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quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23531: O nosso querido mês de agosto, pós-pandémico: o que é ser português, hoje? (5): Acordei com alguma inveja de ver os meus netos, neerlandeses, partir de regresso das férias em Portugal... (Valdemar Queiroz)


Valdemar Queiroz, minhoto por criação, lisboeta por eleição, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; aqui, na foto, em Contuboel, 1969. 


1. Trancado em casa, em pleno agosto (aquele que deveria ser "o nosso queridp mês de agosto"), por causa da sua DPOC de estimação, desolado por ver partir os seus netos, filho e nora de volta para os Países Baixos (depois de umas sempre curtas férias em Portugal), o nosso querido amigo e camarada Valdemar Queiroz não desiste de enriquecer (ou complexificar)  as respostas à pergunta (tramada, para os portugueses) que é a de saber o que quer dizer "ser português", aqui e agora, "hic et nunc"... Aqui ficam cinco dos seus comentários de antologia:


(i) 11 de agosto de 2022 às 16:03 (*)

O que é ser português ?

Mas, depois de três dias de viagem a atravessar a França e, por não aguentar mais tempo, uma directa de San Sebastian pra chegar a Bragança. Ufff!, chegar a Portugal, e começar logo a sentir a diferença do calor, do cheiro, ver o céu azul, tudo diferente mas nunca esquecido, e ouvir 'bócê nem sabe o calor pro aqui'.

Depois, é só passar por Valverde, Vale do Porco, Vilar de Rei e chegar a Mogadouro, estacionar a autocaravana no Parque de Campismo e descansar para viajar em Portugal.

Parece que estes emigrantes dos anos 2000 já não se sentem emigrantes, antes vão trabalhar para outras paragens...mas a razão é sempre a mesma: um país com mais conventos que palácios e fábricas ter mar à porta de casa.

Assim cá chegaram os meus netos, filho e nora para passar férias vindos dos Países Baixos. (...)


(ii) 13 de agosto de 2022 às 02:13 (**)

Sempre me fez muita confusão ver os neerlandeses ir à casa de banho e não lavar as mãos. Nunca me deram uma explicação, talvez seja por causa do tempo frio.

Depois, lembrei-me de ter lido uma crónica de um estrangeiro em Lisboa no séc. XVIII,  que dizia que os portugueses parecem estar a cometer pecados a qualquer hora, estão sempre a lavar as mãos. Dizem que nos ficou do tempo dos árabes, tal como o "Se Deus quiser" (Insha' Allah") por tudo e por nada.

(iii) 13 de agosto de 2022 às 18:28  (***)

E sobre moinhos também há para escrever.

Do latin molinu apareceu o português 'moinho', que perdeu o l intervocálico e o galego 'muiño' também. Não é muito diferente do latim o espanhol 'molino', o catalão 'moli' e o francês 'molin'. Em alemão 'müle' e em neerlandês 'molen'.

Com 'moleiro', do latim molinariu, foi um pouco diferente, por em galego ser 'muiñeiro', em espanhol 'moinero', em catalão 'moliner' e em francês 'meunier'. Os alemães dizem 'müller' e os neerlandeses 'molenaar'.

Agora, o querer ir ao Restaurante "De Hoop" num moinho em Bavel (NL) e perguntar por molen, môlen, mólen, e uuuu? molin, molino, e uuuu? ah! móla,  respondeu-me a senhora indicando o caminho. 

Os vizinhos flamengos que povoaram os Açores,  também levaram para as ilhas os seus conhecimentos na construção de moinhos que ainda por lá se encontram.

Os neerlandeses, não digo os holandeses por haver moinhos sem ser nas províncias da Holanda do norte e do sul, aproveitando as suas "estradas" de água construíram moinhos de vento junto dos muitos canais que utilizam para tudo e mais alguma coisa. São uma força motriz para as mais diversas actividades.

E temos o célebre "Molin Rouge" em que as velas ao vento são as pernas em movimento das bailarinas de can-can.

PS -  Sem pretender ser um letrudo e escrever como que velas ao vento, desculpem a confusão da explicação, que não será nenhuma novidade para a rapaziada da nossa idade.


Meu caro Fernando Ribeiro:

... "Ser português ... é dar porrada na mãe" ... e o resto que eu transcrevi, são palavras de parte de um interessante texto humorístico, de Guilherme Duarte, com o título genérico "O Fado de ser Português".

O estigma dar "porrada" na mãe ficou-nos por causa do D. Afonso Henriques ter batido a mãe na batalha de S. Mamede. É o que dizem e sempre se prestou para textos de humor.

O texto completo do "O Fado de ser Português" tem frases com piada e com alguma verdade.

Abraço e saúde da boa.

Hoje acordei com alguma inveja de ver os meus netos partir de regresso das férias em Portugal. Inveja de outros os poderem ver todos os dias.

O Camões chamava invejosos aos portugueses? Só poderia ser por nos aventurarmos à procura de novas rotas das especiarias com inveja dos muçulmanos, venezianos e genoveses o fizessem no Mediterrâneo. 
Ou antes a inveja era dos outros por não serem como o D. Sebastião e o Vasco da Gama?

Ou por sermos invejáveis? Ou até, dividindo bem as orações, a INVEJA final pode estar relacionado com outro canto. não sei por nunca ter sido bom a português.

Ah, também tenho inveja não poder respirar como deve ser....talvez por ter inveja de ver os outros fumar quando tinha 15 anos !!

Inveja em neerlandês é jaloezie (lê-se: iáluzi) que quer dizer ciúmes, e invejar é benijden (lê-se: beneida).

Saúde da boa (sem invejas)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23512: Notas de leitura (1473): Eduardo Lourenço (1923-2020): afinal, quem são os portugueses, e o que significa ser português? (José Belo, Suécia)

domingo, 16 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)


Capa do livro de Jules Roy, "La bataille de Dien Bien Phu", 
Paris, Le Livre de Poche, 1972, 538 pp. ( a 1ª edição é de 1963;
 um dos livros  que o Antoine Ben Oliel nunca leu 
mas por onde perpassa a sua sombra. Um dos maiores 
desastres militares da França colonial e dos seus bravos soldados 
da Legião Estrangeira. Juley Roy é um "pied-noir", 
nascido na Argélia em 1907. Morreu em 2000. Foi militar e resistente
na II Guerra Mundial. Deixou o exérito, em 1953,  em protesto 
contra a guerra da Indochina.

 
A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 

Parte II 

(Luís Graça) *

(Continuação)

Num outro dia, num dos nossos verões passados, apanhei a Rosemarie particularmente bem disposta, a cantarolar um dos fados da Amália, a sua musa inspiradora. Não reconheci de imediato nem a letra nem a música. 

C'est le fado de Paris.  − respondeu-me ela.

(...) O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até o Sena se queixa de pena
Que o Tejo não quis sair de Portugal.

O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até Saint-Germain-des-Prés
Já canta o fado em francês! (…)


Foi uma deixa para falarmos do bistrot do Antoine, que tinha nome português, “O Cantinho da Saudade”… lá na petite ville, a sudeste  de Paris, onde ambos viveram… Foi o seu primeiro trabalho, quando chegou a França em 1967: foi empregada de mesa e de balcão no bistrot que se tornou um local de encontro dos imigrantes portugueses da região, mas também de magrebinos, em especial de antigos combatentes da guerra de Argélia, os harkis… E a partir do momento em que começou a haver “fado ao vivo”, passou a ser também frequentado por alguns franceses, como os nossos anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos, que já eram conhecidos do Antoine, do tempo da Argélia.

Enquanto tomávamos café numa esplanada junto à praia, eu puxei a conversa para o Antoine… Queria saber como a Rosemarie conhecera o homem que a levou para França, “a salto”, em 1967,  e que iria mais tarde lançá-la na “vida artística”, como cantora de fado, e depois a dormir com ela… na cama.

É uma outra história, longa e algo rocambolesca, com muitos "claros e escuros", e alguns silêncios que eu tive de respeitar.

A Rosemarie já o conhecia de Chaves. “Vagamente”, garantiu-me ela. “Ainda antes de casar”…Já não podia precisar o ano, nem as circunstâncias, de resto “não era muito boa em datas”. Talvez nalgum baile ou nas festas da cidade. Alguém o terá apresentado à Rosemarie, na altura criada de servir, na cidade:

− Eu dava nas vistas… E ele tirou-me logo a 'fotografia'… Disse-mo dez anos mais tarde, quando me levou para França… Tinha vindo da tropa, usava o cabelo à escovinha, ainda falava um português avec accent… Não lhe achei muita piada, para mais numa terra de magalas que passavam a vida a mandar piropos parvos às raparigas, quando vinham à cidade…

A Rosemarie reparou, isso sim, na extensa cicatriz, com quatro ou cinco centímetros, que o Antoine ostentava no rosto, no maxilar direito, no enfiamento da orelha. Parecia exibi-la com orgulho, apesar do disfarce das patilhas. Vim a saber mais tarde que era a sua “medalha de guerra”, ganha com sangue na Indochina, em  março de 1954, logo no início da batalha de Dien Bien Phu.

O Antoine era de nacionalidade francesa, mas de origem portuguesa, por parte do pai. Este era flaviense e tinha integrado o corpo expedicionário português, o CEP, na I Grande Guerra, como 1º cabo ou sargento, a Rosemarie não sabia precisar o posto.

