estilhaços com esparguete. Contíguos, ficam um chiqueiro que serve de refeitório, a caserna das praças e o paiol. Tenho andado a pensar numas obras de fundo, vou falar nisso à rapaziada(*).
À esquerda, situa-se a única edificação digna desse nome. Trata-se de uma construção rectangular, semienterrada no solo, com paredes erigidas em adobe. Construída perpendicularmente à estrada, apresenta do lado norte um alpendre corrido sob o qual se encontram as entradas para a secretaria, catacumba das transmissões e criptografia, suite do capitão e camarata dos alferes. No topo Oeste, as instalações sanitárias para uso exclusivo da hierarquia. O tecto, dotado de um reforço à base de robustos troncos de palmeira sobre os quais assenta uma camada de cerca de 30cm de material inerte, confere uma razoável protecção aos locatários. Nas traseiras, igualmente protegidas das canhoadas do IN por uma fileira de bidons cheios de terra, fica o espaldão do oitenta e um. Lá mais atrás, a cantina e o furo que abastece a tropa com água potável, tendo ao lado um palanque que suporta o depósito sob o qual se encontra o balde de crivo dos banhos gerais. Este é também um local de derriço, onde certos camaradas(**) se deixaram surpreender pela calada da noite a brincar ao jogo quem apanha o sabonete? Em frente, o mastro da bandeira e no mesmo enfiamento, um campo de volley que tive a honra de construir com os ensinamentos colhidos na universidade de Champigny-sur-Marne. Ao fundo, junto ao arame farpado e de costas para a tabanca, fica a messe de sargentos e oficiais, casino, discoteca e local de eventos.



Aquartelamento do K3. Aqui permaneceu a CCAÇ 2753 do Alf Mil Vitor Junqueira, durante boa parte da sua comissão.

Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.


São 12h30. Manuel dos Santos, o corneteiro/despenseiro faz-me sinal para avançar.
Esta manhã fui à caça, estreei uma Winchester. Numa pedreira aqui perto, abati quatro tchócas. Nunca percebi porque é que os nativos se recusam a consumir estas aves, muito semelhantes à perdiz europeia. Vamos lá a ver como é que está o petisco que o Manel confeccionou. Como não chega para todos, ficou reservado para o dente do maior e alferes, os outros terão de contentar-se com o cheiro.

Na secretaria, depois da feijoada do almoço, faz-se por fazer qualquer coisa. Um Primeiro, dois Segundos e o seu escriba, torcem e retorcem números para que dêem certo, retocam ofícios para que pareçam fidedignos, batem-se valentemente em duelos de bocejos.
Abanco numa das cadeiras de balouço situados sob o alpendre. Do meu posto de relax, escuto o zumbido da ventoinha do quarto dos alferes, ligada no máximo, convidando-me para a real soneca da tarde. Felizmente, há certos dias nesta puta de guerra em que não se faz raspas!

Quatro e meia, o calor é muito. A esta hora, ainda assa canas na rua, e à sombra também! Desperto, meio obnubilado começo a fazer planos para a tarde: Banhoca, uma coca fresquinha e duas kingalhadas até à hora de jantar.
No meu campo de visão, passa um pronto. Como um zombie, braços caídos, olhar distante, passadas lentas, vai arrastando, as botas no pó revolvido pelas rodas das viaturas. Aparentemente sem destino nem propósito, faz-me lembrar um jagudi pairando sobre o seu território de caça. E de morte. À esquina do bloco, faz meia volta à esquerda e desaparece nas traseiras. Mal este se eclipsa, logo outro lhe segue a peugada, numa espécie de dança que se há-de prolongar até à hora das lavadeiras.

