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sábado, 19 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23796: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IX: "Amadu, que vamos fazer ao puto ?"... "Meu alferes, vou levá-lo para Bafatá, a minha irmã cuidará dele!"... A história do puto, "turra", Malan Nanque, que o Amadu salvou e adotou como sobrinho...

 


Angola > CIC - Centro de Instrução de Comandos > 1963  > O alferes mil Maurício Saraiva em Angola, em 1963, aquando da frequência do curso de Cmds; . N CTIG  será depois promoviodo, por mérito, a tenente e a capitão.. (*)





Guiné > Brá > Comandos do CTIG > Junho de 1965 > Cap Mil 'Comando' Maurício Saraiva > Idolatrado por uns, odiado por outros, foi um mal amado, diz o Virgínio Briote... O Amadu Djaló, por sua vez,  foi um dos oito "negros" (sic) - a par do Marcelino da Mata, do Tomás Camará e outros - a participar "no 1º curso de quadros para os Comandos do CTIG", que teve início em 3 de Agosto de 1964  (Amadu Bailo Djaló - Guineense, Comando, Português. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, p. 82). O seu primeiro comandante, no Grupo Fantasmas, foi o Alferes Saraiva (entretanto promovido a tenente e depois capitão).



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > c- 1964 > Emblema de braço do Grupo Fantasmas, que pertenceu ao alferes  'mil comando ' Saraiva.  


Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > SEctor L1 ( Bambadinc) > Xime > Porto fluvial

Foto cedida por Torcato Mendonça


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou, há 7 anos,  em 2015, ainda antes de completar os 75 de idade.  Os seus filhos, por sua vez, vivem (ou viviam até há uns anos) no Reino Unido.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.

Temos vindo a introduzir pequenas correcções,  toponímicas e outras, ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição.  Mantemos a ortografia original.

Recorde-se, aqui o último poste: o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) alistou-se nos comandos do CTIG, a convite pelo alferes mil 'comando' Maurício Saraiva, angolano. Frequentou o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964. 

 Deste curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. Deste curso sairam ainda  os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras

O Amadu passou a pertencer ao Grupo Fantasmas, comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva. Logo no fim do curso, os três grupos participaram na primeira operação, a Op Confiança, realizada entre 25 de Outubro e 4 de Novembro de 1964 no Oio,   na área atribuída ao BCav 705, tendo por objectivo a reabertura do itinerário entre Mansabá e Farim.

  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A história do puto "turra" do Buruntoni, Xime, de nome Malan Nanque

(pp. 90-94)

por Amadu Bailo Djaló



Dias depois, nova saída, para Buruntoni, no Xime. Saímos de Bissau, de barco, para o Xime.

Logo que chegámos, instalámo-nos no quartel, até ao fim do jantar. Forneceram-nos um guia e marchámos directos a Burontoni.

Nesta operação [1], eu ia integrado na 3ª equipa, a meio do grupo. Toda a noite a andar, a corta-mato. Perdermo-nos já era uma sina, andámos, sempre com o guia à frente, sem darmos com o caminho que nos levava para o acampamento. Quando chegámos à zona, o sol ia alto, eram para aí 7h00 [2].

Encontrámos um rapazito de 8 ou 9 anos. Interrogado disse que ia para o campo de lavra dos pais. Sobre o acampamento da guerrilha que procurávamos[3], disse que ficava na outra margem do rio Burontoni. Seguimos até à margem. O alferes ia falando com ele, fazendo-lhe perguntas. Se o acampamento tinha pessoal, respondeu que nessa manhã, o Suleimane Djaló tinha avisado a população para abandonar o acampamento, porque tinha andado uma avioneta a sobrevoar e isso não era bom sinal, que podia acontecer qualquer coisa a todo o momento. 

Sobre o local, onde costumava ficar a sentinela, o rapazito disse que ficava atrás de nós. Então, o alferes deu instruções para voltarmos atrás, para ver se conseguíamos apanhar a sentinela.

O alferes Saraiva passou para a frente e fomo-nos aproximando do local, onde julgámos que ela estava. Estava numa árvore. O alferes abriu fogo e ele caiu imediatamente. Corremos para ele, e quando lá chegámos já estava moribundo. 

Com a arma do sentinela nas nossas mãos, continuámos a marcha para o Xime, até que demos com uma tabanca abandonada, que se chamava Gundagué Beafada

Perto deste local encontrámos a tropa de Bambadinca que estava com a missão de nos recolher. Encontrei alguns companheiros da minha incorporação e, quando estava a abraçá-los vi o alferes, de arma ao ombro, e o menino com a mão na nuca, de olhar fixo no alferes. Cheguei-me para junto do alferes e ele disse-me:

– Amadu, que vamos fazer ao puto?

– Levá-lo, meu alferes?

– Ele é turra, Amadu!

– O meu alferes tem mais formação e conhecimento que eu, mas parece-me que com esta idade, o menino não é inimigo nem amigo.

– Então, por que vivia no mato, Amadu?

– Porque os pais vivem no mato, meu alferes!

– E tu, o que queres fazer com ele, Amadu?

– Deixamo-lo no quartel de Bambadinca.

O capitão da companhia de recolha estava junto de nós. O alferes perguntou se eles queriam ficar com o miúdo. Negativo, respondeu o capitão. O alferes ficou a olhar para mim e eu disse:

– Levamo-lo connosco para o quartel. Se o meu alferes não quiser que ele fique no quartel, eu fico com ele na minha casa.

– Não tens mulher, como é que vais tomar conta dele?

– A minha irmã toma conta!

– Tens a certeza, Amadu? Fica à tua responsabilidade!

– Inteiramente, meu alferes.

Agarrei no menino e começámos a andar até ao Xime e depois para Bambadinca.

Em Bambadinca, eram para aí 18h00, estava um barco no cais, a preparar-se para partir para Bissau. Aproveitámos o transporte no barco que ia carregado com laranjas, limões, ananás, bananas, muita fruta. Mas não era o que nós precisávamos, o que nos fazia falta era uma refeição quente.

O barco levava também batata-doce e abóboras. O furriel Artur tinha só 5 escudos e o alferes, que tinha uma nota de 500 escudos, pediu para lhe venderem batata-doce e abóboras, ao preço que se vendiam em Bissau. A batata-doce era vendida ao quilo, a abóbora era conforme o tamanho. Começámos a pesar as batatas e ninguém no barco tinha troco. Então, nós dissemos que, logo que chegássemos a Bissau, no dia seguinte um de nós ia ao mercado pagar. Mas não aceitaram.

Então pedimos uma panela grande, descemos ao porão e pusemo-nos a cozinhar a abóbora que tínhamos comprado. Mas uma abóbora não dava para o grupo todo. Enquanto o cabo Cruz, sentado em cima de um saco, cantava fados, íamos roubando batatas, uma a uma. Quando o Cruz assobiava parávamos de tirar batatas e assim fomos enchendo a panela. Quando o cozido ficou pronto, chamámos o grupo todo para comer.

