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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23992: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVII: Breve história do império do Mali


Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das pp. 85/87 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


Breve história do Império do Mali



A história do Império do Mali começa com a queda do Império do Gana no Século XI.

O Império do Gana foi um dos mais antigos e poderosos impérios africanos, talvez remonte ao século IV, mas os dados sobre a sua formação são pouco rigorosos; o seu território ia desde o deserto da Mauritânia até ao rio Níger no Mali, mas não incluía os territórios da República do Gana, que apesar de ter o mesmo nome não possui qualquer ligação ao Império do Gana.

O geógrafo Al-Bakri (38)  (século XI), de Córdova, escreveu sobre o Império do Gana e sobre o seu poderio militar, referindo que possuía um exército de 200 mil homens, dos quais 40 mil eram arqueiros.

Este Império, inicialmente designado de Kumbi pelos seus habitantes, foi chamado de Gana pelos árabes.

A crença dominante no Império do Gana era a animista, mas o nascimento do islamismo no século VII, e os seus contactos com ele, irão provocar no século XI a queda do Império, face ao crescimento do islamismo no seu território e aos almorávidas.

Os almorávidas eram uma espécie de monges guerreiros, que em nome do Islão empreenderam no século XI uma “guerra santa”, e nela acabaram por destruir o Império do Gana, libertando muitos povos do jugo dos seus senhores. 

Um deles foi o povo mandinga, originando o Reino do Mali, o qual viria a assumir um papel dominante na nova ordem,  e um outro importante reino que se constituiu, foi o Reino Sosso.

O Reino Sosso, conduzido por Sumanguru Kanté (39) , dominou inicialmente os Reinos vizinhos, entre eles o Reino do Mali, mas depois de várias batalhas acabaria por ser totalmente derrotado na batalha de Kirina por Sundiata, a qual leva à criação do Império Mali.

Os mandingas tornam-se os grandes conquistadores da região, e em 1230 Mari Diata I, também conhecido por Sundiata Keita ou Sundjata Keita ou simplesmente Sundiata, que reinou de 1230 a 125540, funda o  poderoso Império Mali, o qual incluía os territórios do Senegal, Gâmbia, Mali e Guiné-Bissau, e partes da Guiné-Conacri (41), Mauritânia e Níger.

O nome de Sundiata e a história do Império do Mali, são conhecidos pelos povos dos países da África Ocidental, pois a sua história tem sido transmitida até aos dias de hoje.

Apesar da importância e popularidade da figura de Sundiata como fundador do Império do Mali, quem o dá a conhecer ao mundo é o Imperador do Mali, Mansa Bá Mussa, também conhecido apenas por Mansa Mussa ou por Mansa Kankan Mussa, que reinou de 1312 a 1337, devido à imponente peregrinação que fez a Meca em 1324.

Al-Umari, um viajante árabe que no começo do século XIV visitou o Império, descreve a sala do seu trono assim:

“(…) O sultão preside no seu palácio numa grande varanda onde se encontra um enorme trono de ébano feito para uma pessoa alta e corpulenta; o sultão é ladeado por duas presas de elefante viradas uma para a outra, e as suas armas todas em ouro, são colocadas ao pé dele: sabre, lanças, carcás, arco e flechas (…) (42)”.

A famosa peregrinação levada a cabo por Mansa Mussa, seria composta por uma caravana com 60 mil pessoas, entre elas 12 mil servos, e 500 escravos cada um transportando ouro, e 80 camelos carregados com mais de duas toneladas de ouro para serem distribuídas entre os pobres (43).

Apesar de não existir um entendimento consensual entre os historiadores, sobre os números reais da peregrinação de Mansa Mussa, sejam eles quais forem, a verdade é que os árabes ficaram deslumbrados com o poder e riqueza no Império Mali.

A peregrinação colocou literalmente o Mali nos mapas do mundo medieval, pois Mansa Mussa surge com uma pepita de ouro na mão, no mapa do catalão Abraão Cresques, em 1375.

A peregrinação a Meca do Mansa Mussa em 1324, teve também influência na expansão do islamismo, pois deu mais força à sua fé, e gerou mais determinação em o difundir.

Outro homem religioso do Mali, que ainda hoje é lembrado pelo seu fervor religioso, é o Mansa Koy Komboro, que em 1280 impôs o islamismo como religião oficial no seu reino, Djenne, e construiu a enorme Mesquita de Djenne, o maior edifício do Mundo construído com lama. Os habitantes de Djenne ainda hoje lhe chamam “Mesquita de Komboro“, e ela continua a causar admiração aos viajantes que por ali passam.

Em 1545 o Império Songai ocupa Niani,  a capital do Império do Mali, ponto fim a um Império em decadência, dividido com lutas internas pela conquista do trono, e minado com revoltas.

[ Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]

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Notas do CF:

(38) Al-Bakri - pag. 69 da “História da África” de J. D. Fage. Al-Bakri escreveu o livro “Descrição de África” em 1087, que serve de fonte a muitas obras literárias.

(39) Sumanguru Kanté - este nome é usado na pag. 86, “História da África” de F. D. Fage, e também em Sundiata – Lion King of Mali de David Wisniewki, e em Sundiata – Uma Lenda Africana de Will Eisner, mas esta figura surge também com outros nomes, como por
exemplo na pag, 167 em História da África Negra, de Joseph Ki-Zerbo, o seu nome é Sumaoro Kanté, na pag, 27 de Sundiata – An Epic of Old Mali, de Djibril Tamsir Niane, o seu nome é Soumaoro Kanté.

(40) Sundiata - 1230-1255, pag. 46 “A Descoberta de África”, de Catherine Coquery - Vidrovitch.

(41) Guiné-Conacri - oficialmente designa-se República da Guiné, mas vulgarmente também é chamada de Guiné-Conacri, para se distinguir da Guiné-Bissau.

(42) Mansa Musa - pag. 24 da “A Guiné do século XVII ao século XIX”, de Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha.

(43)  Mansa Musa - pag. 25 da “A Guiné do século XVII ao século XIX”, de Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha.

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Nota do editor:

domingo, 17 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23437: Nota de leitura (1465): O padre António Vieira (1608-1697), expoente máximo da literatura portuguesa, traduzido em sueco (José Belo)


António Vieira : en högrest gestalt i 1600-talets Portugal, övriga Europa och Brasilien.Inbunden, Svenska, 2020. Författare: Marianne Sandels, António Vieira. 316 kr 

António Vieira: uma figura cimeira em Portugal do século XVII, bem como resto da Europa e Brasil. Capa dura, sueco, 2020. Autor: Marianne Sandels, António Vieira. 316 coroas suecas (c. 30,00 euros)

Infografia: José Belo (2022)


António Vieira ägnade en stor del av sitt liv åt att stödja de hårt exploaterade indianerna i Brasilien. Under långa perioder var han emellertid verksam i Europa. Under ett par år i Rom hade han flera olika uppdrag för drottning Christina av Sverige, som där befann sig i exil.

Både Portugal och Brasilien betraktar António Vieira som en av sina nationalförfattare. Poeten Fernando Pessoa har kallat honom för "kejsaren av det portugisiska språket".

(ii) Tradução, do Google e do editor LG:

António Vieira passou grande parte de sua vida apoiando os sobre-explorados índios  do Brasil. 

