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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25225: (In)citações (265): A Guerra. Nos últimos tempos as notícias tendem a ser brutais e deprimentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Em mensagem de 23 de Fevereiro de 2024, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um excelente texto de sua autoria, desta vez discorrendo sobre o estado de guerra em que vivemos, originado por ódios ancestrais e tentativas de recuperação de impérios, por parte de ditadores sanguinários. O resto do mundo assiste, aparentemente, impávido e impotente. Entretanto a indústria do armamento pospera.


A GUERRA

Dia 24/11/2023
Nos últimos tempos as notícias tendem a ser brutais e deprimentes, são dias de nevoeiro, em que os olhos reflectem para dentro imagens negras e tristes. Para me libertar delas, apetecia-me banhar corpo e alma com a água límpida, transparente, saborosa e pura das fontes que conheci, quando menino e adolescente na minha aldeia, já adulto, com bom vinho, tal como os meus avós, o meu padrinho José Baptista, Fernando Pessoa, Luís de Camões, grande boémio, um e outro, os maiores poetas de Portugal, meus ídolos e heróis. O vinho bebido, sem toldar as capacidades sensoriais e intelectuais, dá alimento ao espírito, melhora o gosto estético e facilita a comunicação entre as pessoas.

Há mais de um ano temos sido bombardeados com notícias catastróficas.

- Há pouco mais de um mês reacendeu-se o conflito entre árabes e judeus na Palestina, com o ataque desumano do Hamas a civis judeus, com muitas mortes e reféns capturados. Por sua vez os israelitas responderam com um ataque desmedido e desumano porque o seu poderio militar é muito superior e o respeito pelas vidas humanas desses povos inimigos é idêntico. Esse ataque sobre a faixa de Gaza, que não tem poupado habitações, escolas e hospitais e já terá matado muitos milhares de inocentes. Guerras sanguinárias alimentadas pelo ódio de ocupações de territórios que povos milenares diferentes reclamam como seus há muitos séculos e a quem a comunidade das nações no último século não tem sabido dar a melhor ajuda a bem da paz entre eles e da paz mundial.
Judeus e árabes palestinianos, tutelados por dois deuses únicos e omnipotentes, eles e os seus crentes os mesmos templos e terras sagradas, que foram de uns, mais tarde de outros, depois dos mesmos num vaivém trágico de guerras, sangue, dor e morte, que tem alimentado um ódio infernal, que torna difícil o diálogo e a paz. Os cristãos, seguidores de Jesus Cristo, um judeu, (um Deus, um Profeta?) da outra grande religião monoteista, há séculos com as Cruzadas para conquistar e manter os seus lugares sagrados, também já entraram nessas orgias de sangue e de morte.

- A Invasão da Ucrânia, agora menos audível, pelo estrondear das bombas aéreas, mísseis e granadas de canhões e carros de combate, israelitas sobre a Faixa de Gaza, continua a fazer muitos mortos militares russos e ucranianos e a espalhar a destruição e a morte na Ucrânia, uma Pátria mártir.
Infelizmente Vladimir Putin, esse ditador sanguinário e megalómano, que quer restaurar o Império da Rússia, não morre, enquanto mulheres, meninos, velhos e outros morrem todos os dias.


Dia 18/12/2023

A tragédia dos homens é olhar o mundo com todo o rol de desastres, guerras, acontecimentos fastos e nefastos e não saberem as palavras melhores e mais adequadas para formar uma corrente de pensamento, que os transporte pelos caminhos da Paz Universal.

Falo desta quadra com horror, em que os cristãos, eu também o sou, por nascimento e formação, se aliaram aos judeus para matar os palestinianos da Faixa de Gaza, futuramente haverá outros. Matam velhos, mulheres e meninos. Matam os meninos com intenção de extirpar as sementes de ódio que estão a alimentar nesta guerra cruel que poderá alimentar outras guerras contra eles. Mas haverá sempre meninos que se salvam e com a sua memória magoada irão lutar para se libertarem e o ciclo de guerra continuará.

Os meninos cristãos do ocidente felizes com excessos alimentares e excessos de brinquedos, não têm culpa da morte, da doença, da sede, da fome, e da desgraça que grassa entre os meninos do médio-oriente e muitos outros milhões de meninos lindos de toda a Terra. Os seus pais e os seus avós terão culpas pelo egoísmo, alheamento e indiferença, os políticos que eles elegeram são cúmplices também desses assassínios em massa. As religiões orientam os homens para o bem, outras vezes no caminho do mal, mas os meninos quando nascem são todos inocentes e iguais.
Longa vida para os meninos de toda a Terra e que cada vez mais sejam dadas oportunidades de vida, de alimentação, de saúde, de educação e diversão a todos eles.

Ver é melhor que pensar mas só o pensamento activa e dá calor ao cérebro cria o novo e o belo, o horrível.
Está frio e sentimos uma sensação térmica desconfortável.
Na Europa festeja-se o Natal, uma festa religiosa, capitalista e pagã nos excessos e desperdícios, tal como os romanos, os grandes arquitectos deste continente, festejavam as bacanais.


Dia 15/02/2024

A música do silêncio percorre estrelas, planetas, constelações, galáxias, e faz-se ouvir em mensagens sonhadas entre as almas presas nos corpos humanos ou libertas deles.

Cronos é o deus grego do tempo, minutos, horas, dias, anos, que sem nos dar a vida nem a morte, estará sempre presente nessa contagem, entre o princípio e o fim. Os romanos que foram copiar a mitologia e a filosofia a essa civilização mais antiga e culturalmente mais avançada, deram-lhe o nome de Saturno. O que nos desgasta e envelhece é o poder dos deuses que controlam o tempo do nosso viver.

Mais tarde os nossos grandes aliados americanos, grandes guerreiros tal como os romanos, viriam alimentar-se da vasta cultura e da religião europeia, para dar forma, alma e palavra, à grande nação que tais como os romanos fundaram em grandes batalhas de independência contra nações colonizadoras e de conquista contra os povos indígenas, que em grande parte dizimaram.
A história dos homens quando não fala do seu esforço e suor para conseguir alimentos e conforto, fala da dor, do sangue e das lágrimas derramadas, pelas guerras selvagens e desumanas, que povos bem armados provocaram ou povos mal armados sofreram.

Enfim, a nossa civilização judaico-cristã tem um verniz moderno e enganador que não nos liberta, da pré-história em que os homens em luta podiam matar famílias e até comer guerreiros inimigos.

Em Gaza não se comem guerreiros, mas matam-se famílias inteiras indiscriminadamente, com as armas fornecidas pela grande América e o beneplácito ou cobardia da Europa Ocidental. Conheci os lobos, mais pacíficos do que os cães, uivavam à distância, em noites escuras ou de luar, os cães seus primos ou irmãos, aliados aos homens, respondiam num ladrar prolongado, que se assemelhava ao uivar deles.
Ouvi-os muitas vezes, já na cama, aconchegado debaixo de lençóis e cobertores, em noites frias, quando a chuva caía e o vento assobiava entre as telhas, ou em noites de aguaceiros e trovoadas. Os lobos, animais inteligentes, que nunca atacavam os homens, no seu uivar, que parecia um lamento, queixavam-se dos homens por eles terem matado todos os animais herbívoros selvagens e não lhes permitirem comer uma cabra ou ovelha.

Os animais mais sanguinários da Terra são os homens. Nem consigo entender como ainda há deuses que os queiram salvar.


Dia 22/02/2024 - "O Observador"

"Edgar Morin, o famoso filósofo francês e filho de judeus sefarditas, acusa "o silêncio do mundo" perante a onda de violência massiva que atinge a população de Gaza."

Deste grande pensador e estudioso de várias áreas do conhecimento, que já tem 103 anos, muita experiência de vida e conhecimentos vastos em ciências humanas, que na França ocupada lutou contra os ocupantes nazis, continua lúcido e atento aos males presentes e futuros. Dele li, há mais de trinta anos, o Paradigma Perdido e o Homem e a Morte, leituras que me marcaram. Escreveu muitos outros livros.

Sinto-me confortado pelas suas palavras acusatórias. Finalmente encontro um pensador universal que sempre admirei, que projecta para toda a terra, com a autoridade que eu não tenho, a minha raiva e a minha angústia contra os senhores da guerra, os seus apaniguados, os políticos sem coragem e carácter e os pensadores menores que comem à mesa dos financeiros e dos capitalistas russos, judeus, americanos.

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25151: (In)citações (264): Adjarama, Amadu Bailo Djaló, por essa lição de vida (Cherno Baldé)

sábado, 30 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23474: Estórias do Zé Teixeira (57): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (3): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Terceira e última parte parte da história de amor entre Binta e o seu prometido Braima, combatente do PAIGC, enviada em mensagem de 27 de Julho de 2022, pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70).


Amores em tempo de guerra III

AMORES PROIBIDOS

(3) - Binta!... Binta!...