Eram para aí 21h00 quando acabámos. Quando chegámos a Brá, já depois da meia-noite, ainda comemos uma refeição quente, de peixe cozido e depois retirei-me para a minha casa.

Eu estava muito satisfeito comigo próprio e com o alferes. Assim que ele aceitou o meu pedido de ficar com o miúdo, que se chamava Malan Nanque [4], um companheiro europeu do meu grupo, o Mendes, que tinha apanhado uma maleta com quatro cortes de fazenda, ofereceu-ma para fazer roupa para o rapazito. 

Quando chegámos a Bissau, levei-o ao alfaiate, e os cortes de tecido deram para fazer 3 calções e 2 camisas. Ainda lhe comprei um par de sapatos e uns chinelos.

Agora, que estou a escrever e a recordar este episódio, tenho os olhos húmidos. Estou a ver o miúdo à frente da arma com a mão na nuca, a tremer todo, a olhar para o matador. Ele, o menino, tinha acabado de ver o alferes matar a sentinela e devia pensar que agora era a vez dele. (**)

(Continua)

__________

Notas do autor Amadu Djaló e/ou do "copydesk" Virgínio Briote:


[1] Nota do editor: “Vai à Toca”

[2] Nota do editor: 11 de Novembro de 1964

[3] Em Darsalame Baio

[4] O rapazito, Malan Nanque, biafada, mudou de apelido, para poder frequentar a escola. Passou a ser meu sobrinho e viveu com a minha família em Bafatá. Durante muitos anos ninguém da nossa família soube que o Malan Djaló era o miúdo que tinha sido capturado pelos Fantasmas, numa manhã de Novembro de 1964.

Anos depois, em 1973, levei-o a ver a mãe, em Bissau. Mas Malan continuou a viver na nossa casa. Uns anos mais tarde, já com a Guiné independente, deu aulas de português em quartéis do PAIGC. Casou, teve um filho, adoeceu e morreu pouco tempo depois no hospital de Bafatá. O único filho que teve, uma menina, também sobreviveu pouco tempo. Morreu, ainda não tinha dois anos.

__________

Notas do editor:

(*) Sobre o Mauricio Saraiva (1939-2003) e o seu Grupo Fantasmas, Vd.

24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11457: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (66): Cap Cmd Maurício Saraiva, aqui evocado pela sua sobrinha Luciana Saraiva Guerra (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil) e pelo nosso coeditor Virgínio Briote

27 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6257: O segredo de... (12): O meu sobrinho Malan Djaló, aliás, Malan Nanque, o rapazito de 8 ou 9 anos anos, apanhado pelo Grupo Fantasmas, do Alf Mil Comando Saraiva, em 11 de Novembro de 1964, em Gundagué Beafada, Xime... (Amadú Djaló

Ver o que escreveu, sobre o Maurício Saraiva,  o Luis Rainha,  em poste de 31 de marco de 2010, no blogue Comandos Guine 1964 a 1966 (que deixou de estar dospinível na Net, não está sequer no Arquivo.pt, o que é pena:  http://comandos-guine-1964a1966.blogspot.pt/ ):


(…) Não querendo menosprezar ninguém, até porque sou Comando Centurião, quero aqui afirmar que o Grupo  Fantasmas foi de todos os Grupos formados e existentes na Guiné que mais louvores e condecorações teve. Teve um Chefe excepcional, que foi um belissimo condutor de  homens, um guerrilheiro fantástico e um exímio estratega.

Foi ele, Capitão Maurício Leonel Sousa Saraiva, dos militares Portugueses mais condecorados de todos os tempos e quiçá dos tempos vindouros. Este Homem, de H grande, grande Português e grande Patriota, ainda estava para sofrer os horrores da guerra não convencional. (…) [Era] um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de Familiares seus. (…)

Sobre o seu comandante, com quem esteve nove meses (até Maio de 1965), e por quem nutria respeito, admiração e afecto, o Amadú Djaló é parco em pormenores, nomeadamente sobre aspectos, eventualmente mais controversos, do seu comportamento como homem e militar. 

Aliás, ele é, quase sempre, de uma grande discrição e até deferência em relação aos seus "companheiros europeus" (sic). Só é crítico quando vê "europeu" a tratar, com menos respeito, bajuda e mulher grande... 

Perante umn capitão manifestamente racista, que ele conheceu no CICA/BAC, em Bissau, em 1962 ("Preto é como tartaruga, só quando lhe chegamos fogo ao cu, é que tira cabeça!", p. 41), Amadú é condescendente, compreensivo e caridoso: "Pela minha parte, ele era um diabo, não era um ser humano. Um homem com tanta cultura, oficial do Exército Português, não deveria trata deste modo os subordinados", p. 41).

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23568: Notas de leitura (1483): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IV: as circunstâncias da morte do 2º sargento mecânico auto Rodolfo Valentim Oliveira, em 11/8/1965...

Bedanda, ao tempo da CCAÇ 6. Infografia de António Teixeira, "Tony" (1948-2018), ex-alf mil  CCAÇ 3459/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 6, Bedanda (1971/73).

1. Continuação da leitura do livro  "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010/2020] , 445 pp. , il. [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67, exemplar gentilmente facultado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro] (*)


O livro, composto por cerca de 70 curtos capítulos, não numerados, pode ser considerado como um "diário de bordo", embora não datado, do autor (ou do seu "alter ego", o cap Cristo), que foi o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). 

Um dos capítulos "intrigantes" é o intitulado "Morreu um sargento" (pp. 313-317)

Embora o sargento não seja identificado pelo nome, deve tratar-se do 2º Sargento Mecânico Auto Rodolfo Valentim Oliveira, natural de Tavira, morto em  11 de agosto de 1965, um mês depois do Cap Inf Aurélio Manuel Trindade ter chegado a Bedanda. 

Segundo o nosso coeditor e colaborador permanente Jorge Araújo, terá sido o 3º sargento a morrer no CTIG, de um total de 54 (**).

Escreve o autor do livro que temos vindo a citar:

(...) "Morreu em combate o sargento mecânico, um técnico excelente e um bom homem" (pág. 313). 

O Manuel Andrezo (aliás. Aurélio Manuel Trindade)  relata a seguir, sucintamente, as circunstâncias dessa morte para depois nos dar conta das suas fortes suspeitas sobre o soldado mecânico Fernandes, possível autor ou coautor do  assassínio do 2º sargento mecânico da 4ª CCAÇ.

O sargento queria melhorar as condições de trabalho da oficina auto em Bedanda. Nomeadamente, queria construir uma plataforma com rampa para  lavagem e melhor observação das viaturas. Para isso precisava de madeira.  Pediu autorização ao capitão  para ir cortar madeira nas proximidades do quartel, a 2 km, num sítio onde o pessoal costumava ir à lenha, e onde nunca até então houvera problemas. Teve o OK do capitão, desde que levasse segurança. 

