Mostrar mensagens com a etiqueta estórias do Xitole. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta estórias do Xitole. Mostrar todas as mensagens

domingo, 5 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12544: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (6): Armadilhe-se tudo à volta!... Ou as malditas granadas vermelhas que mataram turras, tugas e macacos-cães...



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > O Fado da Guerra ou... das Minas e Armadilhas ? Os Fur Mil Guimarães (tocando viola) e Quaresma, ambos sapadores...



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) >  Mina antipessoal PDM-6 reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guiimarães da CART 2716 ("Bem, lá ia uma GMC ao ar, isso sim!!!".)

Fotos: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reservados.




Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72  > Sistema de defesa de um destacamento


Foto: © Carlos Fraga (2011). Todos os direitos reservados.



1. Texto do David Guimarães, residente em Espinho (ex-fur mul, at inf, minas e armadilhas, da CART 2716, Xitole, 1970/1972), um dos primeiros camaradas a aparecer, a dar cara, a escrever no nosso blogue, nos idos anos de 2005. O primeiro poste que temos dele é de 17 de maio de 2005, e era o nº 20 (Foi você que pediu uma Kalash ?). Este que reproduzimos a seguir foi o  75, de 23 de junho de 2005 (*).

É mais uma das suas estórias do Xitole, escritas no seu português castiço, e que retratam bem o quotidiano de um operacional de uma unidade de quadrícula, mais sendo ele um dos especialistas em minas e armadilhas:


2. Estórias do Xitole (6) > Armadilhe-se tudo à volta!... Ou as malditas granadas vermelhas que mataram turras, tugas e macacos-cães...

por David Guimarães

Quando ocupámos o Xitole, em substituição da CART 2413  que lá se encontrava [, no período de1968/70], procedemos de imediato ao armadilhamento da zona limítrofe do quartel. Foram colocadas muitas minas antipessoais, de fabrico português, com espoletas de pressão, reforçadas com mais cargas explosivas ou não, conforme a maior ou menor importância do local. O objetivo era impedir a aproximação e a infiltração do IN, criando um zona de segurança à volta do quartel...

Também era frequente serem pendurados, no arame farpado, objetos diversos desde latas de coca-cola até garrafas de cerveja, que ao menor movimento tocariam umas nas outras, dando sinal pelo som de que o arame estava a ser mexido... Isto era importante especialmente de noite...

Este processo de alarme e prevenção efetivamente só ajudou a, de início, apanhar-se alguns sustos, pois que não funcionava na prática, como devia de ser. Enfim era a fé de cada um… Um sistema de segurança altamente falível, pois que todos os dias tínhamos barulhinhos esquisitos, o que era natural....

Quanto às minas e armadilhas, essas, sabíamos que estavam muito bem colocadas e, essas sim, davam uma certa segurança... Apesar de tudo eventualmente fazíamos armadilhamentos temporários, a mais longa distância, usando para isso a granada armadilha instantânea que qualquer combatente da Guiné conhecia.

Todas as granadas eram formadas por cápsula fulminante, 3 cm de cordão lento e um detonador que fazia explodir a carga base... Todos nós nos lembramos da mina defensiva, de composição B, e do seu uso, bem como das ofensivas, cilíndricas, de carga de trotil (TNT).

A que estou a referir era exactamente cilíndrica, como a ofensiva, só que enquanto as outras tinham a cor verde azeitona, esta era vermelha e mais de metade era envolta com espiral de metal. A maior diferença, e por isso se chamava instantânea, era não ter os três cm de cordão lento. O percutor, acionado, logo fazia explodir o detonador e a carga base. Esta mina era altamente mortífera devido ao seu poder de fragmentação, provocado pelas espiras em aço.

Bem, mas isto não é uma aula sobre minas e armadilhas. Serve apenas para contar uma estória, do início também da nossa comissão.... Uma estória de guerra ou uma contrariedade.

Um camarada nosso, o [fur mil minas e armadilhas] Quaresma, lá foi para o mato com um pelotão para colocar uma dessas granadas instantâneas num trilho. Tudo feito como devia ser, a mina colocada estrategicamente na base de uma árvore de copa frondosa e arame de tropeçar a atravessar o trilho. Era a assim que mandavam as regras aprendidas, teoricamente, em Tancos...

Bem, pelas 4 da manhã (e na Guiné, a essa hora, ouvia-se tudo), há um grande rebentamento para aqueles lados da armadilha... Não há dúvida, a guerra fez-nos ser tipo animais:
─ Alto, alguém caiu, alto, alto!!!... ─ Já todos nos mordíamos para ir ver o sucedido.

Pela manhã, bem cedo, aí vai o pelotão de reconhecimento. Aproximação cautelosa ao local, sangue no chão...
─ Boa, que isto funcionou!

Mais sangue ali e acolá e eis que surge a vítima.... Um grande macaco, já morto... E não tinha camuflado!...
─ Ora, foda-se!

A guerra tinha disto...

David J. Guimarães


Em tempo: ironia do destino, o nosso camarada Quaresma acabou por morrer pela acção de uma granada dessas, a instantânea.. [Como já aqui foi contado, na estória do Xitole nº 1]

_____________

Nota do editor:

Postes anteriores da série > 

26 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11982: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (5): Uma noite em Tangali com ataque ao Xitole, o quico do furriel Fevereiro e o meu baptismo de... voo em 1971

(...) Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o [furriel] Fevereiro a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela). (...)



(...) Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN. (...)

12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo

(...) Nós sabemos o que era uma coluna logística, uma operação de reabastecimento, mas outros nem calculam o que seja... O vai haver coluna já era uma grande chatice... Andar até ao Jagarajá, à Ponte do Rio Jagarajá, a pé e a picar, não era pera doce... E depois? Se acaso acontecia mais algo a seguir? (...)

24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11456: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (2): Nem santos nem pecadores

(...) Até que enfim!... Acho que sim — não poderá haver tabus e ainda bem que o Zé Neto, o Zé Teixeira, o Jorge Cabral e o Luís são, afinal, os responsáveis por quebrarem o tabu... Falaram de algo que também é guerra... Foi e marcou a nossa guerra: a lavadeira, o cabaço, etc, etc... Ai, ai, ai, que começo a falar demais, ou talvez não... Creio que nunca houve grandes abusos nesse sentido, nunca foi preciso apontar a G3 a nenhuma bajuda, já uns pesos, enfim ... Que mal fazia, se era dinheiro de guerra?!...(...)

(...) Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc. Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá (...).

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11982: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (5): Uma noite em Tangali com ataque ao Xitole, o quico do furriel Fevereiro e o meu baptismo de... voo em 1971

.

Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > "... 58, 59 ... 70, 71...89, 90... 98... 99... 100!  Cem canhoadas em dez  minutos no ataque ao aquartelamento do Xitole".

Foto (e legenda): © David Guimarães (2005). Todos os direitos reservados


1. Texto do David Guimarães (ex-Fur Mil Guimarães, CART 2716, Xitole, 1970/72) [, foto à esquerda, Saltinho, 2011]. Continuação da série Estórias do Xitole (*),  a partir de postes da I Série do nosso blogue:

Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o [furriel] Fevereiro (**) a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela).

Bem, saímos pelo fim da pista do Xitole, com dois Unimogs 411 e lá fomos. Era mesmo chato, ir dormir para a tabanca e logo para aquela:
─ Pôça, eles até eram todos de lá!  ─ pensei eu, pouco ou nada confiante na lealdade da população local para com as NT.