E por lá ficou, em França, o pai do Antoine, tendo-se tornado francês por casamento. Vivia na região da Île de France. Segundo percebi, foi um dos prisioneiros portugueses da batalha de La Lyz, em abril de 1918. No cativeiro contraiu a tuberculose e escapou, com sorte,  à pneumónica de 1918/19. 

Nunca mais regressou à Pátria, e fez um primeiro casamento, logo que foi libertado. Ficou com uma pequena pensão de guerra, mas cedo enviuvou, não tendo filhos. Até ao final dos anos 20 só se sabe que trabalhou como capataz ou encarregado numa grande quinta que fornecia produtos agrícolas e animais para os mercados abastecedores de Paris.

Foi lá que conheceu a segunda mulher, também francesa, mas de origem judia sefardita, com antepassados em Marrocos. Terão sido, muito provavelmente a avaliar pelo apelido, Ben Oliel, judeus expulsos de Portugal no tempo de Dom Manuel I.

A Rosemarie não sabia grandes pormenores sobre a “árvore genealógica” do Antoine, do lado da mãe, embora usasse o seu nom, o apelido de família. O seu companheiro era uma pessoa muito reservada, muito raramente falando do seu passado, e em especial do tempo da tropa e da guerra.

A Rosemarie não chegou a conhecer a família do Antoine, nem sequer a sua segunda mulher, que morrera onze antes de ela chegar a França. O pai morrera ainda mais cedo, em 1939, na véspera da II Guerra Mundial, não tendo por isso sofrido a vergonha, la honte, da derrota militar da França, cujo território ele estava convencido que era “intransponível” devido à mítica “linha Maginot”… Nem conheceu, felizmente para ele, a amargura da ocupação da sua querida França pelo exército nazi. Tinha quarenta e poucos anos, e deixou 4 filhos órfãos, dos quais três rapazes e uma rapariga.

Em junho de 1940, a família, em pânico, como milhões de outros franceses, fugiu para o sul, refugiando-se em Bordéus, onde sobreviveu, algumas semanas, com as suas escassas economias e parcos haveres.

Com a ajuda do cônsul português de Bordéus (de que a Rosemarie, imperdoavelmente, não sabia o nome, Aristides Sousa Mendes, acrescentei-lhe eu), a família Ben Oliel conseguiu obter um visto que lhe permitiu chegar a Vilar Formoso, sã e salva. O Antoine não tinha ainda 10 anos nessa época mas, ao que parece, terá ficado com recordações bem vivas dessa dramática viagem de comboio, de noite, e do alívio da chegada a Portugal, país de que ele irá gostar muito, até ao fim da vida.

Il aimait trop le Portugal! − jurava a Rosemarie.

A família é, entretanto, separada, a mãe fica com os filhos mais novos. O Antoine e outro irmão mais velho vão para um seminário ou orfanato.

−Tempos difíceis! – comentei eu. 

−Viveram da caridade. Tanto quanto sei, e pelo que o Antoine me contava, e que era muito pouco, a mãe, viúva, sem qualquer contacto com a família do marido, que era de Chaves, estava num lar de freiras, no Porto ou arredores, com o apoio discreto de uma organização judaica.

Com 15 anos, o Antoine, já rapagão, voltou a França, depois da Líberation, para ver em que pé estava o assunto da casa da família… A quinta ( e a casa onde viviam, com mais trabalhadores, franceses e estrangeiros) fora requisitada pelas autoridades militares alemãs, e havia notícias de que tinha sido  alvo de ações de sabotagem por parte da Resistência francesa ou bombardeada pelos Aliados.

Entretanto, o Antoine encantara-se por Chaves onde descobriu, com a ajuda dos padres, alguns parentes da família do pai, incluindo um tio, que era guarda fiscal, e alguns primos, que o ajudaram a ele bem como à mãe e aos irmãos. Ia lá passar férias enquanto esteve no seminário. 

Mas em 1944 terá sido expulso pelos padres por razões que a Rosemarie nunca soube. Desconfiava, isso sim,  que terida sido pelo seu comportamento truculento e até violento, enfim, pela sua maneira de ser e de falar, que “não ficava bem num futuro representante de Deus na terra”.

Fixou-se em Chaves, "deu em malandro" (sic). Já perto do final da guerra, meteu-se numa "troupe" que fazia contrabando fronteiriço, com um dos primos, filho do tio da Guarda Fiscal. Pequeno contrabando, como café e cigarros...

Mas,  logo em finais de 1946, o Antoine  voltou a Chaves e às atividades lucrativas do contrabando. Aprendeu a conhecer aquelas serras e o caminhos dos contrabandistas. Passados uns meses, teve que fugir para França quando um dos elementos do bando foi atingido, na Galiza, pela Guardia Civil. O tio aconselhou-o a ficar por lá uns tempos.

A família Ben Oliel conseguiu reaver a casa que tinha, a sudeste de Paris. Os miúdos voltaram. E por lá cresceram e casaram. A Rosamarie só conhecia os mais novos. O mais velho já tinha, entretanto, emigrado para Buenos Aires e por lá ficou, sem nunca ter regressado a França ou a Portugal. Nem sequer ter dado notícias.

Em França, a vida da família melhorou um pouco com o apoio da Sécurité Sociale, enquanto o país ia recuperando do pesadelo da guerra, da ocupação e da resistência.

Os “30 gloriosos”, o “milagre económico francês”, fizeram também esquecer os conflitos militares nos territoires d’ outre-mer em que a IV República estave mergulhada, a começar pela sangrenta guerra da Indochina e depois a da Argélia.

Sem paradeiro certo, vivendo de biscatagem, o Antoine não resistiu a uma campanha de recrutamento da Legião Estrangeira, fazendo por volta de 1950 um contrato de seis anos. Era menos uma boca a alimentar lá em casa. Por outro lado, tinha frequentes conflitos com a mãe e os irmãos mais novos.

A Rosemarie sabia pouco deste período obscuro da vida do Antoine e não conseguia sequer localizar no mapa a Indochine … e muito menos pronunciar Dien Bien Phu. Desculpava-se que a geografia também não era o seu forte. E quando chegou a França em 1967, no tempo do De Gaulle, já não se falava dessas guerras,

Por outro lado, dizia-me que ele tinha sido paraquedista, o que não correspondia à verdade. Os nossos anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos é que me deram informação adicional, mais detalhada e precisa, sobre o passado militar do nosso homem.

Nesse aspeto eles conheciam o Antoine, légionnaire, muito melhor do que a Rosemarie. E confirmaram-me que o Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia não aos paraquedistas mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para  Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. De resto, o Antoine não gostava de voar, tinham vertigens, pelo que nunca teria passado sequer nos testes para paraquedista.

Em finais de 1953 estava na Indochina,  para logo, passados três meses,  em 13 ou 14 de março de 1954  ser ferido gravemente por um estilhaço de obus que lhe desfigurou o rosto.  Teve ainda a sorte de poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses, em 7 de maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressariam do doloroso cativeiro.

−Escapou da morte quase certa, em Dien Bien Phu ou no cativeiro – comentaram os nossos anfitriões, em tom lacónico.

Um ano e tal  depois da convalescença ainda passou pela Algérie. Conseguiu prorrogar o seu contrato por mais uns tempos e ficou por Argel. Aí, sim, terá estado numa base aérea, numa unidade de apoio logístico aos paraquedistas, antes de completar os seis anos de contrato com a Legião Estrangeira.

A doença, e a subsequente morte da mãe, obrigou-o a apressar o regresso a casa, em 1956. E foi, talvez um ano depois, em 1957, tinha a Rosemarie vinte anos, que ele a  conheceu em Chaves.

Os nossos amigos também eram repatriés ou retornados (pieds-noirs, era a expressão injuriosa que se usava em França para designar a população europeia, ou de origem europeia,  que fora obrigada a deixar a Argélia, depois da independência). Professores num colé
gio privado, eram de origem judia, como muitas das profissões liberais a viver e a trabalhar naquela antiga colónia francesa do Magrebe, a “joia da coroa” do império colonial francês: médicos, farmacêuticos, advogados, notários,  professores, agricultires, empresários, etc. A maior parte, de resto, eram já nascidos na Argélia,  há várias gerações. 

Os nossos amigos foram viver para a região da Ilha de França,  logo em 1962, tendo vindo na leva dos cerca de 800 mil repatriés… Por volta de 1966 começaram a frequentar o bistrot do Antoine, de quem eram vizinhos, mas ele nunca ou raramente abria o jogo sobre os seus tempos de legionário. Gostava, isso sim, de falar da Argélia e de Portugal… mas nunca da Indochina. Eram as duas coisas que os aproximavam. De resto, não falavam de política. Nenhum deles gostava de De Gaulle, mas por razões diferentes, que eu também não quis esmiuçar.

O bistrot do Antoine, na petite ville de A…, no Val-de-Marne, era muito popular nesse tempo, sendo o centro da vida social dos imigrantes portugueses que chegavam a França mas também de alguns magrebinos nascidos em França ou com muitos anos de França, incluindo ex-combatentes da guerra da Argélia…

Antigos camaradas de armas do Antoine, que viviam na banlieue  de Paris, também apareciam de vez em quando para saluer les copains, beber um copo em memória dos “bons velhos tempos” e fazer uma jogatana de cartas, refugiando-se numa das “salas reservadas” do estabelecimento.

A Rosemarie tinha uma presença discreta mas assídua no bistrot do Antoine, substituindo-o, nas funções de gerência, sempre que ele se ausentava por mais de um dia. Em boa verdade, não gostava dos amigos do Antoine, do tempo da tropa e da guerra. Sempre os achou "más companhias" do seu patrão. E, quando ele não estava, "apalpalvam-lhe o rabo, os salauds, os sacanas".