Enlaçados nesse amor que os inebriava, deixaram-se adormecer, plenos da felicidade efémera, fora do tempo em que a guerra domina a mente, e abafa o sentimento que inunda o coração.

Já a noite ia alta quando o Braima deitado de braços cruzados olhava o céu da sua mente e tentava ouvir um coração endurecido pelo caminho que escolhera, mas que agora se desafazia em lágrimas de sangue, mas a decisão estava tomada. Tinha que se ir embora sem se despedir da sua amada.

Ele tinha consciência dos riscos da guerrilha. Não queria ver a sua Binta a carregar os armamentos que usavam para atacar os aquartelamentos tugas. Além da fome e da sede, o cansaço do peso que acartavam à cabeça e o tempo de marcha, havia o perigo das emboscadas, dos aviões, das granadas que explodiam, lançadas para retaliar os ataques dos nacionalistas guineenses. Quantas vezes tiveram de abandonar a barraca onde aquartelavam e esconderem-se no mato, deslocar-se de um lado para outro para evitar o confronto se estavam em minoria, ou apanhados de surpresa, o que acontecera algumas das vezes em mortíferas emboscada. Havia ainda outros perigos, pensou. Os camaradas que iam ver na Binta a mulher dos seus sonhos, que a cercariam na sua ausência, para obter os seus favores. Por muito amigos que fossem, e eram, porque a camaradagem construída na luta é a amizade mais profunda que se pode ter. A fome e o desejo de sexo, tornar-se-ia superior, porque muitos não tinham mulher. Ele sabia que era assim. Ele mesmo não conseguira resistir à mulher do Sissomo. Mulher para dois, como toda a gente sabia, até ele ser enviado para o sul.

Não! Não podia levá-la consigo. Tinha de se ausentar silenciosamente, para junto dos seus camaradas acantonados mais a sul, na mata de Cantanhez. Ele sabia que não lhe era difícil transpor as dezenas de quilómetros que o separava da tabanca da Binta. Desde tenra idade se habituara a caminhar pela densa floresta virgem, atravessando as bolanhas. Sabia como defender-se dos animais selvagens, os quais começavam a escassear, devido à guerra, à caça desenfreada de que eram vítimas para alimentar as gentes que viviam no mato e muitos vezes para desporto dos militares europeus. Todavia os riscos de encontro indesejados com os soldados portugueses, as cambanças dos rios e das grandes bolanhas, eram temíveis empecilhos. E havia as razões de ordem pessoal e política. A sua vida pessoal, as suas visitas, mesmo clandestinas seriam controladas pelo comissário político e viveria sob pressão contínua para a trazer para a frente de combate, para um ambiente que ele detestava acrescido dos riscos que a luta contra o opressor acarretava. Preferia manter a situação e tentar uma fuga de vez em quando, para se encontrar com ela. A situação de luta iria mudar em breve, pensou. Os portugueses se hão de cansar. Esta terra será livre. Então voltarei para casa.

E. decidiu escapulir-se silenciosamente, depois de a beijar com toda ternura e cuidados para não a libertar do Morfeu.

Teimosas lágrimas inundaram a face da Binta quando acordou e não viu mais nada, a não ser o lago do céu noturno cravejado de estrelas. O seu Braima tinha ido embora sem a levar. O coração parou por momentos, sentiu-se desmaiar... A raiva, misturada com as lágrimas e o desespero de sentir que voltou a perder o seu amado, deixaram-na esvaída, sem forças, perdida…
A vontade de viver que sempre a animara, pelo amor que secretamente guardava bem dentro do seu ser, como que se apagou. Um coração cheio de saudade teimava em dizer-lhe que esta fora a primeira e talvez a única vez que as suas vidas se encontraram.

Deixou-se perder no tempo. Já o sol ia alto quando “acordou” para a realidade. Tinha saído da Tabanca no dia anterior. Era urgente voltar discretamente para junto de sua mãe e contar-lhe o seu segredo. Ao levantar-se, viu no chão um pequeno papel com algo escrito.
Ah, com ela gostava de ter aprendido a ler para saber ali mesmo a mensagem que Braima lhe deixara. Certamente era um eterno adeus. A luta, ultimamente, tornara-se muito dura. Os soldados andavam por todo o lado. Os paraquedistas que passaram na sua tabanca vinham carregados de armas apanhadas aos “bandidos” como chamavam aos guinéus que se tinha refugiado na mata. Ia perder o seu Braima, dizia-lhe o coração. De nada valeriam as novas armas contra os aviões. Agora tinha a certeza, do fundo do coração, os portugueses que ela já odiava, iam continuar na sua terra, e o seu Braima, esse… morreria como tantos outros!? Talvez não. Tinha de continuar a acreditar no que lhe dizia o coração e levantou-se cheia de energia e confiança.

Com o papel amarfanhado na palma da mão internou-se na mata e voltou para a tabanca. Ouviu o roncar da viatura militar que todas as manhãs ia buscar água à fonte e pensou nas suas amigas que, aproveitando-se da segurança que os soldados impunham com as suas armas, como ela fizera muitas vezes, vinham com as suas vasilhas em busca da água fresca e de melhor qualidade para dar de beber às crianças. Quando transpôs o cavalo de frisa, a sentinela nem se dignou olhar para ela. Respirou fundo e foi ter com uma mãe aflita. Explicou-lhe os acontecimentos da noite e correu a casa da Cadi. Só ela lhe podia dizer o que o Braima lhe tinha escrito.

Cadi tinha ido buscar água à fonte. Aguardou com ansiedade desmedida a sua chegada e, sem explicações, pediu-lhe para ler o papel.
- Ó mulher parece que visto o demónio. - Disse-lhe a Cadi. - Que te aconteceu?
- Diz-me o que está escrito no papel. - Ordenou-lhe a Binta.
- Tá bem, não te zangues. O papel não diz nada.
- Não diz nada!? Mas tem letras? - Retorquiu a Binta com o coração acelerado.
- No papel está escrito. “Aqui”. Que é que isto quer dizer? Nada!
- Deixa comigo – disse Binta – E pegando no papel seguiu para casa, a saltitar, como um passarinho: ela entendera a mensagem. Era naquele lugar onde o deveria esperar sempre que tivesse notícias.

E a vida continuou, só que a Binta deixou de ser a mesma que partira ao encontro do seu amado.

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23471: Estórias do Zé Teixeira (56): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (2): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23471: Estórias do Zé Teixeira (56): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (2): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Segunda parte da história de amor entre Binta e o seu prometido Braima, combatente do PAIGC, enviada em mensagem de 27 de Julho de 2022, pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70).


Amores em tempo de guerra III

AMORES PROIBIDOS

(2) - Binta!... Binta!...


A Binta ficou perdida naqueles olhos que a mantinham prisioneira, iluminados pelo luar que surgiu repentinamente, enlaçada no pescoço do homem que a envolvia com os seus braços, estreitando-a contra o seu corpo e a beijou ternamente na testa num longo segundo. 

Deixaram-se envolver pelo silêncio das palavras escondidas, esmagadas há tanto tempo nos seus corações. Braima inclinou-se para a beijar de novo e os seus lábios selaram-se ternamente. Sensações novas invadiram todo o seu corpo deixando-a eletrizada, perdida no tempo e no espaço. O passado deixou de existir naquele momento. Um novo presente nascia, há que vivê-lo!

Braima falou, suspirando:
–  Há muito tempo que sonho com este momento – enquanto a pousava suavemente no capim e se deitava a seu lado. Noites e noites sem dormir, vendo-te sem te ver, ouvindo-te sem te ouvir... sonhando contigo, mas a libertação do nosso povo meteu-se entre nós. Agora que não podemos derrotar o passado, que nos afastou um do outro, temos de conquistar o futuro, vencê-lo para que seja nosso, temos de conquistar a liberdade...
–  Braima, Braima, meu querido, esqueceste-te que sempre tivemos liberdade de ser o que somos, mesmo se isso aconteça apenas nas nossas cabeças – disse a Binta pousando os sequiosos lábios sobre a boca do Braima, enquanto lágrimas de emoção lhe lavavam a face. - O medo de te perder, desde o dia em que foste embora, atormenta-me a todo o momento, as notícias que de ti chegam, sempre tarde, são a razão do meu viver, porque o coração vai-me dizendo que continuas vivo e a amar-me. É esta a razão da minha vida, esperar por ti. Agora quero ir contigo. Não te vou perder, nunca mais.
-–  Não me perderás, juro por Alá,  o Misericordioso, louvado seja Ele. Não há bala que ouse tocar-me. Voltarei... voltaremos para viver o nosso amor. Mas tu não podes vir comigo. Os perigos não têm fim, nem escolha possível e é preciso saber fintá-los. Confia em mim e me basta - disse-lhe o Braima, olhos nos olhos, enquanto a cingia tentando fazer dos dois, um só corpo.