Na realidade, os de Tangali [, a seguir a Cambesse, na estrada para o Saltinho] jogavam para os dois lados, conforme as conveniências... Bem, lá fomos e ao fim de 7 Km lá estávamos nós.... Nisto, diz-me o Fevereiro:
─ Porra, Guimarães, perdi o meu quico!

Entretanto, vejo e ouço toda aquela gente alarmada:
─ Furriel, furriel, manga de ronco lá para o lado do Xitole!... Muito tiro, muito tiro.
 Transmissões, liga para o quartel, pergunta o que houve ─ ordeno eu.
─ Furriel, ninguém atende, não consigo nada, porra para isto!
─ Bem, nós estamos aqui, amanhã veremos o ronco  arrematei  eu.

Nessa noite não dormimos tão descansados:
─ Porra, ronco e tiros, sei lá, vamos mas é ficar atentos...

A noite nunca mais acabava... De manhã cedo, bem formados e atentos, lá fomos estrada fora, de regresso ao Xitole e entrámos pelo fundo da pista de aviação... Bem, buracos no chão não faltavam. Diz-me o Fevereiro:
 ─ Guimarães, olha ali o meu quico!
 Boa ─ disse eu tiveste  sorte, ele apareceu.

Ele pega no quico e mesmo no local da nuca estava um furo:
 ─ Já viste ─  exclama o Fevereiro para mim  ─ se eu tinha a cabeça aqui dentro!...

Bem, lá chegámos ao aquartelamento [do Xitole]:
─ Tanto buraco!
É, pá, os gajos apontaram para aqui e até parecia que disparavam em rajada os canhões sem recuo... Vinha daquele lado do Corubal...


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Subsetor de Xitole > Carta de Xitole (1955) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Xitole, Cambesse (ou Cambéssé) e Tangali, na estrada que conduzia ao Saltinho.

Infografia: Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné (2013)

Tarefa matutinal: ver os estragos e contar as canhoadas; sim, as marcas bem visíveis e os cotos das granadas bem enterradas no chão como se fossem setas de índios:
─ Olha, esta entrou no depósito de géneros... vamos ver!

Depois de bem contados, parece que só se tinham partido 4 garrafões de vinho... Coitados dos garrafões, do mal o menos...
 ...58, 59 ... 70, 71.... porra e mais aqui ... 89, 90... 98... 99.... e esta também ... 100!!!

O ataque tinha demorado... dez minutos!
 Porra, porra!  ─ ainda dizia o Fevereiro, a olhar para o estado lastimoso em que ficou o seu quico.

Nessa altura tinha chegado ao Xitole um morteiro de calibre 107 mm  [, ou 10.7,  vd. imagem à esquerda, retirada do blogue do nosso camarada Luís Dias, CCAÇ 3491, Dulombi, 1971/74].

Para dar instrução sobre esse morteiro tinha vindo um primeiro sargento especialista de armas pesadas, ex-cabo e ex-comandante de um posto qualquer da GNR lá na Metrópole.

Experimentou-se o dez sete, assim chamávamos ao morteiro.... Poça, parecia uma arma de artilharia, boa não há dúvida, pelo menos muito barulho fazia....

De manhã, o 1º sargento costumava dar as aulas teóricas sobre o funcionamento da coisa e não é que, por ironia do destino, muitas noites e algumas seguidas éramos atacados sempre de canhão sem recuo.... A certa altura o homem do bar dizia:
─ Fui eu, ao bater a porta do frigorifico...

É que que esse barulho punha-nos todos a caminho do abrigo... Tantas vezes ele repetiram aquelas flagelações e o dez sete a funcionar... Logo de manhã, as aulas práticas e, à tarde, a teóricas...

Até que se aproximou o dia da minha licença disciplinar de 30 dias... Sim, aquilo que chamávamos férias.... Bem, mas antes teria que se ir a Satecuta [uma das bases do PAIGC, junto ao Rio Corubal, a oeste do Xitole]... Aquilo parecia uma cidade, já tinha sido visto de avioneta....

Na primeira ida, ficou a companhia de formação e comando e fiquei eu. Não relatarei o que disseram, relatarei apenas o que vi do aquartelanmento... Enfim, sem querer ser herói, percebi quanto um jogardor de futebol sofre quando está na bancada... Era o caso: a certa altura naquele dia, uma avioneta lá londe começou a andar em círculo, por baixo os jagudis na mesma em círculo, ouviam-se tiros e mais tiros, rebentamentos e mais rebentamentos. Um inferno!
─ Ai, como estarão eles, coitados, que coisa ─  dizia eu cá para mim.

A certa altura, inesperadamente a avioneta (uma DO) afasta-se e os tiros terminam. E os jagudis também desaparecem.... Por fim, todos sujos, cagados, os bravos voltam:
─ Não, não deu para entrar....

Em cada operação em que havia tiros, que coisa, vínhamos todos enfarruscados....
─ Bem, tudo muito bem, mas eles não deixaram, recebemos ordem de retirar pelo Comandante... Ninguém ficou ferido, ao menos isso... Enfim, desta vez ao menos as balas do inimigo nos acertaram.
─ Ainda bem, disse eu cá para os meus botões. Agora, Guimarães, vais até à metrópole, num voo TAP e pela agência Costa... E que tal? De avioneta até Bissau, que luxo!!!

Ai, era o meu baptismo de voo. Porreiro, o meu cu já tinha calos do Unimog...
─  Mas isto é mesmo bem bom... Adeus, Xitole, adeus,  camaradas, adeus, Fevereiro!... Até daqui a um mês!.

_____________

Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série:

(...) Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN....

Era bem de manhã. E a certa altura, zás, ouve-se o matraquear de espingardas automáticas:
─ Que coisa!... Oh diabo, estão a enrolar. (...)


12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo

(...) Nós sabemos o que era uma coluna logística, uma operação de reabastecimento, mas outros nem calculam o que seja... O vai haver coluna já era uma grande chatice... Andar até ao Jagarajá, à Ponte do Rio Jagarajá, a pé e a picar, não era pera doce... E depois? Se acaso acontecia mais algo a seguir? (...)

(...) Até que enfim!... Acho que sim — não poderá haver tabus e ainda bem que o Zé Neto, o Zé Teixeira, o Jorge Cabral e o Luís são, afinal, os responsáveis por quebrarem o tabu... Falaram de algo que também é guerra... Foi e marcou a nossa guerra: a lavadeira, o cabaço, etc, etc... Ai, ai, ai, que começo a falar demais, ou talvez não...

Creio que nunca houve grandes abusos nesse sentido, nunca foi preciso apontar a G3 a nenhuma bajuda, já uns pesos, enfim ... Que mal fazia, se era dinheiro de guerra?!...(...)


18 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2278: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (1): A triste sorte do sapador Quaresma... morto por aquela maldita granada vermelha

(...) Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc.
Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá (...).


