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sábado, 25 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22845: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XV: Dezembro de 1966: a Op Harpa em que é ferido com gravidade o Quebá Soncó, que depois irá para o hospital de reabilitação de Hamburgo, na Alemanha


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadicna) > CCAÇ 1439 (1965/67) > Missirá > O alf mil João Crisóstomo e o régulo do Cuor, Malan Soncó, alferes de 2ª linha.

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)
(a viver em Nova Iorque desde 1977, 
depois de ter passado por Inglaterra e Brasil)



1. Continuação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)

Parte XV: Memórias do Quebá Soncó



Dias 2, 3 e 4 de Dezembro de 1966

Realizou-se a Op FIFA no Chão Balanta que consistiu em emboscadas e batidas na região de Colicunda, Durante as emboscadas não houve contacto com o IN.

Foram capturados três elementos , sendo dois de menor idade e entregues ao posto Administrativo e o terceiro entregue ao BCAç 1888.


Dia 7 de Dezembro de 1966

Eu fiz parte desta operação, mas não me recordo de pormernores, excepto do momento em que Quebá Soncó foi ferido. Por isso transcrevo o que consta do relatório até esse momento, e falarei/lembrarei depois Quebá Soncó.

(...) A CCaç 1439 realizou a Op Harpa na região a N de Cherel, a fim de explorar uma informação dum prisioneiro que disse conhecer a casa de mato de Cubadjal.

O prisioneiro que serviu de guia não colaborou devidamente com a tropa, tendo conduzido por um itinerário muito vigiadoo pelo IN. Desta forma as NT foram detectadas a cerca de 1.000 metros do acampamento por uma a sentinela dupla que se encontrava colocada sobre uma árvore absolutamente camuflada. À aproximaçnao das NT a sentinela disparou várias rajadas de P. M. alertando desta forma todo o acampamento. Quando as NT, numa tentativa de aproximação rápida do referido acampamento o mesmo encontrava-se abandonado. Feita uma batida, foi encontrada uma tabanca a qual tinha sido da mesma forma abandonada." (...) 

"Resultados obtidos: Destruiram-se 13 casas de mato no acampamento IN e 10 casas na tabanca satélite.

Foi destruida grande quantidade de arroz e capturados 4 pentes de munições cal 7.9.

Baixas estimadas em número não estimado."


E o relatório diz então que, "quando a sentinela disparava sober as NT ( portanto no início da aproximação) foi atingido numa perna o caçador auxiliar contratado Quebá Soncó, evacuado para o HMP". 

E o relatório prossegue:

(...) "Mais uma vez foi distinguido o 1º cabo nº 5939264, Dionísio Lopes Ferreira, tendo demostrado a sua competência e sangue frio,  não abandonado o ferido mesmo debaixo de fogo IN,  prestando uma assistência permanente e cuidadosa." (...)

Lembro bem esses momentos e a dedicação e sangue frio do cabo enfermeiro, como vem descrito.

O que discordo é do momento e situação em que isso aconteceu. Se isto tivesse sucedido durante a aproximação, não teria havido mais esse assalto ao campo inimigo, deixando o enfermeiro a cuidar de Quebá Soncó.

Estas “rajadas de metralhadora” e o ferimento de Quebá Soncó foram depois do assalto quando já regressávamos e de repente começou um forte tiroteio, que era a uma distância razoável e que durou algum tempo. 

 Lembro-me que estava a disparar a minha G3 como um louco para onde me parecia vir o fogo IN, quando o o Quebá Soncó, que estava mesmo ao meu lado esquerdo,   foi ferido. E lembro que o fogo, embora de longe, ainda continuou por algum tempo, e de ver o enfermeiro Dionísio, ainda o tiroteio não tinha acabado, a ajudar o Quebá Soncó e logo a pedir que chamassem um helicópetro para o evacuar para Bissau.

Não sei se Quebá Soncó era considerado “caçador auxiliar contratado”. Ele era o filho do régulo de Missirá, Malan Soncó, a quem na devida altura iria suceder como régulo de Missirá. O que sei é que ele estava sempre connosco,  sempre com um grande sorriso contagiante e sempre voluntário inspirando com o seu exemplo o resto do pessoal da tabanca. 

Depois do meu regresso a Portugal,    escrevemo-nos por algum tempo. A sua volta à Guiné, em outubro de 1967.   simultânea com a minha ida para a Inglaterra,  ocasionou a perda de contactos. Mas lembro-o sempre assim, amigo e brincalhão também. E assim continuou, mesmo depois de ter sofrido a amputação duma das pernas. 

Uma das cartas que seguem, foi escrita já depois de ter regressado à Guiné  (, datada de Bambadinca, 18 de outubro de 1967). A outra carta que junto também, escrita quando ele estava na Alemanha Ocidental (, Hamburgo, 6 de agosto de4 1967), é uma boa amostra da sua jovialidade. Nunca mais o esquecerei. Já falei de Quebá Soncó numa outra ocasião (Vd. poste P21797)  (**)

Acabada a Guiné, quando voltei, logo que fui a Lisboa  fui visitá-lo ao Hospital Militar Principal.  Ficou contente de me ver e mostrou vontade de conhecer Lisboa antes de partir para a Alemanha onde ia para lhe porem uma perna artificial. E, mesmo na condição em que ele estava, de muletas  – ele insistia que não era problema e se podia movimentar – eu peguei nele e de taxi andei com ele  dum lado para outro  e mostrei-lhe Lisboa tanto quanto pude fazer.  Ele não o esqueceu e  depois de voltar à Guiné escreveu-me uma carta lembrando isso, carta essa que faz parte  do mencionado Poste de 23 /01/21 (**).


Dia 17 de Dezembro de 1966

No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta. Noto que esta operação é quase uma repeticão de uma que teve lugar em 10 de Junho, operação GOLO 1. A região era realmente muito perigosa, como tristemente e à custa de muitas mortes nas NT,  se viria a  confirmar depois da CCaç  1439 ter voltado, acabado o seu tempo de comissão na Guiné. E por isso a  frequente presença da CCaç 1439 nesta região, durante a nossa “comissão”.

Para que conste  transcrevo o relatório:

(...) "No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta, que  consistiu em montagem de emboscadas a N de Chubi e Sée seguida de batida às tabancas de Bissá, Funcor, Blassé, Sée e Chubi.

Durante esta operação não foram detectados quaisquer elementos supeitos. Verificou-se que a população  manifesta desejos de melhor colaborar com a tropa, dando a impressão de fadiga de descontentamento perante as atitudes do IN que visita aa tabancas, exigiundo tudo inclusive bufalos. As NT através de palestras e pequenos serviços de enfermagem continuous a exercer influência psicológica no seio da população.

 Dia 23 de Dezembro de 1966 : Ataque a Missirá (vd. próximo poste, Parte XIX)

 



Carta do (António Eduardo) Quebá Soncó, filho do régulo de Missirá, enviada ao João Crisóstomo,  Datada de Hamburgo, 6 de agosto de 1967. Reprodução de alguns excertos:

(...) "Sr. Crisóstomo, recebi a sua carta, há já algusn dias, mas foi-me impossível respodner-lhe mais cedo, do que peço muita desculpa. (...) Fui operado à bexiga, pois apareceram-me uns micróbios nela: não é nada de grave, pois há me levanto e não dói quase nada..

"Logo que cheguei à Alemanha, dali por poucos dias, deram logo a perna [prótese] e agora ando a treinar a andar. Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês. Ainda me custa um bocadinho mas, depois de estar mais habituado,já não me vai custar tanto. No princípio custava-me muito mais porque a perna [prótese] estava um pouco grande, mas depois tiraram-lhe 2 centímetros e agora isto vai bem".

E depois acrescenta: "Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês."

