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sexta-feira, 28 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24511: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (4.ª estadia, 2023): crónicas de Rui Chamusco / ASTIL (excertos). Parte VI: 16, 17, 20, 22, 23, 24 e 25 de abril de 2023





Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2018 > Inauguração da Escola de São Francisco de Assis. Na última foto (que é da autoria do João Crisóstomo), vê-se o Rui Chamusco, de costas. à direita.

Fotos (e legenda): © Rui Chamusco (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação de alguns excertos das crónicas que o nosso amigo Rui Chamusco (76 anos, professor de educação musical reformado, do Agrupamento de Escolas de Ribamar, Lourinhã, natural de Malcata, concelho de Sabugal, cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste) nos mandou, na sequência da sua 4.ª viagem àquele país lusófono (março-maio de 2023).

Esteve lá já 4 vezes, em 2016, 2018, 2019 e agora em 2023, no àmbito da construção, organização e funcionamemento da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau, ;Manati, município de Liquiçá.  

É juntamente com a família luso-timorense Sobral um dos grandes pilares deste projeto de solidariedade com o povo timorense. É um exemplo inspirador, de amor à lusofonia e de solidariedade para com o povo de Timor Leste, que merece ser conhecido pelos mossos leitores. Além disso, há aspetos da história, da geografia e da cultura timorenses que nos são totalmente desconhecidos.

Para os leitores que se queiram associar a este projeto, aqui fica a conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (4ª estadia, 2023): 
crónicas de Rui Chamusco 
/ ASTIL (excertos)

Parte VI -  16, 17, 20, 22, 23, 24 e 25 de abril de 2023

(...) 16.04.2023, domingo - Respeito, mas não concordância

Há valores neste povo que eu admiro e venero, nomeadamente os valores relacionados com a cultura. Mas também há comportamentos, motivados por algum obscurantismo social e religioso, com os quais não estou de acordo e contesto.

Ontem o “ Coro São Francisco de Assis “,  de Ailok Laran,  foi animar a liturgia da missa vespertina na catedral de Dili. Porque de alguma forma também estou ligado a este grupo, pedi ao Eustáquio para irmos à catedral, dar o nosso apoio presencial.

Depois da atuação, pedi para se juntarem à frente desta igreja, e fazermos a foto de grupo. Eis senão quando, do outro lado, se vê alguma agitação. Era um elemento do côro, uma moça de doze anos, que entrou em crise de gritos, espasmos, desmaios, etc, etc... quando se recompunha refugiava-se na igreja.

Quis saber mais pormenores sobre a situação e, de imediato, me responderam: “a menina tem espírito mau no corpo. Tem diabo nela”. Fiquei pasmado com a resposta, e pedi para ir ter com ela. Sim, não estava normal.Mas depois de me dar conta de alguns sinais, reagi como um “ocidental”, e disse: “ Ela está em estado de fraqueza. Precisa de um copo de água com açucar, precisa de comer e de descansar”.

“O que eu fui dizer!"... A Adobe que estava a meu lado, atalhou-me logo a conversa, sussurrando-me ao ouvido: “Pai Rui. Eu também penso assim, mas não podemos dizer isso, porque aqui toda a gente pensa que é espírito”. 

Fiquei derrotado, completamente destroçado... Entretanto, chega um rapaz, vindo da procissão da Divina Misericórdia, que estava decorrendo rumo à catedral, faz três vezes o sinal da cruz na testa da miúda, e ela recupera os sentidos, levanta-se e vai de novo para a igreja, até que um irmão a veio buscar na sua mota. Perguntei depois por ela, como estava, e disseram-me que estava em casa, aqui bem perto de nós, a descansar, a dormir.

Não sei que vos diga, mas continuo a pensar que há muito a fazer no caminho do esclarecimento desta gente. Mesmo correndo o risco de ser imcompreendido pela maior parte dos que me rodeiam, prefiro ser coerente comigo mesmo e discordar da interpretação destes fenómenos.

E, para não ficar desmoralizado, voltamos a Ailok Laran, com a pick-up carregadinha: vinte e três passageiros. “Louvado sejas meu Senhor pela nossa irmã pick-up”...


17.04.2023, segunfa feira - Fome ou vontade de comer

A ideia que quase todos temos de países em vias de desenvolvimento é que a maioiria das pessoas passam fome. E passam... Os corpos franzinos que crianças, jovens, adultos e velhos apresentam provam que há carência alimentar, que a nutrição tendo como base o arroz não é de todo suficiente e muito menos sobejante para um desenvolvimento harmonioso da massa corpórea. Claro que também há gente gorda, por adn, por enfermidades ou por abusos alimentares. Mas essa não é a regra.

E à mesa, perante observações de comportamentos distintos (o malae tira uma ou duas colheres de arroz; o timorense “carrega” bem o prato), alguém comenta: “ para o timorense o que importa é haver comida. Se há só arroz, enche a barriga de arroz. O barriga (estômago) tem de ficar cheio, porque vazio dói. Se houver outra comida, enche a barriga dessa comida.”

Portanto não admira que, quando se vai às compras e se trazem novas iguarias para casa elas não durem muitos dias. Junta-se a fome com a vontade de comer. Mas talvez noutro contexto, noutros países, noutros continentes o comportamento seja outro, até por uma questão de aculturação. Saber comer, também se pode aprender, independentemente dos gostos de cada um. Bom apetite!...


20.04.2023, quinta feira Timor Leste – Dia de eclipse solar


A expetativa era grande. Há dias que se vem falando deste fenómeno, e tudo se prepara para o apreciar. Estrangeiros que chegam, escolas que fecham, hotéis e albergues que esgotam. Reina alguma ansiedade.

E não falhou. À hora indicada, lá começou a lua a interferir na luminosidade do sol, ficando cada vez mais escuro, mas sem nunca se ficar sem ver. Atingiu o ponto máximo por volta das 13.15h locais. Apetrechados dos óculos especiais, cada um ia mirando e comentando o que via.

Notou-se alguma deceção da parte dos comentadores. Pensavam que ia ficar tudo escuro, mas assim não aconteceu. Alguma excitação porém, quando alguém apontou para o céu e se viu brilhar a estrela da manhã.

Ouviram-se alguns foguetes e tiros e toques de metais. Questionado sobre o que se ouvia, o Eustáquio explicou:

 “ Em Timor, quando há estes fenómenos da natureza (eclipses, terramotos, etc) as pessoas pegam em coisas e fazem barulho que é para Deus saber que ainda a gente cá em baixo.” 

Mas até nisto já se nota alguma mudança. Já não é o que era.

Depois, já na fase decrescente, foi uma brincadeira pegada com o sol que, complacente connosco, se projetava e se deixava tocar como nós quiséssemos. Bem hajas Irmão Sol.


22.04.2023, sábado  - O negócio da “Ai”

“Ai” é uma palavra, um substantivo que, em tétum, quer dizer árvore, madeira, lenha e outros sinónimos.
 
Por todos os sítios onde passamos podemos encontrar nas bermas das estradas molhos de paus (4/5) empilhados, que esperam a toda a hora por compradores. Aqui pouca gente utiliza o gás para cozinhar. Primeiro porque é muito cara a garrafa deste produto; segundo porque têm medo das explosões. Por isso, recorrem a outros carburantes, com relevância para o mais acessível, a madeira. A cada molho chamam corda, porque os paus, de mais ou menos meio metro de compridos, vêm atados com um fio em cada ponta, e são vendidos ao consumidor por “uma quarta” (25 centimos).