(**) Fevereiro é pseudónimo. Lista dos sargentos da CART 2716 / BART 2917 (1970/72):

1º Sargento de Artilharia JOSÉ CARREIRA PEREIRA SANTOS 50453411
2º Sargento de Artilharia FIRMINO AUGUSTO PIRES 51106111
Furriel Mil. Alimentação JOAQUIM HORÁCIO OLIVEIRA MARQUES 01234769
Furriel Mil. Mecânico Auto ADELINO CABETE FONSECA 08792869
Furriel Mil. Enfermeiro ANTÓNIO REGO MEIRINHO 10725369
Furriel Mil. Transmissões FERNANDO SEVERO MENDES SILVA 02890068
Furriel Mil. Op. Especiais JOSÉ MARIA CARDOSO MARTINS 17221369
Furriel Mil. Atirador FRANCISCO MANUEL ESTEVES SANTOS 18613169
Furriel Mil. Atirador ELÍSIO MANUEL PINTO REI 01752169
Furriel Mil. Atirador JOSÉ TRIGUEIRO PEREIRA LEONES 08514269
Furriel Mil. Atirador JÚLIO MANUEL AUGUSTO 02131169
Furriel Mil. Atirador JOSÉ DANIEL ALVES RIBEIRO 10186669
Furriel Mil. Armas Pesadas DAVID JORGE PINTO BARROS GUIMARÃES 17345368
Furriel Mil. Atirador DIAMANTINO ENCARNAÇÃO FERREIRA 07995869
Furriel Mil. Atirador JOAQUIM MANUEL PALMA QUARESMA 03818069
Furriel Mil. Armas Pesadas JOSÉ CARLOS FIGUEIREDO HENRIQUES 03299869

domingo, 4 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11903: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (4): Um tiro numa cabra de mato... que deu direito a um prémio Governador Geral


1. Mais uma estória do David J. Guimarães, passada no Xitole, nos primeiros tempos da comissão da CART 2716 (1970/1972), e que andava perdida na I Série do nosso blogue:


Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN....

Era bem de manhã. E a certa altura, zás, ouve-se o matraquear de espingardas automáticas:
Que coisa!... Oh diabo, estão a enrolar…

Os morteiros fixos lá fazem fogo de barragem. Novamente os experientes homens de armas pesadas. E que eficientes! Como eles faziam aqueles morteiros dispar tão amiúde e certeiro... Cessar fogo, tudo silêncio à volta, fora os abutres que logo foram ver o que acontecia.
─  Que aconteceu? E agora... Estará alguém ferido? O que aconteceu? O que vamos fazer?

Nenhum deles disse nada... mas voltaram depressa. E nós nem percebíamos ainda porque que é que eles voltaram assim tão rapidamente... Bem, lá regressa, da patrulha, o 1º Grupo de Combate. Ofegantes, e agora dentro do aquartelamento esboçando sorrisos, todos pretos... Que coisa, sempre que havias tiros ficava-se todo preto!
─  Que aconteceu ???

Lá vem a explicação: o grupo estava a instalar-se, para um tempinho em posição de emboscada. Uma cabra de mato passa em frente... Um soldado diz para o Alferes muito baixinho:
─  Alferes, cabra de mato!
─ Atira-lhe ─  responde o Alferes ─  Há rico tiro, pum, pum!!!

E não é que o IN estava lá emboscado, do outro lado da cabra? Seriam poucos, mas ao sentirem-se detectados deram uns tiros e fugiram, pois que entretanto também começaram a cair bem perto as granadas do morteiro do aquartelamento...
─  Manga de cu pequenino…

Olha que sorte, a santa cabra do mato!... Foi ela, afinal, o nosso anjo da guarda. O Correia voltou com o seu grupo de combate inteiro e o soldado que detectou a cabra... herói. Mais tarde foi-lhe proposto e concedido o prémio Governador Geral. Todos achámos muito bem, veio à metrópole. Se não fora assim, nunca iria lá de férias, porque não tinha dinheiro para isso...

Ninguém soube se a cabra morreu ou não, mas os homens, depois de contados, estavam todos... E os abutres também voltaram ao aquartelamento e continuaram a comer o que restava da vaca morta nesse dia...

A guerra tinha disto também, e ainda bem... Como entendê-la? Só um combatente... Este era o nosso tempo de recreio de guerra dentro da guerra.

David J. Guimarães
_________

Nota do editor:

Último poste da série > 12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo

domingo, 12 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2005 > "No Saltinho, as bajudas continuam lindas, ontem, como hoje", escreveu o José Teixeira, quando lá voltou em Abril de 2005. Mas esta é (ou era, no nosso tempo) também uma região palúdica, devido à existência de rios e charcos de água, acrescenta o nosso David Guimarães, vítima do paludismo, como quase todos nós...

Foto: © José Teixeira (2005).Todos os direitos reseravdos


1. Texto do David Guimarães (ex-fur mul, at inf, minas e armadilhas,  da CART 2716, Xitole, 1970/1972),  um dos primeiros camaradas a aparecer, a dar cara, a escrever no nosso blogue, nos idos anos de 2005. O primeiro poste que temos dele é de 17 de maio de 2005, e era o nº 20 (Foi você que pediu uma Kalash ?). Este que reproduzimos a seguir foi o 480 (*). É mais uma das suas estórias do Xitole, escritas no seu português castiço, e que retratam bem o quotidiano de um operacional de uma unidade de quadrícula (**).



Nós sabemos o que era uma coluna logística, uma operação de reabastecimento, mas outros nem calculam o que seja... O vai haver coluna já era uma grande chatice... Andar até ao Jagarajá, à Ponte do Rio Jagarajá, a pé e a picar, não era pera doce... E depois? Se acaso acontecia mais algo a seguir?

Claro que não vou explicar o que é picar - não será necessário, antes fosse... O picar na tabanca era bem melhor, maravilha mesmo... Agora picar aquela estrada toda até ao Jagarajá, porra, que grande merda!... Na tabanca sempre era melhor, era pelo menos algo bem diferente do que ir a servir de rebenta minas...

Pois é, a grande operação, a saída da rotina. Depois havia que manter a guarda de manhã até à noite... É que, quando a coluna vinha para o Xitole, então também se ia ao Saltinho. Ufa, que grande merda, mas tinha que ser...

O Quaresma, o Santos e eu vivíamos os três na altura no mesmo apartamento do Xitole - um à esquerda, outro à direita e eu ao centro... Sempre simples e amigo da brincadeira, eu via os dois desgraçados com uma camada de paludismo a vomitarem e eu lá no meio a acalmá-los:
- Vocês são uns merdas, não valem nada... Pois, não fazem o que eu digo!.. Apanham isto por que não bebem. Quem bebe bem, safa-se!

E eles, coitados, riam e choravam ao mesmo tempo, e seguir lá vomitavam o que não tinham no estômago. O paludismo era assim... Bem, lá me levantava eu de manhã e lá ficavam eles na cama... Eles já tinham o cu como um crivo, só das injecções.
- Porra!, - dizia eu - quem dera nunca me dê esta merda...

Bem, mas eles melhoravam e eu estava bom, antes assim. São meus amigos, faço-lhes companhia e trago-lhes o correio... É verdade e lá parto de manhã, um belo dia, para a dita operação de segurança à coluna que vinha de Bambadinca...

- Ai, que bom não ser eu a picar, ainda bem!

Nos revezávamo-nos entre os três grupos de combate em cada coluna: ia um até ao Jagarajá, outro ficava no ponto intermédio e o outro adiante da Ponte dos Fulas, aquela ponte a 3 Km do Xitole onde estava sempre um grupo de combate. Esse limitava-se a ver passar o comboio... e a tomar conta da ponte, claro...

Bem, lá fomos nós por ali adiante, os três grupos, o meu no meio. Eu, como sempre levei duas Fantas -cerveja só no Xitole - enfim uma ou outra coisita da ração de reserva e doces, nem vê-los... É que aquelas geleias e coisas mais doces da ração atraía a nós uns mosquitos chatos e sobretudo umas formigas que ferravam e não nos largavam. Quantas vezes tivemos que as tirar das zonas púbicas - que bem que está a falar um ex-militar!... Quantas vezes tivemos que arrear as calças, para essa aflitiva operação!... Mas essa era outra guerra, paralela à coluna...