Sabemos que partiu para a Alemanha a 23/6/1967, pela carta que escreveu nessa data ao João Crisóstomo, a despedir-se dele e a agradecer-lhe a sua amizade (**).   Deve ter regressado a Lisboa em setembro de 1967. Esteve no Depósito Geral de Adidos à espera de transporte para Bissau aonde chegou a 3 de outubro de 1967, conforme aerograma datado de Bambadinca, 18 desse mês e ano.

Sobre o hospital disse ainda o seguinte:

(...) "Isto aqui é muito bonito e muito bom. Eu logo que possa sair para a rua, ponho-me logo a mexer pois as meninas aqui são muito boas e andam quase todas de mini-saia (...)

"A assistência médica aqui é tão boa como em Portugal ou ainda melhor, estamos todos muito satiosfeitos (...).

"Sr. Crisóstomo, como o Sr vai para Inglaterra e não pode ir ver-me ao hospital em Lisboa, eu fico muito triste, palavra de honra. Aproveito para lhe desejar boa viagem e muitas felicidades na Inglaterra" (...)

 



Aerograma do Quebá Soncó, para o João Crisóromo, datada de 18 de outubro de 1967, quando o destinatário já estava em Inglaterra. Num português quase impecável, o remetente dá conta do seu regresso a Bissau, depois de ter estado internado no Hospital de Reabilitação de Hamburgo, Alemanha  (então Ocidental) e pede desculpa de não ter podido responder mais cedo ao João Crisóstomo:

 " (...) estive muito tempo no Depósito Geral de Adidos  [em Lisboa] e só cheguei a Bissau em 3 do corrente ".

E acrescenta: 

"Já estive com a minha família que ficou não só muito satisfeita por me ver como também ficou muito agradecida ao amigo João Francisco  [Crisóstomo ] pelas atenções que teve comigo quando da minha estadia na Metrópole. Eu também nunca esquecerei a sua amizade e toda a vida hei de recordar os belos passeios que me proporcionou"


Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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terça-feira, 16 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19983: (Ex)citações (354): Como é que a máquina burocrática do exército fazia chegar, à família, a notícia funesta da morte ou desaparecimento em combate de um militar ? O caso do sold at cav nº 711/65, José Henriques Mateus, desaparecido no rio Tompar, afluente do rio Cumbjiã, no decurso da Op Pirilampo, em 10/9/1966 (Jaime Silva, seu colega de escola, no Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

Brasão da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67)


José Henriques Mateus (Lourinhã, Areia Branca, 1944 - Guiné, Rio Tompar, região de Tombali, 1966)


I. A notícia do desaparecimento do soldado n.º 711/65 José Henriques Mateus, sold at cav, CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido no rio Tompar, em 10/9/1966(*)



por Jaime Silva [, foto à esquerda, 2014]


1.O DEPÓSITO GERAL DE ADIDOS CENTRALIZAVA A INFORMAÇÃO (**)


Os Serviços da República Portuguesa, através das Forças Armadas, tinham um Serviço especializado para este efeito. A primeira comunicação da morte ou acidente de um militar ocorrida durante a sua Comissão no Ultramar era da responsabilidade do Comandante da Unidade a que pertencia o Militar em questão. 

Este, via rádio, comunicava as circunstâncias da ocorrência ao superior hierárquico que, por sua vez, encaminhava o "assunto" para o departamento responsável, o Depósito Geral de Adidos.

A partir desse momento todas as formalidades eram da sua competência:

i) informar todos os departamentos governamentais e das Forças Armadas com responsabilidades na condução da Guerra;

ii) enviar um "telegrama à família", via CTT, a dar a notícia (nunca as Forças Armadas de Portugal enfrentaram diretamente as famílias para lhes darem essa notícia, escudaram-se nos carteiros, mas isso é outra história!);

iii) realizar o funeral na respetiva Província onde ocorreu o acidente (por vezes, sobretudo no início da Guerra, os miliares eram sepultados nos cemitérios locais);

iii) trasladar o caixão chumbado com o corpo do militar para Portugal e realizar o funeral no cemitério da sua freguesia (até 1968 as famílias dos militares tinham que pagar ao Estado as despesas com o transporte do caixão);

iv) tratar de enviar à família a mala com o seu espólio (quase sempre, era o melhor amigo que realizava esta "operação");

e, v) tratar da documentação a enviar à família para que esta pudesse receber a "pensão de sangue", quando tinha direito (nem todas as famílias, apesar da morte dos filhos no Ultramar, tiveram direito a essa "pensão").

2. O CASO CONCRETO DO SOLDADO N.º 711/65, MATEUS - S.P.M. 3008:

Oficialmente a notícia do desaparecimento do soldado José Henriques Mateus seguiu a rotina habitual:

(i) O Comandante da Companhia enviou para o Comandante de Batalhão a notícia do desaparecimento do Mateus e este fez seguir a informação para o Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG) que se limitou a enviar, via rádio, a informação para o Depósito Gerald e Adidos, sediado em Lisboa.

A partir daqui os militares da Secretaria adstrita ao Comando do Depósito Gerald e Adidos, na altura chefiada pelo Coronel de Infantaria Amândio Ferreira, põe em marcha um conjunto de procedimentos de rotina:

1.º Através do Ofício N.º 1893/B - P.º 183 e datado de Lisboa, 14 de setembro de 1966, informa:

a) Chefe da 1.ª Seção da Rep. do Gabinete do Ministro do Exército;

b) Chefe da Rep Geral DSP/ME;

c) Chefe do Serv. Inf. Pública das Forças Armadas do Dep. da Defesa Nacional;

d) Chefe do Estado Maior do QG/GML;

e) Chefe da Repartição de Sargentos e Praças DSP/ME;

f) Chefe da Agência Militar;

g) Comandante do R.C.7 (Leiria).


2.º Depois, dá conhecimento, a partir de Lisboa, ao Chefe de Estado Maior do Quartel General do CTI da Guiné que informou aquelas entidades oficiais do teor do seguinte rádio:


"ASSUNTO: DESAPARECIMENTO DE PRAÇA NO ULTRAMAR

“Para os devidos efeitos, transcrevo a V. Exa. o rádio N.º 1859/A de 12.9.66 do CTI da Guiné, que é do teor seguinte:


“DESAPARECIDO OPERAÇÕES 10.19.00SET66 JOSÉ HENRIQUES MATEUS SOLDADO 6951665 CCAV 1484/RC 7 NATURAL FREGUESIA CONCELHO LOURINHà FILHO JOAQUIM MATEUS JÚNIOR E ROSA MARIA RESIDENTE LUGAR DA AREIA BRANCA CONCELHO LOURINHÔ.

Informo V.Exa. que foi enviado telegrama à família do desaparecido comunicando a ocorrência”.

"O comandante
Amândio Ferreira
Coronel de Infantaria".


Exemplo de um telegrama  enviado à família de um outro militar, o fur mil João Carlos Oliveira Martinho, neste caso com data de 26 de maio de 1973, às 12h32, assinado pelo Comandante do Depósito Geral de Adidos, Ajuda Lisboa. (A família do Mateus deve recebido um, de teor similar,  7 anos antes.)

"Nº 602787. Sua Excia Ministro Exército tem pesar comunicar falecimento seu filho furriel miliciano João Carlos Oliveira Martinho ocorrido dia 25 corrente Guiné por motivo combate defesa da Pátria Sua Excelência apresenta mais sentidas condolências

"Comandante Depósito Geral de Adidos
Lisboa".


O fur mil cav Martinho pertencia ao EREC 8740/73, sediado em Bula, e morreu em combate em 25 de maio de 1973.




II. Depoimento de José Francisco Couto [, ex-sold at cav, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67, natural do Bombarral, vive há muito no Canadá] (***):

O soldado n.º 699/65 – S.P.M. 3008, José Francisco Couto, natural de Baracais, freguesia da Roliça, concelho do Bombarral, foi camarada de pelotão do Mateus e seu amigo. Participou na “Operação Pirilampo”, assistindo ao desaparecimento do Mateus quando ambos atravessavam o Rio Tompar. Escreveu dois Aerogramas à mãe do Mateus. 