Chegada a hora de preparar a refeição, é normal ver adultos e crianças com duas, três ou mais “cordas” nos braços a caminho das suas casas. Porque aqui, na casa do Eustáquio em Ailiok Laran, ´há um posto de venda ao público. “Negócio da mulher”, como ele diz. E ainda bem, digo eu. 

Porque a Aurora [ a esposa do Eustáquim inesperadamente falecida há dias..], apesar das suas limitações físicas, não é mulher de baixar os braços. Não pára. É um exemplo de dedicação. É uma “mulher de armas”, mesmo que estas armas sejam de madeira, sejam paus para a fogueira. “Ai”! “Ai”! “Ai”!...


23.04.2023, domingo - Tão longe e tão perto

A professora Cristina, sempre muito diligente em proporcionar encontros e conhecimentos, contactou-me no sentido de nos encontarmos no Timor Plaza, onde poderíamos almoçar em companhia de um casal amigo, a professora Aurora (professora no CAFA de Ainaro ) e o seu marido José Marques. Insistiu que haveria muito interesse em que nos conhecéssemos, porque partilhávamos ideais comuns.

Claro que respondi de imediato para concretizarmos este encontro que, como foi combinado, aconteceu hoje no Timor Plaza. Sem muitas palavras ainda, notou-se logo grande empatia se foi desenvolvendo ao longo de três horas de conversa. E, quem diria que, tão longe de Portugal, pudéssemos falar de amigos comuns de diversas localidades do nosso país. 

Estupefatos com as nossas encruzilhadas da vida, fomos desfilando por regiões, terras, pessoas, peripécias, ideais, projetos...uma grande ementa que nos alimentou o espírito, porque o corpo já tinha sido alimentado anteriormente.

Foi um uma sorte e um prazer ter encontrado este casal. Com certeza que muito mais teremos para contar e, ainda melhor, para fazer. Obrigado Professoa Cristina!


24.04.2023, segunda feira - Sunset-Inn / Timor Leste: Quem somos?

A convite dos amigos professora Cristina, professora Aurora e do seu marido José Marques, hoje fomos conhecer o PRO EMA (Empoderamento de Mulheres e Adolescentes que vivem em situação de vulnerabilidade social), uma organização sem fins lucrativos, que vale a pena conhecer. 

E, a melhor forma de o fazer foi irmos almoçar ao espaço que esta organização explora. Desde a entrada à saída, um acolhimento e uma simpatia excecional, só possível através de uma boa formação e preparação. Autênticas profissionais, com um serviço às mesas extraordinário, cheio de pormenores e delicadezas. É um sítio onde a gente se sente bem e onde se come sem ter fome. 

Sabemos que o preço dos menus é mais caro que noutros restaurantes(?) da zona, mas nem por isso damos por mal empregue o dinheiro que pagamos, porque é uma forma muito solidária de contribuirmos para o programa desta organização sem fins lucrativos, com tão nobre missão.

Qualquer dos menus escolhidos estavam excelentes na apresentação, nos sabores, na qualidade dos produtos. Aconselho todos os amigos que vistem ou residam em Dili a que não percam a oportunidade de visitar e frequentar este espaço solidário. Não irão ficar defraudados nem desiludidos. (...)
 
 
25.04.2023, terça feira - 25 de Abril SEMPRE!...

Para os que tivemos o privilégio de participarmos neste evento tão significativo para as nossas vidas (tinha eu 27 anos) em 25 de Abril de 1974, o dia de hoje é para celebrar e reviver. 

Por cincunstâncias da vida, desde 2017 que não tenho participado em eventos comemorativos do 25 de Abril. Mas não esqueço o slogan mais conhecido de sempre “ 25 DE ABRIL SEMPRE!...” que tem guiado os defensores dos ideais de Abril, entre os quais eu quero estar, e que por mais que custe aos delatores e inimigos desta “ revolução dos cravos”, tudo faremos para que a memória coletiva dos portugueses seja preservada. 

Durante bastantes anos, seguindo esta vontade de não deixarmos cair esta celebração, colaborei sempre no espetáculo organizado pelo Município de Sabugal, com o nome “Abril entre Amigos”. Sim, enquanto houver Grupos de amigos que lutem por isso, o 25 de Abril acontecerá cada ano que passa, sempre com alguma nostalgia de quem viveu os acontecimentos e não quer deixar que o espírito da revolução de Abril seja abafado ou extinto.

Nem tudo está bem, está certo. Mas o que seria e como estaríamos se o 25 de Abril não tivesse acontecido?

 (...)





Imagens retiradas de vídeo da
página do Facebook da Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste (ASTIL), com a devida vénia... 

 [Seleção / revisão e fixação de texto / negritos / subtítulos : LG]
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domingo, 23 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24245: In Memoriam (476): João B. Serra (1949 - 2023), historiador, professor, programador cultural, biógrafo do escritor e militar Manuel Ferreira(1917-1992) (que esteve com os pais de alguns de nós, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde, durante a II Guerra Mundial)



João B. Serra > s/l > s/d >  "Almoço dos primos"... Era primo do nosso camarada Manuel Resende pelo lado da esposa deste, a nossa amiga Isaura Serra Resende... Os primos Serra reuniam-se anualmente. O João B. Serra, nascido nas Caldas da Rainha em 22 de abril de 1949,  morreu no passado dia 19, de cancro, doença que lhe fora diagnosticada há 10 anos.



Caldas da Rainha > 9 de maio de 2019 > Última aula do Professor João B. Serra, aqui na foto com Jorge Sampaio (1939-2012).



Lisboa > Centro Cultural de Belém (CCB) > 16 de dezembro de 2017 > O João B. Serra discursando no encerramento das comemorações do centenário de Manuel Ferreira.


Fotos (e legendas): © Manuel Resende (2023). [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Faleceu passado dia 19, aos 73 anos, o historiador, programador cultural e professor do ensino superior João Bonifácio Serra, natural das Caldas da Rainha. Tem no nosso blogue cerca de uma dezena de referências.

O funeral realizou-se no sábado, dia 22, no Centro Funerário de Cascais, em Alcabideche, onde o corpo foi cremado. justamente no dia em que completaria 74 anos. (*)

A notícia foi-nos dada, logo na quarta feira,  pelo João Rodrigues Lobo , membro da nossa Tabanca Grande, também ele, como o falecido, antigo aluno do ERO (Externato Ramalho Ortigão), das Caldas da Rainha. Sendo uma figura pública, de projeção não apenas regional como também nacional, a notícia do seu falecimento teve ampla cobertura pela comunicação social, nomeadamente na imprensa de referência como o Expresso e o Público. Foi também notícia no jornal Região de Leiria e Gazeta das Caldas, e ainda na imprensa de Guimarães.

Era professor coordenador jubilado do Politécnico de Leiria, Foi também investigador e docente no ISCTE e na Universidade NOVA de Lisboa. Para além do percu
rso académico,  foi programador e presidente da Fundação Cidade de Guimarães, responsável pelo projecto Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. Foi igualmente presidente do Conselho Estratégico Rede Cultura 2027, entidade responsável pela candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura 2027.