A pouco e pouco o Antoine começou a ser conhecido como o “padrinho” dos portugueses da região e ninguém sabia ao certo desde quando e como é que ele começara a sua atividade de “passador”. Levava, no mínimo,  dez contos por cabeça, para atravessar a fronteira. Por vezes a crédito, mas sempre com juros. Começou a trazer muita gente do Norte, "do rio Minho ao Mondego"... 

Respeitavam-no, para não dizer que o temiam. Aos caloteiros não estava com meias medidas: das ameaças passava aos atos e, não raramente, “andava à porrada”. Muitos foram viver para o bidonville de Champigny, e ele procurava ajudá-los a arranjar emprego e a “tratar dos papéis”. Havia redes de recrutadores de mão de obra ilegal, para o bâtiment, os chantiers, a construção e obras públicas. Enfim, tudo isto custava dinheiro, pelo que alguns desgraçados passavam um ano a trabalhar para pagar as dívidas do “salto”… 

De estatura média mas com um “tronco de touro bravo”, era exímio no jogo de pés e cabeça. A cabeçada dele chegou a mandar alguns para o hospital. Não usava armas,  a não ser em “casos extremos”.

Foi sempre bem sucedido nas suas “viagens de passador”, sem percalços de maior. Conseguiu arranjar passaporte português, já que tinha dupla nacionalidade, obtida em finais de 50. Ao que se suspeita, mais do que se sabe, tinha alguns bons contactos, na PIDE,  na Guarda Fiscal, na GNR, na Guardia Civil e na Gendarmerie, o que facilitava as suas deslocações e a passagem da “carga” nas duas fronteiras.

(Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)

(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido  materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio,  como légionnaire

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor,  fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19032: Agenda cultural (649): Festival TODOS 2018: Lisboa, São Vicente, de 20 a 23 de setembro


Lisboa > São Vicente > Campo de Santa Clara > Oficinas Gerais de Fardamento do Exército (OGFE) > 20 de setembro de 2018, 19h00 > Início da 10ª edição do Festival Todos > Atuação do grupo de batucadeiras de Cabo-Verde "Ramedi Terra" (, que pertence à Associação de Mulheres Cabo-Verdianas na Diáspora em Portugal). Seguiu-se a abertura da exposição sobre as pessoas e a realidade do bairro de São Vicente, e o lançamento do livro TODOS (sinopse fotográfica das anteriores edições, de 2009 a 2017,), livro de distribuição gratuita. Houve depois um "cocktail de sabores do mundo", da Guiné-Bissau ao Bangladesh... Tudo no edifício da OGFE.

Foto: © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Festival TODOS 2018: 

"Criado em 2009, o TODOS-Caminhada de Culturas tem afirmado Lisboa como uma cidade empenhada no diálogo entre culturas, entre religiões e entre pessoas de diversas origens e gerações. O TODOS tem contribuído para a destruição de guetos territoriais associados à imigração, abrindo toda a cidade a todas as pessoas interessadas em nela viver e trabalhar."




Recortes com a devida vénia do sítio oficial do TODOS 

Programa de ontem:

  • 19h - 20h30 : Abertura da 10ª Edição do Festival nas Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento (Campo de Santa Clara) com Cocktail de sabores do mundo, inauguração da exposição de fotografia "São Vicente de Fora por dentro", actuação do grupo de batucadeiras de Cabo-Verde "Ramedi Terra" e lançamento do livro “TODOS”.

• 20h30 – "Vala Comum" (Teatro) de Andresa Soares na Escola Básica de Santa Clara - espectáculo pago (3€)

  • 21h00 – "Viagem Sentimental" (Dança Contemporânea) de Francisco Camacho na Casa dos Gessos do Museu Militar - espectáculo pago (3€)

• 22h00 – Orquestra Todos (Música) na Voz do Operário - Entrada livre

• 23h00 – Rita Só (DJ set) no DAMAS - Entrada livre

Fonte: Página do Facebook do TODOS


Nota do editor LG:

São 3 ou 4 dias que não perco, todos os anos, desde 2009. Vale a pena e recomendo este evento (que de  3 em 3 anos muda de cenário dentro da cidade de Lisboa: Martin Moniz / Intendente / Bem Formoso (de 2009 a 2011); Poço dos Negros / São Bento / Santa Catarina (de 2012 a 2014); Colina de Santana / Campo Mártires da Pátria (de 2014 a 2017).

 Para além da descoberta (e aprofundamento do conhecimento) das diferentes culturas e povos que vivem em Lisboa (, nas escolas do ensino básico da Grande Lisboa é possível encontrar hoje dezenas de diferentes etnias, da Guiné-Bissau ao Nepal, da China ao Brasil), o festival TODOS tem sido para mim (e para a Alice Carneiro) uma (re)descoberta da Lisboa, muitas vezes escondida (ou mesmo inacessível) aos olhos dos próprios lisboetas e dos seus visitantes.

Ontem, por exemplo, fomos aos eventos assinalados, acima,  a negrito.  Nunca tínhamos entrado, por exemplo,  na OGFE e muito menos na famosa Sala do Gesso, do Museu Militar... Em anos anteriores, por exemplo, na Colina de Santana, a Academia Militar abriu as suas portas aos participantes do TODOS. Diversos oficiais superiores das OGFE e do Museu Militar participaram, este ano,  na cerimónia de abertura do evento.

O festival proporciona fantásticas visitas guiadas pelos sítios onde decorre: este ano, em São Vicente. Ponto de encontro: jardim Botto Machado, no Campo de Santa Clara, junto à Feira da Ladra.
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P18984: Agenda cultural (648): lançamento do livro "Moçambique: guerra e descolonização, 1964-1975", de Manuel Bernardo, na biblioteca municipal de Faro, dia 18 de setembro de 2018, pelas 18h00

sábado, 29 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17629: O nosso livro de visitas (192): O meu pai, José Manuel Teixeira Rodrigues, esteve no Saltinho, na CCAÇ 2701, 1970/72. Está hoje reformado, na sua casa em Cerdal, Valença do Minho. Eu nasci e vivo em França, há 42 anos, escrevo mal o português. Mas gostaria de partilhar fotos do álbum do meu pai e saber mais sobre a história das nossas origens (Adolfo Manuel Teixeira Rodrigues)


Guiné > Zona leste > Saltinho >  Ponte do Saltinho... Militares da CCAÇ 12 que acabavam de chegar, em coluna logística, oriunda de Bambadinca... Presumo que a foto de seja do 3º ou 4º trimestre de 1969... Em primeiro plano, à esquerda, de costas, o Humberto Reis com 1º cabo, do seu 2º Gr Comb, o "Alfredo"... Mais à frente, à direita, também de costas, mas assinaldo com um círculo a vermelho, o nosso edditor, Luís Graça...Como se vê na foto, não havia na altura nem cavalos de frisa,. nem postos de sentinela, nem ninhos de metralhadora, nos topos da ponte...

A CCAÇ 12 fez segurança à coluna  que levou o pessoal da CCAª 2701, do Xime até Saltinho.


Foto: © Arlindo Teixeira Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Editada e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. Mensagem do nosso leitor Adolfo Manuel Teixeira Rodrigues, que vive em França e é filho de um camarada nosso, de Valença do Minho:

Data - 21/0772017


Senior Luis Graça,

Encontrei eu seu blogo por hasar, a porcura de informaçaos sobre a historia do Ultramar Portugues, que nao conheco, Tenho 42 anos, sou filho de immigrante portugues, narci e estao vivendo em França.

O meu pai, José Manuel TEIXEIRA Rodrigues, estive na Guinè em 70-72, na regiao do Saltinho, me recordo de ver este emblema, que vi no seu blogo, na nossa casa, em Portugal, (Cerdal, Valença do Minho 4930) :



O meu pai esta hoje na reforma em Portugal, e eu a muito anos que gostaria conhecer a historia das nossas origem, mas commo vocé pode ver, na sei muito bem escriver Portugues, pesso desculpa por as faltas, e em frança os livros sobre a Guinè, nao a grande coisa. Ja falei o meu pai do sei blogo, e com a autorisaçao de ele, temos muitas fotografias de esse tempo em casa, do Barco no porto de Lisboa as fotografias da Ponte do Saltinho e tembem do meu pai.

Cumprimentos
Adolfo Manuel TEIXEIRA Rodrigues


2. Comentário do nosso editor Luís Graça:


Obrigado, amigo, pelo seu contacto. Sendo filho de um camarada nosso, nosso filho é também.

Temos cerca de 3 dezenas de referências sobre a CCAÇ 2701, a companhia que julgamos ter sido a do seu pai. Temos alguns camaradas dessa companhia, ou que passaram pelo Saltinho, nesse período.

Pode dar ao seu pai estas referências:


Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72): vive hoje em Esposende;

Carmelino Cardoso, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2701/BCAÇ 2912 (Saltinho) e QG (Bissau, 1970/72);

Paulo Santiago (ex-Alf Mil At Inf do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72) (,vive em Águeda).

Há mais referências a camaradas desta companhia: por exemplo, o capitão Carlos Clemente, hoje coronel; o sold Tony Tavares,do 4º pelotão; o ex-alf Martins Julião, que chegou a comandar a companhia na ausência co capitão... O Martins Julião é hoje empresário em Oliveira de Azeméis.