As rotinas desta companhia, são idênticas às de qualquer outra: Vigilância e defesa das instalações, acções de patrulhamento dentro da respectiva ZA, protecção às populações nos seus afazeres na bolanha. Organiza colunas de reabastecimento civil e militar, executa pequenos trabalhos de limpeza e manutenção, faz recolha de lenhas etc. Sem periodicidade determinada, tanto pode acontecer duas vezes na mesma semana como a espaços de quinze dias, há um serviço cuja ordem de acção emana directamente da Rep Oper. Esse, é a doer. Por norma, com uma antecedência de dois ou três dias, aí pelo meio da tarde, transmissões e criptografia entram em acção. Encafuados no seu cubículo, recebem e decifram uma sequência interminável de pi-pi-pis que desperta a curiosidade irresistível do pessoal. Querem dar fé do que lá vem, eis a razão do rodopio à volta do edifício do Comando.

São dez da noite. Na messe, reina uma falsa descontracção, uma indiferença aparente. No rosto tenso dos furriéis, leio sinais de compreensível ansiedade. Falei com eles antes de jantar, já sabem ao que vamos. Recomendação do costume: O segredo é a alma do negócio. Como se isso fosse possível! O pessoal há-de ser acordado à última da hora. Os que forem à cama. Faço uma retirada estratégica. Trancado nos meus aposentos, miro e remiro cartas e planos até os olhos me doerem. Também eu estou ansioso, não me sinto apavorado mas receio não conseguir descansar a ponta de um corno. Já passa das duas. Terei ainda tempo para um sono povoado de pesadelos?

Contrariando as Népes, a cantina mantém-se aberta noite fora. A malta afoga as borboletas do estômago com chá da Escócia. O Neves tem-no lá e do bom, importado directamente para as FA. Uma suecada, quiçá uma lerpazinha e umas cigarradas ajudam a queimar as horas. Hão-de implicar uns com os outros, contar piadas sem graça e soltar coriscadas à moda açoriana. Mais para a frente, talvez façam uma patuscada com o espólio da caça ao tesouro; dois especialistas surripiaram uma lata com cinco quilos de chouriço em azeite da arrecadação do vagomestre Prates(***). Na hora do embarque estarão tensos como o aço, prontos para o que der e vier.

Os filhos são como os dedos da mão, temos cinco e nenhum é igual. Por estranho que pareça, tenho para com estes rapazes que são praticamente da minha idade, uma relação de grande afectividade. Não será propriamente uma ligação do tipo pai-filhos, mas anda lá perto. Sinto-me responsável por eles, gosto deles. Foram-me entregues pelas famílias, ensinei-lhes tudo o que aprendi em Mafra, acompanhei-os nesta viagem a África, acalmei-lhes angústias e incertezas, escondi-lhes os meus medos para que o não tivessem, prometi levá-los de volta. Como os filhos, são todos diferentes. O tempo, a convivência e os apertos, vão revelando o que de melhor ou menos bom existe em cada um deles.

Picaroto, vinte anos, matulão, dispara o morteirete em andamento como quem dedilha uma viola. O Dutra é um tipo especial. O traço dominante da sua personalidade talvez seja a bonomia, parece um Buda menino. Tão humilde e educado, não há outro. Sempre disponível, a sua presença transmite confiança ao grupo.
Não é o mesmo, ultimamente. Anda triste, meio introvertido contrariamente à sua natureza. Consome-o a lembrança do pai falecido nos Estados Unidos, vítima de acidente de viação. Recebeu a trágica notícia em Madina Fula, quando preparávamos a festa de Natal do ano passado. Penso que tem saudades da restante família, emigrada na América, à qual deseja juntar-se tão depressa passe à peluda.

Alta madrugada, dois porradões na porta fazem-me saltar na tarimba.

- O que é, caralho? Pergunto, estremunhado.

- Meu alferes, temos um problema. Tem de vir ali à cantina, responde-me o furriel Tavares.

Pela hora e pelo inusitado da intimação, o coração dá-me um baque. Penso numa desordem com fartum de pancadaria, um acidente qualquer. De um pulo, ponho-me a pé e, enquanto caminho, o furriel pinta-me a cena.