Mas já antes, de 1996 e 2006, trabalharia com o Presidente da República Jorge Sampaio,desde o primeiro até ao último dia nos seus dois mandatos, na qualidade de consultor, assessor e depois chefe da Casa Civil.

Licenciado em história pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, iniciaria a atividade profissional como professor do ensino secundário em 1970. Ajudou a criar a Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha, tendo sido ainda titular, nessa Escola, da cátedra Unesco em Gestão das Artes da Cultura, Cidades e Criatividade.

Autor de diversos estudos sobre temas de história política e social portuguesa dos séculos XIX e XX, e  designadamente sobre a História da República e o republicanismo, integrou ainda a equipa de investigadores encarregada de elaborar uma História do Parlamento Português. Teve um especial carinho pela sua terra natal, Caldas da Rainha. 

Tinha página no Facebook. Era primo do Manuel Resende, pelo da esposa deste. AS fotos que publoicamos são deste nosso amigo e camarada, régulo da ;Magnífica Tabanca da Linha.



2. A sua ligação com o nosso blogue remonta a 3 de abril de 2017, quando nos escreveu o seguinte mail:

Professor Luís Graça,

Através do seu blogue, onde tem publicado informação muito relevante e inédita sobre campanhas africanas efectuadas pelas forças armadas portuguesas, colhi indicações úteis para um trabalho de investigação que estou a realizar.Trata-se de uma biografia do escritor capitão Manuel Ferreira, nascido em 1917, com o propósito de participar nas comemorações do seu centenário que passa em Julho próximo.

O meu pedido de ajuda respeita a imagens que tem publicado no seu blogue sobre a presença militar em Cabo Verde dos expedicionários de 1941. Essas imagens abarcam a cidade do Mindelo, as instalações militares em São Vicente e Sal, dispositivos e operações militares.

Gostaria de poder utilizar algumas delas na exposição que estou a organizar e no respectivo catálogo. Para tal pretendia aceder aos originais, de modo a tentar obter a melhor qualidade de reprodução possível. Se me autorizar, farei a digitalização dos positivos ou negativos que me puder disponibilizar, devolvendo de imediato os originais.

Poderá ajudar-me neste meu projecto?
Fico-lhe muito grato.

João Serra
Prof. Coordenador do Insitituto Politécnico de Leiria



Caldas da Rainha > Museu José Malhoa > 22 de julho de 2017 > Exposição temporária "Manuel Ferreira: capitão de longo curso" > Imagem do RI 5,  cuja secretaria Manuel Ferreira (1917-1992) chefiou, entre 1954 e 1958, e por onde muitos de nós passámos, antes de ir parar à Guiné, durante a guerra colonial (1961/74)...Escritor e investigador, e mais tarde capitão SGE Manuel Ferreira (Leiria, 1917 - Oeiras, 1983) passou por aqui, já depois de ter estado no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde (e 1941-1946), e na Índia Portuguesa (1948-1954).

Foi neste quartel, em 1957, quando chefiava a secretaria regimental, e nesta cidade onde viveu 4 anos, que ele escreveu o seu livro de contos, "Morabeza" (publicado no ano seguinte, em 1958).  Será depois  ser transferido para Lisboa. Em 1962, sai o seu primeiro romance de temática cabo-verdiana, o "Hora di Bai". E em 1965 é mobilizado para Angola. como tenente SGE, tendo feito parte até então da direção da extinta Sociedade Portuguesa de Escritores.




T/T Vera Cruz > A caminho de Angola > Em primeiro plano, o ten SGE Manuel Ferreira (Gândra dos Olivais, Leiria, 1917- Oeiras, 1992) a bordo do paquete Vera Cruz em agosto de 1965 a caminho de Luanda. Cortesia de João B. Serra.

Foto (e legenda): © João B. Serra (2017). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


3. À volta da figura do escritor Manuel Ferreira (1917-1992) e dos militares expedicionários em Cabo Verde, e nomeadamente no Mindelo, Ilha de São Vicente, durante a II Guerra Mundial, trocámos umas dezenas de emails.  Uns meses depois ele agradeceu, publicamente, no seu blogue a colaboração
que lhe prestámos (nomeadamente, cedência de fotografias mas também contactos, na Gândara dos Olivais, Leiria, terra natal do militar  e escritor).(**)

18 de Dezembro de 2017 ·

(...) Um ano depois. Chegou anteontem ao fim, no CCB, o programa de comemoração do centenário de Manuel Ferreira. Tudo começou há um ano, quando, ocasionalmente, me encontrei com a primeira edição de uma uma obra sua, que desconhecia. (...)

Foi uma sessão de homenagem digna a que anteontem se efectivou. Amigos, antigos alunos, admiradores e familiares encheram a sala "Almada Negreiros" para lembrar as múltiplas dimensões daquele que perfaria este ano o seu centenário. Ouvimos os testemunhos de historiadores, escritores, professores de hoje sobre o percurso de vida e a obra imensa, generosa e pioneira de um militar que José Saramago equiparou a um Pêro Vaz de Caminha. Alguém que se aplicou em dar a conhecer a descoberta de novos países - através das suas criações literárias -, num processo em que ele próprio se descobriu como outro.

Não me cruzei no passado com Manuel Ferreira. A biografia que dele fui traçando ao longo deste ano não teve outro antecedente que o da curiosidade em preencher lacunas sobre a produção do livro com o qual me deparei em Dezembro de 2016. O empenho colocado nesta investigação não resultou de nenhum apelo ou solicitação externa. Repito: não me foi pedido nem encomendado.
 
O livro foi “A Casa dos Motas”, publicado em 1956. Esta edição, a primeira, de autor, foi impressa no Bombarral e tem ilustrações de Ferreira da Silva, um ceramista cuja obra tenho estudado e sobre o qual estava a preparar um ensaio (aliás, inserido num volume coordenado por Isabel Xavier, que viria a ser editado em princípios de 2017). A relação entre Ferreira da Silva e Manuel Ferreira, intrigante para mim, constituiu o ponto de partida da investigação.

Falei com pessoas que o tinham conhecido e coloquei a possibilidade de Manuel Ferreira ter sido professor na Escola Comercial e Industrial das Caldas da Rainha. Nenhuma destas diligências foi frutuosa. Manuel Ferreira militar? Essa passou a ser a melhor hipótese. Tentei o Arquivo Histórico Militar. Existia um processo, sim, mas estava ainda no Arquivo Geral do Exército, e para o consultar eu teria de me munir de uma autorização de um herdeiro legalmente habilitado. Fui à procura de um descendente, o Eng. Hernâni Ferreira, e foi assim, e aí, que tudo principiou.

Os elementos que a consulta do Arquivo Geral do Exército me facultou eram fascinantes. Excediam tudo o que entretanto tinha apurado sobre a trajectória de Manuel Ferreira, constante quer das notas biográficas divulgadas nas suas publicações, quer das memórias que o próprio filho e amigos retiveram. Pareceu-me justificado que a celebração do centenário de Manuel Ferreira, em Julho de 2017, pudesse ir além de uma cerimónia protocolar e constituísse uma oportunidade para conhecer a sua biografia. Propus a diversas instituições nacionais que o assumissem e elaborei, com vista a fundamentar essa proposta, um texto com informação relevante inédita sobre Manuel Ferreira, que fiz chegar aos seus responsáveis. (...)