Lá progredimos e começámos a instalarmo-nos, ao lado da estrada, metidos uns 20 a 30 metros dentro do mato... Depois ali era esperar, esperar que os motores se começassem a ouvir e as viaturas a surgir, envoltas em nuvens de poeira:
- Aí vem a coluna!...

Já tínhamos morto umas centenas de moscas pequeninas que vinham fazer cócegas onde havia mais suor. O pulso era um dos seus alvos preferidos, mesmo na zona da correia do relógio...

Uma vez instalado, eis que me deu sede... Bebi uma Fanta, quase de um só gole. Ao mesmo tempo deu-me um frio danado, vomitei a bebida de imediato e tiveram que me cobrir com um camuflado. Comecei a tremer como varas verdes - não, dessa vez não era com medo, era com frio, arrepios de frio, no meio de um calor do caraças... Tive ainda forças para dizer:
- Lopes (era um cabo da minha secção), comande esta merda e meta-me na primeira viatura que aparecer... Estou com paludismo...

Porra, que eu nem forças tinha para me pôr de pé. Lá vim para a estrada, apoiado no cabo, até que enfim se ouve o trabalhar dos motores, as viaturas das colunas... O cabo mete-me na primeira...
- Sobe, diz o oficial.



Guiné > Zona Leste >Ector L1 >Xitole > 1970 > A coluna logística mensal de Bambadinca chega ao Xitole... Em cima da Daimler, ao centro o alferes miliciano de cavalaria Vacas de Carvalho, comandante do pelotão Pel Rec Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/71); à sua direita, o furrriel miliciano Reis, da CCAÇ 12, à sua esquerda o furriel miliciano enfermeiro Godinho, da CCS do BART 2917, mais o furriel miliciano Roda, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados


E lá fui eu a tremer até ao Xitole, a bordo o de uma viatura... de Cavalaria, a autometralhadora Daimler do Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler... Esse mesmo, o da fotografia, espero que não tenha sido nesse dia mesmo que eu fiquei doente; julgo que na altura lhe agradeci a boleia, mas se o não fiz, devido ao estado febril em que eu me encontrava, ainda vou a tempo, trinta e seis anos depois:
- Obrigado, meu alferes! Foi a melhor boleia, a mais oportuna, a mais rápida, que eu apanhei na puta da vida! Mesmo à justa!...
Bom, o resto da estória é fácil de imaginar: enfermaria, uns comprimidos e cama -  uma semana de baixa!... Ai que bom, nem precisei de injecções... Aí naquele quarto de hotel de cinco estrelas, o que o Santos e o Quaresma - falecido pouco depois, uma história negra que hei-de aqui contar  -  me disseram!
- Então, seu caralho, tu é que eras o bom!...
- Por favor, deixem-me em paz! - pedia-lhes eu...

A guerra naquela zona sempre foi tremendamente difícil. Sei que o Xitole era das zonas da Guiné que mais problemas tinha com o caraças do paludismo: tínhamos muito charcos de água e dois rios bem perto, o Corubal e o Poulom, aquele da ponte dos Fulas... Chegámos a ter muita gente acamada ao mesmo tempo e não dávamos descanso à enfermaria...

Como estão a ver na guerra apanhava-se de tudo: boleias de Daimler, picadas de formigas, moscas e mosquitos, paludismo, além da porrada... Em matéria de picadas, também as fiz, picadas à pista de aviação de Bambadinca... Mas isso é outra estória, que fica para uma próxima...

_____________

Notas do editor:

(*) Originalmente publicad na I Série > 27 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXX [480]: Uma boleia na Daimler do Vacas de Carvalho (Xitole, David Guimarães)

(**) Último poste da série > 24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11456: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (2): Nem santos nem pecadores


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11456: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (2): Nem santos nem pecadores



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole >  CART 2716, Xitole, 1970/1972) > A Helena e o David, em 1970.

Tal como Bambadinca, o Xitole era um posto administrativo, pertencente à circunscrição administrativa (concelho) de Bafatá. Com a guerra, tinha perdido importância económica e demográfica. "Sede do Posto Administrativo do mesmo nome, sede da CART 2716, com uma população normal de 300 habitantes, dispõe de 3 lojas comerciais em funcionamento. Sofreu forte repressão na sua importância comercial (principais fontes de riqueza, coconoto e madeira), com a guerra" (Fonte: História do BART 2917, Bambadinca, 1970/72).

Foto: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reseravdos

1. Texto do David Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, Xitole, 1970/1972), que hoje faz anos... e que é um dos primeiros camaradas a aparecer, a dar cara, a escrever no nosso blogue, nos idos anos de 2005. O primeiro poste que temos dele é de 17 de maio de 2005, e era o nº 20 (Foi você que pediu uma Kalash ?).

É bom lembrar que, se a antiguidade fosse um posto, na nossa Tabanca Grande (ou tertúlia, como dizias no princípio), então o David já era general... De facto, ele foi dos primeiros camaradas a aparecer, a dar a cara, a expor-se, a desenterrara as memórias do baú, a escrever... Ele, o Sousa de Castro, o Humberto Reis, o A. Marques Lopes...

É por isso que as suas "estórias do Xitole" merecem, pelo menos algumas, ser reeditadas. Vai ser a nossa prenda de aniversário. O David merece. Foi também ele um dos primeiros a fazer uma viagem de saudade, à Guiné, em 2001...  Aí vai, pois, o poste nº 2 de um série que tem estado interrompida. (*).. Em homenagem ao nosso tertuliano nº 3..., que é um tipo bonacheirão, nortenho, músico, camarada do  seu camarada, amigo do seu amigo... Bebo um copo à tua, meu! (LG).

2. Estórias do Xitole (2) > Nem santos nem pecadores (**)
por David Guimarães


Até que enfim!... Acho que sim — não poderá haver tabus e ainda bem que o Zé Neto, o Zé Teixeira, o Jorge Cabral e o Luís são, afinal, os responsáveis por quebrarem o tabu... Falaram de algo que também é guerra... Foi e marcou a nossa guerra: a lavadeira, o cabaço, etc, etc... Ai, ai, ai, que começo a falar demais, ou talvez não...

Creio que nunca houve grandes abusos nesse sentido, nunca foi preciso apontar a G3 a nenhuma bajuda, já uns pesos, enfim ... Que mal fazia, se era dinheiro de guerra?!...

Também é importante todos dizermos que, nesse capítulo, não fomos nem santos nem pecadores. èramos humanos, soldados que passávamos uma vida metidos entre matos, entre perigos e guerras esforçados... E pela noite dentro, a escapadela da ordem, na tabanca. Ai que maravilha!... Foram muitos e belos romances... E aqueles que podiam ir a Bafatá, eram uns sortudos... Eu só no fim da comissão é que soube o que era Bafatá!...

Lembro-me de um romance de um camarada que comprou a liberdade de uma mulher. Os nativos pensaram que ele se tinha casado com ela... Bem, porreiro para ele! Não é segredo, foi verdade, e a testemunha foi o chefe de posto, isso mesmo, aquele que a mulher —  linda ali, no Xitole!!! — morria de amores por um camarada nosso, já falecido...

E não vamos contar a do tenente que, às 4 horas da manhã, estava sentado no colo de um soldado.... Tudo boquiaberto? Aconteceu no Saltinho, sim ... Fora aquele camarada — ai Senhor do Céu ! — que,  um dia, estava eu a dormir no palácio das confusões, e ele por cima de mim:
— Guimarães! — dizia o B..., camarada do Xime — porra, estás bem?
— Deixem-me dormir! — pedia eu... — Porra!...
— Pois é, estás porreiro!!!