O quadro é dramático. No chão de cimento, jaz inerte o corpo do Dutra. À sua volta, em lágrimas, os camaradas contemplam-no com olhar incrédulo. Peço-lhes que se retirem. Por uns instantes ficámos a sós. Ajeito-lhe as mãos sobre o peito. Tranquilo, parece sorrir. Acho que o ouço dizer: - Não se incomodem comigo, eu estou bem.

Despeço-me com uma prece silenciosa e rogo-lhe que mantenha o seu posto no nosso GC. Encontrado um local com um mínimo de dignidade onde depor o corpo do nosso malogrado amigo, aí o deixamos, amortalhado num simples lençol. Na volta, cuidaremos dele, como merece.

São 05h50, está a clarear e já se ouve o roncar dos hélis. Um a um, os Alouettes pousam, recebendo um contingente de cinco homens cada. Descolam rapidamente e, progredindo em fila indiana, conduzem-nos a destino pouco seguro. Lá no céu, encomendamo-nos à Senhora do bom regresso. É meu privilégio seguir na primeira leva. Agora é só dar gás às máquinas!

O Dutra não fumava nem bebia. Como os outros, foi até à cantina para não sentir o passar do tempo. Aí, encontrou o seu amigo Araújo, micaelense da Ribeirinha, atirador de LGF. Bom rapaz, um tanto rezingão, mete uns copos em vésperas de saída. Entabulam dois dedos de conversa. Como o camarada se mantivesse murcho, o Araújo desata a provocá-lo. Na paródia, empunha a Walter que usa para defesa pessoal. Em jeito de saque à cow-boy, o cão fica preso na banda do dólmen, recua mas não o suficiente para ficar no trinco. No instante seguinte, o Dutra cai, desamparado, com o coração trespassado por uma bala de 9mm. Não teve tempo nem forças para um ai.

Foi há trinta e sete anos.

Obs: Do ponto de vista disciplinar e criminal, o Araújo safou-se. O processo foi conduzido de modo a não lhe tolher a vida. Foi sancionado pela própria consciência, pela mágoa e certamente pelo remorso. Pagou caro (ainda estará a pagar?) por uma estúpida brincadeira. Emigrou para o Canadá.

(*) As obras foram efectivamente realizadas! Cozinha e refeitório, construídos de raiz com blocos fabricados pelo nosso pessoal, e coberturas requalificadas, como agora é uso dizer-se. Durante a fase de execução, tivemos uma visita do General Spínola.

(**) Um desses homens acabou por falecer muito jovem. Suspeito que terá sido uma das primeiras vítimas do VIH registadas no nosso país.

(***) O furriel Prates, chaparrão de gema, era um deixa andar. Passava umas semanadas em Bissau e regressava de mãos a abanar.
- Meu capitão, não chegou qualquer reabastecimento da metrópole, era o seu rebatido argumento. Nem uma simples folhinha de alface! Atraía raivas, mas nunca quinou. Tive notícia de que faleceu pouco depois da passagem à disponibilidade. Paz à sua alma.
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Vd. poste de 17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3464: Histórias de Vitor Junqueira (10): Santa Paz

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3493: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (10): Eh mulher! Bó tem sanju na barriga... (Alberto Branquinho)

Paternidade instantânea

Alberto Branquinho
ex-alf mil CArt 1689
1967/69

Em sentido contrário aproximava-se uma mulher em adiantado estado de gravidez, caminhando com dificuldade, amparada ao muro.

O sargento, que estava a observá-la:
– Ó meu alferes, escute lá esta.


Então, dirigindo-se à mulher grávida:
– Eh mulher! Bô tem sanju na bariga…
Ela disparou imediatamente:
– É, noss’ sargenti. Fidju di bô.
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Notas de vb: Artigos da série em

3 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3395: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (9): Tempo de Gandembel...(Alberto Branquinho)