Por longos períodos, no entanto, ele esteve ativo na Europa. Com alguns anos em Roma, ele teve várias missões diferentes ao serviço da rainha Cristina da Suécia, que estava lá exilada. Tanto Portugal como o Brasil consideram António Vieira um dos seus grandes escritores nacionais. O poeta Fernando Pessoa apelidou-o de "o imperador da língua portuguesa".


1. Mensagem de José Belo:

Data - terça, 5/07/2022, 17:25

Assunto - Padre António Vieira na Suécia

Caro Luís

Espero que a saúde esteja bem controlada. Nas nossas idades fico-me pela “ bem controlada”.

Vou enviar um texto sobre o tão nosso António Vieira,  agora publicado na Suécia. 

Nunca é demais referir “os nossos“ quando publicados fora de portas. Serão poucos mas... importantes figuras de referência da cultura europeia!

Um abraço,
J. Belo


O Padre António Vieira (Lisboa, 1608 - São Salvador da Baía, 1697) tem agora uma coletânea dos seus textos publicados na Suécia.

“António Vieira-Expoente Intelectual do Século XVII em Portugal, Europa e Brasil “.
Tradução de Marianne Sandels que nela refere o interesse de Fernando Pessoa e José Saramago pela obra de António Vieira.

O primeiro ao considerá-lo o “Verdadeiro Imperador da língua portuguesa" foi  Fernado Pessoa. Saramago, prémio nobel da literatura (em 1998), reconheceu  em muito ter sido influenciado pela característica maneira de formular de António Vieira.

Depois de viajar pela Europa em diversas missões diplomáticas,  terá sido a estadia em Amsterdão que, após contactos com judeus e cristãos-novos expulsos de Portugal,  levou o Padre António Vieira a compreender a verdadeira extensão da perda intelectual, económica e comercial resultante da mesma.

Logo na primeira prédica,  após o regresso a Lisboa,  surge o “messianismo“ que a partir daí marcaria a sua obra.

Na “História do Futuro”, o Portugal de António Vieira tem um papel de vanguarda e utopia.
A restauração da grandeza nacional, com a esperança do “sebastianismo “ e de um “Quinto Império", passa a adquirir na obra de Vieira um…..lugar e tempo!

Uma tradição filosófica e literária que a partir daí tem vindo a adquirir as mais diversas formas, não menos as surgidas na obra de Fernando Pessoa.

Sobre o “Quinto Império “ é interessante o comentário de Eduardo Lourenço,  quando afirma terem sido as prédicas de António Vieira durante o período Barroco o verdadeiro, e único,
“Quinto Império”de Portugal.

Numa perspectiva sueca,  a estadia de António Vieira em Roma está ligada à amizade e admiração intelectual surgida entre este e a rainha sueca Kristina,  então a residir em Roma. (Nasceu em Estocolmo, em 1626, morreu em Roma em 1689; foi rainha da Suécia de 1632 até à sua abdicação em 1654, e à sua conversão ao catolicismo; exilada em Roma, a cidade papal, tornou-se mecenas de artistas e escritores.)

Figura muito controversa no norte europeu por ter abandonado a religião Luterana do Reino, abdicado do trono, convertido ao Catolicismo,e fixado ostentosa residência em Roma. Muito próxima do Papa Alexandre VII, Cardeais e Aristocracia romana, Kristina  passou a ter um muito importante papel na vida cultural, política e social, num período de mais de três décadas.

Nos seus contactos com António Vieira procurou que este se tornasse o seu confessor particular.

Este honroso convite foi ,de forma extremamente diplomática e elegante, recusado pelo mesmo, não interessado em ser arrastado para um ostentoso dia a dia, eivado de intrigas e conflitos palacianos, tanto entre os altos membros do Vaticano, aristocratas romanos, a somarem-se às ambições políticas europeias da Rainha.

Seria um cargo que o levaria a ter conhecimentos de tal modo “inconvenientes” que, a somarem-se à Santa Inquisição que o esperava em Lisboa, seriam…..demasiados!

A Rainha Kristina, que acabou por falecer em Roma, está sepultada (junto aos Papas!) na cripta da Basílica de São Pedro no Vaticano. (Creio ter sido a única mulher que, até hoje, recebeu tal honra).

Um abraço do J. Belo

José Belo, jurista, o nosso camarada luso-sueco, cidadão do mundo, membro da Tabanca Grande, (i) tem repartido a sua vida agora entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e os EUA (Key West, Florida; (ii) foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia, recusando-se a jubilar-se do cargo: afinal todos os anos pela primavera, corre o boato de que a Tabanca da Lapónia morre para logo a seguir ressuscitar, como a Fénix Renascida; (iii) na outra vida, foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); (iv) é cap inf ref (mas poderia e deveria ser coronel) do exército português; (v) durante anos alimentou, no nosso blogue, a série "Da Suécia com Saudade"; (vi) tem 225 referências no nosso blogue.

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sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22507: Notas e leitura (1376): "Posfácio" ao livro "Um caminho a quatro passos", de António Carvalho. Apresentação da obra na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, sábado, 11 de setembro, às 11 horas


Capa do livro do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos" (2021)... O autor, natural de Medas, Gondomar, foi autarca durante 28 anos, é membro da nossa Tabanca Grande, e ex-fur mil enf da CART 6250/72, "Unidos de Mampatá", Mampatá, 1972/74.

Estrutura do livro: 1º passo: I. Medas, da minha infância até à Mealhada (pp. 13/156); 2º passo: II. O piano da Mealhada (pp. 157/173); 3º passo; III. Contra os canhões, marchar, marchar... (pp. 175/204); 4º passo: IV. A revolução e o reencontro (pp. 205/214)



1. O livro vai ser apresentado no próximo sábado, dia 11 de setembro, às 11h, na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar. (*)

Na mesa estarão presentes, além do autor, António Carvalho, o nosso editor Luís Graça,  o José Manuel Lopes (amigo e camarada do autor, também ele um dos "Unidos de Mampatá", conhecido na nossa Tabanca Grande como o "poeta Josema" e o "Zé Manel da Régua", vitivinicultor...), e ainda um das filhas do autor, a Ana Carvalho, doutoranda em ciências da educação pela Universidade do Povo.

A convite expresso do autor, o livro será apresentado pelo nosso editor Luís Graça (, de passagem pelo Norte, a matar saudades da Tabanca de Candoz, na  próxima semana). 

 Daremos mais notícias deste evento em próximo poste da série "Agenda Cultural". Quem se quiser inscrever para o almoço (20 morteiradas), que se seguirá a este evento, terá que fazer uma reserva, contactando o Gil Moutinho, régulo da Tabanca dos Melros e gestor do Restaurante Choupal dos Melros ( email: choupal@quintadoschoupos.com : telefone: 22 489 0622). 

2. Como "aperitivo", aqui fica um sugestão de leitura, feita pelo editor Luís Graça: as últimas três páginas do livro dizem muito sobre o autor,  que, com este notável posfácio, se interpela (e nos interpela) sobre as suas / nossas origens, os seus/ nossos antepassados : afinal, quem sou eu ? afinal, quem somos nós ?... 

Quem escreve este posfácio, só pode ter escrito um grande livro...


POSFÁCIO (pp. 215/217)


Se, em 1736, o Padre do Paço não se tivesse instalado, nesta minha freguesia de Medas, no lugar de Vila Cova, eu seria um outro qualquer, mas não esta mesma pessoa. Sucede que este clérigo, quando chegou do Brasil, trouxe com ele três jovens irmãos, de pele muito escura.