Binta estava sem forças. Pranteava e não sabia se de comoção, ou de fúria ao ouvir o Braima negar-lhe a companhia, na árdua luta que ele travava contra o colonialista de Lisboa e não conseguia entender tal recusa.

–  Não! Agora que te reencontrei vou contigo, quero ser tua, de mais ninguém, e a mais sábia maneira de o ser é acompanhar-te nos perigos da luta em que acreditas. Se há uma liberdade a conquistar, conquistemo-la juntos, se for necessário morrer, morramos juntos. Os dois seremos mais fortes. Vou contigo!
– Como eu gostava de te levar comigo, minha querida, ter-te sempre a meu lado, sentir o teu coração a palpitar! Como eu gostava de ter a presença do teu corpo, o teu sorriso, o teu olhar de criança apaixonada que me cativou, sempre a meu lado! Mas, não! Não posso comprometer o nosso amor. Não posso arriscar perder-te. Prefiro contemplar-te apenas com o coração e sonhar contigo a toda a hora. Acredita que esta luta não vai ser muito longa no tempo. Vamos ter uma Pátria nossa. Uma bandeira vai unir o nosso povo e seremos livres. Eu prometo regressar à tabanca, à minha terra amada, casar contigo e vamos ter muitos filhos. Vamos ser muito felizes, porque o amor que nos une tem de dar o seu fruto.
–  Ó Braima, meu tolinho. Ainda acreditas que os colonialistas nos vão deixar? Ainda acreditas que esta maldita luta pela libertação vai ter fim? Loucura a tua! Eles são muitos, estão sempre a chegar. Têm armas e canhões, têm dinheiro e boa comida, têm... A Metrópole ou Lisboa, deve ser o paraíso deles... E nós o que temos?! Tu! Onde dormes?... o que comes?... que dinheiro possuis para comprares arroz?
– Tens de acreditar em mim. Vamos receber armas para abater os aviões que massacram e impedem que avancemos na luta. Depois, atacaremos os quartéis na cidade. Cercaremos as suas posições nas tabancas. Vamos destruí-los e construir a nossa pátria gloriosa, mas esta luta não é para ti. Continua junto dos teus pais e confia.
–  Se acreditas tão piamente na vitória, porque não me deixas ir contigo? Braima, Braima, meu amor! Porquê? Porquê?

O calor de dois corpos unidos e sedentos de se amar pedia tréguas na conversa. Binta tremia num misto de dor, alegria e emoção. Não conhecera outro homem. Guardara-se para aquele momento com o seu Braima. Ela sabia pela mãe, que os primeiros ritos eram dolorosos para a mulher, mas precisava viver aquele momento. Queria entregar-se totalmente ao Braima, para lhe afirmar com a vida, que era dele, e só dele, mas tremia... sem medo.

O Braima não era um novato nestas coisas do amor. O coração, esse reservara-o para a Binta. Queria continuar a conversa para serenar a sua amada, mas o corpo pedia-lhe a entrega total...

–  Vai com calma, não te apresses, vive o momento – disse a si mesmo.

Sentindo que a Binta estava tensa, estendeu-se a seu lado, apoiado sobre o cotovelo, procurando cruzar ternamente o seu olhar. Voltou a pôr a boca sobre a dela e acariciou-lhe os lábios com a língua num roçar leve, ternurento. Depois contornou-lhe o rosto e mordiscou-lhe o lóbulo de uma orelha, cobrindo-lhe a face e a testa de beijos, enquanto a sua mão acariciava os mamilos enrijecidos.

 – O que é isto que me faz tremer como que estivesse com febre, estes arrepios deliciosos, que eu nunca senti e me fazem feliz? - Interrogava-se Binta, saboreando o momento, numa entrega total de si mesma.

O mundo à sua volta deixara de existir. O mundo, agora, eram eles os dois. Nada mais interessava que não fosse o amor que vibrava no seu corpo, transformando-a na mulher que sempre sonhara ser - a mulher do Braima. As mãos dele corriam-lhe o corpo num bailado estonteante de descoberta de sensibilidades e tensões que nunca sentira.

–  Como é maravilhoso sentir o teu amor! - disse a Binta ao ouvido do Braima no momento em que lhe mordia o lóbulo de uma orelha e pensava nas muitas vezes que os soldados tugas, abusadamente, lhe comprimiram os seios, sem que ela tivesse o mínimo prazer, pelo contrário... sentia ódio e raiva que expressava com o olhar de mulher que se sentia ofendida pelo abuso. Ah! Mas o alferes Barbosa respeitava-a muito e nunca a tocou. Esse era diferente, o Braima branco...

Binta impregnada de desejos libidinosos desapertara o pano que a cobria e afastara-o deixando o seu corpo ao luar, o que fez o Braima perder a respiração. – Oh, mulher! Era uma voz rouca, imbuída de desejos, que ele nunca experimentara. Sentiu que a sua virilidade se expandia desmedida sem controlo. Binta! Binta! Que mulher! – Com extrema fúria, beijou-a na boca entreaberta, enterrando, em seguida, o rosto entre os seis chupando ardorosamente a pele suave. Entontecido, parou e respirou fundo tentando controlar-se.

– Alguma coisa errada? - Gemeu a Binta.
 –  Não. É apenas o meu desejo de te tornar minha. Quero fazer-te feliz e não sei se vou conseguir. És tão bonita, tão mulher...

O rosto de Binta abriu-se num sorriso acolhedor. Então, Braima beijou-a de novo, calmamente, acariciou-lhe o corpo, sentiu o seio farto e rijo, a cava da cintura, o quadril fazendo uma amena curva e a coxa forte e musculada de uma mulher de trabalho. Ela tremia a cada toque acariciador, tanto era o seu prazer. A mão dele continuou numa toada leve e lenta até encontrar os anéis do púbis que afagou com carinho. Sua boca procurou um mamilo. A língua tocou-lhe ao de leve, provocando um grito de prazer em Binta, que o medo de ser ouvido por alguém, logo abafou. A guerra continuava no meio deles, mesmo naquele lugar ermo, alta ia a noite.

...E o amor aconteceu.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23467: Estórias do Zé Teixeira (55): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (1): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23467: Estórias do Zé Teixeira (55): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (1): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 27 de Julho de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos, para a sua série Amores em Tempo de guerra, a continuação da história de amor entre Binta e o seu prometido, combatente do PAIGC.


Amores em tempo de guerra III

AMORES PROIBIDOS

(1) - Binta!... Binta!...

O coração deu um pulo. Já se tinham passado alguns anos, mas aquela voz estava-lhe gravada no coração. Era ele, o Braima, que a chamava do meio da floresta, ou estaria a sonhar?! Tinha de se manter calma e avisá-lo do perigo. Olhou na direção do som. Fez um sorriso e mexeu os lábios pedindo silêncio. Mal viu o Braima, mas sentiu-o a seu lado e o seu corpo vibrou de emoção. O coração quase a traiu. O alferes, que a cotejava, estava ali por perto a contemplá-la, enquanto lavava a sua roupa, no pequeno riacho que passava ao lado da tabanca.

O alferes adorava a bajuda. Tentara todas as formas possíveis para a conquistar. Binta defendia-se afirmando que estava comprometida com o filho do Mamadu, o chefe da tabanca vizinha que era também o sargento-chefe da milícia, sob o comando e orientação do Barbosa. Afirmava – mentindo – que o noivo era soldado do exército português e cumpria tropa em Bolama. Mantinha-se assim intocável e respeitada pelos soldados de quem era lavadeira para ganhar algum dinheiro e fazer o pé-de-meia para quando constituísse família com o Braima, a quem fora prometida nos tempos de criança. 

Sofria em silêncio e acreditava que a guerra acabaria um dia, ou fugiria para o mato ao encontro do seu amado. Tentou manter a calma. Acabou de lavar a roupa do alferes, enviou-lhe um sorriso matreiro e correu para casa. Pôs a roupa a secar, voltou ao rio para tomar banho e esperou o lusco-fusco. Então cobriu-se com o mais lindo pano, pôs o lenço mais garrido na cabeça e perfumou o corpo. Aproveitando a hora do rancho dos militares, abandonou a tabanca para ir ao encontro do seu amado.

O sol acabara de desaparecer. Os contornos das moranças e das árvores já se fundiam nas sombras da noite. Binta caminhava por entre as casas redondas de cana entrançada, chapeadas com lama, atenta a qualquer movimento vindo dos abrigos militares ou das moranças, que os oficiais e sargentos tinham arrendado a seu pai. 

Estava com medo de que o alferes tivesse notado algo de estranho no seu comportamento, no momento em que o Braima a chamara e estivesse a espiá-la. Dos furriéis e soldados não tinha medo. Ela cuidava da roupa do alferes e estava prometida em casamento pelo seu pai, sentia-se intocável e respeitada. Chegada à porta de saída, onde o arame farpado que rodeava a tabanca para impedir eventuais tentativas de invasão dos guerrilheiros, deixava uma brecha em aberto, a sebe deslocável conhecida como “cavalo de frisa” que fazia de cancela, notou que esta já estava fechado e hesitou. As pernas tremiam-lhe, o coração palpitava em demasia, a respiração tornou-se ofegante. Só a mente sabia o que fazer. 