Pois é e pois é...  E eu dormi mesmo....De manhã fui perguntar se estava tudo com os copos durante a noite, que nem me deixavam dormir... Então disseram-me:
— Ó seu c..., então não sabes que o fulano tem uma amante que é um cabo !? —. Respondi eu:
— F...-se, que perigo em que eu estava... Porra!!! Já viram,  a mina mesmo ali, mesmo por cima de mim?!...

Estávamos num beliche... Quem me perguntar, prometo que não digo o nome do camarada furriel — nem me lembro do nome... Sei apenas que foi meu carmarada de recruta nas Caldas da Rainha... Um dia, a CCAÇ 12 acompanhou uma coluna ao Saltinho... Houve no caminho um acidente onde morreu um soldado africano, condutor, e um furriel ficou ferido... Bem, lá ficou o camarada em convalescença no Xitole:
— Ai que vocês são tão simpáticos....
— Bem, bem...

[Foto à esquerda: David Guimarães, no Xitole, em 2001]


E o Cardoso (outro furriel que estava lá desde 1966) ... Esse pedia-me para eu fazer guarda mais pela noite... Vinha-me acordar, para eu seguir para a tabanca: vinha sempre de casa da Mariana, com as calças na mão, descomposto... E ria, ria... Lá ia eu, sempre furioso:
— Seu porco! — e ia ter com a Mariana e ela, coitada, queixava-se:
— Guimarás — pronúncia dela —, Cardoso manga de tolo, mas Mariana gostar dele....

Isto também era guerra — ou, se quiserem, os intervalos de guerra, que eram poucos... O suficiente, afinal, para se apanhar uma borracheira ou ir, com lindos penteados, passear à tabanda, para bajuda ver ou para quem aparecesse, pelos vistos....
_____________

domingo, 18 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2278: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (1): A triste sorte do sapador Quaresma... morto por aquela maldita granada vermelha

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 716 (1970/72) > Abrigo onde estavam alojados a maior parte dos furriéis da companhia. Na foto, o David, cronologicamente o nosso tertuliano nº 3...

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > O Fado da Guerra ou... das Minas e Armadilhas ? Os Fur Mil Guimarães (tocando viola) e Quaresma, sapadores...
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > Os Fur Mil Guimarães e Quaresma, sapadores, junto ao abrigo de sargentos.
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.


Texto do David J. Guimarães, ex-furriel miliciano da CART 2716 (Xitole, 1970/1972). Originalmente publicado em 10 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: 'Com minas e armadilhas, só te enganas um vez' (David Guimarães)


Estórias do Xitole (1): A morte do sapador Quaresma...

por David Guimarães


O RAP 2 (Gaia) semppre fez parte da minha família



Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc.

Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá...

Foi assim que eu senti e vivi a guerra. Lembro-me um dia, quando alguém me disse:
- Guimarães, este batalhão [BART 2917] vai para a Guiné (ainda estávamos no RAP 2 em Gaia). E eu exclamei:
- Ainda bem, é a província mais próxima de Portugal para vir de férias...

Não será aqui o sítio certo para falar do RAP 2. Mas na minha vida pessoal foi um marco importante. Foi de lá que foi mobilizado o meu pai, militar de carreira, para ir servir em França… na 1ª Grande Guerra (Ele nasceu em 1893 e eu nasci quando ele tinha 54) (1). É de lá mobilizado o meu irmão que parte, com o BART 525, para Angola e sou eu mobilizado, no BART 2917, para servir na Guiné...

Ironias do destino ou coincidências de graus de parentesco... É que, entre o meu irmão e o meu pai, também é mobilizado para África um primo meu, em 1º grau. Não há dúvida, aquele Regimento entrou na nossa casa, muito antes de eu ter nascido... Se fosse isto um romance serviria para dizer que a minha existência como que começou ali. Mas isto é outra história que, não sendo menos curiosa, não vem agora a propósito...


O soldado Almeida: a nossa primeira baixa


Uma noite, no início da comissão no Xitole, ainda estava eu de serviço, de sargento de dia... O Leones, furriel miliciano, meu camarada, informa-me:
- Guimarães, um teu soldado está mal…

E estava mesmo: quando lá cheguei vi a equipa de enfermagem em volta dele mas já nada havia a fazer... O soldado Almeida tinha morrido no seu posto de sentinela, fulminado por um ataque... de coração!

Foi a nossa primeira baixa. No dia a seguir chega um médico à Companhia e lá vai autopsiar o Almeida... Confirma o óbito: enfarte do miocárdio. Assina: Alferes miliciano médico Horta e Vale. Curioso, este médico (quem o conheceu teve sorte, contava cada história!), hoje é um distinto médico dentista da Clínica da Circunvalação, aqui junto à cidade do Porto.

Bem, nada como pegar no pessoal mais chegado, eu era um deles, pois o Almeida era meu soldado (meu, e aí surge o termo militar de posse, meu). Mas como dizia, aquando da evacuação - e tudo foi rápido, mesmo! - aí fomos nós fazer patrulhamento para as zonas próximas de Seco Braima [vd. mapa do Sector L1, Zona Leste]. Nos céus do Xitole levantava um helicóptero e lá levava o Almeida: tinha adormecido no seu posto… Para sempre.... Deus o guarde!






Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS do BART 2917 (1970/72) > Monumento aos mortos do batalhão e unidades adidas (este monumento foi destruído a seguir à independência da Guiné-Bissau). O Fur Mil Quaresma e o Sold Almeida pertenciam à CART 2617.

A vida lá volta à rotina, os patrulhamentos, as acções psico e a ida à Ponte dos Fulas... Ui, aqueles 3 a 4 Km que todos os dias eram picados e onde se ia sempre levar os géneros!... A Ponte dos Fulas, onde fiz o primeiro mês da minha comissão, a Ponte dos Fulas!...

Era o local onde efectivamente o repouso era enorme, mas cansativo. Ali é que não havia ninguém a não ser o pelotão de serviço... Comia-se, bebia-se e mais nada, além da missão de vigilância permanente, que consistia em guardar aquela ponte de origem militar sobre o Rio Pulon...


Era uma vez um granada instantânea com fio de tropeçar

O aquartelamento do Xitole estava bem minado em seu redor. Do lado da pista de aviação, tinha eu mesmo montado um poderoso fornilho às ordens do capitão. Esse fornilho era comandado do abrigo dos furriéis (vd. foto onde estou eu sentado em cima de um bidão). De resto todo o terreno à volta estava semeado de minas A/P m/966 (2)...

Para a protecção total e permanente do aquartelamento no Xitole só faltava um ponto por armadilhar: a estrada Bambadinca - Xitole - Saltinho... Os ex-combatentes da CCAÇ 12 conheciam-na bem e sabiam onde era a casa de Jamil Nasser, um comerciante libanês que vivia no Xitole (*) ... Pois era exactamente ali, naquela rampazinha que dava acesso ao aquartelamento.

Resolveu-se então que todas as noites essa entrada do quartel fosse armadilhada... Essa operação era sempre feita ao cair do dia. O material era simples: uma granada instantânea e arame de tropeçar, do mesmo tipo daquela granada que um dia matou o macaco.... Lembram-se dessa estória que eu aqui já contei [vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas ]

E lá foi naquele dia o Quaresma, sempre ele, que já tratava por tu essa maldita granada. E como gostava dela, o furriel miliciano Quaresma!