Adolfo, teremos todo o gosto em publicar fotos do álbum do seu pai, e apresentá-lo ao resto dos camaradas e amigos que compõem a nossa Tabanca Grande. Estamos a caminho dos 750!... SE ele nõ tiver endereço de correio eletrónico, podemos usar o seu.

Louvamos o seu esforço em falar e escrever a língua dos seus antepassados e procurar saber mais sobre a história desta guerra e a ida do seu pai para a Guiné.

Não corrigimos, sequer, a sua mensagem. É publicada na íntegra, tal como a enviou. Infelizmente os nossos governos (os de Portugal e os da França) nunca deram o devido apoio ao ensino das línguas das suas comunidades migrantes. Há um milhão de portugueses e de descendentes de portugueses em França. Quantos falarão e escreverão corretamente o português ?

Esteja à vontade para nos volar em contactar. Também é uma forma de treinar o seu português,uma língua que tem 250 milhões de falantes em todo o mundo.

Muita saúde e felicidades. Um grande alfabravo (ABraço) para si e para o seu pai.

PS - Diga ao seu pai que eu ainda conheci a sua companhia, a CCAÇ 2701. Aliás, fomos nós, a "africana" CCAÇ 12 (Bambadinca, junho de 1969/março de 1971), a dois grupos de combate, quem, em maio de 1970, fez uma coluna logística, de Bambadinca ao Saltinho, escoltando os "periquitos" da CCAÇ 2701 e levando reabastecimentos até ao local de destino.

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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15748: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (42): As riquezas das matéria primas africanas e as fantasias criadas

1. Texto do Antº Rosinha:

[, foto à direita: emigrou para Angola nos anos 50, foi fur mil em 1961/62; saiu de Angola com a independência, emigrou para o Brasil e finalmente foi topógrafo da TECNIL, "cooperante", na Guiné-Bissau, em 1979/93; é um "ex-colon e retornado", como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem várias vidas para contar; é membro sénior da Tabanca Grande]



Data: 12 de fevereiro de 2016 às 15:47
Assunto: As riquezas das matéria primas Africanas e as fantasias criadas


Ou seja, falemos de coisas que toda a gente fala, mas que os responsáveis não  abordam  politicamente, menorizando um assunto imensamente importante e grave.

Toda a África daqueles anos em que nós aqui andámos por lá, era alvo  de enorme atenção mundial quanto às suas riquezas por explorar.

Falava-se no ouro da África do Sul, uma realidade e que muita gente acreditava que todos os países africanos só precisavam de "brancos" ou "amarelos" para explorar da mesma maneira que faziam os boeres e o explorador Rhodes.

No nosso caso, de portugueses das riquezas do azeitinho, do vinhinho, e da corticinha, queixávamo-nos da culpa do atrasado do Salazar, que  escondia as riquezas das colónias para ninguém cobiçar o que era nosso.

Tudo isto não é novidade para quase ninguém, mas estas coisas ouvidas em Angola antes e durante a guerra,  por independentistas tipo pessoas em que podemos enquadrar gente como  os futuros dirigentes do MPLA e PAIGC, servia para aliciar os nativos, e  principalmente quem vivia nas cidades, criados, serventes nas obras, vendedores de jornais e pipocas, estudantes nas escolas e liceus, e em geral todos os jovens citadinos.

Todos, menos os velhos sobas e régulos que desconfiavam das farturas, e sabemos que uma grande maioria pagou com a vida e a destruição e perseguição, principalmente em Angola com 3 movimentos inimigos.

Mas nós, muito  povo português da metrópole, caíamos também nessa cantilena, das riquezas e diamantes a pontapé, e até hoje passados 40 anos muito patinho ainda escorregou na casca da banana, alguns até foram ao parlamento explicar aos deputados para onde foi tanto dinheiro.

Na Guiné, essa miragem das riquezas «escondidas» também foi vendida e de que maneira. Estrangeiro que chegasse a Bissau, nos primeiros vários anos após a independência com partido único, PAIGC, verificava que  essa fantasia das riquezas escondidas, ainda era vendida entre os jovens e principalmente entre a Juventude Amílcar Cabral (JAC).

E, embora Amílcar Cabral chamasse à atenção,  em discursos, que não queria uma Guiné igual aos países que continuavam  a ser explorados  por neocolonialistas, não evitou que o PAIGC criasse macaquinhos na cabeça de toda a gente.

Então estava criada uma ideia na cabeça de toda a gente, em Bissau, que a Guiné estava deitada sobre um enorme lençol de petróleo, e um grande travesseiro de fosfatos, que os portugueses escondiam.

Como tal, nem era  preciso semear o arrozinho, a mancarrazinha e o cajuzinho!,,, Alguém viria para explorar aquelas riquezas e era a felicidade total.

E assistiu-se vários anos a uma Guiné absolutamente paralizada, sem produzir nada, à espera das ofertas de dadores e doadores que tudo o que enviavam era distribuído entre os "membru" do partido, ou exportado para os vizinhos, e o povo naquela fome.

Outra ideia criada pelo PAIGC, e que  todas as ex-colónias alimentam, até os brasileiros, era que os portugueses, atrasados, não deram educação e ensino, por isso "estamos atrasados".

E os dadores e doadores vai  de recuperar o atraso dos portugueses,  a fazer com bolsas de estudo doutores e engenheiros como uma linha de montagem, e não havia mais  jovens  que quisesse permanecer na sua tabanca original, nem para criar vaca ou cultivar arroz.

Ora, como até agora não apareceram as tais riquezas que Salazar «escondeu»,  e é aí que eu quero chegar, podemos hoje, 40 anos após a independência, contraditoriamente, podemos confirmar que hoje os guineenses são dos povos menos pobres da toda a África e precisamente por essas riquezas continuarem escondidas.

Mais pobres que a Guiné são os Estados petrolíficos e diamantinos, como Angola, os Congos , Nigéria, Serra Leoa e muitos  outros, em que têm enormes cidades  com milhões de jovens a vaguear pelas ruas, sem qualquer perspectiva de vida, quer na agricultura, que ninguém produz porque há dinheiro para importar, nem na construção e indústria porque há dinheiro para pagar a portugueses e chineses e franceses e brasileiros fazerem, nem nas escolas porque não adianta estudar porque vêm engenheiros e doutores  europeus, chineses e  americanos  e ocupam os bons lugares de trabalho.

Um caso paradigmático quanto às riquezas petrolíferas é São Tomé, que são duas ilhas num mar de petróleo. E fantasiando riquezas mirabolantes, abandonaram aquelas maravilhosas e modelares fazendas de cacau do "colon" explorador, e agora estão esperando que um branco qualquer venha restaurar a exploração cacaueira, já passaram 40 anos.

Todos os países europeu coloniais sabiam das riquezas que havia naquelas colónias, e a melhor e mais económica e  "humana" maneira  de explorar essas riquezas, era a independência.

Mas,  exceptuando nós portugueses e os brancos do apartheid sul-africanos e rodesianos é que de uma maneira ou outra lutaram contra a demagogia de libertadores irresponsáveis daqueles "ventos da história", que ajudados pelo cinismo de neocolonialistas, iludiram com fantasias mirabolantes milhões de jovens que hoje (os pretos velhos nunca acreditaram) estão completamente desorientados.

Muitos desses jovens estão há vários anos  junto ao funil da mancha, outros no arame farpado de Ceuta, outros na Tunísia a olhar para Lampedusa. Estão a perguntar de quem é a responsabilidade sobre o desaparecimento daquelas riquezas, porque a eles não calhou nada.

Sabemos que África tem regiões com muitas riquezas naturais, mas sabemos que há outras tão pobres que nem a água das chuvas é regular. E podem nem ser essas as que vivem pior, Cabo Verde é um exemplo. Mas Cabo Verde é um caso africano à parte, não tem as mesmas contradições  da maioria dos outros países. Para os cabo-verdianos, o que conta são as únicas riquezas que têm: O seu tchon e as pessoas.

Nós,  portugueses, como os mais antigos colonizadores em África, bons ou maus colonizadores,  (não há colonizadores bons, mas dizem alguns guineenses que os franceses colonizam melhor que os portugueses),  temos obrigação, através dos que andámos na Guerra do Ultramar, escrever na história da África e da Europa que lutámos enquanto pudemos contra o caos daquelas descolonizações, que de terras onde não havia fome, hoje há fome, guerra, diamantes, petróleo, abandono e invasões indiscriminadas, até de religiões estranhas vindas de todas as latitudes, e não sabemos onde as coisas vão parar.

E uma das causas de muitos problemas africanos, são mesmo as riquezas «escondidas». A Europa, como vizinha de África,  e com algum sentimento de culpa, vai (está) a sentir na pele o que aí vem.

Cumprimentos

 Antº Rosinha



Suécia > s/l > s/d > Visita de uma delegação de um país africano... Segundo indicação do Cherno Baldé,  pelas vestes e traços fisionómicos, seriam representantes do povo massai, seminómadas; são menos de um milhão, e vivem no Quénia e no norte da Tanzânia.

Foto do arquivo de José Belo (sem indicação da fonte).
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de janeiro de 2016  > Guiné 63/74 - P15623: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (41): o que foi mais devastador para o PAIGC foi precisamente a campanha psicológica spinolista por uma "Guiné Melhor"


domingo, 6 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15451: Libertando-me (Tony Borié) (46): O Bairro de Ironbound, Newark, N.J. - USA

Quadragésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




“We Speak English”

Cada País tem o seu idioma oficial, todavia em alguns, praticam-se diversos, mas, por vezes, pelo menos por aqui, tirando a normal conversação entre pessoas que se querem compreender, pelo menos nós emigrantes, ao ouvir esta frase, vinda da boca de algumas personagens em certas ocasiões, mostra um pouco de, “arrogância”, “xenofobismo”, “querer ser mais”, “mostrar que a pessoa com quem se fala, não tem suficiente educação escolar”, ou única e simplesmente, “querer mostrar-se”.