A sentinela era o Gonzaga, de quem era também a lavadeira da sua roupa. Um bom rapaz que tentara, mais que uma vez, conquistar os seus favores. Recuara sempre face à sua firmeza e talvez porque era a protegida do alferes. Era altura de o testar. Decidida, chegou ao “cavalo de frisa” e arrastou-o o suficiente para passar.
- Alto lá, aonde vais,  minha boneca?
- Uma cabra fugiu para o mato, vou buscá-la e volto já.
- Anda aqui à minha beira. “Quero ter “conversa giro contigo”.
- Agora não,  que está noite e a cabra pode fugir. Mais logo, quando chegar. Posso ir…?
- Prometes? Oh! Já não acredito!
- Gonzaga, eu prometo. E desata a correr pela picada fora, penetrando na mata em busca de uma cabra que não tinha fugido.

Depois de andar largos metros na mata escura, voltou à picada que seguia para Falace. Picada quase absorvida pela densa mata, que ela conhecera bem em tempos, pois era perto da tabanca da sua falecida avó. Tantas vezes lá fora visitar os avós, os tios e os primos. A última vez foi no dia do funeral do tio, que morreu às mãos dos libertadores da pátria, como se afirmavam os guineenses que viviam na mata, quando incendiaram a tabanca e raptaram os jovens. Era ela uma criança.

Nada mexia no silêncio do lusco-fusco que estava de partida. Era demasiado cedo para os animais noturnos começarem a sua faina. Só os pássaros pareciam ainda acordados, animando a Binta com o seu melodioso chilreio. Nesse mundo meio adormecido, o mínimo movimento parecia suspeito. Não parava de olhar para trás, com medo da sua fuga ter sido descoberta pelo alferes ou o Gonzaga a tivesse denunciado.

Então viu a lua aparecer majestática e colocar-se à frente do sol. Este, ao sentir-se recôndito, apesar de estar a caminho do ocaso, projetou os seus raios sobre a ela transformando-a numa gigante bola de fogo, a qual ao elevar-se no horizonte mais parecia a floresta, qual gigante, a abrasar-se num fogo sem fumo. Um panorama apavorante para quem nunca tinha tido a oportunidade de visualizar um eclipse do sol em África. Um belo e aterrador quadro, digno do Apocalipse que se foi eclipsando na medida em que o sol se deixava esconder pelo horizonte e partia a clarear outras partes do globo terrestre. A lua reveio à sua dimensão planetária e tomou o seu habitual esplendor a alumiar o céu e a terra, deixando as estrelas escondidas por detrás da sua suave alvura. 

Binta já tinha deixado para trás a fonte de água pura que servia a população nas suas necessidades. Também cobria as carências dos militares instalados na sua tabanca. Muitas vezes ela pedira boleia aos militares para ir buscar água fresquinha e de muito melhor qualidade sanitária que a água do poço que o pai tinha na tabanca. Ela sabia que era por ali perto que os homens da mata assestavam os seus canhões para atacarem os invasores portugueses. Aliás, sabia que a fonte também era usada pelos combatentes da liberdade. Tinha uma vaga esperança de que o seu amado andasse por perto, ou talvez eles ousassem atacar os militares nessa noite, mas não... nem sinal de qualquer presença humana…

O caminho parecia não ter fim. Nem vivalma, e a noite já era profundamente negra. A lua deixara-se encobrir por uma longa nuvem. Parece que as estrelas adormeceram no céu e o cerrado arvoredo transformava o caminho, uma estrada há vários anos encerrada, num pesadelo. Mal vislumbrava a clareira por onde sabia que tinha de seguir para chegar ao miolo da mata, onde eles, os conquistadores, possivelmente se acoitavam. O medo começou a apossar-se dela, mas a mente dizia-lhe que o Braima andava próximo e ia salvá-la do aperto de coração que começava a sentir.

A Binta caminhou mais uns metros e susteve-se amedrontada. Pareceu-lhe ouvir um ruido. Manteve-se em silêncio e atenta a qualquer movimento à sua volta. Longos segundos de palpitações apressadas numa mente baralhada. Estaria a cometer uma loucura. Talvez não tenha sido o Braima, mas um espião, como já acontecera outras vezes... Mas não, este chamara-a pelo seu nome, bem perto do arame farpado. Ela vira-o naquela tarde! Era ele mesmo, mais homem, barbicha comprida... e o mesmo sorriso...

Talvez fosse melhor voltar para trás. Acoitar-se junto de um tronco perto da sua tabanca e aparecer no dia seguinte. Só teria de se justificar ao seu pai e este compreenderia. Ao alferes diria que tinha ido à procura da cabra, o Gonzaga tinha-a visto sair. Ela justificar-se-ia bem: como a noite chegou rapidamente teve medo de ser confundida com o inimigo e ficou a dormir junto a um tronco, do lado de fora da tabanca até chegar o dia.

Tola era ela se não fizesse isso e continuasse o caminho! Cogitava, enquanto prosseguia no trilho sem fim. Era o coração que a comandava.

O quebrar de uma folha atormenta-a de novo. Nova paragem na silenciosa e atemorizadora escuridão da noite em que nem as rãs se ouviam.

Eis que uma voz suavemente cantante se faz ouvir:
- Binta! Binta, sou eu!

O coração sobressalta-se. A voz veio não sabe de onde, mas é ele, o seu prometido, o Braima. Esconde-se, de si mesma, junto a um tronco, tenta serenar o coração e a mente que se baralham e lutam entre si e aguarda, perscrutando em todas as direções.

Ouve-o de novo chamar pelo seu nome. Agora bem perto. Se dúvidas tivera desapareceram. Era ele que estava ali e vinha buscá-la.

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23443: Estórias do Zé Teixeira (54): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

terça-feira, 19 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23443: Estórias do Zé Teixeira (54): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 17 de Julho de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos, como tinha prometido, a segunda parte da sua estória Correspondência desviada.


Amores em tempo de guerra II

Correspondência desviada (continuação)

Resumo da primeira parte(*)

O alferes José Barbosa foi acordado alta noite. Alguns soldados do seu grupo de combate discutiam. Levantou e foi verificar o que se passava. A discussão centrava-se no Joaquim Santos que ultimamente ao regressar do seu serviço de sentinela acordava os camaradas em altos berros e palavrões.

O alferes, perante as queixas dos camaradas,   dispôs-se a ouvir o Joaquim em privado. Descobriu um homem transtornado. Todas as semanas escrevia à esposa e vice-versa. Ultimamente a correspondência que ele enviava à esposa extraviava-se, o que estava a degradar a relação entre o casal.

O alferes orientou-o quanto à forma segura de fazer chegar a sua correspondência à esposa. Aconselhou-o a ir de férias à metrópole e em conversa com a esposa aclarar a situação e resolver o problema.



Férias bem merecidas

No dia seguinte o Joaquim escreveu à esposa, seguindo o estratagema aconselhado pelo alferes, informando-a que contava regressar de férias dentro de algum tempo para estar com ela. Certo, porém, que o pobre rapaz acalmou depois da conversa com o comandante.

O alferes recolheu os elementos necessários sobre a morte do irmão do Joaquim em Angola, e fez uma exposição ao Comando Chefe de Bissau. Havia de facto uma lei militar que isentava de servir a Pátria, em missão no Ultramar, todo o militar a quem tivesse falecido algum irmão em combate. Tal lei estava escondida num Decreto-Lei e só era usada a requerimento do próprio interessado. Ora como ninguém conhecia a lei, esta não era cumprida.

Passado cerca de quinze dias, embarcou no avião da TAP em Bissau. Ainda a tempo de receber uma carta da esposa que o deixou imensamente feliz. Ela esperava-o ansiosamente, falava-lhe da menina com um entusiasmo de enlouquecer. Para aumentar a sua felicidade, vinha na carta uma fotografia da Anita, a sua menina que mal conhecera.

Tudo aconteceu rapidamente. A confirmação da viagem, a ida para Bissau no lugar do copiloto de um bombardeiro T6 e o embarque dois dias depois, de manhã, para Lisboa, que nem teve tempo de informar a esposa da data de chegada. O único telefone que havia na sua terra era propriedade do merceeiro. Possivelmente o Joaquim não sabia o número do telefone, mas nem pensou em tal. O importante era chegar junto da sua esposa, da sua menina, e abraçá-las.

- Cheguei!... E agora, vou ter com a Ana Maria ao trabalho? Vou a casa dos meus sogros ver a Anita? Vou a minha casa ver a minha mãe e talvez o meu pai esteja por casa!?… - pensou o Joaquim, logo que se viu fora do aeroporto de Lisboa.