O que me motiva hoje é referir e agradecer a todos aqueles que se entusiasmaram com o projecto de aprofundar o conhecimento sobre Manuel Ferreira e a sua acção, que acompanharam o desenvolvimento da pesquisa, que colaboraram no esclarecimento de alguns dos respectivos passos, que acolheram ou participaram na sua divulgação, que, enfim, manifestaram solidariedade com os meus propósitos e corresponderam com empenho ao que lhes foi solicitado.

Agradeço em primeiro lugar às direcções do Instituto Politécnico de Leiria e da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha a liberdade de, em sobreposição aos meus deveres profissionais de professor e investigador, desenvolver este projecto de cariz cívico. Senti a presença reconfortante de Rui Pedrosa e de João Santos.

 (...) Agradeço (...) a Adriano Miranda Lima que me dispensou elementos da sua própria investigação.  (...)

 Agradeço a Luis Graça (...), Augusto Silva Santos e Helder Sousa que me proporcionaram elementos dos seus arquivos pessoais. (...)

Num mail de 26 de junho de 2017, 12:35, escreveu-me:

(...) Fui ontem a Gândara dos Olivais. Tive uma cicerone excelente, no trato e no conhecimento, a tua prima Glória Gordalina. O encontro e a conversa com a Dra. Piedade, sobrinha de Manuel Ferreira, foi muito proveitoso. Esclareci melhor ambientes, referências e circunstâncias familiares e fundamentei algumas pistas pelo que ouvi e pelos silêncios que também escutei. Obrigado, Luis. (...)

As fotos do João B. Serra que publicamos acima,  são da autoria do Manuel Resende, nosso camarada e amigo, primo do falecido, pelo lado da esposa do Manuel, a nossa querida amiga Isaura Serra Resende.

Guardo dele a imagem de um homem de trato agradável e afável. E enquanto meu vizinho da Estremadura, sinto que é uma perda difícil de reparar na área da educação, da cultura, e da preservação da nossa memória coletiva. 

 família e aos amigos mais próximos do falecido, bem como ao Instituto Politécnico de Leiria, apresentamos as condolências da Tabanca Grande.

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Notas do editor:

(`) Último poste da série > 10 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24216: In Memoriam (475): Coronel de Infantaria Reformado, Ângelo Augusto da Cunha Ribeiro (1926-2023), ex-Major Inf, 2.º Comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23648: (In)citações (223): Reflexão sobre ética (uma visão pessoal) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© Desenho de Manel Cruz


REFLEXÃO SOBRE ÉTICA

(Uma visão pessoal)

adão cruz

Existe uma ética inscrita no nosso código genético, válida só por si, existe uma ética baseada na história da vida e das sociedades humanas ou existem ambas, fundidas e inseparáveis?

Para mim é muito difícil dizer o que é a Ética, até porque não sou, propriamente, uma pessoa sabedora nestas áreas. No entanto, a vida sempre me deu a entender que a Ética é a mais bela construção do ser humano, assente em quarto pilares fundamentais.

A Ética é, penso eu, a vivência da verdade, o lugar certo do Homem dentro de si mesmo, o fio-de-prumo do Homem no interior da sua cumplicidade. A ética compreende a disposição do Homem na vida, interfere com o seu carácter, os seus costumes, a sua moral, ao fim e ao cabo com o seu modo e a sua forma de vida. O Homem faz-se por si e pelos outros, sendo a ética a autenticidade deste fazer-se.

O primeiro pilar da verdadeira morada do Homem seria constituído pelo pensamento e pela sua inseparável companheira, a razão. Podemos dizer que as plataformas que permitem a elaboração de um pensamento ético são a liberdade e a responsabilidade. A capacidade do Homem de assumir a séria orientação da sua vida determina-o como homem livre e, por conseguinte, a caminho do sujeito ético. E um sujeito ético é, fundamentalmente, um sujeito que procura a verdade. O referente da liberdade humana é a procura da verdade, porque a verdade orienta a liberdade e encaminha-a para a sua plenitude. O pensamento é o suporte mais poderoso e a mais forte armadura do Homem, a mágica força da sua criatividade.

O segundo princípio ou pilar fundamental decorre do primeiro e chama-se cultura. Não sei verdadeiramente o que é a cultura. E cada vez sei menos, neste pequeno país e neste pequeno planeta feito de inúmeros serventuários medíocres e arrogantes, incriativos plagiadores de todos os lugares-comuns inseridos nas políticas de retrocesso. Sei, no entanto, que não é a cultura espectáculo, a cultura enlatada de tanta gente cabotina, a massificação e homogeneização que apenas gera vícios consumistas, impedindo o homem de pensar, reflectir e encontrar, mas a cultura do dia-a-dia, a cultura estruturante da pessoa, a cultura do percurso, a cultura da ética dialógica que está na base da racionalidade critica, orientada para a procura do verdadeiro significado da realidade humana.

O terceiro princípio seria o respeito pelos outros. Todavia, o respeito pelos outros nunca existirá se não houver respeito por nós próprios. O respeito pelos outros é o espelho do respeito de nós próprios.

O quarto pilar desta edificação ética do Homem seria a justiça e a solidariedade. O primeiro passo da solidariedade estaria no entender da justiça social e no seu consciente reconhecimento como prioridade das prioridades. O segundo passo seria a consciência de que viver dos outros implica sempre viver com os outros e para os outros. Precisamente o contrário daqueles que aceitam o egoísmo, o individualismo e o hedonismo como fatal decorrência da onda globalizante e os desculpabilizam e valorizam. Penso que o Homem é um ser para o encontro, encontro consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com o desconhecido, a quem abre a sua curiosidade, a sua vontade de saber e a sua vital necessidade de procura da verdade.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23637: (In)citações (222): Reflexão (complexo caminho da simplicidade da Evidência) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

sábado, 6 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23502: In Memoriam (444): Poetisa Ana Luísa Amaral (Lisboa, 5 de Abril de 1956 - Porto, 5 de Agosto de 2022) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887)

IN MEMORIAM

Ana Luísa Amaral (Lisboa, 1956 - Porto, 2022)

© Adão Cruz


PARA ANA LUISA AMARAL

Como a vida te apagou, também apaguei o teu e-mail.

Lá para os confins do mundo molecular do Universo, não tenho possibilidade de comunicar contigo, mas irei falando para mim mesmo sobre tanta coisa que deixaste.

Aprendi com outros e também contigo que a cultura tem de fazer parte integrante da estrutura do ser humano, da sua solidez e profundidade, da sua autenticidade, da sua verdade e da sua intrínseca sabedoria.

Aprendemos que a cultura com que te irmanaste e que cedo a morte ceifou é construída através da vida como qualquer mecanismo de adaptação, mas apenas quando assenta nos fortes alicerces do conhecimento científico e na aprendizagem dos emaranhados mecanismos neurobiológicos da mente criativa.

Também aprendemos que a verdadeira cultura, a cultura do saber autêntico, a cultura do ser são indissociáveis da nossa língua e de toda a linguística onde sempre foste mestra.