Nas novas gerações, em qualquer País, é normal falar inglês e, claro, sem o perceberem, estão a esquecer o idioma da sua Pátria, todavia, não é o caso dos emigrantes que viveram ou ainda vivem no Bairro do Ironbound, na histórica cidade de Newark, do lado de lá do rio Hudson, no estado de Nova Jersey.

Muito antiga, fundada no ano de 1666, a cidade de Newark é a cidade com mais habitantes no estado de Nova Jersey e, dada a sua localização, é uma das principais cidades da região metropolitana de Nova Iorque, além de centro comercial, industrial e financeiro, que é a Baía do Rio Passaic que abriga um dos maiores portos de mar, inaugurado no ano de 1831, onde chegava o carvão das minas do estado de Pensylvania para sustentar as unidades fabris da região. Também aqui está localizado o segundo principal aeroporto que é o conhecido mundialmente, o Aeroporto Internacional de Newark, que movimenta quase 30 milhões de passageiros anualmente.

Mas hoje companheiros, não estamos aqui para falar das potencialidades da cidade, mas sim de nós, portugueses, emigrantes do século passado, onde quase todas as conversações entre nós era, trabalho, trabalho e quase só trabalho, onde a palavra “yes”, (sim), ou “overtime”, que neste caso, quer dizer mais ou menos “horas extrordinárias”, era sempre uma das primeiras que se aprendia.

Portanto, cá vai.

Existe por aqui o tal bairro operário chamado Ironbound, mais conhecido pelo bairro português, no qual existe grande concentração de portugueses, onde a principal rua é a Ferry Street, cujo segundo nome é “Portugal Avenue”, ou seja Avenida de Portugal.


À medida que os emigrantes Portugueses foram chegando à cidade, atraídos pela concentração de indústria que existia na altura, principalmente no tal bairro do Ironbound, que quer dizer mais ou menos “rodeado de ferro”, com intensa actividade comercial e industrial, cercado de linhas férreas, era um lugar muito atractivo, para quem tinha desejos de trabalhar, onde estes homens e mulheres, de descendência portuguesa, com a sua força física e dedicação, por vezes destruindo a sua própria saúde, compensavam a falta de educação escolar.

As raízes portuguesas na área são profundas, com os primeiros emigrantes, talvez chegados na década de 1910, mas o grande afluxo de portugueses veio na década de sessenta e setenta do século passado, porque hoje, a emigração de Portugal é praticamente inexistente, mas o idioma português mantém-se estável e, se voltássemos àquelas décadas do século passado, podíamos ver e ouvir, em qualquer rua do bairro do Ironbound, este cenário:
“...a Gracinda, casada com o Manuel Murtosa, que é encarregado de uma “gang” de construção de valas para esgoto, homem robusto e respeitado, até tem “pic-up” da companhia, onde todos os dias, por volta das quatro ou cinco horas da manhã, pois o trabalho é longe, lá para os lados de Riverville, transporta os outros cinco companheiros do seu grupo. Hoje é domingo, eles, os homens, estão para a “Ferry Street”, foram ouvir o relato e beber uns copos, ela, a Gracinda, neste momento de domingo à tarde, está sentada nas escadas de entrada do edifício onde residem, num compartimento de cave, que repartem com a Ermelinda e o João de Verdemilho, anda sempre vestida de preto, gosta desta cor, às vezes, quando vai à missa, até põe qualquer coisa de outra cor, especialmente uma blusa branca, que uma vizinha lhe trouxe da “fábrica da costura”, onde trabalha, está sol, começou por pentear-se, desfez, tornando a fazer as tranças, deu-lhe duas voltas, fazendo um “carrapito”, os dedos das suas mãos, já estão um pouco tortos, é dos calos, tem que falar com a Nazaré, que trabalha na “fábrica das peles”, para lhe trazer umas luvas, pois ela, trabalha na “fábrica dos colchões”, ganha mais que as outras, compete com os homens, trabalha à peça, monta o esqueleto dos colchões, encaixa as molas, “tudo a pulso”, ali, em frente ao “boss”, que é o seu chefe, mas é “cheap”, pois não lhe dá, lá muito “overtime”.
Ali sentada, entretem-se a falar com a Ermelinda, está um pouco enjoada, pois comeu uns chocolates que a Alzira lhe trouxe, aquela das “ilhas”, que trabalha na “fábrica dos chocolates”, parece que lhe “caíram” mal, vai remendando umas meias do seu Manuel, até nem precisava, pois tem mais três pares, que lhe trouxe a Manuela, aquela rapariga alta, que tem cara de homem, pois dizem que corta o bigode, que trabalha na “fábrica das meias”, mas está a guardá-las para levar para Portugal, quando lá for, por altura das vindimas, pois a sua casa, que ela diz a todos que é uma pequena “mansão”, lá em Portugal, precisa de ser aberta e arejada e, talvez necessite de pintura, pois à beira do mar, o vento e a chuva, às vezes traz sal”.

E continuando, diz: Porra, Caral.., que já me espetei na agulha, Santíssima Nossa Senhora de Fátima me perdoe que hoje é “Sunday”, (Domingo), e estou a dizer asneiras, já me esquecia, lembra-me por favor, o meu Manuel tem que chamar o Eurico, aquele da Agência, que fala muito bem inglês, para ir com ele terça-feira ao aeroporto, para “grab” (agarrar) o José Maricas, que foi a Portugal, creio que lhe morreu um irmão, pois ele não sabe o caminho e, já agora, tu sabes se a Filomena, aquela solteirona, que anda “in love” (apaixonada) com aquele “bonitinho”, que anda a estudar, que trabalha em “part-time” (meio tempo) na farmácia, ainda trabalha na fábrica da “meat” (carne), em Jersey City, queria ver se ela ”bring” (trazer) umas chouriças italianas, o meu Manuel “like” (gosta muito) fod.-.., caral.. que já me espetei outra vez, olha, precisamos de uma panela maior para cozinhar as batatas, couves e a carne de porco salgada, tu sabes, caldo e conduto ao mesmo tempo, para todos nós, vamos falar com a Isaura, aquela que trabalha na “fábrica das cafeteiras”, para ver se nos arranja uma, das grandes, o meu Manuel já tem quase cinquenta garrafões vazios, daquele vinho da Califórnia “Paisano”, que parece português, para “send” (mandar) para Portugal, quando houver lugar no Contendor da agência do Eurico, que sai do porto de Newark, pelo menos quatro vezes ao ano, tu sabes que o Orlando da mercearia, na Ferry Street, já não põe as coisas em “vegas” (cartuchos) de papel, que eram tão jeitosas, eu até andava a guardá-las para levar para Portugal, agora usa “vegas” de plástico, aquela merda rompe-se toda.

Voltando aos dias de hoje, esta linguagem era corrente e comum, as ditas “asneiras” eram normais, o bairro do Ironbound é um bairro onde o idioma inglês é pouco ouvido, sendo superado pelo idioma português, com palavras em inglês pelo meio, ou mesmo espanhol, tornando-se num bairro famoso, chegando a ser considerado uma das maiores concentrações de portugueses, fora de Portugal, aqui existia tudo o necessário para se poder viver, falava-se, e ainda se fala em alguns lugares, português com sotaque do Minho ao Algarve, com algumas palavras de inglês pelo meio, nos restaurantes, bares, casas de mercearia, alfaiatarias, sapatarias, peixarias, galinheiros, padarias, lojas de fruta, farmácias, lojas de ferramentas, consultórios de doutores, dentistas ou advogados, hospital local e agências de viajem. Construiu-se uma igreja, ao domingo havia e continua a haver, missa em português, oficinas mecânicas e venda de carros e, muito mais, em algumas ruas, em alguns estabelecimentos, onde só viviam portugueses havia letreiros, dizendo: “WE SPEACK ENGLISH”.

Pois às vezes, também por lá passava uma pessoa de origem americana.

Tony Borie, Dezembro de 2015.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15422: Libertando-me (Tony Borié) (45): Antes éramos cowboys

domingo, 29 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14414: Libertando-me (Tony Borié) (10): ...E mais os outros todos

Décimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




1. Comentário de António Graça de Abreu ao poste P14283:

Há algum tempo, o nosso companheiro António Graça Abreu, que também andou lá por Mansoa, comentando amavelmente um poste nosso, que o nosso “comandante” Luís salientou, dizia entre outras palavras, “Quanto ao Museu Dali de S. Petersburgo, na Florida, tive a sorte, e um desbragado prazer de o visitar, há menos de um ano, em Março de 2014. Aluguei um carro em Miami, viajei pela Florida durante seis dias (Everglades, crocodilos, astronautas, Cape Canaveral, Ferraris aos montes), a descoberta do universo, a ostentação dos ricos, made in America, o equilibrio dos pobres, made in Mexico. E mais os outros todos. America, fascínios do mundo”.