Aspirou profundamente o ar de Lisboa, o ar da liberdade, da segurança… Sentia-se seguro, mas estava inquieto, nervoso. Dentro da sua cabeça bailavam fantasmas que tentava expulsar. Seguiu para a central de camionagem à procura de transporte que o levasse até à vila a cerca de cinquenta quilómetros de Lisboa. O restante percurso, de cinco quilómetros, teriam de ser feitos a pé. Não era dia de feira, não havia outro tipo de transporte, a não ser de táxi, muito caro para o seu bolso. O seu meio de transporte era a bicicleta que estava parada em casa da mãe, desde que partira para a vida militar. Talvez depois fosse ter com a Ana Maria, cujo transporte da empresa de confeções até casa, também era a bicicleta.

A mãe do Joaquim, nem queria acreditar. O seu menino regressou. Mal sabia que era apenas por trinta dias, mas estava ali e isso era o mais importante. A Ana Maria tinha-a informado da feliz notícia, mas ela não contava que fosse tão rápido. Tremia. Tremia de alegria incontida. Pendurou-se no seu pescoço. (Tinha um físico de mulher baixa e abonada. Ele era parecido com o pai; alto e forte.) Chorou de alegria. Choraram ambos, mas pouco conversaram. O Joaquim foi buscar a bicicleta e preparou-se para abalar ao encontro da esposa. Azar o seu. A bicicleta por falta de uso tinha os pneus vazios. Felizmente a do pai estava ao lado e o Joaquim nem pediu licença. Partiu a todo o gás para apanhar a Ana Maria à saída.

Ela não contava com o Joaquim ali. A surpresa paralisou-a, para de seguida atirar a bicicleta ao chão e correr para ele. Só os verdadeiros amantes saberão compreender o que se passou naqueles dois corações. Os seus corpos uniram-se em abraços sem fim. Aqueceram-se em ternos beijos e poucas palavras. A felicidade apoderou-se deles. Longos minutos depois, seguiram para cada dos pais da Ana Maria ao encontro da Anita a filha, fruto do seu amor.

O tempo voou. O mês de férias esgotou-se sem que antes pusessem as conversas em dia e alimentassem profundamente o amor que os unia. Tentaram descobrir porque não chegavam os aerogramas que o Joaquim escrevia, sem resposta plausível.

O tio, que lhes cedera o pequeno espaço para Ana Maria e a Anita viverem na ausência forçada do sobrinho, acolheu-os, estranhamente, com alguma frieza. Desconhecia, segundo lhes disse, que a correspondência do sobrinho se extraviava, aliás, queixou-se que a Ana Maria quase não lhe ligava. Apenas o “bom dia” e “boa noite”.

Para não correrem o risco de novo corte da corrente afetiva via correspondência, decidiram continuar com o esquema proposto pelo alferes Joaquim Barbosa. Os aerogramas escritos por ele, para a Ana Maria, seguiam dentro de carta fechada para casa da mãe e esta, os faria chegar ao destino.

Na hora de regresso à Guiné, o Joaquim sentia-se feliz e confiante. Levava com ele a imagem de uma criança que o adorou, tanto quanto ele a ela. A esperança de voltar em breve e sobretudo a certeza de que era amado pela Ana Maria. Isto bastava-lhe.

A felicidade que irradiava ao apresentar-se ao alferes, quando regressou, foi a melhor forma de pagamento que este sentiu, e a vida na Guiné continuou…

Causas e efeitos da correspondência desviada

Naquele fim de tarde, uns tempos depois do regresso do Joaquim, estava o alferes José Barbosa sentado à porta da sua cabana, em amena cavaqueira com dois furriéis, quando vê chegar o Joaquim, um tanto alvoraçado.
- Meu alferes.  dá-me licença? Preciso de falar consigo!
- Não me venha outra vez com outra história da sua mulher! Porte-se como um homem! Já sabe que a todo o momento deve chegar a guia de marcha para o seu regresso a casa. Tenha calma!
- Meu alferes, eu sei que não tenho perdão, disse Joaquim, mas preciso de regressar a casa já. Vou matar o meu tio! - Atirou de topete.
- Está doido homem!
- Não. Não estou. Sabe quem desviava as minhas cartas? Era ele, o grande filho da puta do meu tio. Leia este aerograma da Ana Maria.
- Tenho mais que fazer. Conte-me você!
- Diz ela aqui. O tio, na segunda-feira, convidou-me para ir com ele a Lisboa resolver problemas pessoais. Perante a minha resistência, porque ia perder um dia de trabalho, prontificou-se a pagar-me a féria e tanto porfiou que fui com ele. O sacana não foi tratar de qualquer assunto. Passeamos por Lisboa, de café em café, até que ao aproximar-se a noite, alegando que era tarde para regressar, convidou-me para ir com ele para uma pensão. Usou palavrinhas doces sobre a minha pessoa. Eu era jovem merecia saborear a vida... tu estavas longe e nem precisavas de saber… enfim. Um cabrão de merda.

Meu querido, só tive tempo de correr a apanhar o barco para o Barreiro. A camioneta de carreira preparava-se para fazer a última viagem, mas cheguei a tempo. Tranquei-me em casa com a menina e no dia seguinte fugi para casa da tua mãe.

Ele escrevia a dizer-te que eu era uma doidivana e tu acreditavas. Aí tens. O bandido estragou a fechadura da caixa do correio para me roubar as cartas que me escrevias. Nem penses que vou regressar àquela casa. Aguardo o teu regresso aqui...

- Basta! - disse o alferes - Amanhã vou enviar o seu processo diretamente ao Governador. Tem de partir urgentemente, mas só o faço se me prometer que não vai cometer represálias sobre o seu tio. Esqueça o que se passou! A sua mulher soube resolver o problema da melhor maneira. Não vai, agora, criar conflitos. Promete?
- Como posso prometer,  meu alferes !!... Ele é meu tio, bem o sei, mais que levantar falsos testemunhos sobre a minha mulher, queria abusar dela, aproveitando-se da minha ausência. Como posso prometer ? Eu não lhe perdoo.
- Vá dormir e amanhã falamos. Boa noite.

Uns dias depois o Joaquim recebe ‘Guia de Marcha’ para regressar a Portugal continental. Era o fim da sua guerra, passados vinte meses de sofrimentos e torturas de coração. Era tempo de voltar para junto da sua filhinha e da esposa. Enevoava-lhe a mente o sentimento de vingança sobre o seu tio. Não lhe podia perdoar o que este fizera à sua família, escondendo as suas cartas para a esposa, e muito menos a tentativa de abusar sexualmente da sua amada, apesar do alferes lho ter exigido. Era tempo de agir logo que chegasse à terra. Fervia de emoção só ao pensar, que dentro de alguns dias, voltava para junto das suas mulheres, como costumava dizer para si, nos silenciosos momentos de encontro espiritual.

Foi acompanhado pelo alferes até à avioneta que transportava a correspondência para a Sede da Companhia. Despediram-se num longo abraço entrecortado por palavras de estímulo do comandante e agradecimentos por parte do Joaquim, que em pranto lembrou a noite em que o Barbosa lhe tirou a G3 da mão, e o ouviu pacientemente.
- Sabe, meu alferes, na câmara da arma estava a bala que eu tinha destinado meter na minha cabeça. Não aguentava mais a pressão e os tormentos que vivia. Você salvou-me. Obrigado, estou eternamente grato. Quando regressarem vou esperá-lo no desembarque e levo as minhas mulheres para que conheçam o homem que eu mais estimo.
- E você promete-me que não fazer mal ao seu tio. É uma ordem, ouviu!
- Prometo que vou tentar…

...E subiu para a carlinga...

O alferes José Barbosa ainda tinha esperanças de ver o Joaquim, dois meses depois ao regressar a Lisboa, como ele lhe prometera.

Esqueceu-se com toda a certeza. Nem respondeu às cartas que o José Barbosa lhe escrevera nos primeiros tempos após o regresso. Nunca mais deu sinal de vida.

Passaram-se anos e anos, até que no convívio anual comemorativo do regresso da Companhia, onde o Joaquim nunca compareceu, alguém disse que o “perna marota” tinha falecido.

José Teixeira

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Nota do editor

(*) - Vd. poste de 14 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23430: Estórias do Zé Teixeira (53): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23430: Estórias do Zé Teixeira (53): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 11 de Julho de 2022, trazendo-nos a segunda estória para a subsérie de Amores em tempo de guerra.

Amores em tempo de guerra

II - Correspondência desviada

Depois da passagem de rotina pelos postos de sentinela, o alferes recolheu aos seus aposentos e adormeceu rapidamente. Acordou-o um ruído de vozes, onde sobressaía a fala do Joaquim Santos, o “perna-marota” onde se fundia a língua portuguesa com o crioulo. Vestiu uns calções e seguiu ao encontro dos desordeiros. O tempo de regresso à Metrópole aproximava-se, provocando nos seus homens uma certa inquietação e alguma euforia, que era preciso conter, sobretudo, era preciso evitar ruído noturno, e mais redobrada atenção quanto aos comportamentos.