Mais um dia, e novamente o armadilhamento da entrada. Dessa vez ele até foi contrariado, estava a preparar uma galinha para churrasco, lerpou, não comeu…

O quadro é simples: ouve-se um rebentamento, só um. O Quaresma é decapitado (**), o Leones fica cego e sem dedos… Ficámos todos em estado de choque:
-Não podia ser!!!

Mas foi: um parte para a eternidade, o outro é evacuado... O Quaresma desta vez tinha falhado, nunca mais armadilharia na vida (3)...

David J. Guimarães

Notas do D.G.:


(1) Não pensem que há algum anacronismo quando eu refiro que o meu pai foi mobilizado, pelo RAP 2, para servir a Pátria, em França, em 1917... O meu pai nasceu em 1893 e eu em 1947, o que quer dizer que nos separam 54 anos... 2º Sargento de Artilharia de Campanha, segue para França integrado no Corpo expedicionário, comandado pelo General Gomes da Costa. Como mera curiosidade, sou eu que tenho a caderneta militar e as condecorações de meu pai: guardo com toda a estima sete medalhas sendo uma delas a da Vitória... Por outro lado, e como sabem, nós estivemos na 1ª Guerra Mundial e não na 2ª.
(2) Não sei se sabiam, aqueles que não eram de artilharia, mas uma CART como a 2716 tinha três Furriéis de Minas e Armadilhas e um Alferes. Todos levantámos uma PMD-6 do IN em diversos locais: o Alferes Sampaio, o Furriel Quaresma, 0 Furriel Ferreira e eu. A PMD-6 é exactamente aquela mina que se encontra já documentada em fotografia (vd. acima). De fabrico russo com espoleta MUV. Esta espoleta tinha uma particularidade curiosa: poderia funcionar por pressão ou tracção...



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > Mina antipessoal PDM-6 reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guiimarães da CART 2716 ("Bem, ia uma GMC ao ar, isso sim!!!".

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.


Amigos, este caso que aqui relato foi, e ainda é, bastante doloroso para mim. Confesso que, ao evocá-lo trinta e tal anos depois, não consegui conter uma lágrima...

As grandes batalhas eram travadas nestas pequenas guerras surdas, que quase não se davam por elas. Muitos diziam que eram acidentes e não contabilizavam estas baixas como mortes em combate. Sempre tive opinião diversa, porque o combate estava exactamente sempre que havia necessidade de manusear uma arma de fogo, preparando-a para a defesa ou ataque...

Centenas, talvez milhares de indivíduos morreram a armadilhar… mas não morreram em combate, segundo as estatísticas. Dá-me vontade de perguntar:
- Terá sido a brincar ? E será que armadilhávamos os terrenos para apanhar gazelas, cabritos e cabras?
Pois, não era para caçar e muito menos para nos matarmo-nos a nós próprios....

Tive um amigo, alferes (antes andava embarcado, a tropa foi lá buscá-lo com 30 anos)... Isso é pouco interessante. O que eu quero referir, em concreto, é que, já no nosso tempo, na estrada de Mansoa - Mansabá ele levantou uma mina PMD-6 e… morreu a olhar para ela. Rebentou-lhe na mão!!!
- Como é que isso aconteceu ? ...
Ele já não está cá, entre nós, para contar o que aconteceu... Chamava-se Couto... Talvez haja alguém que um dia apareça na nossa tertúlia e saiba contar melhor esta estória…

(3) O Leones ainda hoje é vivo, está cego e trabalha na Previdência em Lisboa. O Rebelo, furriel sapador do BART 2917, escolhido para delegado do Batalhão em Bissau, era quem tomou conta do espólio do Quaresma. Quando estava doente com paludismo, assaltaram-lhe o espólio do Quaresma. Bem, acontece que eu, como estava de férias, lá fui a Algés (onde morava os pais do Quaresma) tentar negociar...

Sabem o que a mãe me perguntava? Se o filho estava interinho... E eu lá tive que mentir, dizendo que sim... Como é que eu podia contar-lhe a verdade, dizendo de chofre que ele ficara sem a cabeça no local onde armadilhava com uma granada instantânea, aquela maldita granada vermelha com espiras de aço !?... É claro que não podia contar essa história a uma mãe. Mais me perguntava ela pelo fio de ouro que ele usava...Eu tive que lhe dizer que possivelmente alguém tinha guardado, não se sabia aonde...

Mais tarde, o pai tentou negociar o espólio, tentando sei lá o quê (ganhar algum junto da tropa no Quartel General, extorquir o desgraçado do Rebelo...). Não conseguiu, mas o Rebelo passou uns maus bocados.
_______

Notas de L.G.:

(*) Vd. post de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

(**) Joaquim Manuel da Palma Quaresma, Fur Mil do Exército, morreu a 20 de Outubro de 1970... por acidente. É assim que consta, para a posteridade nos registos da tropa...

sábado, 1 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P207: Estórias do Xitole: Tangali e o quico do furriel Fevereiro (David Guimarães)

...... 58, 59 ... 70, 71...89, 90... 98... 99... 100! Cem canhoadas em 10 minutos no ataque ao aquartelamento do Xitole.

© David Guimarães (2005)


Texto do David Guimarães (ex-Fur Mil Guimarães, CART 2716, Xitole, 1970/72):

1. Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o Fevereiro a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela).

Bem, saímos pelo fim da pista do Xitole, com dois Unimogs 411 e lá fomos. Era mesmo chato, ir dormir para a tabanca e logo para aquela:
- Pôça, eles até eram todos de lá! - pensei eu, pouco ou nada confiante na lealdade da população local para com as NT. Na realidade, os de Tangali jogavam para os dois lados, conforme as conveniências... Bem, lá fomos e ao fim de 7 Km lá estávamos nós.... Nisto, diz-me o Fevereiro:
- Porra, Guimarães, perdi o meu quico!
Entretanto, vejo e ouço toda aquela gente alarmada:
- Furriel, furriel, manga de ronco lá para o lado do Xitole!... Muito tiro, muito tiro.
- Transmissões, liga para o quartel, pergunta o que houve, ordeno eu.
- Furriel, ninguém atende, não consigo nada, porra para isto!
- Bem, nós estamos aqui, amanhã veremos o ronco, arrematei eu.

Nessa noite não dormimos tão descansados:
- Porra, ronco e tiros, sei lá, vamos mas é ficar atentos...
A noite nunca mais acabava... De manhã cedo, bem formados e atentos, lá fomos estrada fora, de regresso ao Xitole e entrámos pelo fundo da pista de aviação... Bem, buracos no chão não faltavam. Diz-me o Fevereiro:
- Guimarães, olha ali o meu quico!
- Boa, disse eu, tiveste sorte, ele apareceu. - Ele pega no quico e mesmo no local da nuca estava um furo:
- Já viste - exclama o Fevereiro para mim - se eu tinha a cabeça aqui dentro!...
Bem, lá chegámos ao aquartelamento:
- Tanto buraco!
- É, pá, os gajos apontaram para aqui e até parecia que disparavam em rajada os canhões sem recuo... Vinha daquele lado do Corubal...

Tarefa matutinal: ver os estragos e contar as canhoadas; sim, as marcas bem visíveis e os cotos das granadas bem enterradas no chão como se fossem setas de índios:
- Olha, esta entrou no depósito de géneros... vamos ver! - Depois de bem contados, parece que só se tinham partido 4 garrafões de vinho... Coitados dos garrafões, do mal o menos...
- ... 58, 59 ... 70, 71.... porra e mais aqui ... 89, 90... 98... 99.... e esta também ... 100!!!