O António, companheiro com educação superior, pois foi oficial enquanto militar, segundo sabemos, escreveu alguns livros, viaja, tem poder de observação acima do normal, e nós, sentindo-nos honrados com o seu amável comentário, dizemos que ele fez um “retrato” quase fiel do estado onde eu vivo, que é a Florida, que tem um clima sub-tropical, onde a principal fonte de receita é o turismo. O apelido do estado é "Sunshine State", que quer dizer mais ou menos, estado, ou neste caso, "local com luz do sol”, é conhecido mundialmente pelas suas diversas atrações, que trazem anualmente mais de 60 milhões de turistas, vindos de outros estados e de outros países, normalmente, em férias, passeando, e claro, onde muitos milhares de pessoas têm residência, como segunda habitação, que na verdade, vêm passar temporadas por aqui, não se sabendo qual o nível de vida que levam em outras paragens, mas por aqui, é verdade, viajam nos tais “ferraris aos montes”, mas de todas as suas palavras salientamos aquela frase em que ele muito bem diz, “o equilibrio dos pobres, made in México”.

Tal como o nosso presidente Obama diz, “a discriminação está longe de acabar”, tem havido progressos, mas continua por aí, ela existe, embora hoje seja muito menor do que no passado, as novas gerações estão a ser educadas de maneira diferente, mas ninguém pode fechar os olhos, ela ainda anda por aí. Aqui, mesmo na cidade onde vivemos, pois assistimos à evolução dos empreendimentos que fizeram desta aldeia uma cidade, havia trabalhos onde era preciso sujar as mãos, estavam lá em baixo no “buraco” dois ou três emigrantes, não importava que fossem oriundos do México ou de outro qualquer país, e cá em cima estavam cinco ou seis pessoas, que podiam ser inspectores, encarregados ou representantes do sindicato, às vezes conversando.

Mas os emigrantes, principalmente oriundos da América do Sul, também se “colocam a jeito”, procuram isso, pois dada a sua situação, querem receber em “cash”, em “el contado”, não se importando de receber menos, e claro, alguns empreiteiros, ambiciosos e menos escrupolosos, tiram vantagem dessa situação, mas de uma maneira geral, o emigrante, seja pela cor, pela língua que fala, pois tem sotaque na voz, é sempre olhado de uma maneira diferente, por aquele que se diz “Americano”, embora o seu bisavô ou pai do seu bisavô, tenha vindo da Europa ou do Oriente.

O pensamento do emigrante em geral, pelo menos aquele que é oriundo da América do Sul, está sempre no seu País, vem aqui por algum tempo, por épocas, levando todos os seus ganhos consigo, de regresso ao seu país, onde em muitas situações, continua a sua família. Aqui na Florida, já se vai notando pouco, mas na California, pelo menos na área de Los Angeles, os emigrantes oriundos da América do Sul vivem na cidade e arrabaldes, mas é outro mundo, é o “mundo deles”.

Um dia, viajando na companhia de nossa esposa e companheira, da cidade de Orlando, aqui da Florida, para Los Angeles, ao fim de algumas horas, vendo filmes, lendo por uma dezena de vezes o nosso roteiro, vendo pela janela do avião lá ao fundo uma paisagem seca de planícies e algumas pequenas montanhas, conversávamos com a pessoa que ia ao nosso lado esquerdo, que parecia pessoa de negócios, pois ia lendo e fazendo contas no computador, e nos questionou porque é que íamos para Los Angeles, deixando um estado tão agradável como o da Florida, pois em Los Angeles parte da população é de raça “Hispânica”, onde nós, compreendendo a “maldade” da pergunta, logo lhe respondemos que era só para ver do ar o cruzamento das auto-estradas, que nesta cidade chegam a ter seis andares de estradas, que seguem em diferentes direcções.


Quanto a nós entendemos perfeitamente que lá vivam muitos “Hispânicos”, que falem castelhano, pois a cidade de Los Angeles, a quem carinhosamente chamam pelas iniciais “LA”, é a segunda cidade mais populosa dos Estados Unidos, estende-se por 1300 quilómetros quadrados no sul da Califórnia, está classificada como a 13.ª área metropolitana do mundo, foi fundada em 1781, em nome da “Coroa de Espanha”, o seu nome inicial era muito grande, parecido com aqueles nomes de pessoas nobres, que em pequenos aprendemos na história de Portugal, pois chamava-se, “El Pueblo de Nuestra Señora la Reina de los Angeles del Rio de Porciúncula”, tornando-se parte do México em 1821 após a sua independência da Espanha, depois houve a Guerra Mexicano-Americana, e Los Angeles e o resto da Califórnia foram adquiridos como parte do “Tratado de Guadalupe Hidalgo”, tornando-se parte dos Estados Unidos.

O nosso roteiro era sair da cidade e ir na direcção ao norte, pela estrada número 1, que segue ao longo do Oceano Pacífico até ao estado de Oregon, onde vimos muitas quintas, com os tais “Hispânicos”, apanhando vegetais e fruta. Para isso, ao sair do aeroporto, tomámos um autocarro que nos levaria aos balcões das companhias de “Carros de Aluguer”, que sempre cheios, com uma fila de pessoas esperando, uma simpática pessoa, com uma camisa com o emblema de determinada companhia de carros de aluguer, ouvindo-nos falar em português, nos falou em língua castelhana, questionando-nos, mais ou menos com estas palavras, “por que estão nesta linha de “Gringos”, subam aqueles degraus, e logo ali alguém vos providencia o arrendamento de um veículo, e lá, falam castelhano ou portunhol e, é mais barato”. Na verdade existe em Los Angeles, nas periferias da cidade, “Los Barrios” onde habitam os “Chicanos”, onde todo o comércio, assim como o estilo de vida, é igual, como qualquer aldeia, de qualquer país da América do Sul, que são pessoas que emigraram e não só, desse continente, principalmente do país vizinho México e, “os outros”, os tais Americanos, que embora habitem na cidade, não falam o idioma castelhano, que na sua linguagem são os “Gringos”.

Não nos queremos alongar muito, pois isto era assunto para muitos mais postes, mas quase todo o trabalho manual na agricultura, tanto aqui, no estado da Florida, como em outros estados do sul até ao estado da California, é feito por essas sofredoras pessoas, que se sujeitam a receber menos, a trabalhos sujos e cansativos, vivem em muito más condições, mas sempre é melhor que nos seus países de origem, onde não existem muitos meios de sobrevivência.
Para finalizar, dizemos o que vai na mente de quase todos nós, para fazerem uma ideia da coragem dessas pessoas, um dia atravessámos a fronteira para a cidade de Tijuana, no México, para lá é livre, é só atravessar o portão, para cá é impossível passar, só com documentos e autorização para trabalhar, por isso, quando colocamos alguma fruta ou vegetais na nossa mesa de jantar, o nosso reconhecimento é muito grande para com essas corajosas e sofredoras pessoas.

Agora sim, vou terminar, pois está na hora ir fazer uma salada com morangos, que hoje comprei na feira, nos arrabaldes da cidade de St. Agustine, morangos frescos, cultivados aqui na Florida e, apanhados e vendidos por uma família “Hispânica”, que me pediu dois dólares por um cesto cheio, dizendo, “são dois pésitos”.

Tony Borie, Abril de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14397: Libertando-me (Tony Borié) (9): Este fui eu

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14202: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (36): Fazendo votos para que o tchon Manjaco, o tchon Fula, o tchon Pepel e o tchon do Largo São Domingos se entendam sempre como nestes últimos 40 anos.



Lisboa, Festival Todos - Caminhada de Culturas, 11 de Setembro de 2011... Largo de São Domingos > Monumento "Lisboa, cidade da tolerância", lema de Lisboa para o mundo, escrito em 34 línguas... Memorial, inaugurado em 2008, às vítimas judaicas do massacre de Lisboa de 19 de Abril de 1506... O Largo de São Domingos é, na baixa lisboeta,  um dos locais de encontro preferidos de muitos dos nossos antigos camaradas guineenses (fulas, manjacos, papeis, mandingas...) que se fixaram em Portugal, depois da independência da Guiné-Bissau

Foto e legenda: © Luís Graça / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2011). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do nosso "mais velho" Antº Rosinha [ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93, ex-colon e retornado, como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem vidas para contar ...]:


Data: 18 de janeiro de 2015 às 18:59

Assunto: Colonizações, Descolonizações e Emigrações-Os muçulmanos do General De Gaulle e os do General Spínola)


Como espero que não melindre demais e dentro de certa "liberdade de expressão", como agora está na moda este termo, publica se entenderes, Luis Graça,  e cumprimentos para todos.

Luis Graça,  podes considerar impróprio, mas oportuno penso que é,  este assunto dentro de uma "guerra colonial", que é daquilo que de certa maneira  se trata hoje em plena Europa ex- colonial, com aquelas confusões francesas.

Não sei se é verdade ou mentira, mas quando foi da independência de Argélia, falava-se em Luanda por entre a censura de Salazar, que o gen De Gaulle teria dito, naquela euforia dos argelinos, que "ainda vão sentir muito a nossa falta".

Mas, verdade ou mentira De Gaulle ter dito tal coisa,  foram milhões de argelinos que não passaram sem aquela vivência e tranquilidade francesa e refugiaram-se lá [, na França].

E naquela altura, quem vivia como eu, futuro retornado, em Luanda,  sabíamos que ia ser mais ou menos o que se passou e passa, só que não sabíamos que ia ser tão grave para os europeus e africanos. (Na Argélia, foram genocídios tribais sem conta,)

E agora vamos, embora numa dimensão pequeníssima, à emigração dos nossos  "spinolistas"  guineenses.

Então é assim:

Os Guineenses em Lisboa fizeram do  Largo de São Domingos um simpático ponto de encontro e, como a maioria são ou eram inicialmente fulas de tendência muçulmana, superam em muito as  meia dúzia de idosas cristãs que frequentam aquela velha igreja desse Largo de São Domingos.