Monsenhor Frei Luís Pinto, o Padre do Paço, nasceu nas Taipas, município de Penafiel, em 1699, tendo ingressado, na adolescência, num convento onde recebeu, após a conclusão do curso, a ordem sacerdotal, momento em que terá feito acrescer ao seu nome o sobrenome religioso de S. Jerónimo. Mais tarde frequentou a Universidade de Coimbra onde se bacharelou em Cânones.

Atraído pelas missões apostólicas, embarcou para o Brasil onde se distinguiu, se não como missionário no terreno, pelo menos, enquanto burocrata, nalgum mais conveniente paço episcopal, o que lhe permitiu subir ao patamar de monsenhor e adquirir alguma fortuna.

Quando regressou a Portugal, provavelmente na década de quarenta do Séc. XVIII, não trazia só bens materiais, com ele vinham o António, a Ana e a Maria Trindade, escravizados no Brasil, livres agora por estarem em Portugal continental, onde beneficiaram da lei Pombalina de 1763 . 

O frade não se quis radicar na sua freguesia de nascimento , em Penafiel, antes optou por comprar a Quinta do Paço, em Medas, cujos caseiros eram da sua própria família. Pois então aqui se instalou, depois de empreender obras de alguma envergadura, no seu novo domicílio, de acordo com o seu estatuto. 

Na casa, hoje já muito alterada, havia uma capela incorporada, aposentos para os seus familiares e até para aqueles três jovens de pele escura, agora na condição de criados de servir. Dois destes criados constituíram família com casamentos promovidos pelo seu amo, dos quais resultaram cinco filhos que se espalharam pela freguesia. Parece que só o António permaneceu solteiro até morrer. Um neto da Ana, chamado José Ferreira, é, segundo afirmação de Albino dos Santos, na sua obra “Monografia da Freguesia das Medas”, um antepassado dos Ferreiras de Pombal. Ora, o meu avô paterno, José Ferreira de Carvalho, nasceu nessa casa dos Ferreiras de Pombal.

Quem sou eu, afinal ? Quem somos nós todos ?

Na verdade, qualquer um de nós pode ter um primo no local mais improvável do mundo. Especialmente, neste pedaço ibérico de formato retangular, posto avançado no extremo poente da Europa, ponto de passagem e de fixação das grandes culturas mediterrânicas, integrado em grandes impérios, invadido por povos oriundos dos confins da Europa, só por insipiência ou até estultícia alguém se pode considerar fruto de um só tipo humano.

No meu caso, a crer na qualidade daquela obra monográfica sobre a minha freguesia, eu tenho, na minha ascendência, uma costela de um ser humano aprisionado na costa ocidental africana e vendido, como escravo, no Brasil, de quem provieram aqueles três criados que o padre do Paço trouxe das terras de Santa Cruz, e o meu fenótipo traduzirá exatamente um produto compósito.

Quando estive na Guiné, na Guerra do Ultramar, em 1972/74, nunca admiti a possibilidade de ter, entre as gentes da tabanca, onde passei vinte e cinco meses, algum primo, porque, nessa altura, o autor da Monografia de Medas não tinha sequer iniciado a sua tão valiosa obra que me propiciou tão surpreendente revelação. 

Mesmo sem esse precioso conhecimento sempre mantive uma relação próxima com aquela população, apesar das abissais diferenças religiosas e culturais. Não sei se, no meu subconsciente, algo me assegurava que aquelas pessoas também eram da minha família. E elas pareciam saber, melhor do que eu, que também lhes pertencia, pela forma doce e leal como me tratavam.

Em 2009 pude e desejei ardentemente lá voltar. Ninguém aqui em casa me tentou dissuadir de tornar ao mato de África, para reencontrar gentes do tempo da guerra em Mampatá, naquela tabanca de casas cobertas de capim, na orla da mata do Cantanhês, pelo contrário, até me incentivaram.

Eu tinha a certeza que aquela viagem me iria fazer bem, porque mesmo sabendo que iria voltar a chorar, evocando momentos de dor e morte,  tinha também a certeza que iria tornar a sorrir, nos sorrisos dos olhos deles, recordando também as horas de ubérrimas conversas, à sombra dos frondosos ramos dos mangueiros, num esforço permanente de compreender os conceitos e a alma dos fulas, descodificando as palavras do seu dialeto.

Nas minhas reflexões, atrevo-me a admitir, seguindo um raciocínio lógico, uma hipótese sobre a minha ascendência genética, num esforço pedagógico de demonstrar e afirmar a minha convicção de que nós, os humanos, somos de uma só raça, embora formatados por culturas diferentes e «pintados» em diferentes colorações. 

Sobre quem fui e o que sou, acerca do meu valor individual, familiar e social, em relação aos meus méritos e falhas não sou capaz de falar. Outros o farão por mim, numa perspetiva mais equidistante ou mais subjetiva, de forma mais mesquinha ou mais generosa. Alguns terão a pretensão e a capacidade para, a partir deste braçado de histórias e contos, me compreender e julgar, se for esse o seu desejo. Todavia, recomendo que o não façam, porque o que disse de mim não é tudo o que sei ou julgo saber, nem considero o que disse uma verdade absoluta. 

Um livro como este, onde pretendi, de certo modo, autobiografar-me e relatar memórias, nascido de um desejo de gravar cenários remotos onde se encontram diluídas as minhas origens bem como do meu passado recente, incluindo algumas observações relativas ao desenvolvimento económico e social da minha freguesia, parecendo assim uma salada de temas, pode não ser coisa que preste, mas serviu, pelo menos, para saciar um desejo irreprimível.

(Reproduzido com a devida vénia... Revisão / fixação de texto, para efeitos de publicação no blogue: LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de agosto de  2021 > Guiné 61/74 - P22442: Agenda cultural (779): "Um caminho de quatro passos", o livro autobiográfico do António Carvalho (ex-Fur Mil Enf, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), a ser apresentado na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gomndomar, no próximo dia 11 de setembro


(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22498: Notas de leitura (1375): “O Império com Pés de Barro, Colonização e Descolonização: as Ideologias em Portugal”, por José Freire Antunes; Publicações Dom Quixote, 1980 (Mário Beja Santos)

domingo, 14 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21075: Manuscrito(s) (Luís Graça) (185): por favor, não destruam o que resta da caixinha de Pandora, porque nela ainda está o segredo da nossa salvação, a Esperança, o veneno do mal que nos liberta do mal


Estátua de Pandora (1861), 
de Pierre Loison (1816-1886). 
Paris, palácio do Louvre. 
Cortesia de Wikimedia Commons





A Caixinha de Pandora


por Luís Graça


Os deuses criaram a primeira mulher,
e puseram-lhe o nome de Pandora.
Diziam os gregos antigos que fora por castigo,
como presente envenenado,
oferecido aos homens,
a quem Prometeu, o titã, tinha dado o fogo,
roubado aos céus.

Na sua fabricação,
à imagem e semelhança dos deuses,
trabalharam Hefesto e Atena,
sob as ordens do próprio Zeus,
e com o auxílio do resto do Olimpo.

Cada dividindade se esmerou
e lhe deu uma qualidade:
a graça,
a beleza,
a meiguice,
a paciência,
a compaixão,
a persuasão,
a generosidade,
a inteligência emocional,
a sensibilidade,
a sensualidade,
o sexto sentido,
a graciosidade na dança,
a arte da sedução,
o erotismo,
o talento para a cozinha,
a destreza para os trabalhos manuais,
o amor maternal…

Porém Hermes, o pérfido

inocolou, às escondidas,  no  coração de Pandora,
(, quiçá com a cumplicidade do próprio Zeus,)
o vírus da traição,  da mentira, da intriga, do ciúme e da intolerância.