O ataque tinha demorado... dez minutos!

- Porra, porra!!!, ainda dizia o Fevereiro, a olhar para o estado lastimoso em que ficou o seu quico.

2. Nessa altura tinha chegado ao Xitole um morteiro de calibre 107 mm. Para dar instrução sobre esse morteiro tinha vindo um primeiro sargento especialista de armas pesadas, ex-cabo e ex-comandante de um posto qualquer da GNR lá na Metrópole.

Experimentou-se o dez sete, assim chamávamos ao morteiro.... Poça, parecia uma arma de artilharia, boa não há dúvida, pelo menos muito barulho fazia....

De manhã, o 1º sargento costumava dar as aulas teóricas sobre o funcionamento da coisa e não é que, por ironia do destino, muitas noites e algumas seguidas éramos atacados sempre de canhão sem recuo.... A certa altura o homem do bar dizia:
- Fui eu, ao bater a porta do frigorifico... - É que que esse barulho punha-nos todos a caminho do abrigo... Tantas vezes ele repetiram aquelas flagelações e o dez sete a funcionar... Logo de manhã, as aulas práticas e, à tarde, a teóricas...

Até que se aproximou o dia da minha licença disciplinar de 30 dias... Sim, aquilo que chamávamos férias.... Bem, mas antes teria que se ir a Satecuta [uma das bases do PAIGC, junto ao Rio Corubal, a oeste do Xitole]... Aquilo parecia uma cidade, já tinha sido visto de avioneta....

Na primeira ida, ficou a companhia de formação e comando e fiquei eu. Não relatarei o que disseram, relatarei apenas o que vi do aquartelanmento... Enfim, sem querer ser herói, percebi quanto um jogardor de futebol sofre quando está na bancada... Era o caso: a certa altura naquele dia, uma avioneta lá londe começou a andar em círculo, por baixo os jagudis na mesma em círculo, ouviam-se tiros e mais tiros, rebentamentos e mais rebentamentos. Um inferno!
- Ai, como estarão eles, coitados, que coisa, dizia eu cá para mim.- A certa altura, inesperadamente a avioneta (uma DO) afasta-se e os tiros terminam. E os jagudis também desaparecem....

Por fim, todos sujos, cagados, os bravos voltam:
- Não, não deu para entrar....

Em cada operação em que havia tiros, que coisa, vínhamos todos enfarruscados....
- Bem, tudo muito bem, mas eles não deixaram, recebemos ordem de retirar pelo Comandante... Ninguém ficou ferido, ao menos isso... Enfim, desta vez ao menos as balas do inimigo nos acertaram.
- Ainda bem, disse eu cá para os meus botões - Agora, Guimarães, vais até à metrópole, num voo TAP e pela agência Costa... E que tal? De avioneta até Bissau, que luxo!!!

Ai, era o meu baptismo de voo. Porreiro, o meu cu já tinha calos do Unimog...
- Mas isto é mesmo bem bom... Adeus Xitole, adeus camaradas, adeus Fevereiro... Até daqui a um mês.

segunda-feira, 18 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P112: Mais estórias do Xitole (CART 2716, 1970/72) (David Guimarães)

A grande árvore que dominava o aquartelamento do Xitole. Lá continua de pé, mais de trinta anos depois.

© David J. Guimarães (2001)

Texto do David J. Guimarães (ex-Furriel Mil. da CART 2716, Xitole, 1970-72):

Junto mais quatro fotografias à nossa página do Xitole. Como é óbvio estou a contar as coisas mais ou menos encadeadas no tempo. Uma das fotografias que em estou com cotos (ou invólucros) de granadas de canhão sem recuo, é algo que conto em breve. Talvez coloque um título: "Nino e os seus canhões" ou "Uma rajada de canhões -a primeira de várias"... São os episódios da nossa guerra. Só que mais histórias surgirão ainda antes desses bombardeamentos...

O camarada Quaresma é esse aí que aparece ao meu lado: eu estou a dedilhar a viola e ele parece que canta o fado... Se repararem ele usa um colar ao pescoço. Isso era mesinha, que era pressuposto protegê-lo daquilo que lhe veio a acontecer... E lá cai a crença de rastos: negam-se os amuletos pela sua funcionalidade. Ironia das ironias, o fado (ou o destino) diz que contra a morte, afinal, não há nada a fazer...

Os negros da Guiné crêem muito nas mesinhas, como vocês sabem... Um dia em Bissau fui ver um jogo de futebol: era o Benfica contra os Balantas... Não é que a bola batia na trave, chegava à linha de golo e não entrava!... Enfim, aqueles casos de se gritar golo e a bola nunca entrar!... Foi lindo: de seguida começou tamanha cena de porrada, que só só visto... Tudo por que o guarda redes tinha mesinha num canto da baliza.

São os intervalos da guerra.

David J. Guimarães

2.O nosso amigo e camarada Guimarães é uma caixinha de surpresas. Aqui o vemos, à direita, tocando viola, quando há 3 anos esteve na Índia (Panjim, Goa, Damão) com um grupo de fados de Coimbra.

© David J. Guimarães (2005)

Diz ele: "Dediquei-me sempre a isto após a guerra e sou convidado por eles para tocar aqui ou ali. Nesta caso foi a Fundação Oriente.

"O poeta, o Camões, tinha aquela frase famosa Numa mão a espada e noutra a pena... Na Guiné, eu bem poderia dizer, a respeito de mim próprio: Numa mão a G3 e noutra a viola... É que também no Xitole era eu quem dava uma certa alegria àquela gente com a minha viola - não esta, que vocês vêem na foto, em Panjim, mas uma que comprei na Rua do Carmo, em Lisboa, para fazer a comissão. No fim vendi-a por 80 escudos... Engraçado!... É essa mesma que vocês podem ver na foto com o Quaresma".

domingo, 10 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P99: Estórias do Xitole: Com minas e armadilhas, só te enganas um vez (David Guimarães)

Texto do David J. Guimarães, ex-furriel miliciano da CART 2716 (Xitole, 1970/1972):


O RAP 2 (Gaia) fez parte da minha família


Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc.

Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá...

Foi assim que eu senti e vivi a guerra. Lembro-me um dia, quando alguém me disse:
- Guimarães, este batalhão vai para a Guiné (ainda estávamos no RAP 2 em Gaia). E eu exclamei:
- Ainda bem, é a província mais próxima de Portugal para vir de férias...

Não será aqui o sítio certo para falar do RAP 2. Mas na minha vida pessoal foi um marco importante. Foi de lá que foi mobilizado o meu pai, militar de carreira, para ir servir em França… na 1ª Grande Guerra (Ele nasceu em 1893 e eu nasci quando ele tinha 54). É de lá mobilizado o meu irmão que parte, com o BART 525, para Angola e sou eu mobilizado, no BART 2917, para servir na Guiné...

Ironias do destino ou coincidências de graus de parentesco... É que, entre o meu irmão e o meu pai, também é mobilizado para África um primo meu, em 1º grau. Não há dúvida, aquele Regimento entrou na nossa casa, muito antes de eu ter nascido... Se fosse isto um romance serviria para dizer que a minha existência como que começou ali. Mas isto é outra história que, não sendo menos curiosa, não vem agora a propósito...