O sargento pegou na sua secção de mecânicos e condutores. E lá foi com uma equipa de 10 homens, munidos de serra mecânica e machados, e armados (os soldados da 4ª CCAÇ na altura ainda usavam a Mauser).

Passados duas horas, ouviu-se um curto tiroteio na mata. Uma pequena força, comandanda pelo Alf Mil Carvalho,  saiu do quartel a correr para ir ver o que se passava, tendo deparado então,  no local,  com "o sargento morto, com um tiro na cabeça, e os soldados amedrontados" (sic) (pág. 313).

A explicação dada pelos soldados é que teriam sido "surpreendidos por uns guerrilheiros na estrada Mejo-Bedanda". Reagiram aos tiros e os guerrilheiros retiraram prontamente. A única baixa fora o sargento. Não souberam explicar "quantos eram e para onde foram" os guerrilheiros, já que fora tudo muito rápido. 

O Alf Mil Carvalho fez uma pequena batida  na zona mas não encontrou  quaisquer vestígios da presença dos guerrilheiros, nem sequer invólucros. A haver trilhos confundiam-se com os  da população, das milícias e das NT. Começou por isso a ter dúvidas sobre a versão do pessoal da ferrugem. E transmitiu as suas impressões (e apreensões) ao capitão. 

Este fez questão logo de "considerar oficialmente a morte do sargento como sendo morte em combate numa emboscada da guerrilha"  (sic)  (pág. 315), mas mandou entretanto o Alf Mil  Carvalho averiguar melhor o que se tinha passado, devendo para o efeito interrogar todos os homens da ferrugem que tinham estado  com o sargento naquele fatídico local. 

A versão de todos os soldados inquiridos era unânime: foram vítimas de emboscada do IN... Mas o alferes vai descobrir, no entanto, um "suspeito".

As relações do sargento com os soldados da sua secção não eram boas. Um deles, o Fernandes, que era de Bissau, "todo espevitado e mal encarado" (sic) (pág. 316), andava sempre a contestar as ordens do sargento. Três ou quatro dias antes, o sargento dera-lhe "duas valentes bofetadas" (sic). O Fernandes terá dito, em público, que se iria vingar.  Houve testemunhas.

Chamado ao capitão, o soldado mecânico Fernandes foi de novo apertado:

(...)" Ouve, Fernandes. Eu não acredito na tua história da emboscada quando morreu o nosso sargento. Não houve nenhuma emboscada e foi uma arma vossa que o matou  e todos combinaram isso da emboscada para enganar nosso capitão. Eu vou descobrir a verdade. Se descobrir que vocês me querim enganar,  eu dou cabo de vocês. Tiveste uma discussão com o nosso sargento dois ou três dias antes. Disseste que te havias de vingar e vingaste-te. És capaz de ter morto o nosso sargento e inventaste depois a emboscada. Se eu descobrir que foi assim, limpo-te o sarampo como tu limpaste o nosso sargento. Ficas em constante vigilância do nosso capitão" (pp. 316/317).

O Fernandes manteve a sua versão até ao fim, protestando a sua inocência.  

E a história acaba assim: 

"Na companhia, oficialmente, só o Alferes Carvalho e o capitão duvidavam da versão dos soldados. Aliás, o capitão tinha a certeza de que o sargento tinha sido morto por um soldado, e pelo Fernandes com muita probabilidade" (pág. 317).

 O Cap Cristo não quis, porém, esticar a corda e agravar o mal-estar já existente na companhia. Informou, no entanto, o Comando em Bissau , "em nota pessoal e confidencial das suas desconfianças e das razões que justificavam a sua atitude".

Por sua vez, "o soldado Fernandes, que estava no fim do seu serviço normal, pouco tempo depois passou à disponibilidade e, apesar de querer continuar e de ser um bom mecânico, tal não foi autorizado. As dúvidas que sobre ele existiam,  influenciaram a decisão. O capitão considerava-o responsável pela morte do sargento e nunca lhe perdou" (pág. 317).

Uma história edificante? Pode perguntar-se por que é que o capitão não mandou levantar um auto de notícia e não se procedeu à autópsia do corpo do sargento, como seria normal noutras circunstâncias?... Não sabemos mais pormenores do caso. E convém lembrar que a fonte que estamos a usar é um livro de memórias, em parte ficcionado...

E depois o capitão tinha chegado há um mês, havia problemas de disciplina na 4ª CCAÇ, e Bissau fará questão de lembrar, a propósito da entrega ou não das espingardas automáticas G3 (em substitituição da velha Mauser),  que se tratava de uma "companhia de negros em quem não confiamos totalmente" (sic) (pág. 139)... 

O enviado de Bissau a Bedanda, um tenente coronel, Chefe do Serviço de Material, lembrou ainda ao Capitão Cristo que já houvera lá "uma tentativa de revolta e ninguém nos diz que não possa haver outra, e era muito aborrecido se eles fugissem para o mato com as G3" (pág. 139)...

De qualquer modo, sabemos de outros casos, que no CTIG o exército lidava mal com estas situações de mortes por "acidente com arma de fogo" (termo que em geral era um eufemismo para escamotear as verdadeiras causas de acidentes mortais como o suicídio ou o homicídio). 

Para proteger seguramente a família e honrar a memória do 2º sargento Rodolfo Valentim Oliveira, este foi dado como "morto em combate", tendo sido louvado e agraciado, a título póstumo, com a Medalha da Cruz de Guerra de 4ª Classe bem como a Medalha da Cruz de Guerra, colectiva, de 1ª classe.

2. Lê-se, a propósito,  no portal UTW - Ultramar TerraWeb, dos Veteranos da Guerra do Ultramar (com a devida vénia...)

Honra e Glória - Rodolfo Valentim Oliveira (...)

(...) Louvado, a título póstumo, por feitos em combate, publicado na Ordem de Serviço n.º 118, de 1965, da 4.ª Companhia de Caçadores Indígena (4ª CCaçI);

Agraciado, a título póstumo, por feitos em combate, com a Medalha da Cruz de Guerra de 4.ª classe, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, de 4 de Março de 1966, publicado na Ordem do Exército n.º 13 – 3.ª série, de 1966;

Agraciado, a título póstumo, com a Medalha da Cruz de Guerra, colectiva, de 1.ª classe, pelo Decreto n.º 48412, publicado no Diário do Governo n.º 129/1968, Série I, de 30 de Maio de 1968.(...)

Transcrição do louvor que originou a condecoração.

(Publicado na Ordem de Serviço n.º 118, de 1965, da 4.ª Companhia de Caçadores):

Louvado, a título póstumo, o 2.º Sargento, Rodolfo Valentim de Oliveira, da 4.ª Companhia de Caçadores, porque tomando parte numa patrulha a Cobumba, frente a um inimigo superior não só em efectivo, como em armamento automático, mostrou coragem, sensatez, sangue-frio e inteligência no comando da sua Secção, apesar de ter apenas alguns dias de Comissão, pondo sem dúvida em evidência, qualidades de um militar exemplar.