Como todos sabemos, a língua não é apenas um mero instrumento de comunicação, mas uma parte inseparável do todo que somos e da riqueza anímica que construímos.

Um bom perfume deve ser sentido como parte integrante da personalidade de uma mulher e não como um cheiro. Uma boa decoração deve ser sentida pelo bom ambiente, pelo conforto e bem-estar que cria e não por dar nas vistas apenas pelo estilo e pela configuração dos objectos.

A cultura não é um enfeite, uma cosmética, uma roupagem mais ou menos vistosa, nem pode ser confundida com a cultura-folclore, com a prolixa cultura política ou com a cultura do enciclopedismo balofo dos nossos dias.

Adeus Ana Luisa. Guardarei como recordação o difícil livro que me aconselhaste: PAISAJES COGNITIVOS DE LA POESIA, de Amelia Gamoneda e Candela Salgado Ivanich

adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23501: In Memoriam (443): Maria Aldina G. O. Marques da Silva (Fafe, 1946 - Lourinhã, 2022), esposa do Jaime Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72): o funeral é em Fafe, amanhã, domingo, às 12h00

sábado, 9 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22613: Os nossos seres, saberes e lazeres (471): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19): Das obras emblemáticas do Museu do Caramulo aos Painéis de Nuno Gonçalves (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Visitar o Museu Nacional de Arte Antiga é uma itinerância clássica, um dever para com as Belas-Artes que nos modelam e remodelam as formas de o viver e de o sentir. O pretexto era a presença de algumas obras-primas do Museu do Caramulo, que eram aqui expostas enquanto lá se faziam obras. Havia que decidir, logo de seguida, se se ia visitar a exposição de D. Manuel I ou se ascendia aos diferentes andares para se saudar obras amigas de sempre, preferiu-se a segunda alternativa, a compensação é sempre grande, faltou ir cumprimentar a Custódia de Belém, por ironia está agora na exposição do Venturoso, mais uma razão para aqui voltar em breve. E aqui se faz um pequeno relato das alegrias vividas, até se conversou com peritas que restauram os Painéis de Nuno Gonçalves que me ajudaram a sair conformado com as mesmas dúvidas com que aqui entrei, e seguramente levarei para a tumba.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (19):
Das obras emblemáticas do Museu do Caramulo aos Painéis de Nuno Gonçalves


Mário Beja Santos

Para mim é sempre o Museu das Janelas Verdes, os pretextos das visitas eram sempre, para a minha mãe, os presépios de Machado de Castro, a Baixela Germain, a Custódia de Belém, a arte Namban, o Boch das tentações e o prato de substância, os Painéis de Nuno Gonçalves. Sabe-se lá se não houve um processo subliminar nestas sucessivas incursões, em que ao longo de décadas fui vendo os melhoramentos deste precioso museu para a minha atração permanente pelas Belas-Artes. Tinha lido a notícia de que o Museu do Caramulo enviara para os Paços Perdidos do Museu Nacional de Arte Antiga um conjunto de peças de alto quilate, não resisti, juntei dois em um, primeiro matei saudades desta coleção organizada por Abel de Lacerda e depois segui para o interior do museu. Antes li o seguinte texto:
“Aproveitando o encerramento do Museu do Caramulo para a requalificação dos espaços museográficos, foi feita uma seleção das obras de arte mais emblemáticas que se conservam naquele museu, trazendo-as à fruição do público lisboeta. Procura-se assim dar a conhecer a um maior número de pessoas estas preciosidades, desconhecidas para muitos.
Ao primeiro Picasso que se expôs em Portugal, juntam-se Amadeo de Souza-Cardoso, Maria Helena Vieira da Silva e Eduardo Viana, mas também belos exemplares de pintura antiga, destacando-se obras de autores como Grão Vasco, Isembrandt, Quentin Metsys e Frei Carlos. Acrescenta-se a esta seleção objetos de artes decorativas, como uma das tapeçarias da série conhecida como “à maneira de Portugal e da Índia”, raras peças de porcelana chinesa e obras de arte Namban. Este conjunto de peças é enriquecido pelas criações de jovens artistas recentemente incorporadas nas suas coleções. Incontornáveis, quando falamos de Museu do Caramulo, são os automóveis. A coleção, única em Portugal, será invocada por um exemplar, de pequenas dimensões, de um Bugatti, um dos mais belos clássicos da industrial automobilística mundial”
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Fui a correr, a data de encerramento prevista era 26 de setembro. Se gostassem muito, ainda teria tempo de voltar. Gostei o suficiente para voltar, deixo-vos aqui algumas recordações.

São obras de tema religioso de insuperável qualidade, foi muito bom que tivessem vindo até Lisboa, nesta casa também há obras de Quentin Metsys, Grão Vasco ou Frei Carlos, nada como alargar horizontes, comparando outros discursos destes génios da pintura.
Abel de Lacerda não era peco a pedir, escrevia aos artistas e muitos acediam a ofertar as suas obras para o Museu do Caramulo. Este magnífico quadro é de Raoul Dufy, são as cores do mestre, as suas formas ingénuas, aquele traço peculiar que revela o primado da simplicidade, nada se esconde, não há truques académicos, todo o espaço é compreensível, obriga a olhar em todas as direções e o resultado é altamente compensador, Dufy devia ser um homem feliz ou então aparentava muito bem.
É um belo Souza-Cardoso, regista a sua marca de água a que não faltam reminiscências do cubismo e do surrealismo, sobretudo é uma imagem do seu Portugal, das suas estadias em Manhufe, daquele mundo rural à volta do Marão, ele regressa ao país quando começou a I Guerra Mundial, morrerá jovem devido à gripe espanhola, mas esta fase de labor em Portugal é um legado formidável de quem, para além de génio vanguardista, tinha vincado o seu olhar camponês.
E este quadro de Picasso tem história, na sala projetava-se um documentário da RTP, este grande senhor da pintura universal a produzir a obra, causa calafrios como se pode ter assim o talento à flor da pele.