Durante a consulta do espólio do Mateus,  encontrei entre a sua correspondência dois aerogramas enviados à mãe do Mateus pelo José Francisco Couto. Neles, lamentava as circunstâncias da morte do filho e afirmava que a iria visitar logo que regressasse da Guiné, uma vez que eram naturais de concelhos vizinhos.

Transcrevo o segundo aerograma que enviou à mãe do Mateus em 8 de novembro de 1966:


Catió,  8 Nov966

Prezada Senhora:

É com os olhos rasos de lágrimas que novamente me encontro a escrever-lhe, sendo ao mesmo tempo a desejar-lhe uma feliz saúde, a si e aos seus filhos, que eu cá vou indo na graça de Deus.

Sei, senhora Rosa, que ao receber esta minhas notícias mais se recorda da tragédia que lhe roubou o seu querido filho, pois é com mágoas no coração que lhe respondo a tudo quanto me pergunta e peço a Deus que não a vá magoar mais com tudo o que lhe possa dizer. Pois compreendo que, além da minha dor ser enorme, a sua não tem palavras, pois o destino foi traiçoeiro. Sim, a Senhora pede-me que lhe explique como tudo se passou. Pois sou a dizer-lhe tudo o que sei.

Foi uma das saídas que nós tivemos, durante o dia tudo se passou da melhor maneira na graça de Deus e nós nos sentíamos satisfeitos, mas no regresso tivemos que atravessar um rio e a corrente era enorme, como enorme era o peso que trazíamos.  [E foi aí] que ele [, o seu filho,]  ao passar, a corda se partiu e foi quando ele foi parar ao fundo sem mais ninguém o ver. 

[Logo] quatro camaradas nossos, mal pressentiram o que se estava a passar, atira[ra]m-se à água e mergulharam ao fundo para ver se o encontravam,  correndo o rio de cima para baixo e vice versa mas o resultado foi o que Senhora já sabe. Não o conseguiram encontrar pois a corrente o arrastaria logo, foi como um balde de água fria que caiu sobre nós e todos os esforços que juntos fizemos foram negativos. 

Esta é apenas a verdade que podem contar à Senhora [e] aos seus filhos. Sim, também me diz que apareceu alguma coisa dele, e é certo, mas não o que a Senhora me diz. Apareceu, sim, o que lhe vou contar.

Passados alguns dias nós voltámos a passar por lá, e foi nessa altura [que] um dos alferes encontrou uma parte da camisa e a carteira no bolso, pois a parte da camisa era só [a] da frente e tinha o bolso onde estava a carteira, que o alferes tem para lhe enviar tudo junto, [o] que resta do seu querido filho. 

E a Senhora não precisa de tratar nada, pois a companhia já tratou de tudo, também tratou dos papéis para a Senhora ficar a receber algum dinheiro que bastante falta lhe fará. 

E, assim, minha Senhora, não quero alongar mais as minhas notícias pois elas só lhe levam mágoas. No entanto, mais uma vez lhe digo, a companhia está a tratar de todos os assuntos e lhe enviará todas as suas coisas. 

Sem mais me despeço, com muitas saudades para os seus filhos, um aperto de mão para todos, para a Senhora também deste que chora também a sua dor.

José Couto 


[Revisão / fixação de texto: JS/LG]


3. Nota adicional de JS:

O Mateus nasceu, na Areia Branca, Lourinhã, a 17.10.1944, e foi meu colega da escola primária, no Seixal, Lourinhã. Assentou praça no RI 7 em Leiria no dia 4 de maio de 1965 com a idade de 21 anos e, numa altura em que, como me disse o seu irmão Abel, era o “homem da casa” e o “braço direito da mãe”, uma vez que o pai já tinha falecido e tinha, ainda, mais duas irmãs e um irmão para ajudar a criar. 

Sobre as dificuldades das famílias em criar os seus filhos naquela época em que os trabalhadores do campo labutavam de “sol a sol” para ganharem uma “côdea”, são contas de outros rosário. A mãe do Mateus não escapava a estas dificuldades. Nem nestas circunstâncias o Governo de Portugal tinha alguma consideração: Ala para a guerra. Quem fica, que se amanhe! (****)
________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19982: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: atualização: o caso do 1º cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, do BENG 447, afogado em 31 de julho de 1974, na ilha da Caravela e cujo corpo não foi recuperado

Comentário de LG:

Jorge: Para já, o meu/nosso muito obrigado por este inventário, doloroso mas precioso, tratando-se de camaradas mortos, por afogamento, no CTIG... Mas, se eu bem li os teus postes [...], há mais um caso omisso: o sold at cav, José Henriques Mateus (1944-1966), que pertenceu à CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), e que desapareceu em combate em 10/9/1966, no rio Tompar, afluente do rio Cumbijã, no decurso da Op Pirilamp, no setor de Catió, região de Tombali... Estive há tempos, na sua terra, Areia Branca, Lourinhã, justamente a participar numa homenagem póstuma à sua memória... Houve camaradas da sua companhia que chegaram a ponderar a hipótese de ele não ter morrido, mas antes ter sido feito prisioneiro pelo PAIGC... A verdade é que o corpo nunca foi encontrado. 
(...)

(**) Vd. poste de 11 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13127: Homenagem póstuma, na sua terra natal, Areia Branca, Lourinhã, 11 de maio próximo, ao sold at cav José Henriques Mateus, da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido em 10/9/1966, no Rio Tompar, no decurso da op Pirilampo. Parte VIII: Como é que a funesta notícia chegou à família ?... Através do carteiro... (Jaime Bonifácio Marques ds Silva)

(***) 10 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13123: Homenagem póstuma, na sua terra natal, Areia Branca, Lourinhã, 11 de maio próximo, ao sold at cav José Henriques Mateus, da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), desaparecido em 10/9/1966, no Rio Tompar, no decurso da op Pirilampo. Parte VII: Dois importantes depoimentos de camaradas e amigos do Mateus, o sold at cav, José Francisco Couto (Bombarral e Canadá e o ex-fur mil radiomontador Estêvão Alexandre Henriques (Lourinhã) (Jaime Bonifácio Marques da Silva)

(****) Último poste da série > 3  de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19943: (Ex)citações (353): Uma achega referida à circunstância da morte em combate de Guerra Mendes, comandante do PAIGC (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705)

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19237: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 71: A última carta (, "de amor, ridícula"), com data de 9 de junho de 1974, escrita sem saber que a sua mâe já tinha morrido no dia 1... Foi também a única, em centenas, que nunca chegaria ao destino...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > O Dino, no rio Fulacunda, junto ao "porto fluvial"

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita
, "Em Nome da Pátria"), do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*):

José Claudino da Silva, chapeiro em Amarante
Quase a chegar ao fim da sua viagem pelas memórias de Fulacunda, socorrendo-se do seu "roteiro literário-sentimental", o autor evoca aqui, no capº 71,  "a última carta" que escreveu à sua Amélia, namorada e futura esposa, com data de 9 de junho de 1974, sem saber que a sua mãe tinha morrido no dia 1...

Passa por alto ou por cima de acontecimentos (coletivos) como o 25 de Abril e a retração do dispositivo das NT ou os primeiros contactos "pacíficos" com o PAIGC em Fulacunda.

Recorde-se, por outro lado  que o autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. 

O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. 


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cap 71º


71º Capítulo > A ÚLTIMA CARTA

Estou muito perto de terminar esta partilha confidencial de emoções que guardei, sem nunca ter intenção de divulgar. Entre o drama e a comédia, tentei dar-vos uma visão dum soldado que escreveu apenas por amor, num tempo de guerra.