Contudo, durante a retirada do Pelotão, fazendo parte da força de cobertura, foi ferido pelo inimigo, do que adveio o seu falecimento. (...)

3. O que diz o nosso coeditor e colaborador permanente, Jorge Araújo, no poste P18953 (**) ?

A  3.ª BAIXA: - 2.º SARGENTO CMD RODOLFO VALENTIM OLIVEIRA, DA 4.ª CCAÇ, EM 11AGO1965


(...) A morte do 2.º Sargento Cmd Rodolfo Valentim Oliveira, natural de Santiago, Tavira, ocorrida em 11 de Agosto de 1965, 4.ª feira, é considerada a terceira na cronologia dos Sargentos do Exército falecidos em combate no CTIG.

O Sargento Rodolfo Valentim Oliveira pertencia à estrutura orgânica da 4.ª CCAÇ [Companhia de Caçadores Nativos (ou indígenas) constituída por praças africanas de Recrutamento Local, que eram enquadrados por oficiais, sargentos e praças especialistas oriundos da Metrópole.

Criada e instalada primeiramente em Bolama em finais de 1959, mudou-se em Julho de 1964 para Bedanda, por necessidades operacionais, uma vez que um dos objectivos intrínsecos para a sua criação foi/era a segurança e/ou a defesa das suas populações, estando assim implícito o conceito de "missão" ou "actividade operacional" na luta contra os grupos da/de guerrilha armados. Três anos após a instalação dos seus primeiros efectivos em Bedanda, esta Unidade é renomeada, em 1 de Abril de 1967, passando a designar-se por Companhia de Caçadores n.º 6 [CCAÇ 6 - "Onças Negras"] (vidé: P18387 e P18391). (...)

Na sequência da actividade operacional da CCAÇ 763, caracterizada pelo camarada Mário Fitas no livro acima referido ["Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra"], da qual resultou a morte do 2.º sargento Leandro Vieira Barcelos, já descrita no ponto anterior, encontrámos uma primeira referência à 4.ª CCAÇ, onde dá-se conta de missões conjuntas envolvendo as duas Unidades.

É a partir dessas vivências colectivas anteriores, partilhadas em palcos comuns, que se vem a saber da morte do 2.º sargento Rodolfo Valentim Oliveira. Por ausência de informações mais precisas quanto aos detalhes que originaram a sua morte em combate, citamos o que foi possível apurar neste âmbito:

"Voltamos a caminhos de Cabolol mas seguindo a estrada, passamos nas bordinhas da mata e vamos atá à tabanca de Cobumba, numa acção punitiva, por a sua população dar guarida a um grupo de guerrilheiros, que teria causado várias baixas à 4.ª CCAÇ estacionada em Bedanda, entre as quais se contava um sargento [Rodolfo Valentim Oliveira]"  [Poste P17130].

Para que não fiquem na "vala comum do esquecimento", como costumamos afirmar, eis os quadros estatísticos dos 54 (cinquenta e quatro) sargentos [Ajud., 1.ºs e 2.ºs], nossos camaradas dos três ramos das Forças Armadas, que tombaram durante as suas Comissões de Serviço na Guerra no CTIG, sendo 13 em acidente (24.1%), 17 em combate (31.5%) e 24 por doença (44.4%). (...) 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22556: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte V: Ordem de serviço, nº 279, de 28 de novembro de 1970, pp. 3, 4 e 5




1. Mensagem de João Rodrigues Lobo [ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez1967/fev1971): fez o 1º COM, em Angola, na EAMA, Nova Lisboa; vive em Torres Vedras onde trabalhou durante mais de 3 décadas como chefe dos serviços de aprovisionamento do respetivo hospital distrital; membro nº 841 da Tabanca Grande.]

Date: sábado, 3/07, 23:07 | Subject: Contributos para o blog.

Como combinado começo a enviar o que julgo serem alguns contributos pessoais para o blog, embora um pouco personalizados.

Duas Ordens de Serviço de Maio e Novembro de 1970, cujos originais me foram dados por nelas constar o meu nome, mas que revelam um pouco do que foi o BENG 447, e o que foi por este Batalhão construído.

De notar que a primeira é assinada pelo Major Engº João A.Lopes da Conceição e a segunda pelo Tenente Coronel Engº João António Lopes da Conceição.(*)







Cópia da Ordem de Serviço nº 279, de 28 de novembro de 1970, do BENG 447, pp. 3, 4 r 5 )pp. 1397/8/9)

2. Comentário do editor LG
:

Em relação ao art. 5º da página 1397 (Cópia de sentença), destaque-se o seguinte, por mera curiosidade: a 4 militares do BENG 447, dois cabos e dois soldados, foi instaurado procedimento criminal pelo TMT  (Tribunal Militar Territorial) da Guiné por alegadamente , "em acção conjunta e de comum acordo", em 4 de julho de 1969, a bordo do N/M "Rita Maria", terem subtraído fraudulentamente os seguintes artigos:  

(i)  nove caixas de vinho no valor de 1687$00 (escudos),  o equivalente, a preços de hoje, a 518,25 €;

(ii) nove pacotes de 72 caixas de fósforos cada um, no valor de 178$64 (o equivalente hoje a 54,88 €).

Trata-se de um simples "fait-divers" ou dá para entender um pouco melhor o que era a "justiça militar" de então ? Claro que um "roubo" era/é sempre um "roubo"... 

Não sabemos o desfecho deste caso: o João Rodrigues Lobo guardou cópia desta Ordem de Serviço, de 28 de novembro de 1970, por nela constar a atribuição, à sua pessoa, da Medalha Comemorativa das Campanhas da Guiné... E estava já em fim de comissão. 

Mas é possível que os alegados quatro autores do "surripianço" de 54 garrafas de vinho e de 648 caixas de fósforos da "despensa" do N/M "Rita Maria", propriedade da Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, do Grupo CUF,  tenham recebido o "castigo exemplar": provavelmente ficaram mais uns meses na Guiné, até pagarem a totalidade da indemnização que era devida aos donos dos bens "surripiados"...LG

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20836: (De)Caras (151): O soldado José Vieira Lauro, que se rendeu ao IN, em 10/10/1965, em Gamol, Fulacunda, mostrou que afinal havia uma saída, menos gloriosa, era verdade, mas mais esperançosa; de resto, não há guerra que não tenha um fim... (Cherno Baldé, Bissau)

1. Comentário de Cherno Baldé,ao poste P20814 (*):

Esta triste acontecimento, do meu ponto de vista, mostra o efeito forte e que pode ser nefasto, do doutrinamento ideológico ou psicológico nos conflitos.

Muitos não concordarão, mas acho que o último soldado [, José Vieira Lauro], em desespero de causa e sem ter a coragem suicida dos colegas, mostrou que, afinal, havia uma saída, menos gloriosa é verdade, mas que permitia continuar a ter esperança, pois, como se costuma dizer, não há conflito/guerra que não termine em paz, assim como não há escravidão que não termine em liberdade.