O tempo de Guiné já ia longe demais, as vicissitudes da guerra impunham as suas marcas, era preciso calma, atenção e respeito pelo caminho que cada um dos seus homens estava a fazer. Para si, como comandante daquele grupo, o sonho era fazê-los regressar a casa, na Metrópole. O Cais da Rocha em Lisboa, de onde partiram, era a meta de chegada, onde todos deviam apresentar-se, pelo menos os que restavam: três já tinham partido, sendo que um fora num doloroso sobretudo de pinho, e os outros feridos em combate.

Imbuído deste espírito, o Alferes José Barbosa dirigiu-se ao abrigo de onde provinha o ruído. Três soldados brancos e um africano, discutiam. Cansados de acordar nas noites anteriores com o ruído que o Joaquim Santos produzia e os palavrões que lhe saltavam pela boca fora, quando acabava a sua hora de sentinela, os camaradas rodearam-no para uma chamada de atenção e ele reagiu de forma incorreta, como era seu costume.
- Joaquim chegue aqui! E vocês vão deitar-se. Acabou a festa!

Ao deparar com o Joaquim de G3 na mão, um pouco alcoolizado, o que não era seu hábito, e bradando palavras inconsistentes, logo pensou em admoestá-lo e redigir uma participação ao comandante da Companhia. Avaliando melhor a situação, filou-o por um braço e conduziu-o à porta da sua habitação. Sentaram-se, silenciosamente, num monte de cascalho, e a G3 entrou em descanso na mão do alferes. O pobre do soldado começou a chorar.

O Joaquim Santos, a quem fora dado pelos camaradas da recruta a alcunha “perna marota”, porque sofria de um pequeno tique na perna direita, era uma pessoa irritante, pela forma provocadora como reagia aos seus superiores e na relação com os camaradas. Até a voz, grossa e rouca, incomodava e ele sabia-o, pelo que abusava da fama para tirar proveito. Aparentemente não tinha grandes amigos e o alferes acompanhava-o de perto, para evitar sarilhos.
- Ah agora chora?! Mas há minutos despertou toda a gente do abrigo, e não foi a primeira vez. São seus colegas, devem merecer-lhe respeito. Disse-lhe o alferes, zangado. Que se passa Joaquim? Parece que está interessado em levar com uma participação ao comandante e apanhar mais meio ano de comissão!
- Se o meu alferes soubesse...
- Quero saber, antes de pensar no castigo que lhe vou dar!? Fale!

O silêncio que se seguiu entrecortado por soluços disse ao alferes, que algo de grave se passava, pelo que esperou pacientemente.
- O meu alferes sabe que sou casado e tenho uma filha. Tinha dois meses quando abalamos para a Guiné. Não sente a dor que me persegue... não pode sentir... amo a minha mulher... adoro a minha filha que mal conheço...
- Talvez, mas também tenho outras dores, que você não sente. Essa é a sua dor, mas todos nós, que aqui estamos, sofremos. A saudade mata, bem sabe... e cada um tem os seus dilemas. Temos de saber gerir os problemas com senso e você... se pensa que essa dor lhe dá o direito de incomodar os seus camaradas estás enganado!
- Não, meu alferes. Peço desculpa... estou confuso... não sei o que hei de fazer...
- Desembuche homem!
- Todas as semanas escrevo à minha mulher, e ela me escreve. Desde há dois meses queixa-se que não recebe a minha correspondência, e eu sempre lhe escrevi. Juro! Acusa-me de abandono, e até insinua que a troquei por uma madrinha de guerra. Não sei que fazer... eu amo-a e não quero perdê-la nem à minha filhinha! Alguém me desvia a correspondência, mas quem? Quem está interessado em arruinar o meu casamento? Ou será ela que me está a fintar?

O problema era grave. Não havia palavras que atenuassem a dor do Joaquim, pensou o alferes, optando por alimentar o diálogo. Talvez conseguisse que o Joaquim encontrasse a solução. Mais ninguém o conseguiria.
- Diga-me uma coisa. A sua família mora por perto?
- Sim. E aí é que está o problema. A minha mãe, que vive a cerca de dois quilómetros, escreve-me maravilhas da Ana Maria e da Anita. Passa lá por casa todos os dias com a menina. Almoça aos sábados e dispõe a tarde para ela, e a menina conviverem com os meus pais. O meu tio, que nos cedeu uma casinha junto à sua, para ela lá viver, para economizar uns cobres, acusa-a de ser depravada, porque nunca está em casa e que deve ter-me trocado por outro.
- E você em que acredita? Na sua mãe? Ou no seu tio...
- Eu quero acreditar na minha mãe, mas... ela está trolaró desde que o meu irmão morreu na guerra, em Angola. O meu tio... ela vive lá... e ele vê tudo.
- O seu irmão morreu em combate?
- Sim. Era condutor e pisou uma mina anticarro. O meu alferes sabe que essas não perdoam...
- Sim... Lamento... disse o alferes, comovido.

O alferes pensou: tenho de arranjar maneira de despachar este homem para casa, talvez a lei o permita, dado que o irmão morreu em combate, mas agora devo ajudá-lo a resolver o problema.
- Tem de encontrar formas de fazer chegar os seus aerogramas à sua mulher. Nunca se lembrou em enviá-los para a morada da sua mãe?
- Pois! E a minha mãe ficava a saber os nossos segredos. Nunca!
- Já pensou em ir de férias? Assim descobria o segredo da correspondência desviada... via a menina e aclarava a vossa relação afetiva. Merece ser feliz.
- Meu alferes o senhor sabe que na tropa ganhamos muito pouco. Dá para a cerveja e pouco mais.
- Porra! Tem ou não dinheiro para comprar a passagem? O que está primeiro, o dinheiro ou a sua felicidade e a da sua esposa? Amanhã vamos falar com o sargento e vai de férias. É uma ordem.
- Se o meu alferes assim entende! Ai que bom será, ver a minha menina!
- E a sua mulher. Ela merece confiança. Por favor, acredite na sua mãe. Amanhã vai escrever-lhe uma carta. Eu forneço-lhe o papel e o envelope. Mete dentro um aerograma para a Ana Maria e pede à tua mãe para lho entregar. Até ir de férias é assim que vai fazer e o seu problema fica resolvido. Pode crer.

E aqueles dois homens calejados por uma guerra ingrata, perderam-se na conversa, e encerraram este encontro, já o sol despontava, abraçados um no outro.

José Teixeira

(Continua)
Abril de 2008 > José Teixeira em Canamine
Abril de 2008 > Recepção em Guileje
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23351: Estórias do Zé Teixeira (52): Amores em tempo de guerra: I - Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

terça-feira, 14 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23351: Estórias do Zé Teixeira (52): Amores em tempo de guerra: I - Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

O José Teixeira em Ingoré, em 2015, rodeado de crianças

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 12 de Junho de 2022, trazendo-nos uma estória de amor, em tempo de guerra, como não podia deixar de ser. Quem não conheceu uma bela Binta na Guiné? A minha lavadeira chamava-se Binta e era bem bonita.


Amores em tempo de guerra

I - Um dia de festa em tempo de guerra

Não havia luar naquela noite. A obscuridade formigava de estrelas tão vivas que se tornavam ofuscantes aos olhos da Binta. Deitada na margem do regato avivado pela água das fortes chuvadas, ali mesmo ao lado do arame farpado que rodeava a tabanca, Binta deixara-se embalar em pensativo sonho, naquele local onde o mensageiro do Braima a ia visitar, em silêncio, longe a longe, fora das vistas de sentinelas, para lhe trazer novas do seu amado.

“Há quanto tempo lhes resisto... fui lavadeira de alferes, furriéis e até soldados que passaram por aqui. De uns gostei mais, mas nenhum me prendeu o coração. Quantas vezes tive de lhes dizer não!... quantas vezes tive de controlar as suas investidas maliciosas... O facto de ser filha do sargento da milícia e estar noiva do Braima, filho do Mamadu, tem sido a minha arma, que os obriga a respeitar-me. Se eles sonhassem onde anda o Braima, o que ele faz na mata... onde estaria eu?... Obrigada, minha mãe por me ensinares esta mentira, tu, que nunca na vida mentiste e me ensinaste que a mentira é usada pelos homens de cabeça grande, os que se perdem na bebida… na soberba ou na ganância…

...O alferes José Barbosa é diferente... Há dias pegou-me na mão, olhou-me nos olhos e eu pude ver bem dentro dele. Tem uns olhos transparentes, com um pouco de azul-celeste no contorno. Uns olhos destes não mentem, a mentira provocaria uma sombra, estou certa... E ele disse-me: “se o teu Deus é assim tão poderoso que pode criar uma mulher tão bela como tu, ficarei feliz por me submeter à sua lei para o resto da minha vida. Direi contigo: Allah é grande e não há outro Deus senão Ele. Casa comigo, eu dou ao teu pai tudo quanto ele me pedir, casa comigo”, insistiu... insistiu e eu fugi dos seus braços...