Zeus, o colérico e vingativo pai dos deuses
e de todas as demais criaturas,
mandou então a sua obra-prima
para a terra, qual cavalo de Tróia.
Epimeteu, irmão de Prometeu, estava por este avisado:
- Do céu nunca virá nada de bom!
Nunca aceites nenhum presente divino…

Deslumbrado com a sua beleza,
Epimeteu tomou Pandora como esposa.
Em casa, ele tinha uma misteriosa caixa
que outrora lhe enviara o céu.
Pandora fora instada a nunca a abrir,
em circunstância alguma.
Mas a curiosidade feminina foi superior às suas forças.
Outros dizem
que era... o seu dote de casamento,

um presente envenenado.

… Lá dentro, na caixa de Pandora,
estavam todos os males,
todos os cavaleiros do apocalipse
a fome, a guerra, a morte
 e todas as doenças
a começar pela peste, a pior das doenças,
que haveriam de afligir a humanidade,
até ao fim dos séculos dos séculos…
sem esquecer todas as sementes do mal:
a estupidez, o fanatismo, a intolerância, o ódio, o racismo. 

Mas, no fundo da caixa, ficou ainda
um resto do recheio original,
o único elemento que não se chegara a libertar,
porque Pandora, assustada,
ainda conseguira fechar a tampa,
na derradeira fracção de segundo …
E esse elemento era… a Esperança,
disfarçada de mal !

Apesar do erro, terrível,  irreparável,
Pandora vai permitir aos homens,
empunhar com orgulho o archote de fogo
que lhes dera Prometeu,
manter acesa a luz ao fundo do túnel,
manter vivo esse outro fogo do conhecimento e da paixão,
dominar alguns dos piores males
que estiveram prestes a destruir a humanidade,
todos os holocaustos e pandemias,
conquistar o direito ao futuro,
lutar contra a doença e a morte,
alimentar a esperança,
combater o fatum, a condenação ao absurdo,
levá-los, enfim, aos seres humanos
a superar as limitações da sua condição animal...

Com Pandora, não somos definitivamente criaturas divinas,
nem obras-primas da criação,
somos assumidamente seres livres,
humanos,
frágeis,
vulneráveis,
mortais,
bons e maus,
fortes e fracos,
mas donos do nosso destino.

Com Pandora, tornámos irrisórios os deuses,
libertámos criadores e criaturas,
deixámos a suburbanidade do Olimpo,
humanizámos a vida,
hospedámo-nos no sistema solar,
começámos a escrever a história, 
com muitos erros e crimes, é verdade,
mas escrevemos,
e  ganhámos a terra como nossa casa comum,
conhecemos a vertigem e o sabor
da aventura e da liberdade...


Pandora, nossa mãe negra, branca, amarela, vermelha...
mãe de todas as cores do arco-íris,
Não, Pandora, não és a fonte de todos os males,
não és o pecado original,
és afinal “a que tudo dá",
em grego.


Com Pandora somos fogo e estopa,
mas já não vem o diabo... e assopra!
Para quê o diabo,
se voltámos a ter, de volta,
a caixinha de Pandora,
agora domada e explicada às criancinhas,
e outrora mortal brinquedo dos deuses ?

Por favor, não destruam 
o que resta da caixinha de Pandora,
porque nela ainda está o segredo da nossa salvação, 
a Esperança, o veneno do mal que nos liberta do mal...


Lisboa, 8/3/2010. 
Versão 2, Lourinhã, 13/6/2020

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sábado, 13 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21071: (In)citações (163): Sermão antirracista do Padre António Vieira: "Cada um é da cor do seu coração" (seleção: António Graça de Abreu)

Padre António Vieira (séc. XVII). Cortesia de
Biblioteca Municipal Anselmo Braamcamp Freire,
Santarém
1. Mensagem de António Graça de Abreu [ ex-alf mil, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da Tabanca Grande, com cerca de 260 referências no nosso blogue]

Sugiro este texto para publicação no blogue (*)



SERMÃO ANTIRRACISTA
do Padre António Vieira

Do SERMÃO XX do Rosário

"Cada um é da cor do seu coração."
Padre António Vieira


ELOGIO DA COR PRETA (**)

O segundo, e segunda causa da grande distinção, que fazem entre si, e os Escravos, os que se chamam Senhores, é, como dizíamos, a cor preta. Mas se a cor preta pusera pleito à branca, é certo que não havia de ser tão fácil de averiguar a preferência entre as cores, como a que se vê entre os homens. 

Entre os homens dominarem os Brancos aos Pretos é força, e não razão, ou natureza. Bem se vê, onde não tem lugar esta força, nem a cor é vencida dela. Quando os Portugueses apareceram a primeira vez na Etiópia, admirando os Etíopes neles a polícia Europeia, diziam: "Tudo o melhor deu Deus aos Europeus, e a nós só a cor preta". Tanto estimam mais que a branca a sua cor. 

Por isso, assim como nós pintamos aos Anjos brancos, e aos Demónios, negros; assim eles por veneração aos Anjos pintam negros, e aos Demónios por injúria, e aborrecimento, brancos. 

Deixando porém os que podem parecer apaixonados, ninguém haverá que não reconheça, e venere na cor preta duas prerrogativas muito notáveis. A primeira, que ela encobre melhor os defeitos, os quais a branca manifesta, e faz mais feios; a segunda, que só ela não se deixa tingir de outra cor, admitindo a branca a variedade de todas; e bastavam só estas duas virtudes para a cor preta vencer, e ainda envergonhar a branca. 

Mas das cores só os olhos podem ser juízes. Vejamos o que eles julgam, ou experimentam. Os Filósofos buscando as propriedades radicais, com que se distinguem estas duas cores extremas, dizem que da cor preta é próprio unir a vista, e da branca disgregá-la, e desuni-la. Por isso a brancura da neve ofende, e cega os olhos. 

E não é isto mesmo o que com grande louvor dos Pretos, e não menor afronta dos Brancos, se acha em uns, e outros? Dos pretos é tão própria, e natural a união, que a todos os que têm a mesma cor, chamam Parentes; a todos os que servem na mesma casa, chamam Parceiros; e a todos os que se embarcaram no mesmo navio, chamam Malungos. 

E os Brancos? Não basta andarem meses juntos no mesmo ventre, como Jacó, e Esaú, para se não aborrecerem; nem basta serem filhos do mesmo pai, e da mesma mãe, como Caim e Abel, para se não matarem. 

Que muito logo, que sendo tão disgregativa a cor branca, não caibam na mesma Congregação os Brancos, com os Pretos?

Padre António Vieira
[ Lisboa, 1608 — Salvador, 1697]

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Notas do editor:

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19406: Agenda cultural (668): Absolutamente a não perder: RTP1, todas as 2ªs feiras, às 23h45, a partir de 14/1/2019, "As Rotas da Escravatura", em 4 episódios de 53 m cada... Do séc. VII até hoje, a África foi o epicentro de um gigantesco tráfico global de seres humanos: mais de 20 milhões de africanos foram deportados, vendidos e submetidos à escravatura: Núbios, Fulas, Mandingas, Songais, Sossos, Akans, Iorubás, Igbos, Bacongos, Ajauas, Somalis...



Fotograma do vídeo de apresentação do documentação (1º episódio, RTP1, 14/1/2019) (com a devida  vénia...)