Mas, isto sou eu a pensar e no ano não menos funesto de 2020.

Com um abraço amigo.
Cherno Baldé

2. Comentário do editor LG:
Capa da 2ª edição (2003),
"Rumo a Fulacunda"


Tinha lançado um desafio aos nossos leitores (*):

"Se fosse eu que estivesse no lugar do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, o que é que eu faria ?"...

Recorde-se que, neste episódio (excerto do lirvo "Rumo a Fulacnda"), o seu autor, o nosso camarada Rui A. Ferreira reconstitui, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o Alf Mil Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, morreu, depois de ver morrer mais quatro homens ... O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e foi feito prisioneiro, levado para Conacri e mais tarde, já em 1968, libertado, sendo entregue à Cruz Vermelha do Senegal. Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Porventura sinal dos tempos que estamos a viver, cada um de nós confinado na sua "toca", ninguém dos nossos leitores ousou pôr-se na pele do alf mil Vasco Cardoso, que foi o último a morrer, em 10/10/1965, em Gamol, Fulacunda.

Comentário o Cherno, nosso amigo  e irmãozinho, que não foi combatente, mas conviveu, como "djubi" em Fajonquito com as NT... Respondi-lhe nestes termos (*)

(...) "Não posso estar mais de acordo contigo...Mas eu não queria antecipar-me a outros comentários, sobretudo daqueles que foram combatentes, como eu... Percebo o seu "pudor", e até mesmo o seu receio de "dar a cara", meio século depois, o seu receio de serem "julgados" pelos seus pares...

Que Deus, Alá e os bons irãs nos protejam nestes tempos difíceis para todos nós, portugueses, guineenses e restante humanidade." (...)


Antes tinha avançado com o seguinte comentário (*)

(...) "É claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se. Mas só em abstracto, podemos, 52 anos depois, pormo-nos na pele de um camarada que sabia que ia morrer...

Este trágico episódio dava um extraordinário "thriller" de ação, se houvesse um realizador de cinema português que tivesse "unhas" para agarrar esta e outras memórias da guerra colonial...

É pena que não haja... Lidamos mal com a memória: só agora, 100 anos depois, se começa a fazer alguma, tímida, investigação historiográfica sobre a "pneumónica" que em 1918/19 terá morto 2% da população portuguesa (que era de 6 milhões)" (...)

domingo, 5 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20814: (De) caras (150): Acossados pelo IN, numa agonia de 4 dias, entre 7 e 10 de outubro de 1965: seis camaradas, da CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423, no decurso da Op Lenda, em Gamol, Fulacunda, têm um destino cruel: 3 são abatidos, 2 suicidam-se e o último rende-se (Rui A. Ferreira, ex-alf mil, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67; e ex-cap mil, CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72)

Rui A.Ferreira, alf mil,  CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)...
Com um chapéu "turra". Cortesia do autor.

1. "Rumo a Fulacunda" era o grito de guerra, muito pouco "guerreiro", da Companhia de Caçadores 1420, em cujas fileiras ingressou o Alf Mil Rui Ferreira, em rendição individual, substituindo um camarada "desaparecido em combate" (,o seu corpor nunca foi recuperado), o Vasco [Nuno de Loureiro de Sousa] Cardoso, nado e criado em Angola, como o Rui Alexandre Ferreira.

"Rumo a Fulacunda" é o título do primeiro livro de memórias do nosso amigo e camarada Rui A. Ferreira, que hoje vive em Viseu, lutando contra uma doença degenerativa, razão por que há anos que não colabora no nosso blogue, onde tem  mais de 70 referências.

Neste livro, conta-nos um cruel episódio de guerra, passado no decurso da Op Lenda,  em Gamol, Fulacunda, em 7 de outubro de 1965, envolvendo as CCAÇ 1420 e CCAÇ 1423. Seis militares, perdem-se do grosso das NT,  dividas em três colunas de progressão, na sequência de uma forte emboscada IN, nesse próprio dia.

O Rui reconstitui, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o Alf Mil Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, morreu, depois de ver morrer mais quatro homens ... O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e  foi feito prisioneiro, levado para Conacri e mais tarde, já em 1968, libertado, sendo entregue à Cruz Vermelha do Senegal. Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Este episódio já aqui foi publicado, há quase 13 anos atrás (*). Muitos dos novos membros da Tabanca Grande nunca o leram, e o nome do Rui A. Ferreira tende a ficar esquecido. Queremos reavivar esta história, em homenagem às vítimas mortais mas também a quem soube preservar a sua memória (o José Vieira Lauro, sobrevivente e prisioneiro; e o Rui A. Ferreira, que deu a essa memóra letra de forma).

Por outro lado, e no atual contexto de confinamento, resultante da pandemia de COVID-19 e da declaração do estado de emergência, achámos por útil voltar a reproduzir este excerto do livro "Rumo a Fulacunda", agora noutra série, "(De)Caras" (**).

É claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se.  Fica aqui o desafio aos nossos leitores, muitos dos quais poderão pôr-se na pele dos nossos infortunados camaradas: "Se fosse eu que estivesse no lugar do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, o que é que eu faria ?"... 

Não, não é um "jogo de guerra", muito menos electrónico... Foi escrito com sangue, suor e lágrimas... Poderia ser um estudo de caso, relevante para a formação humana e militar e que levanta inúmeras questões, do foro militar, ético, jurídico, psicológico, psicotalógico, socioantropológico, filosófico,  etc.

Falta-nos mais informação sobre este episódio e o seu contexto: por exemplo, oficial ou oficiosamente, os nossos camaradas são dados como mortos em 6/10/1965, mesmo sem os corpos terem sido recuperados...

Por outro lado, só mais tarde se terá sabido do aprisionamento do José Veira Lauro... O Rui A. Ferreira diz que a operação teve início na madrugada de 7 de outubro... Confirmámos, noutro poste [, sobre a atividade operacional do BCAÇ 1860],  que a Op Lenda, na zona de Gamol,  subsetor de Fulacunda, teve início nesse dia, e envolveu as CCaç 1420 e 1423.

Sabemos o nome de código da operação, mas falta-nos informação mais detalhada... A emboscada terá sido nesse dia. E nesse mesmo dia, à tarde, as NT terão regressado a Fulacunda... onde deram conta da falta de seis elementos... Pergunta-se:  voltaram ao local da emboscada ?... Parece que sim, no dia seguinte, realizou-se a Op Busca, envolvendo forças da CCaç 797, 1420 e 1423, na zonas de Gamol e Ganjetrá... Mas as buscas terão sido, segundo o Rui A. Teixeira,  apressadas, incompletas e infrutíferas. Houve ainda, a 18Out65, a Op Ovo, nas zonas de Gamol, Bária e Sancorlá, com forças das CCaç 797, 1420, 1423, 1424 e CCav 677.