A partir de Março de 74, e talvez por influência da mãe e do irmão, a Amélia deixou de guardar o correio que lhe enviava. Embora eu continuasse a escrever, já não o fazia tão assiduamente. No meu mapa, não está marcado que tenha escrito, por exemplo, no dia 25 de Abril de 1974. Sei que festejei esse acontecimento em Fulacunda mas não me lembro como foi.

Ora, como é lógico, e partindo do princípio que me norteou, não quero citar nada que não possa provar. Contudo, mesmo assim, ainda consegui reaver alguma correspondência sem grande relevância,  excepto a última que escrevi.

Esta última carta tem 12 páginas que perfazem um total aproximado de 2700 palavras. Como digo, a última que escrevi na Guiné. Sendo a última, vou transcrever algumas frases, aleatoriamente:


“Fulacunda Domingo 9 de Junho de 1974.

Desejo que esta carta te encontre de boa saúde, eu não me sinto muito bem.
Ficarei bem se amanhã conseguir falar-te.
Quando a gente está na cama doente é que pensa em mais coisas.
Sofri mais nestes 24 meses na Guiné que no resto da minha vida”.


Com 2700 palavras fazem-se muitas frases, mas nesta carta quase adivinhando o que poucas horas depois iria suceder, estão também alguns desabafos e um estranho balanço amoroso.

Confio no vosso sentido de humor ao lerem o que vos ofereço e lembro-vos que as cartas de amor são sempre ridículas.

“Quando vim para aqui não queria ocultar-te nada no entanto tive de ocultar-te muitas coisas. Ataques que sofríamos e não queria que ficasses em cuidado porque na verdade passamos muitos perigos. Estou até a recordar-me de uma vez em que fui para o mato numa operação para assaltarmos um acampamento de terroristas mas que só por felicidade eles não estavam lá. Mas bem isso não te interessa.

Se tu tens razões para pensar que eu tenho outra eu quero que sejas sincera e me digas se eu tenho ou não razões para pensar que tens outro.

Primeiro: Pouco depois de eu vir para aqui num aerograma dizem-me que tens outro namorado.

Segundo: Numa visita que a minha avó fez a tua casa vê um rapaz a sair de lá.

Terceiro: Quando fui de férias e nos chateamos, logo que te deixei, ficaste pouco aborrecida o que demonstra pouco interesse.


Desculpem, mas estou confuso, não tenho o quarto motivo. Não interessa! Adiante!

Quinto: Nunca atendes-te um pedido meu com a solicitude que devias.

Sexto: As cartas que me escrevias e muito mais os aéros, chegavam a ter três semanas de atraso e mais, sem que te preocupasses com isso.

Sétimo: Em 24 meses recebi cinco fotografias e isto porque te supliquei quase sempre que as mandasses.

Oitavo: Tu não respondias em condições às minhas cartas mostrando dessa maneira um total desinteresse por aquilo que te mandava.

Ainda teria muito mais coisas para te dizer…”


Francamente!... A guerra colonial, comparada com a minha guerra amorosa, ficou nitidamente a perder.

Atenção! Na quinta página ainda afirmo que esta ingrata me vai pagar com juros. Pois, mas na sexta página, depois de dizer que ela até havia de morrer, digo:

“Tens beijos de fogo que me acendem o coração.

Vou dormir e nem quero sonhar contigo.

Já dormi e fui ver se a chamada que marquei para falar contigo pode ser feita. Por acaso pode por isso amanhã às 14H30, quatro horas e meia da tarde aí na Metrópole vou tentar mais uma vez falar-te”.


Esta última carta devia ser a única a não chegar ao destino. Nas páginas 9 e 10 escrevi a história da Bela Adormecida. Na página 11 tem um poema da minha autoria, para ser cantado na música de Gianni Morandi “Non son degno di te”[1964] [Vd. vídeo no You Tube, disponível aqui, com legendas em português do Brasil]

Ultimo parágrafo:

“Havias de ter os lábios gelados quando beijares outro que não fosse eu, havias até de te transformar numa estátua de gelo”.

“Dino”


Acham que foram as bombas, os tiros, em suma, a guerra… que me fizeram sofrer mais?

(Continua)

3. Nota detalhada dobre o autor e sinopse dos postes anteriores [vd. aqui]
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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18042: Notas de leitura (1020): “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena”, organização de Iva Cabral, Márcia Souto e Filinto Elísio, Editora Rosa de Porcelana, 2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Março de 2016:

Queridos amigos,

Trata-se mesmo de um livro inesperado, de uma coletânea de cartas que Amílcar Cabral enviou à colega, namorada e mulher Maria Helena Ataíde Vilhena Rodrigues entre 1946 e 1960.

O aspeto nuclear que detetei nesta epistolografia é a mentalidade e o processo cultural de um jovem educado em Cabo Verde que se insere gradualmente no meio académico, associativo e político. Numa toada crescente iremos ver enfatizadas as questões raciais, a vida colonial, o entusiasmo em poder ser útil aos outros. Leremos vezes em conta exaltação da Humanidade e da africanidade. Mas esse mesmo processo tem um poderosíssimo reverso na medalha, o amor incondicional de Amílcar por Lena, aqui exaustivamente documentado.
É mesmo a outra face do homem que se tornou num dos mais significativo líderes revolucionários africanos.

Um abraço do
Mário


De Amílcar Cabral para Maria Helena: 
Somos dois seres válidos e desejosos de ser úteis

Beja Santos

Vamos falar de um livro inesperado, “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena”, organização de Iva Cabral, Márcia Souto e Filinto Elísio, Editora Rosa de Porcelana, 2016. Amílcar Cabral chega a Lisboa em 1945, e depois de algumas vicissitudes inscreve-se no Instituto Superior de Agronomia. É aqui que vai conhecer Maria Helena, que será sua mulher, suprema confidente, companheira de ideais. A seleção de cartas (que vão de 1946 a 1960) permitem-nos acompanhar um amor em construção e perceber as frases sublimes que Amílcar escreve a Lena em 30 de Julho de 1960, já está decidida a clandestinidade e ele escreve à mulher para que esta tome decisões práticas, que irá enunciar detalhadamente. Mas o importante é a abertura e o termo da missiva:

  “A minha posição é a tua, a tua posição é a minha (…) só há um caminho, aquele que, decididamente, vamos continuar a percorrer juntos. Além de toda a falta que fazemos um ao outro, enquanto estiveres aí, longe de mim, ser-me-á sempre difícil trabalhar como julgo que posso, ser completamente útil, livre das amarguras da saudade e da intranquilidade”.

Depois do rol de tarefas que cabem a Lena executar antes de partir para Paris, Amílcar despede-se:

“Por hoje, paro aqui. Cheio de saudades mas cheio de esperanças no futuro, na vida vida que vamos construir. E a certeza, a consciência, a alegria de que esta carta é talvez a mais bela carta de amor que já te escrevi”.

O Amílcar Cabral que chega a Lisboa é já medularmente culto, de uma cultura europeia irrepreensível. Sintomático o que escreve em Outubro de 1946, na fase de aproximação, a relação é muitíssimo tenra: “Como tenho por norma teimar na realização dos meus desejos…”. Feita a aproximação, há o envio de poemas, são cartas súplices de quem pede companhia e confessa solidão, agora já se tratam por tu, analisam os seus sentimentos, sempre que Lena se ausenta para o Norte Amílcar fica desasado e confessa que precisa como de oxigénio das suas cartas. Canta a sua felicidade pela revelação amorosa, toda esta correspondência revela uma cabeça bem estruturada, não há uma rasura, um voltar atrás. Ela disserta sobre o racismo, e quando ela lhe confidencia que há pessoas que a interrogam sobre a natureza da relação que estabeleceu com Amílcar ele responde no processo da construção amorosa e na confiança inquebrantável que se estabeleceu entre os dois.