...Barbosa... eu amo Braima e esperarei por ele. Já recusei e continuarei a recusar entregar o meu corpo... O meu pai correu com pretendentes velhos e novos. Apesar de não ter recebido o quinhão prometido pelo pai do Braima, naquela noite. Para ele só há uma palavra, a dele. Respeito-o como pai, respeito-o como homem e amo o Braima... cabe-me guardar para ele o maior prazer.
- Mas onde está esse Braima que ninguém vê por aqui? Perguntou-me com ar inquiridor.
- Tive de lhe responder com a mentira que a minha mãe me ensinou.

Onde estará ele a esta hora?... talvez a dormir dentro de uma barraca... ou sobre o chão quente... ou a atacar um quartel... Olossato ou lá o que é, nem sei onde fica...
- Não! Está deitado a contemplar as estrelas, a pensar em mim... será possível que um homem e uma mulher, separados por esta luta violenta, esta guerra maldita; por rios e florestas cerradas; quilómetros de picadas cheias de perigos, possam enlaçar os seus olhos e pensamentos através das estrelas e viver o seu amor?... Braima do meu coração foge da guerra que nos mata... vem meu amor...
Quero-te a meu lado, quero ler o nosso futuro nos teus olhos, amar, ter filhos... maldita luta que me afastaste do meu amor!”

E Binta deixou-se adormecer como tantas vezes, sonhando com o seu amado. Acordaram-na os passos do cabo de ronda na sua tarefa noturna de manter as sentinelas em alerta.

José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23342: Estórias do Zé Teixeira (51): Há festa na Tabanca (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23132: Manuscrito(s) (Luís Graça) (209): O (futuro) museu nacional da guerra colonial...


Típico grafito dos "bunkers" da Guiné... Imagem (e legenda): LG (2019)


1. O museu nacional da guerra colonial

por Luís Graça

Um dia até as pombas da paz do Picasso repousarão
no museu da guerra,
em relicários, de aço,
mais as moscas, regressadas dos campos de batalha,
das  bolanhas, das chanas, das savanas, das florestas-galeria
de além-mar em África.
As moscas, e os mosquitos,  espetados em alfinetes lá ficarão  
nos respetivos mo(n)struários.

No museu nacional  da guerra colonial 
só haverá mo(n)struários.

Agora elevadas à categoria de artefacto cultural,
as moscas, exangues. cobertas de terra verde-rubra,
mais a merda das moscas, liofilizada,
como os grelos e o bacalhau que comias na noite de Natal.

No Norte do teu pais,  onde há gente decente, 
diz-se: "Com a sua licença, a merda".

Um dia ouviste o senhor comandante do teu batalhão,
veterano da guerra da Guiné
e especialista em águas minerais,
dizer, enquanto beberricava o seu uísque com água de Perrier,
"Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na messe de oficiais".

A tua não foi uma guerra tamanha, foi tacanha,
de baixa intensidade, 
escreveu o escriba do jornal
agora promovido a historiador oficial.

Eh!, pá, não viste mísseis hipersónicos a cruzar o Geba ou o Corubal,
o Cacheu, o Mansoa,o rio Grande de Buba, o Cumbijã, o Cacine,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.

Salgada, a sopa, da água da bolanha, fria, 
desconsolada, a saber a ferro, 
boa para  a anemia.

A responder-lhe, ao veterano,
seria com a célebre frase de um general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,
ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado
do que um tenente coronel do exército colonial):
"A guerra não é mais do que a continuação da política de Estado
por outros meios".
Fim de citação, ponto final,
... e siga a Marinha até ao Terreiro do Paço.

Dizia-se que era o mais longe onde se podia ir,
para não haver derrapagens no orçamento militar.

De megafone em punho,  à laia de baioneta,
ouvirás o guia-mor do museu,
herói, deficiente, maneta, 
o olhar baço, o peito ainda ardente,
a falar-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que era devida aos detalhes de barba do combatente 
mesmo nos felizes e alegres dias da paz.

Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
"Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto".

Nunca chegaste a perceber
por que razão é que o soldado tinha que ser tosquiado,
como o cordeiro da Páscoa.
Dizia o cronista-mor do reino,
que fez a cobertura mediática do desastre de Alcácer Quibir,
que era para ir ao encontro da deusa da morte, 
devidamente ataviado.

Rebobinando o filme da história desta guerra 
(e afinal de todas as guerras),
vê-se que  faltou sempre a visão do todo
ao marechal de campo,
visão que só podia ser major do que a soma dos detalhes.

A única filosofia de vida que tu, soldado, ouviste na tropa,
for ao teu tenente de instrução de especialidade,
era simples e prática, e não rimava com liberdade:
que a merda era o adubo... da vida, blá-blá;
que era fazendo merda, que tu aprendias, blá-blá.

E sobretudo nunca te devias esquecer
que era com a merda dos grandes, cá,
que os pequenos se afogavam, lá.

À quinta feira (seria ?, que importa o dia!),
depois da feira do gado bovino,
fazia-te, a ti e à malta do pelotão, rastejar na bosta,
enquanto ele namorava com a sopeira do capitão,
debaixo da janela, bem aparadas as patilhas
e perfumadas as virilhas.

É por isso que  ainda hoje não gostas... de xarém,
as papas de milho com conquilhas,
muito menos à moda de Tavira.

Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo,
do vira do Minho a Timor,
nunca soubeste onde ficava o Norte.
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço
para te enforcares no pau da bandeira.
Ou saltar o galho com garbo
ou fazer um manguito de bravata,
nem fazer o nó à gravata,
nem onde pôr a mão esquerda,
nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma
e muito menos, porra!,  ajustar o amuleto da sorte, 
ao peito.
Pior: não sabias sequer a letra do hino,
de cor e salteado
 nem tão pouco fazer o pino.

...Mas nem por isso te chumbaram, desgraçado,
que a pátria te chamava  e tinha pressa.

Depois um dia, no meio da guerra,
quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho, porque o Erre-Dê-Éme
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável
nem a do cacimbado
ou do apanhado do clima
"Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças",
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável,
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês,
e merda para todos os três.

"Sempre era mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!"

Deficiente das forças armadas,
prometeram-te depois um mundo melhor,
protésico e radioativo, 
com escudo de proteção,
sem armas de arremesso,
seguro contra todos os riscos e outras tretas:
só não te disseram o preço.

"Não, muito obrigado,
mais vale andar neste mundo em muletas
que do no outro em carretas".

Procuravas, além disso, uma mão...
Sim, a direita, com cinco dedos,
disposta a ajudar o teu pobre braço.
Esquerdo, sinistro, decepado.
 
Davam-se alvíssaras 
a quem salvasse o império,
tu deste o braço.

Morrer eras quando tu chegavas um beco sem saída
e não tinhas um kit de salvação.
Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto te fazia.
A morte não tinha SPM como os aerogramas da Cilinha,
e só morria quem não tem estrelinha,
que a sorte protegia os audazes
e quem morria, morria de vez,
e queria mortalha.

O mesmo era dizer: 
que o deixassem finalmente em paz!


A vida com a morte se (a)pagava.
Havia sempre moscas 
à espera do teu cadáver, prometido e adiado,
E jagudis, e formigas bagabaga, e um dia aziago,
E um primeiro sorja da CCS que te punha os pontos nos ii.
E um capelão que te fechava os olhos,
com extrema unção e a devida compaixão, divina,
e missa simples, sem cantorias nem  sermão.
E um coveiro que te pregava as tábuas do caixão.
E como a viagem era longa até casa,
ias hermeticamente fechadom
não fosse o diabo tecê-las!

"Não perturbem, do defunto, o sono eterno!",
podia ser o teu epitáfio.

A prática, diziam-te, levava à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa
que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o pé contra a mina APê, 
o coiro, encardido, contra o Erre-Pê-Gê Sete,
russo ou chinês, do internacionalismo proletário!
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse o único que te restasse
no calendário de parede, no teu abrigo,
grafitado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete,
marcando a eternidade de uma semana.

Ah! E os órgãos de Estaline, não te esqueças,
dos órgãos, mesmo que hoje já estejam embalsamados
lá no mausoléu.
 
Cada dia era o primeiro,
o único, o original, o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E antes de rezar as matinas,
as mãos erguidas ao céu,
fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das matacanhas,
o das pisadelas,
o mais azarento,
o rebenta-minas!

Lembras-te, ó Marquês, sem acento circunflexo ?!

Não sabias se o pintor de Guernica
(ou Gernika, que o topónimo era basco
),
gostaria de ter conhecido Adão e Eva no Paraíso, em pelota,
pobres amantes.
Ou a Terra Prometida quando era rica,
e era sempre primavera, nunca inverno,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro,  o petróleo e os diamantes.

Afinal, todos os pintores preferem fazer batota,
querendo entrar no céu
e pintando o inferno.