Vista a exposição, prossegue a veneração pelos grandes mestres, de novo Quentin Metsys, confesso que comecei a interessar-me por este grande nome da pintura graças ao Professor Luís Reis Santos, fui amigo de um dos seus filhos que me levou a Coimbra e o notável investigador lançou-se, horas a fio, a falar-me deste prodigioso flamengo e como algumas das suas obras-primas são hoje privilégio do nosso património. Enquanto contemplava esta Nossa Senhora das Dores, recordei o inesquecível serão, a lição de um investigador sempre de discurso apaixonado. Mal sabia ele que tinha conquistado um prosélito.
Cinjo-me a um pormenor deste quadro de Boch, depois dos Painéis de Nuno Gonçalves deve ser o mais contemplado, por nacionais e estrangeiros, é tudo linguagem codificada, até se tem a ilusão de que Boch era surrealista, ora o que ele nos põe a admirar é uma abordagem da espiritualidade nesse mundo de demónios, mostrengos, abortos da natureza, desastres cósmicos, o que sobreleva é a lição da santidade, aprende a ver para seres melhor, o que parece torcido e retorcido, de pernas para o ar, é lição para a tua vida, parece dizer este mago que nunca nos cansa o olhar.
E que dizer desta matéria bruta de onde Rodin vai esculpir a formosura, pondo em profundo contraste a rudeza da pedra não trabalhada onde emerge o prodígio das formas, uma sensualidade quase irrestrita, a beleza em repouso?
Encaminho-me para os Painéis de Nuno Gonçalves que sei estarem a ser restaurados. Desde que a museografia deste andar ganhou estas formas, todo este espaço amplo aparece bem ocupado por imagens que noutro ordenamento seguramente não nos chamariam tanto a atenção. É uma mostra assombrosa de escultura onde o tema religioso é primordial, são os chamamentos do divino que parecem sair do silêncio, é um retorno à Igreja das catedrais, destes seres exemplares que ocupavam a crença dos homens como incentivos à perfeição, à generosidade, ao amor pelos outros. Este esplendor museográfico tenho-o como inultrapassável, qualquer grande museu do mundo acolheria estas soluções de percorrer em galeria a lição dos santos e a convocatória da nossa vida para alcançar o paraíso.
O que aconteceu foi o seguinte, a idade aconselhou que esticasse as pernas, havia mobiliário para contemplar Nuno Gonçalves em trabalhos de restauro, eis que se abre uma porta de onde saem duas senhoras, provavelmente peritas naqueles labores do retoque e requalificação, não me faltou pudor para lhes ir pondo perguntas, foram muitíssimo gentis e todas as dúvidas que eu tinha, como eu esperava, ficaram sem resposta: de onde vêm os painéis, quem é o seu autor, aonde e como estavam expostos, o que representam. Agradeci e fiquei especado, não há nada na arte portuguesa que supere esta emoção de ver tanta gente representada quando os outros génios contemporâneos faziam retratos, punham Cristo na Cruz ou mostravam caldeirões do inferno, aqui está gente que me fixa no olhar e de frente, parece uma amostra de uma nação em marcha, talvez seja devaneio meu, mas que saio daqui orgulhoso desta mostra do ser humano, é a minha clamorosa verdade.
São só lembranças da arte Nanbam e do muito fascínio que este Oriente nos incutiu, até aos dias de hoje. Não esqueço uma exposição que aqui vi de ourivesaria de Goa, coisas que um senhor guardou metodicamente e mandou para o Banco de Portugal, quando se deu a queda da Índia. São objetos que assombram, são obras que parecem ter sido concebidas, estas que aqui vos mostro, para nos fazer sonhar ou talvez para também mostrar que somos desinibidos na comunicação e talvez por isso mesmo continuamos a peregrinar por Franças e Araganças, e aí somos respeitados. E chega de conversa, não há nada como preparar o espírito para rememorar o que se viu e preparar novas andanças.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22591: Os nossos seres, saberes e lazeres (470): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (11) (Mário Beja Santos)

sábado, 2 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22591: Os nossos seres, saberes e lazeres (470): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (18): A Família Humana, exposição no Museu do Neorrealismo até maio de 2022 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
É uma bela oportunidade para conhecer uma coleção de fotógrafos famosos e o acervo, já hoje muito expressivo, da fotografia do Museu do Neorrealismo. O curador, Jorge Calado, delineou com enorme talento um percurso onde o humanismo faz fé e toma conta do nosso olhar, foi ambicioso e ganhou, quis revelar a universalidade da experiência humana, temos aqui inclusivamente a Lisboa de outras eras, imagens de Vila Franca e da Lezíria bem entrosadas com o mundo inteiro. Ninguém sairá daqui desiludido e muito menos a duvidar de que a fotografia, câmara escura e clara, é uma inegável dimensão do que melhor pode a arte.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (18):
A Família Humana, exposição no Museu do Neorrealismo até maio de 2022


Mário Beja Santos

O acervo de fotografia internacional no Museu do Neorrealismo já tem muito que se diga. Como escreve o curador desta exposição, Jorge Calado, a coleção “Família Humana” deste museu, conta agora com 375 fotografias de mais de 175 artistas, gente de 25 nacionalidades que fotografaram em 60 países dos 5 continentes. Ele repertoria o nome destes grandes mestres a que não faltam nomes portugueses como Carlos Relvas e Ernesto de Sousa. Devido às limitações de espaço, só é possível mostrar um terço da coleção, haverá periodicamente uma rotação das peças expostas.
A missão subjacente, continua a observar Jorge Calado, é de grande ambição: revelar a universalidade da experiência humana, à semelhança da célebre exposição de 1955 “A Família do Homem”, no Museu de Arte Moderna em Nova Iorque, que deu inclusivamente um belo livrinho, que comprei num alfarrabista que então existia na Calçada do Combro, teria eu uns 18 anos. Como o mundo encolheu, sentimos nesta deambulação fotográfica que estamos cada vez mais próximos uns dos outros, este ágape de fotografia humanista é uma grande angular, e a dita fotografia humanista que teve o seu auge nas décadas de 1930 e 1940 coincidem historicamente com movimentos e sensibilidades neorrealistas. O mesmo curador nos oferece um belo texto na folha que nos é entregue na receção:
“Somos novos e velhas mais os concebidos à espera de nascer. Somos magras e gordos; baixas e altos, morenos, ruivos e louras. A tez pode ser clara, quase branca, amarelada, rosada a virar para o avermelhado, castanha e escura até ao preto. Os olhos, azuis, garços, verdes, castanhos ou quase pretos. O cabelo varia entre o liso e o crespo e encaracolado. Os pelos mudam, e as sardas, também. Formamos todos e todas uma espécie, Homo sapiens, a Família Humana. Os cinco sentidos de comunicação, as emoções, o raciocínio – aquilo a que o povo chama o coração e a razão. O ápice glorioso da evolução”. Vamos entrar na exposição.



Diz o curador que uma exposição fotográfica forma um discurso complexo que cabe ao visitante completar e decifrar e que para facilitar a leitura, a exposição está organizada em sete secções e três núcleos, de acordo com as idades do homem e da mulher, sete como os dias da semana, as cores do arco-íris, as notas da escala musical ou os pecados mortais. Vamos contemplar facetas da religião, inevitavelmente imergir na Lezíria ribatejana, recordar como seria Lisboa durante a II Guerra Mundial. Pela itinerância, tomaremos partido sobre o que se passa pela rua, como se goza o lazer, como o trabalho é exigente e por vezes tão avassalador, como combatemos com as armas na mão. E no fim, aguarda-nos o mesmo fim, o término é igual para todos. E aqui estou, embevecido, foi o casal Roberto Rossellini, um mago do cinema, e Ingrid Bergman, uma senhora dona diva que jamais poderei esquecer. Como associamos as coisas mais estrambóticas do mundo, recordei o dia em que fui rever à Cinemateca Nacional o filme “Um Crime no Expresso do Oriente”, Albert Finney fazia de Poirot. No intervalo encontrei José-Augusto França e contei-lhe que tinha vindo ver aqueles prodigiosos seis minutos em que a Ingrid Bergman conquistou um Óscar de Atriz Secundária e ele respondeu-me que não me ficava atrás, tinha vindo rever a prodigiosa Lauren Bacall. É assim a Família Humana, Rossellini e Bergman com a filharada, pareciam bem felizes.