Em termos económicos, Amílcar vive precariamente e nas férias grandes de 1948 vai trabalhar na Caixa de Previdência dos Metalúrgicos, conta o seu ramerrame, manda-lhe sonetos, escreve em Francês, quer insistentemente saber o que ela faz e como está, revela-lhe os seus padrões morais e o porquê da sua fidelidade, porque é que ele não frequenta “tais sítios”:

“E não frequento, não só porque tu não gostas, pois antes disso já não frequentava, mas também porque eu não quero. Há uma razão muito forte: é que tenho em mim alguma coisa que me não pertence, que recebi dos meus antepassados e que tenho que legar aos meus filhos – alguma coisa que não tenho o direito de destruir. Sei que me compreendes”.

Ao longo de Agosto desse ano Amílcar desnuda os seus sentimentos: quer ir viver para África, diz expressamente “tenho de ir para África”, pretende ser útil à humanidade, mas acrescenta: “Mas tu estarás comigo. Eu não vou deixar que tu fiques. Eu farei tudo, tudo para que me acompanhes sempre. Que será vida para mim, sem ti?”. As juras de amor intensificam-se, o par entrou em fusão. Muitas vezes Amílcar escreve-lhe da Leitaria da rua dos Lusíadas, vive num quarto alugado na Calçada da Tapada.

A ternura pela mãe Iva, a quem ele trata por mamã, é inexcedível. Julião Soares Sousa foi quem desfez o mito de que a pessoa mais importante na vida do jovem Amílcar fora o pai, Juvenal Cabral. Nesta correspondência, reserva-lhe uma magra referência, aliás para exaltar Iva que vai a casa do ex-marido para o tratar, gesto que sensibiliza Amílcar. Em 1949, no livro de curso, dedicará à mãe o mais terno dos seus poemas:

“P’ra ti, Mãe que me deste / A tua alma viva / E o teu Amor profundo, / Maior que o próprio Mundo! / Aceita este tributo, / Que tudo quando eu for, / Será do teu amor, / -Tua Carne, Mãe, teu fruto! / Sem ti, não sou ninguém. / Sou só – porque és Mãe”.

É um jovem adulto muito informado, é longa a carta em que fala detalhadamente sobre o apartheid sul-africano. Confessa o seu orgulho nos negros que estão a triunfar nos Jogos Olímpicos desse ano em Londres. Gosta de futebol, alinha na equipa de Agronomia, vai ao estádio da Tapadinha, mas o seu clube preferido é o Benfica.


Há alterações profundas na correspondência a partir de 1950, a crítica ideológica é latente, Amílcar interessa-se pela filosofia e discreteia sobre a morte, pondo em paralelo a morte com a luta do amor contra o ódio, fala cada vez mais no progresso, na humanidade, na insensibilidade com os excluídos. Cresce o seu interesse pelos assuntos familiares. Mudou de quarto, vive na Avenida Casal Ribeiro, reparte o alojamento com Marcelino dos Santos. Começa a dactilografar cartas. Os assuntos raciais ganham substância, estuda-os, diz-se seguidor das doutrinas da ONU.

Parte primeiro para a Guiné, vai cheio de projetos, descreve a Granja de Pessubé, de que é diretor. Em 1953, em pleno recenseamento agrícola, à sua responsabilidade, escreve-lhe à peça de Farim, e desabafa: “Céu encoberto, chuva constante, calor, muito calor. Sempre a tua presença, até no gesto do bocado que se leva à boca. Querendo que assistas às minhas conversas, sentindo-te assistir a todos os meus atos”.

E depois Angola, em Catumbela, estamos em 1955, trabalha em Cassequel, suspira de amor, observa a miséria, e diz abertamente: “Miséria contra a qual hei de lutar”. Lê com entusiasmo Jorge Amado, talvez a série de livros “Subterrâneos da liberdade”, cita com abundância esse mundo brasileiro, tem imagens poéticas: “a luz do luar e luz do sol, do luar do amor e da esperança num céu grávido de estrelas, de sol nascendo da terra, das entranhas da terra, do coração dos homens e das mulheres que lutam, do olho simples e interrogativo das crianças desamparadas”.

O lutador pela liberdade está formado, é a fase em que investirá no nacionalismo angolano. Lena é tratada como “minha companheira querida do meu coração”. E assim chegamos à carta de 30 de Abril de 1960, em breve se reunirão em Conacri. Nada mais é incluído nesta correspondência selecionada por Iva Cabral e outros. Anos depois, em Argel, consumar-se-á a rutura.

O que há de fundamental nestas cartas de amor é percebermos como houve um projeto a dois, uma extraordinária mobilização para derrubar preconceitos e assumir riscos. E acompanhar o elevado grau de cultura daquele jovem que vinda dos meus meios liceais cabo-verdianos e amou Lisboa e se transformou na cumplicidade com Lena, a colega que dava pelo nome de Maria Helena Ataíde Vilhena Rodrigues, a destinatária que guardou esta admirável epistolografia.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18032: Notas de leitura (1019): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (11) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12398: O que é que a malta lia, nas horas vagas (8): As minhas leituras em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Dezembro de 2013, a propósito do que a malta lia nas horas vagas:

As minhas leituras na Guiné

Lembro-me muito bem do meu primeiro livro, que recebi com muito pouca idade idade, ainda não sabia ler. Intitulava-se "O Gato das Botas Altas", tinha braços e pernas que se destacavam do corpo do livro, que era muito bem ilustrado, e abordava qualquer coisa sobre cavalaria, mosqueteiros, afecto, honra e bravura.

Acompanhou-me durante muitos anos, porque era esteticamente muito bonito, e despertava em mim sentimentos de virtude.

Lembro-me de ter lido, ainda muito novinho, uns poemas do Afonso Lopes Vieira, com dedicatória na primeira página à minha mãe. Teve um qualquer descaminho que não identifico, mas deixa-me triste. Também me lembro de outro título da minha mãe, "O Cão dos Baskerviles" que me transportava para os mistérios dos campos de "cottages" e palacetes da "Old Albion". Pelos meus 14 anos passei por uma crise de intelectualidade, e com dois amigos (Almeida e Sousa e Solano de Almeida) tentámos escrever teatro, mas as performances eram tão más, que não concluímos nada. Por essa época, ainda tentei a literatura de cordel, talvez inspirado na colecção FBI, e foi outro desastre. Até à mobilização não voltei a experimentar a verve com pretensões de escrita.

Depois, com o despertar da atenção para o belo sexo, passei a sonhar ser estrela de futebol, e com os rios de dinheiro e a fama consequentes, a impressionar as garotas mais lindas. Quase não lia, nem estudava, nem cabulava, mais a mais convencido do risco cada vez mais próximo de levar um balázio que me mandasse p'rós anjinhos, levava uma justificada vida existencialista, com salpicos de "make love not war", pelo que registei um notório abrandamento nas leituras, quaisquer que fossem. E os chumbos passaram a adornar o c.v., até que o namoro com uma menina leitora de poemas e romances, fez com que encetasse nova incursão pelas letras para não ficar pior na fotografia.

Até que chegou a tropa, e a necessidade de viver intensamente, não fosse o diabo tecê-las. Ora, a intensidade de viver assentava no máximo aproveitamento das paródias que, a recruta primeiro, a especialidade e o curso de "mines and bloody tracks" depois, ainda nos permitia alguns devaneios e desafios físicos. Portanto, esse período correspondeu a novo interregno intelectual, coisa sem importância, tendo em conta que a proposta se refere ao tempo passado na Guiné.