A história da escravatura do séc. VII até aos dias de hoje: documentário em 4 episódios, na RTP1




Esta é a história de um mundo onde o comércio de escravos desenhou os seus territórios e as suas próprias fronteiras. Um mundo onde a violência, a opressão e o lucro impuseram as suas rotas.
A história da escravatura não começou nos campos de algodão. É uma tragédia muito mais antiga que se desenrola desde os primórdios da Humanidade.

A partir do séc. VII e durante mais de mil anos, a África foi o epicentro de um gigantesco tráfico global. Este sistema criminal moldou o nosso mundo e a nossa história. A amplitude deste tráfico é tal que, durante muito tempo, foi impossível explicar todos os seus mecanismos.

Nesta série documental volta-se a percorrer as rotas da escravatura, abordando as suas consequências na sociedade contemporânea.

Segundas, às 23h45, na RTP1, a partir de 14/1/2019

As Rotas da Escravatura

1º episódio > 476-1375: Para Além do Deserto,  14 jan 2019 [Pode ser revisto aqui no prazo de 7 dias]

Sinopse:

A partir do séc. VII e durante mais de mil anos, a África foi o epicentro de um gigantesco tráfico global. Núbios, Fulas, Mandingas, Songais, Sossos, Akans, Iorubás, Igbos, Bacongos, Ajauas, Somalis... Mais de 20 milhões de africanos foram deportados, vendidos e submetidos à escravatura. Este sistema criminal moldou o nosso mundo e a nossa história. A amplitude deste tráfico é tal, que durante muito tempo foi impossível explicar todos os seus mecanismos.

2º episódio: 1375-1620: Por Todo o Ouro do Mundo, 22 jan 2019

Sinopse:

No século XIV, a Europa abre-se ao mundo e apercebe-se de que se encontra à margem da mais importante zona de trocas comerciais do planeta.

Este mapa, o "Atlas catalão", aguça o apetite de conquistas dos europeus. Mapa dos ventos, o Atlas guia os marinheiros como viajantes por terra firme. Mapa político faculta informações sobre as forças em presença. Por fim, como mapa económico, indica as rotas comerciais com destino a África e aos seus recursos.

Um pequeno reino é o primeiro a lançar-se ao assalto das costas africanas: Portugal. Na sua esteira, desenha-se uma nova rota da escravatura.

Sinopses dos próximos episódios (nº 3 e 4) ainda não disponível

Ficha Técnica

Título Original:  Les Routes de l´esclavage
Realização:  Daniel Cattier, Juan Gelas, Fanny Glissant
Produção: Compagnie des Phares et Balises, ARTE France, Kwassa Films, RTBF, LX Filmes, RTP, Inrap
Música: Jérôme Rebotier
Ano: 2017
Duração de cada episódio: 53 minutos

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18834: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (56): Entre 1394 e 1974, a História de Portugal deve ser reescrita e ir para o Museu?


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Cacheu > 3 de Março de 2008 > A estátua de Diogo Gomes, agora "em depósito" na antiga fortaleza portuguesa do Cacheu... Seis séculos de história para um "canto", que nem sequer é museu...

Já vai em mais de cem o número de académicos que são contra a possibilidade de Lisboa vir a ter um "Museu das Descobertas". Numa carta, que o Expresso publica abaixo, historiadores, especializados na história do império português , e cientistas sociais explicam porque é que um museu dedicado à expansão portuguesa nunca deverá ter esta designação. A ideia de criar na capital uma instituição como esta foi defendida no programa eleitoral de Fernando Medina, eleito presidente da câmara de Lisboa. Os signatários da carta consideram o nome "Museu das Descobertas" um erro de perspectiva. A lista de signatários não tem parado de aumentar desde que a carta foi tornada pública,na última quinta-feira. Aos portugueses juntaram-se desde então investigadores vinculados às universidades de Harvard, Yale, e UCLA, nos Estados Unidos, ao Collège de France, Sorbonne, EHESS, Paris e a EPHE, Paris, às principais universidades brasileiras, São Paulo, Universidade de Campinas, Universidade Federal da Baía, Universidade Federal Fluminense, o University College London, UK, ou a Universidad Complutense de Madrid- 
[Expresso, 12 de abril de 2018 >  A controvérsia sobre um Museu que ainda não existe. Descobertas ou Expansão?]


Foto: © António Paulo Bastos (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de António Rosinha

Data: 9 de julho de 2018 às 23:04

Assunto: Entre 1394 e 1974 da História de Portugal deve ser re-escrita e ir para o Museu?

Luís, como está na ordem do dia, e se não for excessivo, aproveita.
Abraço, António,


2. Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (56): Entre 1394 e 1974, a História de Portugal deve ser reescrita e ir para o Museu?


[ António Rosinha, foto acima, à direita, 2007, Pombal, II Encontro Nacional da Tabanca Grande]

(i) beirão, tem mais de 110 referência no nosso blogue;

(ii) é um dos nossos 'mais velhos' e continua ativo, com maior ou menor regularidade, a participar no nosso blogue, como  autor e comentador;

(iii) andou por Angola, nas décadas de 50/60/70, do século passado;

(iv) fez o serviço militar em Angola, sendo fur mil, em 1961/62;

(v) diz que foi 'colon' até 1974 e continua a considerar-se um impenitente 'reacionário' (sic);

(vi) 'retornado', andou por aí (, com passagem pelo Brasil), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência';

(vii) o seu patrão, o dono da TECNIL, era o velho africanista Ramiro Sobral;

(viii) é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho'';

(ix) pelo seu bom senso, sabedoria, sensibilidade, perspicácia, cultura e memória africanistas, é merecedor do apreço e elogio de muitos camaradas nossos, é profundamente estimado e respeitado na nossa Tabanca Grande, fazendo gala de ser 'politicamente incorreto' e de 'chamar os bois pelos cornos';

(x) ao Antº Rosinha poderá aplicar-se o provérbio africano, há tempos aqui citado pelo Cherno Baldé, o "menino e moço de Fajonquito": "Aquilo que uma criança consegue ver de longe, empoleirado em cima de um poilão, o velho já o sabia, sentado em baixo da árvore a fumar o seu cachimbo". ]


Mas não no Museu das Descobertas, porque estas só podem ser consideradas até Magalhães com a volta ao mundo, 1521, 127 anos a viajar e a ligar terras e continentes desconhecidas entre si e localizá-los no mapa.

Segundo alguns portugueses, desde o nascimento do Infante Dom Henrique até ao General Spínola, 580 anos, todos os heróis nacionais desse período, com estátuas, bustos ou referências em ruas e praças, deviam ser "recolhidos", senão apagados da história como heróis, porque acham que a história está a ser mal contada.

 E, sendo assim, tal como fizeram os guineenses que levaram as estátuas dos heróis portugueses para a fortaleza de Cacheu, era de sugerir, digo eu, que cá, na ex-Metrópole, se fizesse um Museu na fortaleza de Sagres, onde tudo começou.

Talvez não coubessem todos, desde o próprio  Dom Henrique um sem vergonha, sonhador, mas talvez  a culpa foi da mãe que até era inglesa,  até ao Camões um gabarola, e um Cabral que até se enganou no caminho porque se fiou no GPS que estava desactualizado.

E o Marquês onde o Benfica festeja à volta do leão, que mandou os jesuítas para lá do Atlântico, pregar para outra freguesia, esse ia também para Sagres.