A agonia dos nossos camaradas ter-se-á prolongado "durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias" (sic),  num trágico jogo do gato e do rato, "em manifesta desigualdade"... Quatro dias, quer dizer, 7, 8, 9 e 10... Tudo indica que a última morte, a do Alf Vasco Cardoso, terá ocorrido a 10 de outubro de 1965, bem como a rendição do sold Lauro.

[Segundo a reconstituição feita por uma equipa do portal UTW - Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar,  a primeira baixa do grupo seria  o Fernando Manuel de Jesus Alves, morto no dia 8; a segunda vítima, a 9, terá sido o  José Ferreira Araújo; o  Armando dos Santos Almeida, morre a  10; o Armando Leite Marinho, morre a seguir,  possivelmente afogado, também no dia 10; o último a morrer, nesse dia, é o alferes Vasco Cardoso.]

Fica aqui a nossa sentida homenagem a estes camaradas, que tiveram sortes diferentes: 5 morreram (2 alegadamente por suicído) e um acabou por render-se ao grupo do PAIGC que os persegiu durante três ou quatro dias (de 7 a 10 de outubro de 1965).



Ficha técnica:

Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Título: Rumo a Fulacunda
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2000. [1ª ed., 2000, 2ª ed., 2003; 3ª ed., 2016].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce no Lubango (antiga Sá da Bandeira), Angola
1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.
1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso, dado  um desaparecido em combate [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67].
1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].
1973 - Regressa a Angola em outra comissão.
1975 - Retorna a Portugal.
1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. é ten cor ref.
2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra  (***)
2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné (2014), igualmente sob a chancela da Palimage.
2017 - Lança um 3º livro,  A Caminho de Viseu,  nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.



Guiné > Região de Quínara > Mapa de Fulacunda (1955) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gamol e Ganjetrá, a oeste de Fulacunda,  A norte, o rio Geba, a leste, o rio Corubal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


2. Excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003), pp. 37/40. (Subtítulos e comentário: L.G.;  fixação do texto para efeitos de edição no blogue: VB / LG).

(...) Na madrugada do dia sete de Outubro [de 1965], lá iniciaram a marcha para o objectivo, de início em bicha de pirilau, uma com a outra logo a morder-lhe os calcanhares.

À medida que o tempo ia passando e o aquartelamento ia ficando mais longe, o passo foi-se tornando mais lento, os ouvidos mais apurados, os olhos mais atentos, todos os sentidos em alerta permanente, numa concentração profunda.

Pausadamente!...Penosamente, lá iam avançando... Subitamente, com o inesperado habitual, deflagrou o tiroteio. O cantar característico das costureirinhas turras (pistolas metralhadoras PPSH) feria os ouvidos e eriçava os nervos.

Milagrosamente não houve nem mortos nem feridos a lamentar, de início. Na frente, que entretanto já havia sido, pelo Capitão Pita Alves, dividida em três colunas de progressão, a que se encontrava mais à direita, onde se integrava o Alferes Vasco Cardoso, directamente visada pelo ataque, ficou, imobilizada, retida pelo fogo das armas ligeiras e metralhadoras do inimigo.

- Tomar posições de defesa! - gritou o Alferes.
- Reagrupar à retaguarda! - comandava bem lá de trás o maior da 23 [, a CCAÇ 1423], Capitão de Artilharia [ou Infantaria ?]  Pita Alves, estratega e Comandante-em-Chefe da operação.


Seis homens isolados 
e perdidos na frente

No meio da confusão que se instalou e que a diversidade das pseudo ordens, opiniões, alvitres e sugestões que se seguiram mais agravou, as colunas viram-se partidas em vários segmentos. Numa das frentes, o Alferes e mais cinco homens fixados pelo intenso tiroteio turra, não conseguiam juntar-se à retaguarda ou reintegrar-se na força.

Por seu lado, ninguém ali conseguia esboçar qualquer tipo de reacção. Sufocados pelo tiroteio, desorientados, metidos cegamente na boca do lobo, impreparados para um confronto tão desigual, sem que alguém tivesse conseguido pôr ordem naquela periquitada, o grosso das Companhias retirou da zona, dispersa e desordenadamente.

Os seus elementos foram chegando a Fulacunda, desfasados no tempo e em pequenos grupos isolados. Uns quantos agora..., outros tantos tempos depois..., ainda mais alguns quando já se pensava no pior.

Isolados frente aos turras,  permaneciam ainda vivos os seis transviados. Batiam-se com o desespero e a raiva de quem luta pela sobrevivência. Nado e criado em África, Vasco Cardoso [, alf mil, CCAÇ 1420], era dos elementos mais válidos da Companhia. Habituado ao calor e à humidade, entendia-se perfeitamente com o clima e não estranhava o mato. Nele se movia, habitualmente, com o desembaraço dum lisboeta no Chiado. Apaixonado caçador como quase todo o bom africano, este era-lhe familiar. O instinto de conservação levava-o, debalde, à busca de uma qualquer solução.

Ia adiando o desastre que já pressentia, fazendo a um tempo pagar bem caro o preço da sua vida e dando oportunidade a que algo sucedesse. Poucos que eram, mantinham ainda em respeito o mais que numeroso grupo inimigo, esperançados na ajuda que certamente lhes prestaria alguma das Companhias. Que nunca chegou!... Foram-se esgotando as munições. Aos poucos... Aos poucos foram entrando em desespero...

Numa tentativa suicida para inverter a situação romperam o contacto em louca e desorientada correria. Tendo conseguido estabelecer alguma distância entre o minúsculo grupo que constituíam e o numeroso efectivo que o perseguia, a trégua de pouco lhes serviu.

E é pelo relato do Soldado José Vieira Lauro [, da CCAÇ 1423], único sobrevivente daquele grupo,  que se pode aquilatar a vastidão do desastre.

Perdidas as noções do tempo e das distâncias, perseguidos, acossados, encurralados, cercados, sem pausas para pensar ou tentar coordenar ideias, sem rumo e sem direcção, completamente desorientados, sem saber sequer onde estavam, na maior confusão sobre a localização do aquartelamento, indecisos para onde ou por onde progredir, durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias jogaram tragicamente ao 'gato e ao rato' em manifesta desigualdade.

Desigualdade que se foi agravando com o desenrolar do tempo e com a passagem dos dias, cada vez mais sujeitos à hostilidade dum mar verde que os envolvia, tolhia e amedrontava, cada vez mais rejeitados por uma selva que os não reconhecia e onde não tinham lugar.

Sem hipóteses de sobrevivência, facilmente referenciados dada a impossibilidade de integração ou mesmo de dissimulação no meio ambiente que os rodeava, pressionados pela perseguição feroz que o inimigo lhes movia, foram-se desgastando fisicamente e vendo definhar a pouca força moral que ainda restava.