Aqui prefiro o anonimato, fico alheio se são católicos ou protestantes ou judeus, lembro a alegria de vermos os filhos a crescer, de lhes dar alimento, elas ou eles de perninhas tenras a alimentar-se com o nosso sorriso, é isso que me chega, o talento do fotógrafo de pôr toda a gente em movimento menos esta trindade do amor, isto me enche o coração.


A diva não precisa de apresentações, o que o fotógrafo registou e hoje caminha para a eternidade é um ambiente de bairro típico, o encontro entre a novel fadista e o guitarrista, o encontro entre a voz e as cordas, é um pátio de pedra vetusta, ou um troço de rua, o olhar daquela senhora do fado é o que mais conta, está inspirada, e a postura das mãos realça o que ela vai entoar no desassossego da sua alma naquele bairro antigo.


Foi um dos casais mais célebres da literatura universal, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, o que a fotografia capta é que estão unidos, provavelmente com os mesmos combates, distanciados pelo que se escreve ou lê, o que é de pouca importância, o resto é lenda, se eram solitários e mesmo infiéis um ao outro, legaram-nos obras sublimes, ainda hoje o teatro de Sartre me enche as medidas, seja As Troianas baseadas em Eurípedes, As Mãos Sujas ou As Moscas, dela prefiro o documento da despedida da mãe, mas não enjeito que tenha sido uma peça fulcral para o estudo da mulher, porque foi a ascensão da condição feminina um dos fenómenos determinantes do século XX.


O que o fotógrafo aqui explora não é a meditação de Arthur Miller, o famoso dramaturgo norte-americano, mas a cadeira vazia da superstar que curiosamente filmava argumento seu, Os Inadaptados, a superstar contracenava com um monstro sagrado, Clark Gable, que já preludiava o fim do seu próprio mito, mas há outra leitura possível para a cadeira vazia, tudo na vida do casal Miller/Marilyn acabou mal. A fotografia impressionou-me muito, peço desculpa ao leitor ter captado mal a imagem, escolhi ângulo errado, meti fotografia alheia no peito de Miller, besteira de amador.


Prefiro de novo o anonimato, é a celebração de membros de família que condescendem em sorrir, sabe-se lá em que circunstâncias, a criança não esteve para fazer pose e voltou-nos as costas e aquele menino crescido achou por bem que o tomassem a sério, tem a criança ao colo e aquela enorme mão estendida é manifesto do zelo protetor, e provavelmente afetivo. Uma grande beleza.


Algures, numa daquelas ruas bem estandardizadas num bairro popular de um rincão britânico, um fotógrafo ajeitou a perícia para nos dar a profundidade, uns laivos da identidade e aquela menina quer mostrar que é virtuosa no pino, exibe-se para crescidos e miúdos, o resto é vazio, é a perícia do pino que conta, o resto seguirá, de acordo com a rotina e as circunstâncias.


Quantas e quantas imagens mostram a mulher mortificada, neste caso toda a encenação é dúbia, ou o barco anda em bolandas no mar encapelado e ela pede a benevolência do Senhor ou também se pode dar o caso de que há para ali uma volumosa contenda e ela manifesta posição. É mistério à beira-mar, jamais saberemos se ela é vendedora de peixe ou trabalhava na indústria conserveira ou veio esperar membro da família. Ela ajeita o protesto talvez mesmo a dor, ponto final.


É a marca do trabalho duro no rosto, serão mineiros, será pó de carvão ou sílica, o céu parece ameaçador, o que me faz deter diante da fotografia é a dignidade destes olhares, como se estivessem a dizer “é para que vocês saibam a dureza do que fazemos para que nada vos falte”.


Ribatejo, sabemos o trabalho do forcado, mas fica sempre uma interrogação se ele chora ou limpa o suor, não nos dão mais pormenores sobre a lida, não saberemos se é cansaço ou tristeza, na praça ter-se-á passado algo em que naquele momento o touro não é importante, é o rosto escondido que nos intriga, ele até está vestido a preceito, o traje não andou a rojo, aconteceu algo, quem vê interprete como pode. Não são mais que os outros.


Um artista convidou Cruzeiro Seixas, quase centenário, a tocar em Deus, crucificado num cabide, desde que Marcel Duchamp deu outra vida aos objetos não há artista, mesmo surrealista, que não se sinta tentado a profanar o sagrado. É como se Cruzeiro Seixas pusesse Deus à nossa consideração, só ele pode manietar o gancho do cabide, dá-nos a ilusão de uma oferta personalizada. Aqui me quedei um bom tempo a saudar o fotógrafo e um grande artista que já partiu.

Amílcar Cabral, Dakar, 1969, por Uliano Lucas

Não conhecia esta fotografia de Uliano Lucas, ele terá seguramente querido reter não o líder em si mas o pensador africano, é um olhar que se estende ao infinito, há aquele braço que ajuda a meditar, o espaço é completamente nu, só o construtor de países é que conta.

Agora o leitor que se afoite, a exposição está à sua mercê até ao próximo ano, é uma boa ocasião para ir conhecer esta espantosa coleção de fotografia internacional, de sabor neorrealista mas não só.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22571: Os nossos seres, saberes e lazeres (469): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (10) (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22571: Os nossos seres, saberes e lazeres (469): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (17): As três pancadas de Molière… Silêncio, o espetáculo vai começar! (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
O acervo do Museu Nacional do Teatro e da Dança é gigantesco (contava em 2011 com 300 mil espécies, seguramente que hoje tem muito mais, doações não faltam), uma museologia e uma museografia de topo asseguram ao visitante um panorama altamente esclarecedor deste espólio enormíssimo: figurinos, muitos deles saídos das mãos de alguns dos nossos maiores artistas; trajes de cena verdadeiramente representativos da história do teatro, estão ali as companhias mais marcantes, exemplares de cenografia, maquetes, retratos, desenhos, caricaturas, recorde-se que a coleção de fotografias do Museu Nacional do Traje é inextinguível (mais de 150 mil espécies), cartazes, equipamentos técnicos. Agora, no piso superior, o visitante tem mostras do Museu da Dança e os investigadores podem ter acesso a uma biblioteca/centro de documentação visto que o museu reúne uma das coleções da bibliografia teatral de maior dimensão do nosso país. É uma esplêndida viagem pelas artes do espetáculo, porque se percorre este museu como se estivéssemos num palco ou num proscénio ou acesso aos bastidores, estão ali peças icónicas como o pastel de Columbano Bordalo Pinheiro que retrata o ator e escritor Augusto Lacerda, a cadeira de Garrett, o órgão de luzes do Teatro Nacional de São Carlos quando ele foi reequipado em 1940, o busto da Amália, indumentária luxuosa, não se pode pedir mais para este espaço do Palácio Monteiro-mor, mas até se tem direito a percorrer o aprazível parque, um dos mais belos oásis de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (17):
As três pancadas de Molière… Silêncio, o espetáculo vai começar! (o teatro é o escaparate de todas as artes, Almada Negreiros dixit)