Nem os santos escapavm, até São Francisco Xavier que foi convencer gente que vacas não são sagradas e que toucinho faz uma rica banha, esse também não escapava.

Quem vai para Sagres é tambem o Gama que viciou os europeus na canela e no açafrão e outras drogas.

Mouzinho que embarcou Gungunhana e a família para a Metrópole, e não naufragou, será uma das figuras principais no museu.

Enfim, se misturarmos numa mesma casa desde o Henrique, o navegador, e o Gama e Bartolomeu Dias e Cabral, junto com Salvador Correia de Sá e outros brasileiros mais uns tantos cabo-verdianos e angolanos que  atravessaram o Atlântico com escravos para o Brasil e juntarmos ainda  outros como o próprio Eusébio e todos os Magriços do Estado Novo, que inovaram com futebol luso-tropical na Europa, moda que pegou (França e Inglaterra), então ficamos sem saber como havemos de chamar a esse museu.

Mas Museu das Descobertas é que não pode ser chamado como tal.

 Passámos mais anos a caminho e a viver nos trópicos do que quietinhos no nosso cantinho.

Seriam 580 anos da nossa história que  foram uma mentira, porque  nos primeiros127 anos já estava tudo descoberto, reconhecido e identificado e mapeado, o resto 353 anos,  foi conquista e colonização.

E só teríamos 274 anos em que fomos verdadeiramente Portugueses ou Lusitanos, e não Luso-Tropicais.  

Temos que perder complexos e não somar complexos a mais complexos. Descobertas foi uma coisa, conquistas foi outra. E escravatura foi ainda outra, e todas estas coisas devem ser tratadas no seu devido lugar (museu).

Como os portugueses mais recentes,  africanos, que à maneira americana se dizem afro-descendentes, e não sei se indianos e chineses descendentes também se queixam que os herois portugueses das Descobertas e das conquistas não são os seus heróis, talvez a maioria dos portugueses se interrogue se não será também descendente dos milhares de escravos e escravas e voluntários e voluntárias que se fixaram durante 580 anos neste cantinho de heróis, e aí ficamos na dúvida sem saber o que fazer a tanto herói.

E mais uma coisa, toda a Europa está numa transição tal, que há países europeus a temer que a maioria dos seus cidadãos  venham um dia a ser "afro-descendentes" e aí também os heróis "mudam de figura".

Já há muitos anos os romanos lutaram contra cartagineses que chegavam de elefante, agora lutam contra quem chega de bote.

A história universal pode ter muitas leituras, mas ninguém culpe os navegadores, porque "navegar é preciso".

Um abraço
António Rosinha
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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18559: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (55): 25 de Abril: somos ingratos?

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18216: Historiografia da presença portuguesa em África (106): a história desconhecida da Guiné dos anos 60-70 do séc. XIX: Alfa Moló e Alfa Mussá, heróis dos fulas-pretos (Armando Tavares da Silva)


Mussá Moló, tendo à sua direita Dembá Dançá, e à sua esquerda Maransará, chefe-de-guerra deste último (in Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate. An Official Handbook, London, 1906)-Cortesia de ATS.


[A vermelho, a atual fronteira da Guiné-Bissau. Cortesia de ATS]


1. Mensagem de 11 do corrente, do nosso grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva:


Assunto - Blogue: Guiné Séc. XIX

Caro Luís Graça,

Para quem se interessar pelos acontecimentos que se foram desenrolando na Guiné no decorrer do tempo, o texto que envio poderá ser útil e esclarecedor.

Há quem se queixe que em meados do século XX nada se sabia sobre aquele teritório. Tal não era também possível, pois não havia escritos que o pudessem permitir. Pouco mais se sabia além de que a Guiné tinha sido descoberta por Nuno Tristão.

Se percorrermos as “Histórias de Portugal”, mesmo, e sobretudo, as mais recentes, nada se encontra. E alguns trabalhos onde sumariamente se referem acções militares, confundem factos e apresentam erros. Acresce ainda que, quando se fala da Guiné, é quase sempre para denegrir. Talvez isto seja consequência do que ainda hoje leva a que se oiça dizer: “Mas aquilo tem algum interesse?”.

Parabéns ao blogue e seus editores, e... vida longa!

Abraço

ATS



2. Em comentário ao Post P18172  de 4-01-2018 (*), relativo à identificação do topónimo Gan Sancó, muito possivelmente um antigo regulado mandinga, Cherno Baldé menciona as contendas em que estiveram envolvidos mandingas e fulas. A menção destas contendas  levou-me a rever o que havia escrito em “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926” [, imagem da capa à esquerda,],  sobre a própria emancipação dos fulas-pretos do domínio de mandingas e beafadas.

O alferes Francisco António Marques Geraldes, que havia sido comandante do presídio de Zeguichor, e que era chefe do presídio de Geba, relatando o que fora acção de Alfá Moló, diz-nos em 1886 que este, fula-preto, era chefe de uma “raça que há muitos anos vergava sob o jugo da escravidão. Beafadas, mandingas, fulas-forros e futa-fulas eram seus senhores e, enquanto estes descansavam das fadigas da guerra a que sempre se dedicaram, os fulas-pretos, largando as armas com que defenderam seus senhores, pegavam nos instrumentos agrícolas e ei-los curvados sobre o solo tirando do seu seio, à custa de trabalhos insanos, o alimento preciso para sustentar as tribos guerreiras de que dependiam.” 

Este estado de escravidão resultava da ausência de um chefe enérgico e audaz que se opusesse ao poder dos mandingas e beafadas. Moló, porém, entendeu fazer um esforço sobre-humano para tentar tal milagre e, à frente de um punhado de fulas, edifica a ocultas uma tabanca em lugar inculto e cheio de denso arvoredo, tabanca pequena e povoada só por homens. À distância de duas léguas existia uma outra de mandingas com suas famílias e haveres. “Os fulas-pretos atacam uma madrugada e de improviso esta tabanca; matam os homens, tomam as mulheres e cavalos; alargam a sua tabanca para assim haver cabimentos para as famílias entradas”.

Marques Geraldes situa em 1864 o começo da emancipação dos fulas-pretos, conseguindo Moló, que lutou até ao último dia da sua vida, destruir quase todo o poder dos beafadas e mandingas nos territórios de Geba até Gâmbia.

Depois da morte de Alfá Moló, será um dos seus filhos –Mussá Moló – possuidor de grande energia e superior inteligência, que chama a si os principais guerreiros jalofes, saracolés e mesmo antigos fidalgos mandingas que foram possuidores daqueles territórios e, devido às suas liberalidades, premiando os mais valentes, dando-lhes cavalos e mulheres, soube criar um tal prestígio que se tornou o ídolo dos fulas-pretos. Assim, Mussá soube vencer aqueles restos dos grandes povos que dominaram na Guiné e, em poucos anos tinha suplantado beafadas e mandingas, ficando possuidor de ambas as margens do rio de Geba desde a sua embocadura.

O território do Forreá povoado por fulas-forros estava igualmente cheio de escravos fulas-pretos. Em 1879, quando Agostinho Coelho inaugurou o governo da província, decorria a luta sangrenta entre os fulas-forros e os fulas-pretos, altura em que o Rio Grande mantinha o seu esplendor, ostentando as suas cinquenta e três feitorias prósperas e ricas, e em que a população de Buba era numerosa. 