Muitas bebedeiras e outros excessos, mais cinco dias de brandas correntes marítimas foram necessários para, a partir do Funchal, chegarmos a Bissau. E que grande era a cidade! Dos Adidos para a cidade e para os bares, com excepção de um dia de guarda a um posto de rádio, que não aproveitei no sentido do tema proposto, foi outra a dedicação, até que uns vinte dias depois fomos entregues em Piche aos cuidados do destino. O Zé Tito, companheiro da juventude, que fez o grande favor de me acompanhar ininterruptamente desde o assentamento de praça, descobriu um excelente quarto com duas camas vagas, comummente conhecido pela suite 3. Olá Águas! Olá Tubaco da Selva! Olá Costa! O Tubaco levou-me atrás de uns armários, abriu uma mala cheia de livros, que disponibilizou, mas alertou-me para o generalizado gosto pelas fotonovelas, e que tudo ficava ao dispor.

Se em Roma devemos ser romanos, eu, que levava uma vida operacional intensa, não tinha sobras de tempo para a valorização espiritual e intelectual, pois, que me lembre, durante os primeiros seis meses, e em Piche, não houve noite que me deitasse na cama, sem evitar o estado ébrio. Comia-se mal, mas, a respeito de bebidas... ficamos conversados. Ainda assim, li algumas coisas, de Remarque a Eça, de Amado a Gorki.

Lia, naturalmente, as cartas quase diárias da namorada, e outras mais espaçadas da família e amigos. Não era literatura, mas constituía consumo ávido. Entretanto, logo que me foi atribuído o número de SPM, assinei o jornal cor-de-rosa, onde esgrimavam os mais ferozes anti-situacionistas e revolucionários da época, de que destaco Sottomayor Cardia (já não arde) e António Barreto, que espingardavam contra quaisquer indícios de poder, ambos bem assimilados com os primeiros alvores vulgarmente confundidos com a democracia. Confundidos? Obviamente!

A Democracia exige atitude permanente, participação popular sobre as decisões que lhe diga respeito (à massa popular), e nesse estádio anémolas como Sócrates, Coelho e Portas não poderiam, sequer, imaginar o que andam por aí a fazer. Mas isso não se tem conseguido ler com a objectividade necessária.

Em Bajocunda, a tropa passou a viver outro intimismo, e já eram mais frequentes os períodos de leitura.

Pela minha parte li com especial proveito o "Porque Não Sou Cristão", de B. Russel, que foi determinante para consolidar a minha "fé" ateísta.
Também li Brecht, Barthes, Régio, Torga, E. Veríssimo, Buck, e o indispensável Larteguy, entre outros.

Havia, portanto, diferentes apetites de leitura, que podiam ser, tanto de índole formativa, como lúdica, com mais ou menos interesse literário.

E havia, por vezes, algum debate sobre obras que nos sensibilizavam. Lembro-me de uma noite no meu quarto, onde o Jorge, todo nu, lá de cima dos seus quase dois  metros, declamava Brecht perante a atenção dedicada e surpreendida dos restantes furriéis, encontravam naqueles versos uma espécie de aliança pela paz.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12395: O que é que a malta lia, nas horas vagas (7): A prestigiada revista "Vida Mundial" (Manuel Mata, ex-1º cabo, Esq Rec Fox 2640, Bafatá, 1969/71)

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11609: Álbum fotográfico de Carlos Fraga (ex-alf mil, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1973) (8): Mansoa, espaldão do morteiro 81, e pessoal na caserna matando o tempo a jogar cartas...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 (1972/4) > Foto nº 35 > Espaldão do morteiro 81 (1) 


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 (1972/4) > Foto nº 81 > Espaldão do morteiro 81 (2)


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 (1972/4) > Foto nº 80 >   Pessoal da 3ª Companhia.  Na caserna a passar o tempo na jogatana (1)


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 (1972/4) > Foto nº 80 > Pessoal da 2ª Companhia.  na caserna a passar o tempo na jogatana (1)



Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 (1972/4) > Foto nº 30- Pessoal da 3ª Comp. Na caserna a passar o tempo na jogatana



Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 (1972/4) > Foto nº 47 > Pessoal da 3ª Comp na caserna. Na foto vê-se uma rede mosquiteira.


Fotos: © Carlos Alberto Fraga (2013). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Carlos Fraga (*),  nosso tabanqueiro que  esteve em Mansoa, no 2º semestre de 1973, como alf mil (da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72), indo depois comandar uma companhia em Moçambique, já depois de 25 de abril de 1974.

Publicam-se hoje fotos de Mansoa, de militares da 2ª CCAÇ e da 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72  na caserna. a matar o tempo na jogatana de cartas.

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11569: Álbum fotográfico de Carlos Fraga (ex-alf mil, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1973) (7): Armamento do PAIGC (fotos de Ângelo Gago; legenda de Luís Dias)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10763: As mulheres que, afinal, foram à guerra (19): O que fazer com a nossa correspondência, estimada em mais de 300 milhões de aerogramas e cartas, enviados e recebidos ao longo da guerra do ultramar ? (Manuel Joaquim / Luís Graça / Alice Carneiro)

1.  Tive ontem a felicidade de receber a seguinte mensagem do nosso amigo e camarada Manuel Joaquim, um dos mais generosos dos nossos grã-tabanqueiros, além de mestre-escola:

Meus queridos amigos, esforçados editores:

Hoje venho com uma ideia que se calhar "é de jerico", como dizem na minha terra. Como estou a fixar, em letra de forma, a minha correspondência de guerra,  lembrei-me de vos questionar sobre o interesse da sua publicação no blogue. 

Sinceramente, para além de mim e dos meus familiares mais queridos, não sei se terá qualquer outro valor para alguém. Creio que alguma da chamada correspondência de guerra, não a minha, poderá ter (tem) algum valor atualmente, mesmo já valor histórico. Tenho a certeza que toda a correspondência de guerra que "sobreviva" terá cada vez mais interesse e valor com o decorrer do tempo, sejam quais forem os temas que incorpore, dos mais simples da vivência diária dos combatentes aos mais "arrebitados" discursos de cariz sociológico e/ou político, tenham muita ou pouca, alguma ou nenhuma qualidade literária,  pois o seu valor não virá da qualidade da escrita mas do seu conteúdo que terá sempre valor histórico mesmo quando se limite a contar o que se comeu (ou não) no dia a dia ou num certo dia.

Anexo as minhas primeiras seis cartas, três minhas e três da namorada que foi depois (e é) minha esposa. Esta deu-me a devida autorização, só me pedindo que o seu nome não ficasse "escarrapachado" no texto. Assim o fiz, também com o meu nome, ficando só as iniciais dos nomes próprios usados.

A publicação destas cartas no blogue é, para mim, coisa secundária. Se acharem interessante, aqui estão.

Um grande abraço para todos, e cada um, cá do Manel





O primeiro poste da I Série do nosso blogue... 23 de abril de 2004... Dedicado à nossa correspondência de guerra. Na época devo ter inflacionado o volume da correspondência: (...) "Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos" (...).

O mais realista é apontar para um total  entre 250 e 300 milhões de cartas e aerogramas, enviados e recebidos. O número de soldados metropolitanos mobilizados paras as 3 frentes (Angola, Guiné, Moçambique) será da ordem dos 800 mil, a que se deverão somar mais 200 mil soldados do recrutamento local. É de admitir que estes escreveriam muito menos, até por que a grande maioria (nomeadamente na Guiné) não sabia ler nem escrever português.

O número de aerogramas disponibilizado anualmente pelo Movimento Nacional Feminino ultrapassava os 30 milhões (32 milhões em 1974, de acordo com o orçamento ordinário previsional do MNF). Admite-se que muitos (talvez um terço) fosse inutilizado, servindo de papel de rascunho... Em 13 anos de guerra, possivelmente a TAP ( e os TAM) deverá ter transportado de (e para) o ultramar, qualquer coisa como 200  milhões de aerogramas, a que  se poderão acrescentar mais 50 a 100 milhões de cartas. No total, 300 milhões, o que me parece uma estimativa, conservadora mais realista, do que os 500 milhões iniciais... (Recorde-se que os aerogramas, uma invenção portuguesa, eram isentos de franquia: porte e sobretaxa aérea; vd aqui um completíssimo texto sobre a sua história).  