As duas primeiras baixas 
do grupo

A própria fé que um acordar redentor fizesse com que, em vez da trágica realidade, da dura e cruel situação em que se encontravam, nada mais fosse que um tremendo pesadelo, se desvaneceu.


Afastada por inverosímil e absurda essa hipótese, sem o menor sinal de ajuda, sem a mínima sombra dum apoio, sentiam que o mundo donde provinham, completamente alheado das suas fraquezas, se tinha esquecido das suas angústias e mais grave ainda já duvidava das suas existências.

Abandonados, isolados, completamente entregues a si próprios e às desventuras que o destino lhes reservara, vencidos pelo desânimo, vergados pelo infortúnio, progressivamente se quebrou a pouca resistência que sobrava.

Já só um milagre os salvaria da morte. Milagre que não aconteceu... Sustidos pelo rio que lhes barrava o caminho, encerradas assim as já poucas saídas que lhes restavam, tudo começava a consumar-se.

Uma bala mais certeira trespassou, no segundo dia [8 de outubro de 1965], um deles, provocando a primeira baixa no grupo...

O corpo para ali ficou abandonado, repasto para os bichos!... Ao terceiro dia [, 9 de outubro de 1965] caiu o segundo. Mais um despojo que para ali ficou esquecido a marcar tragicamente a transitoriedade da vida. Tal como o primeiro,  o seu corpo para ali ficou de qualquer maneira, insepulto.

O desespero leva a 
dois suicídios

No último dia [, 10 de outubro de 1965,] em que funestamente tudo se consumou, um dos sobreviventes entrou em desespero. Não conseguindo suportar todo aquele sofrimento, toda aquela imensa pressão, no limite do controlo sobre as já pouco lúcidas faculdades mentais, em absoluta crise emocional, sem conseguir sequer imaginar uma saída redentora, só a morte se lhe afigurava como solução libertadora. Profundamente deprimido e a caminho da alienação total, pôs termo à vida e ao sofrimento, com um tiro na cabeça.


No auge do desespero e numa tentativa suicida, à partida absolutamente condenada ao fracasso, um tentou a salvação através do rio, por onde se meteu...para nunca mais ser visto. Jaz com certeza morto, algures... E se não teve por benção e por morte o afogamento, serviu de repasto aos crocodilos no que certamente terá sido um final dramático.


A morte do Alferes Vasco Cardoso 
e a rendição do Soldado Lauro

O Alferes foi o último a ser abatido e o Soldado Lauro, largou a arma e entregou-se… De nada lhe serviria o sacrifício da vida. Teve início então o longo calvário que se seguiu.

A caminhada rumo à fronteira, só atingida ao fim de vinte e dois dias de marcha, onde as canseiras, a dor e o sofrimento lhe causavam bem menor mágoa que o sentimento de culpa, o profundo abatimento e a vergonha de se sentir prisioneiro. A esse angustiante estado de alma se aliava o enorme desconforto motivado pelo receio do desconhecido, agudizado pela incerteza do futuro.

Só, inacreditavelmente só, como nunca se tinha sentido, possuído por uma tristeza mais negra que a pele dos próprios captores que o conduziam, caminhava como se fosse um autómato. Da fronteira para Conacri, o transporte em viatura, a entrevista com o próprio Amilcar Cabral, a recusa em ler para a rádio Argel, onde alguns compatriotas então brilhavam, fosse o que fosse contra Portugal, a clausura numa prisão, num antigo forte colonial francês, na cidade de Kindia, cerca de uma centena de quilómetros a nordeste de Conacri.

Aí, onde sob o enorme portão fronteiriço se podia ler Maison de Force de Kindia, foi encontrar o 1.° Sargento Piloto-aviador Sousa Lobato, primeiro militar português que o PAIGC aprisionou quando, no sul da província, teve de efectuar uma aterragem de emergência numa bolanha, corria o ano de 1963.

Permaneceu em cativeiro, trinta longos meses. Foi libertado num gesto de boa-vontade, em 1968 e entregue à Cruz Vermelha Internacional que o fez chegar a Lisboa. (****)

Não esqueceu os tempos maus que por lá passou mas nunca foi alvo de procedimentos vexatórios ou de maus tratos. Era um prisioneiro de guerra, assim foi considerado e como tal tratado. Nesse aspecto e unicamente reportando-me à Guiné, se alguém teve razões de queixa, não foi seguramente a tropa portuguesa. O próprio Amílcar Cabral nunca se cansou de afirmar que a luta era contra o Regime Colonialista que então detinha o poder em Portugal e nunca contra o povo português.

Entretanto em Fulacunda, procedia-se ao rescaldo da operação. Formadas as Companhias já a meio da tarde, quando se começou a recear que mais ninguém conseguisse regressar, contavam-se os efectivos.

- Seis! Faltavam seis homens! Dois da [CCAÇ] 1420 (o Alferes Vasco Cardoso e o Soldado-telefonista nº 1020/64 Armando Leite Marinho) e quatro da [CCAÇ] 1423 (o 1.° Cabo Fernando de Jesus Alves e os Soldados José Ferreira Araújo, Armando Santos e José Vieira Lauro. (...) (*****)




Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 > "[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar."  (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)

______________

(**) Último poste da série > 11 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20724: (De)Caras (122): Carta pungente do Umaru Baldé (c. 1953-2004), um dos meninos-soldados que passaram pelo CIM de Contuboel, entre março e julho de 1969... Era dirigida ao seu antigo instrutor militar, Valdemar Queiroz.

(...) Um outro camarada ex-prisioneiro de Conacri foi o José Vieira Lauro, que já era prisioneiro em Conacri quando o Jacinto Barradas lá chegou (...).

Foi um dos que mais tempo esteve aprisionado e, na prisão, cabia-lhe a tarefa de distribuir a comida pelos restantes prisioneiros. Na maior parte das vezes (segundo o Jacinto Barradas) apenas era distribuído arroz porque, das poucas vezes em que a refeição trazia alguma carne de galinha, esta era roubada pelos guardas.

O José Vieira Lauro vive na região de Leiria - telef. 244 881 695; telem. 919 086 150. (...)


Vd. também poste de 18 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1967: Prisioneiros em Conacri, capa da Revista do Expresso, 29 de Novembro de 1997: o que é hoje feito deles ? (Henrique Matos)


Militares mortos:

Armando dos Santos Almeida, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 /Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Queiriga, Vila Nova de Paiva / Corpo não recuperado.

Armando Leite Marinho, Soldado / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Jugueiros, Felgueiras / Corpo não recuperado.

Fernando Manuel de Jesus Alves, 1.º Cabo / CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Leiria / Corpo não recuperado.

José Ferreira Araújo, Soldado CCaç 1423 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Povolide, Viseu / Corpo não recuperado.

Vasco Nuno de Loureiro de Sousa Cardoso, Alferes / CCaç 1420 / 06.10.65 / Fulacunda-Gamol / Ferimentos em combate / Belém, Lisboa / Corpo não recuperado.