Por espírito humanitário Agostinho Coelho, na difícil situação de procura da pacificação entre os povos que se digladiavam, e portanto da pacificação da província, recebeu na sua praça de Buba todos os fulas-pretos que quisessem ser livres, arrostando assim com uma guerra que lhe trouxe o completo definhamento do comércio e agricultura. Vendo-se os fulas-forros repentinamente privados dos seus escravos, não tiveram em mira senão vingar-se, o que deu começo a uma guerra no território de Forreá, que aniquilou o comércio e agricultura em Buba e feitorias do Rio Grande.

Joaquim da Graça Correia e Lança, que fora governador interino entre 1888 e 1890, referindo-se também, em relatório de 1890, aos povos que ocupavam a província, escreve: 

“Toda a região do alto Geba era ocupada pelos fulas-pretos, que se estendiam até ao Forreá, onde dominavam os fulas-forros. Era uma enorme área, outrora ocupada por mandingas e beafadas. Estes estendiam-se pela margem esquerda do rio Geba até à povoação deste nome e ocupavam o território de Bricama, Corubal e o Forreá. Aqueles, estendiam o seu império desde Farim até ao Futa-Djalon”. 

Ora, tanto a grande nação mandinga do interior, como os mandingas de Geba viram entrar no seu território “sem desconfiança os inofensivos pastores fulas que, com os seus rebanhos caminhavam sem cessar na direcção do oceano, apenas pedindo pastagem para os seus gados e sal para as suas comidas”. Vivendo sujeitos aos mandingas e beafadas, os fulas haviam sido objecto de “inúmeras extorsões e violências, vivendo uma vida verdadeiramente servil”, até que, em 1863, se dá um primeiro movimento de revolta, tendo-se verificado o primeiro combate em Cabucussará.

Como aqui se vê, Correia e Lança situa o primeiro combate de emancipação dos fulas-pretos em 1863, em Cabucussará.


Atlas da Guiné (1914): posição relativa de Gam Sancó e Ber[e]colon. Cortesia de ATS

Mas os mandingas também sofreram ataques e pesadas derrotas infligidas por futa-fulas, como se infere do referido comentário de Cherno Baldé ao Post P18172 (*).  Segundo este, a fortaleza mandinga de Berecolon foi destruída pelos almames do Futa-Djalon no início de uma guerra que se iniciara em 1852, e que terminaria com a derrota dos mandingas na batalha de Cansala em 1864. Marques Geraldes diz-nos que fora o almame Ibráhima, denominado o Sory, que maiores vitórias alcançara contra os mandingas, e eu faço notar que em 1882, na praça de Buba, circundada por uma paliçada, existia uma autêntica aldeia mandinga, onde se terão acolhido, provavelmente fugidos dos ataques de futa-fulas.    

Houve, porém, um território – o Oio – onde mandingas soninqueses conseguiram resistir aos avanços fulas. É o governador Júdice Biker que, em 1903, mais demoradamente se vai referir a este facto, começando por notar que por muitos anos durou a luta entre fulas e soninquezes, ficando aqueles vencedores tomando posse do chão dos soninquezes, à excepção da região chamada Oio, ainda hoje pertencente aos soninquezes.

Acrescenta Júdice Biker:

“Depois, os fulas passaram a conquistar o território pertencente aos beafadas, luta que igualmente durou bastantes anos, mas sendo os beafadas expulsos do seu chão que igualmente ficou pertencendo à raça fula, refugiando-se os beafadas em Quinará e Cubissegue, que ainda hoje conservam devido à protecção do governo”.

E continua:

 “Relativamente ao Oio, os fulas empregaram todos os esforços para ocupar aquela região. A tabanca de maior nome do Oio é a de Gussará; cinco vezes foi atacada pelos fulas que foram sempre derrotados sofrendo perdas enormes”. Por isso, “para os fulas o Oio passou a ser considerado como território com feitiço”.

Vai ser na sequência de uma incursão no Oio em 1902, e do “prestígio” de que dela resultara, que Júdice Biker, devidamente autorizado, vai proceder a título provisório à primeira cobrança do imposto de capitação (que antecedeu o imposto de palhota), o que realiza durante uma extensa digressão, entre Fevereiro e Março de 1903, em que percorreu de Buba a Geba 275 quilómetros. (**)
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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17654: Notas de leitura (984): "Guiné: um rio de memórias", de Luís Branquinho Crespo: exorcizar velhos e novos fantasmas - Parte I (Luís Graça)



Capa do livro do Luís Branquinho Crespo, "Guiné: um rio de memórias". Leiria, Textiverso, 2017, 181 pp. (Prefácio de António Graça de Abreu). [Preço, com envio através do correio: € 15,80 já com portes, podendo esse valor ser transferido para o seguinte IBAN 0010 0000 1888 8110 0015 3.]



1. Esta é a viagem que muitos daqueles de nós, que estivemos na Guiné, entre 1961 e 1974, gostaríamos de ter feito (ou ainda fazer) no tempo útil das nossas vidas… E este é o livro que gostaríamos de ter escrito (ou ainda escrever), no regresso a casa…

”Turismo de saudade ?”… Não, não gosto do termo. Prefiro antes, talvez, expressões como “fazer o ajuste de contas com o passado”, “exorcizar os fantasmas da guerra colonial na Guiné”, “recompor o puzzle esburacado da memória”…

Quarenta anos depois de regressar a casa, são e salvo, mas provavelmente com a morte na alma, como muitos de nós, o advogado leiriense Luís Branquinho Crespo, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 54 (Xitole e Saltinho, 1968/70), voltou aos lugares onde deixou a sua juventude. Foi lá que completou os seus 25 anos, em 22 de dezembro de 1969.

Como muitos outros ex-combatentes que seguiram as mesmas peugadas, voltando à Guiné (uma, duas, três e até, nalguns casos, em missões humanitárias ou não), o autor partiu de avião e voltou por terra, de jipe, com mais dois ex-camaradas, em março de 2010. Atravessou sete países: Guiné-Bissau, Senegal, Mauritânia, Sará Ocidental, Marrocos, Espanha e Portugal. 

Convenhamos que foi uma aventura com alguns riscos calculados… Sete anos depois deu à estampa este livro de 181 páginas, e 21 capítulos. Não é um romance, não é um diário, não é uma crónica de viagem, não é uma biografia, não é um ensaio, não é um documento memorialístico, não é um longo poema, não é um solilóquio… É tudo isto um pouco, é algo mais, é uma mistura de géneros. É também uma ponte lusófona entre dois povos cujos destinos a história aproximou e afastou…

O jurista não matou o poeta da juventude (“Cidade sem fim”, Leiria, 1963). Como também o ex-combatente não impediu o viajante de redescobrir os cheiros e os sabores da “primeira vez“, nem o homem de sentir empatia e compaixão pelos guineenses de ontem e de hoje e de tentar compreender, mais do que explicar, os erros, os bloqueios, os paradoxos e as perplexidades do presente que estão a hipotecar o futuro da Guiné-Bissau.

Não sei qual foi o “making of” deste livro. Mas imagino: o autor deve ter feito o seu “diário de bordo”, além do “registo fotográfico” desta viagem de regresso à Guiné que em grande parte compartilhou com mais dois ex-combatentes, a par de pesquisas no nosso blogue e exploração de outras fontes.

Luís Branquinho Crespo coloca-se decididamente na pele de “viajante” e não de “turista”. Citando Paulo Bowles, uma viagem “é sempre uma experiência íntima” (p. 27). E, como alguém disse, e eu gosto de repetir, um turista é uma espécie de “estúpido em férias”: não vai à descoberta, vai para onde lhe mandam, com tempo e hora marcada...