Penso que aquela igreja passava a ter mais frequência de muçulmanos como mesquita do que hoje com meia dúzia de idosas cristãs. E quem discordava de aquela igreja virar mesquita se os muçulmanos não lançassem a moda dos véus e burkas das bajudas?

E quem levava a mal, se os muçulmanos não proibissem as bajudas de entrar nas marchas de Santo António de Lisboa em Junho?

Também ninguém condenava coisas desses africanos, nossos amigos, e alguns antigos companheiros de tropa, se não trouxessem hábitos normais na terra deles, mas muito estranhos em Lisboa, tais como a excisão feminina.

E, desde que os muçulmanos de Lisboa condenassem ou pelo menos não adoptassem burkas nas mulheres e excisões nas bajudas, e não proibissem as esposas se estas quisessem  entrar nas marchas de Santo António,  talvez  muitos  portugueses e guineenses lisboetas que não são ateus,  se entendessem religiosamente.

Sem dúvida que a Europa tem que pregar aquele ditado que diz que "Em Roma sê Romano". Mas a Europa, que não considera os íberos europeus de corpo inteiro, dá muitos tiros nos pés, por tradição.

E um  dos piores tiros que deu nos pés, depois das 3 Grandes Guerra perdidas, a 1ª a 2ª e a Guerra Fria, foi as independências (abandonos de milhões de povos africanos totalmente impreparados para se autogovernarem fora das tradições milenares em que viveram sempre).

E os Americanos, Russos e Suecos, com a «dignidade abolicionista»  da Guerra Fria,  tiveram muitas culpas na desgraça dos africanos que atravessam a nado o Mediterrâneo e invadem a Europa aos milhares onde se inserem muitos lobos (terroristas) no meio dos cordeiros.

Quem diria que um dia assistiríamos a um tipo de guerra tribal em plena Paris! Na Nigéria e no Niger já se passa coisa idêntica.

E como estamos no blogue da Guiné, fazemos votos que, como até aqui, que o Tchon Manjaco e o Tchon Fula e o Tchon do Largo São Domingos e o Tchon Pepel se entendam sempre como estes últimos 40 anos.

Antº Rosinha

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terça-feira, 30 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11885: Bom ou mau tempo na bolanha (22): O típico emigrante do século passado (Tony Borié)

Vigésimo segundo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Nós, que nascemos na Península Ibérica, portanto descendentes de fenícios, cartagineses, sarracenos da bretanha e talvez vikingues, éramos aventureiros, tão aventureiros que fomos para uma guerra a milhares de quilómetros das nossas vilas e aldeias, mas nem que essa experiência de guerra não servisse para mais nada, ajudou na vida de um futuro emigrante, pois nos anos sessenta e setenta do século passado, a vida de um emigrante, era uma vida de aventura, de alguma coragem, de sobrevivência e de uma força interior, um pouco fora do normal.
Era uma vida muito parecida com a que vivemos na guerra da então província da Guiné, só com a diferença de que não estávamos sujeitos aos tiros e às emboscadas.

O emigrante fazia de tudo, improvisava, nunca estava doente, se estivesse, dizia que não, se isso fosse pôr em causa o seu posto de trabalho. Se houvesse horas extraordinárias, trabalhava, um ou dois turnos seguidos, e não trabalhava três, porque era proibido, tudo isto, com o mínimo de alimentação. Não compreendia o idioma, mas por gestos e com alguns mínimos erros, fazia todo o tipo de trabalho, o importante era ver alguém fazer o trabalho antes, depois já ninguém o parava.

Contam-se dezenas de histórias de emigrantes, que na ânsia de trabalhar, e sem a mínima instrução, e perante uma possível oferta de emprego, diziam que sabiam de pintura, de mecânica, arranjar relógios, assentar tijolos, conduzir camiões e escavadoras, pilotar barcos e aviões, soldar, etc. Eram electricistas, cozinheiros, enfim, só não diziam que voavam, porque não tinham asas. Tudo isto, era na ânsia de trabalharem e ganharem dinheiro, não com a intenção de prejudicarem alguém, a não ser eles mesmos.

O emigrante, nos anos sessenta e setenta do século passado, que conseguia sair de Portugal e atravessar o Atlântico, era porque queria vencer na vida. Normalmente a sua falta de instrução escolar era compensada com a sua força física e moral. Nesses tempos, o emigrante, salvo raras excepções, era uma pessoa com o mínimo de escola, com alguma visão de prosperidade, espírito aventureiro, geralmente novo e com alguma saúde física e moral, desejoso de ter algo a que pudesse chamar seu.

Quando um emigrante abandonava o seu País, o seu lugarejo, deixava de ver as pessoas que lhe eram queridas e com quem tinha convivido, deixava de beber a água da sua fonte, deixava de ver a paisagem, que só com a ausência da mesma é que começava a notar, o maravilhoso que tinha deixado para trás. Era quase como quando chegámos à Guiné, quase tudo era diferente, mas falávamos a nossa língua e lá nos íamos compreendendo, mas num país estrangeiro era um pouco diferente, em princípio não compreendíamos a linguagem, nessa altura, começava a sangrar por dentro, ficava triste e chorava perante qualquer contacto com algo que lhe mostrasse a sua Pátria. A palavra saudade começava a ter um significado muito importante, nessa altura tinha que ser muito forte, moral e fisicamente.


Os primeiros anos eram terríveis, o idioma, os costumes, o clima e alguma discriminação, eram quase insuportáveis. Demorava alguns anos até tornar-se um natural habitante do País que escolhera para emigrar. Nesse período de tempo, se não tinha algum suporte humano, motivação interior e alguma sorte nos seus contactos, o emigrante não resistia e a sua maior alegria era arranjar dinheiro para comprar um bilhete de passagem para regressar definitivamente ao seu País.

Dada a sua pouca instrução escolar, tinha que se sujeitar aos trabalhos mais pesados e sujos, enfim, tinham que fazer aquilo que os naturais não queriam fazer. Se a fase dos três ou quatro anos passasse, iríamos ter um emigrante com algum sucesso. Os filhos iriam estudar, pois queriam dar-lhe aquilo que eles próprios não tiveram, geralmente construíam casa no seu País de origem, iriam ver essa casa nas férias, mas definitivamente nunca regressariam, pelo menos os que tivessem atravessado o Atlântico.

O combatente que despendeu dois anos na guerra do então Ultramar Português, teve menos dificuldade em tornar-se emigrante, as dificuldades então vividas em cenário de guerra, foram quase como um treino para a emigração, pois quando chegou a outro país, todas as dificuldades de adaptação se tornaram mais fáceis de resolver, já que vinha com um certo traquejo, vinha vivido, e se passasse um ou dois dias sem comer, pouca diferença lhe fazia. Qualquer trabalho lhe servia, logo que lhe pagassem, fazia, adaptava-se, era humilde, procurava sempre fazer sempre o seu melhor, a sua técnica por vezes, era a força física e as primeiras palavras que aprendia, eram para dizer: “sim, não tem problemas, eu faço”.

Tony Borie,
Julho de 2013
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11862: Bom ou mau tempo na bolanha (21): O medo na guerra (Toni Borié)

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11803: Meu pai, meu velho meu camarada (39): Amadeu Simões Picado, ilhavense, 1º cabo quarteleiro, da arma de engenharia, integrou o corpo expedicionário português, em França, na I Guerra Mundial (1917/18), e emigrou depois para os EUA onde trabalhou quase sempre como pescador... Só o conheci aos 9 anos, em 1946... (Jorge Picado)


França > I Guerra Mundial > Corpo expedicionário português > c. 1917/18 > Um grupo de militares camaradas de meu Pai, que é o 1.º da esquerda sentado.


França > I Guerra Mundial > Corpo expedicionário português > 1918 >  Outro grupo de camaradas, estariam alguns na foto de cima  (?). Foi enviada em IX/X/18. Três são de Ílhavo: o meu Pai, é o da extrema direita e os outros conterrâneos chamavam-se, João Pinto e Manuel Silva. O civil era um "Monsieur" Francês ("muito meu amigo", nas palavras de meu Pai) e o 4.º militar era do Porto.

 Fotos (e legendas): © Jorge Picado (2010). Todos os direitos reservados

1. Texto e fotos enviados pelo Jorge Picado, em 28 de Fevereiro de 2010.  Certamente por lapso, o poste foi editado  mas não chegou a ser publicado. As nossas desculpas ao autor e aos leitores.

Recorde-se que o nosso amigo e camarada Jorge Picado [, foto à esauerda,] foi cap mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72 [... aos 32 anos, pai de 4 filhos, engenheiro agrónomo, filho de Ílhavo, com muita honra, acrescenta ele].

Assunto: I Guerra Mundial

Amigo Luís Graça:


No P5899 (*) de ontem, sobre a Exposição Portugal nas Trincheiras – A I Guerra da República, que publicaste, terminas referindo-te a antepassados de camaradas da Tabanca Grande que possam ter participado dizendo: "Mas haverá mais casos…que poderão chegar ao conhecimento do blogue"...

O camarada José Marcelino Martins no seu comentário dá nota de 2 dos seus antepassados que tinham o posto de 2.º Sargento e que também participaram naquela guerra.

Ia para dar também finalmente, já que quando este assunto foi anteriormente abordado tinha escrito algo, dar conhecimento do meu caso, mas como queria enviar umas fotos já muito velhinhas que não sei se terão qualidade para serem reproduzidas, remeto-te o texto e as fotos para tua apreciação.