Mário Beja Santos

Almada teve as suas razões fundadas para dizer que o teatro é o escaparate de todas as artes. Como escreve José Carlos Alvarez no livrinho que dedicou a este museu, Quid Novi Edições, 2011, “Se tomarmos como exemplo a montagem de um espetáculo de Gil Vicente ou de Shakespeare, facilmente observamos que nele estão envolvidos a literatura e a poesia, a dança, a música, as artes plásticas, a fotografia, a arquitetura, para além da carpintaria, da costura, das técnicas de palco, das luzes, etc. A criação de um espetáculo teatral resulta sempre de um trabalho coletivo”. É o resultado desse trabalho coletivo que o Museu Nacional do Teatro e da Dança expõe, de um acervo monumental sempre a crescer, e na posse de um grande arquivo das artes do espetáculo, é a instituição de referência na museologia e na história das artes do espetáculo em Portugal.
O livrinho de José Carlos Alvarez, de preço altamente acessível, desvela ao leitor a heterogeneidade deste acervo: figurinos, trajes de cena, cenografia, desenhos, retratos e caricaturas, postais ilustrados, cartazes, programas e bilhetes, pintura e escultura, música, teatros de papel, peças de mobiliário e teatros, equipamentos técnicos. É um deslumbramento, o visitante está sempre numa cena, há registos sonoros, imagens em movimento e a surpresa é ver a enormidade de talentos portugueses e estrangeiros que contribuíram para a grandiosidade do teatro em Portugal: Leitão de Barros, Tom, Maria Adelaide Lima Cruz, Paulo Ferreira, Bernardo Marques, Mily Possoz, Maria Keil, Lucien Donnat, Octávio Clérigo, António Casimiro, Mário Cesariny, João Vieira, José de Guimarães, Almada Negreiros, Pedro Calapez.
Os núcleos museológicos são impressivos e sugestivos, pense-se nos trajes de cena, nas artes da cenografia, no que nos é mostrado em retrato, desenho ou caricatura. Foi por aqui que começámos.


Vasco Morgado, Busto em Bronze de Martins Correia, exterior do museu
Máquinas de Cena para o espetáculo de rua Romagem de Agravados, de Gil Vicente, apresentado pelos Criadores de Imagens, Caldas da Rainha, 2002, exterior do museu
A Última Ceia dos Polichinelos, Manuel Amado
Cadeiras do velho cineteatro Éden, 1920
Imagem curiosa do Teatro D. Maria II, fim da primeira metade do século XIX, o Rossio era completamente plano

Como o que se mostra é de uma imensa riqueza, é uma profusão cuidadosamente selecionada, se seguirmos as sugestões de José Carlos Alvarez devemos deter-nos em cartazes que falam por mil palavras, cartazes ou programas de espetáculos. Ele selecionou a Mãe Coragem de Bertolt Brecht, em que Amélia Rei Colaço escreveu que foi um sonho que não lhe foi consentido, a Censura não permitia Brecht.
Não deixa de nos impressionar, até porque está em lugar de destaque do primeiro piso, a chamada Carreira de Garrett que, ao que consta, o escritor usava quando assistia a espetáculos no Conservatório. Esteve na sua última casa, na Rua de Santa Isabel. A seguir à sua morte, o rei D. Fernando II comprou-a e levou-a para o Palácio da Pena. A sua segunda mulher, a Condessa d’Edla, convenceu o rei a oferecê-la a Gomes de Amorim, este legou-a ao Conservatório e daqui veio para o museu.


A cadeira de Garrett

Há retratos de divas e de divos e trabalhos de pintores célebres, como o retrato que Columbano fez de Augusto Lacerda, ator, dramaturgo, professor e crítico teatral. Observa José Carlos Alvarez: “A técnica do pastel permite que Columbano se distancie do esquema pictural que carateriza a sua obra retratística a óleo. Por outro lado, o fundo da pintura contrasta com esse esquema porque o pintor optou por uma tonalidade de camurça que o aproxima do da tertúlia da Cervejaria Leão de Ouro, uma mancha branca e difusa envolve e destaca a figura, o traje é esboçado de forma esquemática com um certo sentido de inacabado. No rosto do ator concentra Columbano toda a sua técnica, sobretudo na modelação dos traços, tratados com uma sensibilidade e subtileza que escapam a muitos dos seus retratos a óleo e a sinceridade direta do olhar do ator resulta da simplicidade do traço que aproxima esta obra da prática do desenho”.
A atriz Ilda Stichini (1895-1977)
Retrato do ator e escritor Augusto Lacerda, pastel de Columbano Bordalo Pinheiro, 1889 Há peças iconográficas que seguramente atrairão o visitante: a bengala de Palmira Bastos, os trajes desenhados por Almada Negreiros, as belíssimas maquetes, um espantoso órgão de luzes, mas os trajes de cena são de enorme riqueza, estão dispostos por núcleos, ligados a diferentes companhias, José Carlos Alvarez lembra-nos o Núcleo Paula Rego, um conjunto de cerca de uma dezena de trajes e adereços por ela criados para o bailado “Pra Cá e Pra Lá”, estreado em 1998 pelo Ballet Gulbenkian, no auditório daquela fundação, que representa um dos raros trabalhos da pintora para as artes do palco, aparece integrado numa importante coleção de trajes para ópera e bailado doados pela Gulbenkian. Núcleos não faltam, para além das companhias que fazem história obrigatória no teatro, há os núcleos Amália Rodrigues, Ivone Silva, Filipe La Féria, das atrizes Maria Matos, Laura Alves, Milú, Eunice Muñoz, Luísa Maria Martins e ainda trajes de cena de Carmen Dolores, Maria do Céu Guerra, Companhia Rafael de Oliveira, Leónia Mendes, Lia Gama, Mário Viegas e Paulo Renato.
A gloriosa, a voluptuosa, a sumptuosa indumentária, requintes cénicos do século XIX que chegaram ao século XX
Maquete do Teatro Apolo que ainda conheci no Martim Moniz, em miúdo, antes da terraplanagem daquela imensidão que deu lugar a casebres comerciais
A arte do cartaz, este saído do talento de Fred Kradolfer
Uma peça indispensável no camarim, aqui o ator transmuda-se, a maquilhagem acentua o personagem
Recordo este espetáculo, estive lá na noite em que Maurice Béjart pediu um minuto de silêncio pela morte de Robert Kennedy, “vítima do fascismo e do imperialismo”. A companhia foi imediatamente posta na fronteira, Salazar justificou-se em Conselho de Ministros. Vi Américo Thomaz aplaudir Béjart, mesmo depois de um minuto de silêncio. Coisas da vida.

Para além do percurso pela exposição permanente, o visitante pode deleitar-se com o espaço exterior, esculturas, A Romagem dos Agravados inspirada na obra Tentações de Santo Antão, de Bosch. José Carlos Alvarez recorda que o museu tem uma pequena coleção de bustos de autores e atores dramáticos, de grande valor artístico, criações, por exemplo, de Soares dos Reis, Martins Correia ou Francisco Simões. Que dizer mais? Este museu é de visita obrigatória, está sediado no Palácio do Monteiro-mor na Estrada do Lumiar 10, a entrada é de preço módico e grátis para quem tem o cartão do antigo combatente.

Três imagens do Parque do Monteiro-mor, quem visita o Museu do Teatro ou o Museu do Traje tem direito a este refrigério, vale a pena passar aqui um bom bocado da tarde, trazer um livro ou umas revistas e ouvir o sussurro das águas, é um prazenteiro complemento a quem visita um dos museus

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22553: Os nossos seres, saberes e lazeres (468): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (9) (Mário Beja Santos)