[No portal da Liga dos Combatentes, Mortos no Ultramar, todos estes nossos camaradas continuam a ser dados com mortos,  em combate, no dia 6 de outubro de 1965.]

Sobre as duas companhias envolvidas:

A CCAÇ 1420, mobilizada pelo RI 2, partiu para  o CTIG em 31/7/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Fulacunda, Bissorã e Mansoa. Comandantes: cap inf Manuel dos Santos Caria; cap inf Humberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil inf Adolfo Melo Coelho de Moura. Pertence ao BCAÇ 1857 (Bissau, Mansoa, Mansabá, 1965/67).

A CCAÇ 1423, mobilizada pelo RI 15, partiu para o CTIG em 18/8/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Bolama, Empada e Cachil. Comandantes: cap inf Artur Pires Alves; cap inf João Augusto dos Santos Dias de Carvalho; cap cav Eurico António Sacavém da Fonseca; pertence ao BCAÇ 1858  (Bissau, Teixeira Pinto, Catió, 1965/67).

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19507: Recortes de imprensa (102): "Diário de Notícias", 3/2/1966: o cão da CCAÇ 617. um bravo Boxer, que se bateu como um leão (João Sacôto / José Martins)


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > O valente Toby, um boxer... Ferido em combate, sobreviveu e regressou a casa com os seus "camaradas de guerra"... Infelizmente, e para grande desgosto do João Sacôto, teve de ser abatido por doença grave, infecciosa, contraída no TO da Guiné.  O João nunca mais voltou a ter um cão. "Amigo, guarda-costas, camarada"... são alguns dos epítetos que o seu dono a ele se referiu, em conversa que tivemos ao telefone... Acompanhou o João em diversas operações, e nunca o largava, nomeadamente quando o dono, sozinho, se embrenhava no mato para fazer as suas necessidades... Ficava de sentinela, não fosse o diabo tecê-las!... Um história, tocante, que faltava no nosso blogue...

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Recorte do "Diárrio de Notícias", 3/2/1966

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Toby, junto com a malata da CCAÇ 617, desembarcando em Bissau,
em 15 de janeiro de 1964. Foto de João Sacôto (2019)
1. Mensagem de João Gabriel Sacôto Martins Fernande, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66),comandante da TAP reformado:

Data / Hora - 11/02, 14:45


Assunto - o meu cão Toby


Luis:

O meu cão Toby (*) era muito acarinhado pelo pessoal do batalhão [, o BCAÇ 619,] e famoso entre a população local de Catió. Regressou a Lisboa comigo, como documenta o "Diário de Notícias",  de 03/02/1966 (em artigo jornalisticamente trabalhado por excesso…) .

Acompanhou a companhia em algumas operações, assim como me fez companhia nos destacamentos que fiz em Ganjola e claro também nos acompanhou no último destacamento da CCAÇ  617 no Cachil, ilha do Como.

Quando foi ferido, durante uma das nossas operações [, no Cantanhez], não nos apercebemos da situação e foi só no dia seguinte que uma patrulha o avistou ao longe e estiveram a pontos de lhe dar um tiro, julgando tratar-se de uma gazela ou outro animal selvagem. Felizmente alguém gritou “Não atirem, é o Toby”. Encontrava-se quase desfalecido na berma da estrada já perto do quartel. A sua recuperação foi longa pois a sua fraqueza não lhe permitia nem levantar-se, nem alimentar-se normalmente. Foi recuperando as forças lentamente, alimentado com papas de farinha diluída em água que lhe ia dando com a ajuda de uma colher. 

Em boa verdade, ao contrário do que conta o jornalista, não foi operado, por decisão do nosso médico que achou ser preferível que as feridas com entrada e saída da bala fossem fechando lentamente e de dentro para fora, evitando uma infeção que poderia ocorrer, caso fosse suturado.

Um agradecimento ao José Martins.
Um abraço,  
JS


2. Mensagem do nosso colaborador permanente, José Martins, em complemento da mensagem anterior:

Data - segunda, 11/02, 18:51


Assunto - O  “cão-praça Toby”

Não estranhem o título.

No tempo em que a cavalaria era a cavalo, que os oficiais de  infantaria se deslocavam em cavalos e a artilharia era de tracção  animal (solípedes), os animais eram considerados “cavalo-praça” a que
se seguia o seu número de ordem.

Tinham direito a uma verba para alimentação e, era corrente nos  jornais de localidades em que existiam regimentos, haver concursos  para “fornecimento de forragens e palha”.

Veio isto a propósito de um recorte de jornal, devidamente explicado,  publicado no Diário de Noticias de 2 de Fevereiro de 1966, há portanto  53 anos [, reproduzido acima

A história vai ser escrita/contada pelo Luís mas, não me escuso de  antecipar um comentário, com base na notícia e descrição feita pelo  Sacôto.

Se o Toby tivesse nascido na terra do Tio Sam, hoje teríamos, nos anais militares, a existência do “cão-praça Toby” com direito a verba para a alimentação e coleira e trela fornecida pelos Serviços de
Material, depois de confeccionada por algum Sargento Artífice Correeiro.

Como cita o tratador, o referido cão-praça foi ferido em acção de combate, tendo desaparecido no decurso dessa operação. Em situação normal, dentro da anomalia da guerra que todos vivemos, ao ser dado como desaparecido em combate, o mesmo teria sido objecto de menção na Ordem de Serviço e, provavelmente, os helis teriam levantado para “bater o terreno de operação”.

Como foi recuperado em condições físicas graves, teria direito a ser socorrido num hospital VET. Como caso raro, seria posteriormente recebido pelo General Comandante-chefe e Governador da Província, para lhe colocar numa “Casaca bordeada a ouro” que seria confeccionada numa
qualquer rua de Bissau, uma condecoração.

Digam lá: Era um grande Ronco, não era?

Gandabraço
Zé Martins


3. Nova mensagem do João Sacôto,  com data de 11/02/2019, 19:24  



Obrigado José Martins. Gostei.

O fim da historia é um pouco triste:

Alguns meses após o nosso regresso da Guiné, o Toby  adoeceu. A sua doença foi-se agravando até que o levei ao veterinário que lhe diagnosticou uma infecção generalizada do sangue derivado dos imensos ataques dos famigerados mosquitos da Guiné.

Por mais esforços que eu fizesse, tentando protegê-lo dos ataques que ocorriam durante a noite enquanto dormia, pela manhã, no lugar em que tinha estado deitado, era notável uma mancha de sangue, creio que dos mosquitos por ele esmagados quando em desespero se voltava no lugar que lhe servia de leito.

Sem condição de cura da enfermidade, fui confrontado com a solução posta pelo médico veterinário de pôr termo ao seu sofrimento, aplicando-lhe a eutanásia.

Foi para mim muito doloroso mas foi também um acto de solidariedade pondo fim ao sofrimento do “cão-praça TobY”, meu amigo e "camarada de armas”.

Um abraço,
JS
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