Estimava-se em 300 mil o número de madrinhas de guerra. Um em cada três militares deveria ter uma madrinha de guerra, segundo uma sondagem que aqui fizemos em tempos. E todos nós, com raras exceções, nos correspondíamos regularmente com os pais, irmãs e irmãos, esposas, noivas, namoradas, amigas, vizinhas... Em dois anos de comissão, 24 meses, é possível que um soldado metropolitano escrevesse ou recebesse em média um dúzia de cartas e aerogramas por  semana. Arredondando, 300 cartas e aerogramas, enviados e recebidos, "per capita...(LG)

2. Resposta, imediata, do editor L.G. [, foto á esquerda, em 1970, em Nhabijões, Bambadinca]

(i) Eureka!, Manel Joaquim, meu querido camarada!... Ando há 9 anos (!) a pedir para "salvarem" as nossas cartas e os nossos aerogramas, esqueciso no fundo dos nossos baús!...  Aliás, o primeiro poste do nosso blogue, I Série, de 23 de abril de 2004, começou justamente com o título Saudosa(s) madrinha(s) de guerra...

Da I Guerra Mundial há menos de 100 cartas no arquivo histórico militar!... Do meu pai, de Cabo Verde, do tempo da II Guerra Mundial, não tenho nenhuma!... E dos mais de 300 milhões de cartas e aerogramas que eu estimo que se tenham escrito durante toda a guerra colonial (incluindo as da Índia!), quantas se irão salvar ?

Vamos já abrir uma nova série só para ti!... Parabéns pela tua coragem e generosidade!... LG

(ii) Não escrevi cartas nem aerogramas a ninguém.  Limitei-me a mandar algumas fotografias, com breves legendas, aos meus familiares mais próximos, para os tranquilizar: que estava bem, que estava vivo, que estava de saúde!... Hoje, sinto uma culpa imensa!... Na época não tinha namorada, e muito menos madrinha de guerra!... Em contrapartida, mantive, com irregularidade, um "sofrido" diário... Das cartas e aerogramas que recebi da família e dos amigos, perdi o rasto... E sinto-me mal por isso, por não ter acautelado a salvaguarda dessa correspondência... Teria, hoje, seguramente algum valor documental. Eu diria: todas as nossas cartas têm um excecional interesse como para os investigadores da área das ciências sociais e humanas, nomeadamente, da história, da linguística, da antropologia, da sociologia...

Em contrapartida, tenho a sorte de poder ter acesso à correspondência mantida por aquela que haveria de ser (e é) a minha companheira de um vida, a Alice Carneiro, igualmente nossa grã-tabanqueira... Trata-se de algumas centenas de cartas e aerogramas, enviadas (e recebidas) pela Alice... Mais as recebidas do que as enviadas: em boa verdade, das enviadas, só restam as que o mano José, combatente em Angola, guardou e arquivou religiosamente... em Camabatela, norte de Angola. E não são tão poucas quanto isso...

O Zé [, foto à esquerda,] já não se lembra do nº da companhia. Nem parece ter grandes saudades do seu tempo de tropa e de guerra. Sabe apenas que era 1º cabo, operador de transmissões, de  rendição indvidual, e que esteve aquartelado em Camabatela e que andou a guardar os cafezais do norte de Angola, nos já idos anos de 1969/71.

Recebia e escrevia muitas cartas e aerogramas, isso sim. Das que recebeu (dos manos, pais, cunhados, amigos, amigas ...) guardou-as todas, e arquivou-as, uma a uma, por autor e data... Só da mana, Chita,  tem mais de 100, no seu arquivo. Essa coleção é já um hoje um fonte de informação interessante não só para a história da família mas também sobre o quotidiano da guerra em África, e das necessidades e preocupações que os nossos militares deixavam transparecer. 

As saudades da terra eram sempre mais do que muitas, as referências às festas anuais, à matança do porco, às vindimas, ao Natal, etc., eram frequentes. Era isso que fazia lembrar a pátria distante... Nos dois anos que lá esteve, nunca veio a casa, que as viagens eram caríssimas. Fez férias em Luanda, tanto quanto sei.

Ao voltar mais uma vez a Angola, em julho e em outubro passados, e mais concretamente a Luanda, em trabalho, lembrei-me do meu querido cunhado, com quem às vezes falo dos nossos tempos de "meninos e moços"... Quis  fazer-lhe uma pequena surpresa por ocasião do seu 63º aniversário, selecionando algumas das cartas (mais do que aerogramas) que ele mandou à mana Chita, e que felizmente chegaram até nós (apenas umas 20 e tal). Muitas outras ter-se-ão perdido, com o tempo, e as andanças da mana. A Alice já trabalhava na Junta de Colonização Interna (Ministério da Agricultura) e andou por vários sítios,  de norte a sul do país.

Aqui vai então uma pequena antologia de excertos dessas cartas. É também uma homenagem a uma família, de três filhos e três filhas, que mandou dois dos seus rapazes (curiosamente o mais velho e o mais novo) para a guerra: o António, para Moçambique, onde foi gravemente ferido, em acidente com arma de fogo; e o José,  o "caçula", que fez a sua comissão de serviço em Angola, sem "problemas de maior"... Esta seleção da sua correspondência foi já publicada no blogue da família, A Nossa Quinta de Candoz... Que sirva, ao menos, de estímulo para que outros camaradas, da Guiné, seguiam o  exemplo do nosso Manuel Joaquim. (LG)



Angola > > Cuanza Norte > Ambaca > Camabatela > Janeiro de 1974 > Avenida central de Camabatela; ao fundo, a igreja católica. A cidade de Camabatela (ou Kamabatela, como também se escreve hoje ) foi fundada pelos portugueses em 1611, e é sede do município de Ambaca, na província do Cuanza Norte (ou Kwanza-Norte), a leste de Luanda. Foto de Henrique J. C. de Oliveira, Cambatela, 1/1/1974.

Foto: Cortesia de Prof2000 > Aveiro e Cultura > Arquivo Digital


3. Cartas de Camabatela: do Zé Carneiro para a mana Chita (1970/71) > Excertos


Remetente: José Ferreira Carneiro, Caixa postal 150, Camabatela, Angola

(i) Camabatela 19/05/70

Querida mana: Aqui me tens de novo, conversando como estivesses a meu lado. Começo por te desejar óptima saúde na companhia das tuas colegas e de toda a nossa família. 

Já deves ter conhecimento de que estou de novo no destacamento. Cá estou a passar mais 45 dias de férias no mato…

Quanto ao meu castigo, tenho-te a dizer que ficou tudo em águas de bacalhau. O Capitão chamou-me e só me disse que não devia ter feito a troca sem o avisar. Escusas de te preocupar, está tudo bem.

Por hoje é tudo. Recebe do teu mano um xi coração muito forte, adeus até 1971. (...)


(ii) Camabatela 16/06/70 

Querida mana Chita:  Estou a escrever uma carta porque os aeros [aerogramas] chegam a demorar cerca de um mês até chegarem ao seu destino, isto quando não são devolvidos. Estou mesmo muito aborrecido com isto. Pensei agora só escrever cartas, mas de 15 em 15 dias. Assim as cartas só demoram 3 dias a chegar a vossa mão. Tens que escrever é para a caixa postal. Que achas? Assim não repetimos as notícias. Quando receberes carta minha, peço-te que telefones aos pais para ficarem descansados. Está bem assim? 

Já te mandei o nº dos sapatos por 4 vezes e ainda continuas a pedir!.. Isto quer dizer que não tens recebido o correio.

Então como anda a tua saúde? Iniciei a carta sem fazer aquela lenga, lenga de sempre… Quanto a mim, desde já te digo que estou forte e que gozo de boa saúde.