Um abraço e se não for antes até ao almoço na Ortigosa.

Jorge Picado


2. O meu Pai também fez parte do Corpo Expedicionário Português na I Guerra Mundial em França (**)

por Jorge Picado 


Tendo nascido no final do séc. XIX, mais precisamente em 22 de Junho de 1895, e tomado o nome de Amadeu Simões Picado, mas já sem o apelido de "Bravo", que afinal sempre mostrou ser, ficou apto para todo o serviço militar quando foi às sortes, já que era um rapagão e pescador saudável e a sua incorporação no Exército deu-se em plena Guerra.

Sendo ele pescador, naqueles tempos, nas chamadas "Artes de Pesca" de Sesimbra, não se esqueçam que os Ílhavos foram rumando para Sul, pelas costas de Portugal, e não só, já que no Tejo embrenharam-se até por ele dentro, mas como ia dizendo pelo litoral fora até aos Algarves, formando diversas "colónias piscatórias", sempre que assentavam arraiais naquelas em que a pesca se mostrava pródiga, como pescador, portanto, mas talvez por não ser embarcadiço, isto é, não andar nos navios de pesca do "alto mar" ou mercantes, não foi cumprir o serviço militar na Marinha, mas sim no Exército.

Não era um iletrado, pois tendo frequentado a escola primária até quinze dias antes dos exames da 4.ª classe, só não concluiu a escolaridade nessa data, face a um castigo injusto que um professor, que não era o da sua turma, lhe aplicou.

Com a sua rebeldia, ou ele não fosse herdeiro de antepassados com apelido "Bravo" que muitas vezes se sobrepunha ao próprio nome, saiu repentinamente da sala, tendo de atravessar a sala do professor da sua turma que como Director da Escola tentava preparar melhor os alunos do tal professor para os exames finais e abandonou o edifício, apesar dos protestos do "seu" professor que veio atrás dele, mas não o conseguiu deter.

Por este motivo já não voltou mais à escola, nem a casa dos seus Pais, pois sabia que a severidade da sua Mãe, contrastando com a bondade do Pai, como contava, se faria sentir no seu corpo e o obrigaria a voltar à escola e humilhar perante todos, coisa que ele não admitia, passando a viver desde aí com uns tios e acabando por não fazer o exame da 4.ª classe.

Com aquela idade já o seu voluntarismo e o seu forte sentimento de não se submeter nem pactuar com injustiças, traçaram o seu caminho.

Em lugar de seguir as pisadas do seu irmão mais velho que, completando a instrução, se tinha tornado Oficial Náutico, ele que era dos melhores alunos da turma, iniciou-se como auxiliar nas "Companhas de Pesca" da Costa Nova, ou para aqueles que não conhecem esta maravilhosa e antiga região, na chamada "Arte Grande" ou "Arte de Xávega", prosseguindo como pescador, para depois seguir com outros familiares para as tais "Artes" de Sesimbra, até ser incorporado na Arma de Engenharia, na especialidade, como ele dizia com muito orgulho, de "Pontoneiro", construtor de pontes militares, feitas naqueles tempos com barcaças amarradas de braço dado, sobre as quais se colocavam os estrados que serviam de passadiços.

Desculpem-me este alongamento na descrição e, já agora, um pouco mais da sua iniciação na vida militar, não só para dar a conhecer um pouco mais a têmpera de que ele era feito, mas também como uma pequena homenagem que lhe quero prestar.

Todos que me lêem, com excepção daqueles que por fatalidade se viram órfãos de Pai muito cedo, foram durante a sua infância educados por Pai e Mãe. Ora eu, não sendo órfão, fui apenas educado por minha Mãe, já que só conheci o meu progenitor quando tinha 9 anos, em 1946. Podem crer que invejava muito os meus colegas de brincadeira que tinham diariamente ou pelo menos ao fim duns meses, aqueles que andavam ao mar, os seus Pais em casa e eu tinha um Pai de fotografia em cima dum móvel da casa…

Emigrante nos USA, desde o início da década de 20 do séc. XX, já depois de ter regressado de França casado e com a primeira filha, em consequência da II Guerra Mundial, a estadia naquele País depois de me ter concebido e ver-me nascer, como quinto descendente, mas quarto filho vivo, prolongou-se por quase 9 anos, em lugar dos habituais 4.

Por esse motivo, só quando regressou definitivamente da sua diáspora, já então eu andava no ISA [, Instituto Superior de Agronomia, ] em Lisboa, é que comecei a saber mais da sua vida, já que ele possuía uma "memória de elefante" e recordava todos os pormenores desde a sua infância, o que para mim era um espanto.

Assim, sobre a parte militar, contava ele todo ufano:

Ao chegarmos ao quartel, estava um militar sentado a uma mesa e outro em pé por trás. Sabes, eu ainda não conhecia as patentes, pois só depois é que vim a saber quem eram, e nós,  os tais mancebos, em fila, íamos entrando um a um e esse sentado perguntava o nome, a terra e a data de nascimento… Só depois se entrava e o tal que estava em pé dizia a um ou outro, para este lado ou para aquele.

Ao chegar a minha vez, disse o nome, a terra e, já por malandrice como fazia sempre, a data verdadeira em que nasci, 22 de Junho de 1895.

Responde-me o tal militar sentado, que depois vim a saber ser sargento:
─ Seu burro, que nem a data de nascimento sabe.

Quase nem chegou a terminar a frase porque levou logo como resposta e com o meu vozeirão:
─ Seu burro é você. Sei muito bem a data do meu nascimento, só não tenho é culpa que o burro do individuo que escreveu o registo, por burrice ou estar bêbado tenha escrito um 2 em vez de dois 2.

Abro aqui um parênteses para explicar que o tal funcionário que naquela época fazia os registos em Ílhavo, gostava muito dos copos e escrevia muitas vezes o que queria e não o que as pessoas lhe ditavam, valendo-se do analfabetismo quase geral da população. Por esse motivo muitos houve que só na adolescência, quando precisaram de documentos, para irem por exemplo para o mar, é que vieram a saber que não eram detentores do nome que julgavam ter e pelo qual sempre foram tratados, mas sim de outro pelo qual nunca foram conhecidos.

Mas voltando à incorporação do mancebo Amadeu Picado:

O militar ficou muito vermelho e o outro que estava em pé e que depois soube que era Capitão, não o deixou falar e disse-me muito calmamente.
─ Ainda que haja erro no registo, a verdade é que oficialmente a sua data de nascimento é a 2 e não 22, pelo que deve responder e escrever sempre como tendo nascido a 2. Passe para este lado, que era o grupo onde estavam muito poucos, já que quase todos iam para o outro lado.

Sabes, o Capitão estava a separar aqueles que iriam ficar com ele, escolhendo os que tinham mais estudos e se mostravam mais espertalhaços.

Passou a ser "o meu Capitão", obrigou-me a ir a exame da 4.ª, mesmo sem frequentar as aulas, pois eu mesmo assim sabia mais do que os outros, passei depois a ser o seu impedido, tendo sempre o seu cavalo todo bem tratado, indo buscar o seu almoço a casa, o que me valeu namoriscar a criada e antes da mobilização, deu-me uma caderneta militar nova e limpa de todos os castigos, já que eu não era muito domável àquela disciplina militar.

Para tristeza dele só não conseguiu que, depois de me fazer cabo, eu me inscrevesse para a Escola de Sargentos, como ele queria. Mas eu sempre lhe disse que era como as gaivotas e preferia os perigos do mar do que ficar preso em terra.

Portanto,  o meu Pai embarcou para França como cabo e não sofreu propriamente as agruras da frente das batalhas, já que ficou como quarteleiro junto do Comando do "Corpo" (?) de Engenharia, logo sempre na linha da retaguarda, quase sempre aquartelados num daqueles Chateaux, sede duma enorme propriedade agrícola.

O proprietário, que aí vivia com a família, convivia e dava-se muito bem com as tropas Portuguesas e, como o meu Pai dizia, até nisso tinha tido sorte pois era tratado pelo francês com muita deferência, se bem que só mais tarde viesse a desconfiar qual o motivo para tal.

É que os donos daquelas propriedades tinham apenas uma filha, por sinal também em idade de casar e,  apercebendo-se das qualidades do portuguesito, como ele dizia, começaram a pôr o olho nele para tomar conta da empresa agrícola. Só que havia ficado cá,  nesta vila maruja, uma costureirinha que lhe tinha já "costurado" o coração e, com muita pena do francês, nada feito.

Como já disse, depois de regressar da França passados dois ou três anos casou-se e,  após o nascimento da primeira filha, emigrou legalmente para os USA, onde mourejou muito quase sempre como pescador, com excepção dos tempos da "Depressão", em que teve de apanhar todos os diversos tipos de trabalho em terra que conseguia.

Envio então as duas fotos

1 – Um grupo de militares camaradas de meu Pai, que é o 1.º da esquerda sentado, em França.

2 – Outro grupo de camaradas, estariam alguns na foto 1 (?), e enviada em IX/X/18.

Três são de Ílhavo: o meu Pai, é o da extrema direita e os outros conterrâneos chamavam-se, João Pinto e Manuel Silva. O civil era (um "Monsieur Francês muito meu amigo", nas palavras de meu Pai) e o 4.º militar era do Porto.

Recordando as histórias que o meu Pai contava, seria este Francês que ele escreveu Monsieur, o tal grande agricultor cuja quinta tinha um palacete e que queria casar a filha com o meu Pai?

Abraços

Jorge Picado
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