Não, afinal, nunca chegaste  a conhecer, em vida,  
nenhum museu da paz, 
apenas o desta guerra, ao vivo e a cores,
e que não tinha cenários de opereta:
as balas eram de puro aço ,
e as bombas não eram treta.
Também sempre detestastes  as pombas 
que te cagavam a varanda e a janela,
e muito menos eras fã do Picasso.

Camarada: que a terra da tua Pátria, ao menos, te tenha sido  leve!
Sit tibi terra levis!, 
como já diziam os soldados romanos
que te colonizaram.
 

3 out 2012 (*). Revisto, 21 de março de 2022, dia mundial da poesia (**)



Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha... Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]


2. Comentário do nosso editor:

Já há, no nosso país, um Museu da Guerra Colonial, que eu por acaso ainda não visitei. Fica em Vila Nova de Famalicão, terra de alguns dos nossos grã-tabanqueiros, como a Rosa Serra ou o Joaquim Costa.

Mas é uma museu municipal... Nasceu, segundo se lê no sítio, no ano de 1999, através de uma parceria entre o município de Vila Nova de Famalicão, a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e a AlfaCoop (Externato Infante D. Henrique de Ruilhe). Teve por base um projeto pedagógico intitulado "Guerra Colonial, uma história por contar"-

Oferece ao visitante uma exposição permanente que pretende retratar o itinerário do combatente português na Guerra Colonial (1961-1974), atrvés de áreas temáticas como: O Embarque; O Dia-a-Dia; As Operações Militares; Os Nativos; A Ação Social e Psicológica; A Religiosidade; Os Horrores da Guerra; A Morte; A Correspondência e as Madrinhas de Guerra.

Pormenor importante: todo o acervo museológico foi cedido ou doado por antigos combatentes ou seus familiares, por delegações da ADFA e pelos vários ramos das Forças Armadas Portuguesas.

Mas, segundo (in)confidências de círculos próximos da senhora ministra da defesa nacional, este museu pode vir a ser "nacionalizado", e passando a ser apenas um polo regional de um projeto museológico muito mais vasto e ambicioso, de âmbito nacional, com várias parcerias: museu do exército, museu da marinha, museu do ar (FAP), arquivo histórico-militar, academia militar, universidades... O projecto integrar-se-ia nas Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril.

Questão delicada e que divide os potenciais promotores é a sua designação: Museu Nacional da Guerra do Ultramar, Museu Nacional da Guerra de África ou Museu Nacional da Guerra Colonial ?


Interessante parece ser a ideia, do ministério da defesa nacional, de tentar salvar e recuperar as páginas e os blogues mantidos por antigos combatentes na Internet. Mas tudo isto ainda está no segredo dos deuses (ou das deusas)...
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 deoutubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10475: Blogpoesia (306): S. T. T. L., Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!.. (Luís Graça)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23039: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (12): Murcus (aquele que cortava o dedo polegar para se isentar do serviço militar) poderá estar na origem da palavra morcão


Capa do livro de Teófilo Braga (Ponta Delgada, 1843- Lisboa, 1924), "O Povo Português nos seus Costumes, Crença e Tradiçºoes", Vol I (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, Colecção "Portugal de Perto", 10) ( a edição original é de 1885) (Obra esgotada)


1. Já tínhamos (e ainda temos) a pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Vai fazer dois anos, no princípio de março, que apareceram os primeiros casos em Portugal... Provocou até há data 3,25 milhões de casos (infecções) e mais de 21 mil mortos, apesar de tudo dez vezes menos que a pandemia da "pneumónica" que matou 2% da população portuguesa em 1918/19. (Éramos então 6 milhões.)

Quase 8,9 milhões de portugueses receberam até agora a vacinção primária completa... No mundo morreram já cerca de 6 mlhões de pessoas e o número de casos aproxima-se dos 435 milhões... A Covid-19, doença respiratória cujos primeiros casos apareceram no final de 2019 na cidade chinesa de Wuhan, ainda estará longe de se tornar endémica (localizada)....

Já tínhamos a pandemia, faltava-nos agora a maldita guerra na velha Europa... e o pesadelo do terror nuclear. Portanto, o ano de 2022 vai continuar a ser um "annus horribilis"... E daí mantermos em aberto esta série dos "Usados & Achados" (*)...

2. Há dias, ao relermos o Teófilo Braga (Ponta Delgada, 1843-Lisboa, 1924), "O Povo Português nos seus Costumes, Crença e Tradições", Vol I (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, Colecção "Portugal de Perto", 10) (a edição original é de 1885), demos com um apontamento interessante sobre guerra e guerrilha, no capítulo II (Rudimentos da actividade espontânea), que inclui ainda temas como a caça, a pesca, bm como as hostiliades nacionais, locais e individuais...

Aqui vai, expurgada das referências bibliográficas, sempre pesadas, uma primeira parte do texto, sobre a "guerra defensiva" (pp. 84/85). Não fica mal em segunda feira de Carnaval, sempre de má memória para mim e os meus camaradas da CCAÇ  12.

(...) A guerra defensiva. – Um capitão do nosso exército, falando do recrutamento num jornal, confessou que a ninguém repugnava tanto o serviço militar como aos Portugueses. De facto, para não ser soldado o aldeão ainda corta os dedos da mão com o machado, para não poder puxar o gatilho da espingarda; este costume acha-se entre os Gauleses, que davam o nome de Murcus àquele que cortava o dedo polegar para se isentar do serviço militar. (...)

No Minho temos ouvido a palavra Murcão empregada como injúria à pessoa desajeitada; de facto, o murcus não podia sustentar a besta. 

Com este carácter os povos antigos da Lusitânia recorriam à guerra como defesa, dando-lhe a forma de emboscadas; a nacionalidade portuguesa, acabado o período das guerras defensivas da sua independência, acentuou-se na História pela actividade das grandes navegações.

Nenhum povo se soube defender com mais bravura do que o português, repelindo a ocupação espanhola e a invasão francesa. Diz Estrabão: «Os Lusitanos, segundo contam, são excelentes para armar emboscadas e descobrir pistas; são ágeis, rápidos, dextros. Armam-se de punhal ou grande faca; alguns servem-se de lanças com pontas de bronze ...» Eram assim os chuços na época da invasão francesa. A guerra defensiva apresenta uma forma peculiar.

A forma das batalhas por meio de guerrilhas, que tanto tem distinguido o povo espanhol e português nas lutas pela sua independência, é um costume das primitivas tribos germânicas. César nos seus Comentários diz destas escaramuças: «Género de combate no qual os Germanos alcançaram uma grande habilidade.» (...)

Por outro lado, o costume das almenaras, ou fogos de aviso, já se encontrava também nos costumes da milícia romana; diz César, nos seus Comentários: «Do nosso lado, tendo-se dado o alarme por grandes fogueiras, que era o sinal prescrito e acostumado". (...)

Por estes dois factos se conhecem os caracteres do romano-gótico nos costumes peninsulares. Mas nos usos consuetudinários, o fogo é sinal de paz, tal como se acha no provérbio jurídico Fogo e logo; também nos monumentos egípcios, nas esculturas das batalhas, o fogo é o sinal da fortaleza sitiada quando pede paz; é portanto o mais antigo, e de origem turaniana." (...) (Teófilo Braga, op cit., pp. 84/85).


3. Chamou-me a atenção a palavra Murcão. Que não vem grafada nos dicionários como tal, mas sim como Morcão, de resto muito utilizada no Norte (, a começar por Candoz...). Fomos ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, e encontrámos esta consulta, que reproduzimos para os nossos leitores, com a devida vénia:

Pergunta: 

Sei que a palavra ‘murcus’, em latim, significa «palerma» ou «estúpido» (Santo Agostinho usa o termo na Cidade de Deus, no quarto livro, capítulo 16). Já li aqui no Ciberdúvidas que a única etimologia registada do regionalismo morcão, com o significado de indivíduo estúpido ou mandrião, é "morcón", do castelhano, referente a «morcela». No entanto, parece-me uma coincidência demasiado grande para ser ignorada. Seria possível contactar algum etimologista que verificasse esta conjectura?

Manuel Anastácio  Professor do ensino básico  Guimarães, 

Resposta:

Morcão parece, de facto, assentar directamente no espanhol “morcón”, baseado num latim mǔrcōne. Isto não é impedido, na realidade, por existir em latim murcus, no sentido de «cobarde» e de «preguiçoso», cuja terminação em -cus ocorre em certos adjectivos que marcam defeitos físicos. Os dois vocábulos latinos parecem, sim, intimamente relacionados.

F. V. Peixoto da Fonseca  31 mar. 2006

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-origem-da-palavra-morcao/17410 [consultado em 27-02-2022]
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22999: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (11): em dia de namorados, relembrando uma peça do falar alentejano que é uma obra-prima de marotice e de saudável bom humor... (Manuel Gonçalves, ex-alf mil manut, CCS/ BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73)