Para se sentir mais confortável na elaboração da narrativa dessa experiência única (que é voltar à terra onde se viveu e combateu durante quase dois anos, a milhares de quilómetros de casa), ele coloca-se na pele de uma personagem, o Carlos Viegas, hoje contabilista, e que vivia em São Martinho do Porto, Alcobaça, à data da sua mobilização para a Guiné. É, obviamente, o “alter ego” de Luís Branquinho Crespo. De jipe, a que ele chama “toca-toca”, vai percorrer grande parte da Guiné, de Bissau ao Saltinho, com incursões pelo leste (Xime, Bambadinca, Bafatá, Xitole), pelo sul (Contabane, Mampatá, Quebo, Guileje, Cacine) e pelo norte (Varela).

O mesmo “toca-toca” levá-lo-á de regresso a casa, com mais dois companheiros de aventura: o Joaquim (que é o “retrato físico e psicológico” do nosso conhecido António Camilo, comerciante em Lagoa, a quem a revista "Visão" chamou o "o bom gigantye") e o Xavier (de quem se sabe pouco: é enfermeiro em Montemor-O-Novo)… Três almas inquietas, divididas entre o passado e o presente, exorcizando velhos e novos fantasmas..

Esta trilogia, com mais alguns personagens secundários mas fortes (a Fá de Varela, o Braima Bá, o Matias, a Maria, o António Pouca Sorte, o Aníbal do Pelicano, o Dauda, o Tchuto Axon, o Pepito de Iemberém…), podia ser a base da arquitetura de um poderoso romance, se o autor quisesse (e pudesse) enveredar pela ficção… Se o pano de fundo da história fossem os náufragos do império e da luta de libertação…

Mas, não, o autor quis apenas fixar para a posteridade estas suas “memórias da Guiné, alegres e doridas”, como ele deixou expresso na dedicatória autografada no livro que me ofereceu.

Mas, não, o autor quis apenas fixar para a posteridade estas suas “memórias da Guiné, alegres e doridas”, como ele deixou expresso na dedicatória autografada no exemplar do  livro que me ofereceu.(*)

Tinha feito uma primeira leitura em diagonal do livro, quando me chegou à mão, pelo correio, amável oferta do autor. Só há dias o li, na praia, de uma só penada, numa tarde.

2. Na realidade, é uma narrativa que nos toca e nos agarra, àqueles de nós que conheceram a Guiné, a de antes e/ou a depois da independência. O meu destaque vai para dois ou três capítulos fortes: cap 7. António Pouca Sorte; cap 13. ‘A gente tem a alma aberta como ostra comida’; cap 19. Janela do tamanho de porta de partida… É tudo horizonte… E, depois do horizonte, horizonte há…

O António Pouca Sorte, “mais preto que branco”, nascido na serra do Caldeirão em 1965, é uma história de vida pungente, de um homem, fugido à justiça portuguesa, que acabou por se perder pelos matos, bolanhas e rias da Guiné, um tangomau ou lançado dos tempos modernos, sem identidade nem memória (cap. 7).

O dramático relato do Braima Bá é o de um homem que, tendo servido o exército colonial, desde 1964 até ao fim da guerra (, onde acaba integrado no batalhão de comandos africanos), e que vai conhecer “o corredor da morte” do Cumeré, a fuga, o exílio, o opróbio, e que no final da vida ainda tem “a alma abertu suma ostra ora ku i kumedo” (p. 116) (cap. 13).

Por fim, no regresso a casa (cap. 19), Carlos, Joaquim e Xavier visitam a ilha de Goré, em frente a Dacar, capital do Senegal, e obrigatoriamente a casa dos escravos: “por ali passaram 12,5 milhões de homens na direcção das Américas por uma porta estreita que só para o mar” (p. 151)… “Ao Carlos, ao Joauqim e ao Xavier a palavra tornou-se muda e tolda-se-lhes a vista e as pernas tremiam-lhes: quem ali não se lembra de Auschwitz, Birkenau, Bremem, Essen, Treblinka”… (p. 151 “Os negreiros árabes ali os descarregavam” (p. 152)…”Ali está uma parte da miséria da humanidade” (p. 153)…

[A ilha de Gorée está classificada pela UNESCO como património mundial da humanidade´e foi recentemente visitada, incluindo a Casa dos Escravos, pelo nosso Presidente da República em visita oficial ao Senegal].

(Continua) (**)
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2 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17425: Notas de leitura (963): “Guiné, Um rio de memórias”, por Luís Branquinho Crespo, Textiverso, Unipessoal, Lda, 2017 (Mário Beja Santos)

21 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17383: Notas de leitura (959): Prefácio de António Graça Abreu, ao livro "Guiné: um rio de memórias", de Luís Branquinho Crespo, lançado em Leiria no passado dia 6 com a presença do Presidente da Câmara Municipal local, Raul Castro, também ele ex-combatente

18 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17370: Tabanca Grande (437): Luís Branquinho Crespo, ex-alf mil, CART 2413 (Xitole e Saltinho, 1968/70)... Passa a sentar-se à sombra do nosso polião, no lugar nº 744. É advogado em Leiria e autor do livro "Guiné: Um rio de memórias" (Leiria, Textiverso, 2017)

(**) Último poste da série > 4 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17648: Notas de leitura (983): Um belo conto de Abdulai Sila, “O Reencontro” (Mário Beja Santos)

domingo, 14 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16386: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte IX: Março de 1972, Cacheu... "Pintado de branco, o forte / que defendeu a velha feitoria. / Aqui, o negro evitava a morte / tornando-se mercadoria"


Foto nº 47 > Guiné > Região do Cacheu > Cacheu > Março de 1972 > Forte da feitoria, junto ao rio; "Pintado de branco, o forte / que defendeu a velha feitoria. /Aqui, o negro evitava a morte / tornando-se  mercadoria"...


Foto nº 46 > Guiné > Região do Cacheu > Cacheu > Março  de 1972 >  Monumento ao Infante D. Henrique: "O Infante das Descobertas / também aqui é lembrado / em pedra, de vistas abertas, /astrolábio e texto lavrado"... "Mas é o fresco camarão / o rei destas memórias",


 Foto nº 46A > Guiné > Região do Cacheu > Cacheu > Março  de 1972 >  Monumento em homenagem do "V Centenário da Morte do Infante Dom Henrique"...."Mas é o fresco camarão / o rei destas memórias, /pretexto de um belo serão / com suculentas histórias"...


Foto nº 45 > Guiné > Região do Cacheu > Cacheu > Março de 1972 > Avenida de entrada na vila,.. "Uma pequena avenida / à entrada da povoação. / De tão erma e contida / era de escassa admiração"


 Fotos (e legendas): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73) (*).

Francisco Gamelas, que é engenheiro eletrotécnico de formação, quadro superior da PT Inovação reformado, vive em Aveiro, e publicou recentemente "Outro olhar - Guiné 1971-1973" (Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust; preço de capa 12,50 €). Os interessados podem encomendá-lo ao autor através do seu email pessoal franciscogamelas@sapo.pt. O design é da arquiteta Beatriz Ribau Pimenta, a partir da foto. nº 29. Tiragem: 150 exemplares. Impressão e acabamento: Grafigamelas, Lda, Esgueira, Aveiro.

Do poema " Memórias do Cacheu" (pp. 117/119) retirámos alguns versos que completam as legendas... Com a devida vénia... (LG).


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