O soldado Almeida: a nossa primeira baixa

Uma noite, no início da comissão no Xitole, ainda estava eu de serviço, de sargento de dia... O Leones, furriel miliciano, meu camarada, informa-me:
- Guimarães, um teu soldado está mal… - E estava mesmo: quando lá cheguei vi a equipa de enfermagem em volta dele mas já nada havia a fazer... O soldado Almeida tinha morrido no seu posto de sentinela, fulminado por um ataque... de coração!

Foi a nossa primeira baixa. No dia a seguir chega um médico à Companhia e lá vai autopsiar o Almeida... Confirma o óbito: enfarte do miocárdio. Assina: Alferes miliciano médico Horta e Vale. Curioso, este médico (quem o conheceu teve sorte, contava cada história!), hoje é um distinto médico dentista da Clínica da Circunvalação, aqui junto à cidade do Porto.

Bem, nada como pegar no pessoal mais chegado, eu era um deles, pois o Almeida era meu soldado (meu, e aí surge o termo militar de posse, meu). Mas como dizia, aquando da evacuação - e tudo foi rápido, mesmo! - aí fomos nós fazer patrulhamento para as zonas próximas de Seco Braima [vd. mapa do Sector L1, Zona Leste]. Nos céus do Xitole levantava um helicóptero e lá levava o Almeida: tinha adormecido no seu posto… Para sempre.... Deus o guarde!

A vida lá volta à rotina, os patrulhamentos, as acções psico e a ida à Ponte dos Fulas... Ui, aqueles 3 a 4 Km que todos os dias eram picados e onde se ia sempre levar os géneros!... A Ponte dos Fulas, onde fiz o primeiro mês da minha comissão, a Ponte dos Fulas!...

Era o local onde efectivamente o repouso era enorme, mas cansativo. Ali é que não havia ninguém a não ser o pelotão de serviço... Comia-se, bebia-se e mais nada, além da missão de vigilância permanente, que consistia em guardar aquela ponte de origem militar sobre o Rio Pulon...


Era uma vez um granada instantânea com fio de tropeçar

O aquartelamento do Xitole estava bem minado em seu redor. Do lado da pista de aviação, tinha eu mesmo montado um poderoso fornilho às ordens do capitão. Esse fornilho era comandado do abrigo dos furriéis (vd. foto onde estou eu sentado em cima de um bidão). De resto todo o terreno à volta estava semeado de minas anti-pessoais 966...

Para a protecção total e permanente do aquartelamento no Xitole só faltava um ponto por armadilhar: a estrada Bambadinca - Xitole - Saltinho... Os ex-combatentes da CCAÇ 12 conheciam-na bem e sabiam onde era a casa de Jamil Nasser, um comerciante libanês que vivia no Xitole [vd. foto da antiga casa do Jamil, no álbum de fotografias do Xitole]... Pois era exactamente ali, naquela rampazinha que dava acesso ao aquartelamento.

Resolveu-se então que todas as noites essa entrada do quartel fosse armadilhada... Essa operação era sempre feita ao cair do dia. O material era simples: uma granada instantânea e arame de tropeçar, do mesmo tipo daquela granada que um dia matou o macaco.... Lembram-se dessa estória que eu aqui já contei [vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas ]

E lá foi naquele dia o Quaresma, sempre ele, que já tratava por tu essa maldita granada. E como gostava dela, o furriel miliciano Quaresma!

Mais um dia, e novamente o armadilhamento da entrada. Dessa vez ele até foi contrariado, estava a preparar uma galinha para churrasco, lerpou, não comeu…

O quadro é simples: ouve-se um rebentamento, só um. O Quaresma é decapitado, o Leones fica cego e sem dedos… Ficámos todos em estado de choque:
-Não podia ser!!! - Mas foi: um parte para a eternidade, o outro é evacuado... O Quaresma desta vez tinha falhado, nunca mais armadilharia na vida...

David J. Guimarães


Post scriptum:

1. Não pensem que há algum anacronismo quando eu refiro que o meu pai foi mobilizado, pelo RAP 2, para servir a Pátria, em França, em 1917... O meu pai nasceu em 1893 e eu em 1947, o que quer dizer que nos separam 54 anos... 2º Sargento de Artilharia de Campanha, segue para França integrado no Corpo expedicionário, comandado pelo General Gomes da Costa. Como mera curiosidade, sou eu que tenho a caderneta militar e as condecorações de meu pai: guardo com toda a estima sete medalhas sendo uma delas a da Vitória... Por outro lado, e como sabem, nós estivemos na 1ª Guerra Mundial e não na 2ª.

2. Não sei se sabiam, aqueles que não eram de artilharia, mas uma CART como a 2716 tinha três Furriéis de Minas e Armadilhas e um Alferes. Todos levantámos uma PMD-6 do IN em diversos locais: o Alferes Sampaio, O Furriel Quaresma, O Furriel Ferreira e eu. A PMD-6 é exactamente aquela mina que se encontra já documentada em fotografia. De fabrico russo com espoleta MUV. Esta espoleta tinha uma particularidade curiosa: poderia funcionar por pressão ou tracção...

Amigos, este caso que aqui relato foi, e ainda é, bastante doloroso para mim. Confesso que, ao evocá-lo trinta e tal anos depois, não consegui conter uma lágrima...

As grandes batalhas eram travadas nestas pequenas guerras surdas, que quase não se davam por elas. Muitos diziam que eram acidentes e não contabilizavam estas baixas como mortes em combate. Sempre tive opinião diversa, porque o combate estava exactamente sempre que havia necessidade de manusear uma arma de fogo, preparando-a para a defesa ou ataque...

Centenas, talvez milhares de indivíduos morreram a armadilhar… mas não morreram em combate, segundo as estatísticas. Dá-me vontade de perguntar:
- Terá sido a brincar ? E será que armadilhávamos os terrenos para apanhar gazelas, cabritos e cabras? – Pois, não era para caçar e muito menos para nos matarmo-nos a nós próprios....

Tive um amigo, alferes (antes andava embarcado, a tropa foi lá buscá-lo com 30 anos)... Isso é pouco interessante. O que eu quero referir, em concrteo, é que, já no nosso tempo, na estrada de Mansoa - Mansabá ele levantou uma mina PMD-6 e… morreu a olhar para ela. Rebentou-lhe na mão!!!
- Como é que isso aconteceu ? ... Ele já não está cá, entre nós, para contar o que aconteceu... Chamava-se Couto... Talvez haja alguém que um dia apareça na nossa tertúlia e saiba contar melhor esta estória…


3. O Leones ainda hoje é vivo, está cego e trabalha na Previdência em Lisboa. O Rebelo, furriel sapador do BART 2917, escolhido para degado do Batalhão em Bissau, era quem tomou conta do espólio do Quaresma. Quandp estava doente com paludismo, assaltaram-lhe o espólio de Quaresma. Bem, acontece que eu, como estava de férias, lá fui a Algés (onde morava os pais do Quaresma) tentar negociar...

Sabem o que a mãe me perguntava? Se o filho estava interinho... E eu lá tive que mentir dizendo que sim... Como é que eu podia contar-lhe a verdade, dizendo de chofre que ele ficara sem a cabeça no local onde armadilhava com uma granada instantânea, aquela maldita granada vermelha com espiras de aço !?... É claro que não podia contar essa história a uma mãe. Mais me perguntava ela pelo fio de ouro que ele usava...Eu tive que lhe dizer que possivelmente alguém tinha guardado, não se sabia aonde...

Mais tarde, o pai tentou negociar o espólio, tentando sei lá o quê (ganhar algum junto da tropa no Quartel General, extorquir o desgraçado do Rebelo...). Não conseguiu, mas o Rebelo passou uns maus bocados.