Termino com um xi coração muito apertado do teu mano que te adora. Bjs


(iii) Camabatela 04/07/70

(...) Agora mesmo acabo de receber mais uma carta tua, juntamente com uma encomenda que trazia os sapatos e a camisa. Cada vez as encomendas estão a demorar menos tempo. Comparar com as primeiras que foram enviadas!...

Os sapatos e a camisa ficam-me a matar, só não queria que mos oferecesses. Tens mais em que gastar o dinheiro, mas aceito. Esta não está esquecida!

Já estou de novo em Camabatela, já estava cansado de tanto capim. Não posso dizer mal, porque desta vez engordei 3kg e aqui perco sempre peso.

Faz hoje 11 meses que embarquei em Lisboa, já pouco mais falta do que um ano, e um já se passou!... (...)


(iv) Camabatela 18/11/70

(...) Depois de ter chegado de uma operação que durou 5 dias, aqui estou a dar-te notícias.

Hoje mesmo parto novamente para o mato, onde vou passar o Natal e talvez o Ano Novo. Desta vez calhou-me a mim, o ano passado foram os meus colegas.

Com isto, estou quase a entrar no ano da peluda [, fim da comissão e passagem à disponibilidade]. Cada vez falta menos. Oxalá que este termine sem problemas.

Apesar de ainda não saber o que vou fazer quanto ao meu futuro de vida, não me sinto com ideias de meter o xico….

Por aqui vou ficar, mandando cumprimentos para todos os nossos vizinhos, as tuas colegas, e tu do mano muito amigo, um forte xi coração. (...) 


(v) Camabatela 14/01/71

(...) Aproveito estar uma grande trovoada e chuva para te escrever, porque assim as comunicações não funcionam, tenho que desligar os aparelhos.

A encomenda que mandaste, chegou dois dias depois do Natal. Chegou tudo bem. As castanhas começamos a comê-las e só terminamos quando acabaram. Sabes uma coisa? O bolo Rei não tinha fava!

Já só faltam 7 meses! Isto vai com calma.

Enquanto vós estais aí com grandes nevões, (segundo dizem os jornais), por aqui a temperatura é agradável, só as chuvas é que são esquisitas.

Já estou de novo em Camabatela. Já estava saturado de estar no mato e de ver tanto capim.

Acompanhado duma boa musiquinha, consegui estar contigo no pensamento.

Agora que o temporal já lá vai, tenho que regressar ao trabalho e ligar os aparelhos que já me provocam raiva só de olhar para eles. Tenho que estar em forma.

E assim me despeço com um forte xi coração do teu mano amigo. Adeus e até Agosto ou Setembro. (...)


(vi) Camabatela 15/02/71 

(...) Querida mana, não calculas como eu fiquei ao ler a tua carta e me falavas da matança do porco [, foto à esquerda, Candoz, c. 1980, foto de L.G.] . Aquelas fêveras e os rojões de que falavas. Não continha a minha cabeça e os meus pensamentos. Pareciam o Rio Douro quando traz uma enchente das chuvas. O mano António também me falou do mesmo.

Sabes uma coisa? Estou muito, muito cansado. Andei 3 dias e 3 noites no mato a andar sem poder dormir e ainda carregado com o respectivo rádio. A roupa molhou-se e secou-me no corpo por 3 vezes. Foi por esta razão que te demorei mais a escrever.

Querida mana, quanto ao que vou fazer quando acabar a tropa, o mais certo é eu ir estudar. Sem isso eu não tenho possibilidades de ter um emprego digno. Já falei com o Capelão para me colocar como Perfeito no Seminário, assim já podia estudar e trabalhar. (...) 


(vii) Camabatela 17/05/71

(...) Espero que esta minha carta te vá encontrar de óptima saúde, bem como toda a nossa família.

De facto tens razão em dizer que estou a esquecer-me um pouco de vós, mas não. Nada tem acontecido de grave por cá. Tudo corre pelo melhor.

Não te devia dizer, mas já estou de novo no mato. Esta estadia aqui, será a última para completar a minha comissão.

Não estejas preocupada que eu aqui no mato só tenho como rival o isolamento. De resto tudo é melhor do que na vila de Camabatela.

Quando me falas do que vou fazer quando regressar. Nada te sei dizer, estou a ver tudo muito escuro, mas na lavoura eu não quero ficar. (...).




(viii) Camabatela 14/06/71

Querida mana: Só hoje recebi a tua carta e logo te respondo. Parece impossível que as cartas demorem tanto tempo. Entre tu escreveres e eu receber, chegam a demorar 15 a 20 dias. Chegamos a estar 20 dias sem correspondência o que é muito duro para quem está aqui. As coisas ainda pioram mais quando estamos no destacamento (mato) que chegamos a estar 45 dias. 

Também penso o mesmo que tu, que sou preguiçoso, que já não tenho saudades vossas, etc. etc. mas o que interessa é que só faltam 50 dias para isto acabar.

Vou te contar um segredo: Andei a fazer umas economias para comprar uns presentes para vos levar, mas acontece que um colega que sabia do meu mealheiro, foi lá e roubou-mo. Eram 2.500$00. Este colega foi-me falso e ando muito triste, mas tenho que esquecer. Depois quando eu chegar, te contarei melhor como tudo aconteceu.

Gostava de chegar aí e tu estares ainda de férias, seria bom, mas a tropa é que manda!.. (...) 


(ix) Camabatela 04/08/71

(...) É precisamente o dia que devia terminar a minha comissão e que te escrevo para desta forma estar em contacto contigo.

Aquilo que desejas saber, ainda não é desta. Porque apesar de ter terminado a minha comissão, ainda não chegou o substituto para me render, mas como há falta de pessoal tenho que aguentar. Com a graça de Deus tudo vai acabar bem.

Desta vez a minha carta levou pouco tempo a chegar aí. Nesse mesmo dia escrevi também a mana Nitas.

Desculpa não escrever mais, mas estou cheio de sono.

Um forte abraço de saudades do teu mano Zé (...)


4. Reproduz-se,por fim, uma das 100 cartas (e aerogramas) que a mana Chita mandou ao mano Zé quando ele fez 22 aninhos... Ele, lá longe, no Norte de Angola, em Camabatela, para onde a Pátria o chamou, entre 1969 e 1971, uma eternidade...Ela já a trabalhar, mas ainda a viver em Candoz, na casa dos pais... O meu obrigada ao Zé por ter arquivado todas as cartas e os aerogramas que a família e os amigos lhe mandaram!... Tudo direitinho!...





Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 21 de outubro de 2012 > O Zé Carneiro, na véspera de completar 63 anos, apanhando sentieiros (cogumelos).

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.


Candoz 9.9.70

Querido Mano:

Após algumas horas terem passado do teu aniversário [, ontem, dia 8,], aqui estou a contar-te como o passámos.


Como já há 6 anos que lá não [ ia, à festa do Castelinho, ], este ano sempre me decidi e fomos, eu, o pai, a Rosa, o Quim, António e Graça. Fomos de manhã e chegámos à noite. Para te dizer que gostei muito, isso não. Sabes que só era alegria quando fazíamos as viagens a pé. Agora ninguém o faz e portanto deixa de ter aquela alegria sã como dantes. Isto é a minha opinião!... Mas julgo que a dos outros será a mesma.

Assisti à Santa Missa no adro e depois do almoço fui para o penedo onde permaneci até vir embora. Não estava calor, pois de manhã tinha chovido, portanto não fazia pó. Fomos todos à capela rezar por ti e assim se passou o dia. Não andava muito contente mas isto são problemas de 'amor'. E também por que estou muito magra, depois que vim de Lisboa já emagreci ainda mais 4 kg. 

Também te quero dizer que hoje mesmo recebi mais uma carta tua. Até que enfim te decidiste a escrever-me. Acredita que andei uns tempos chateada, mas já passou.

Quanto às fotos realmente tens razão. Eu tinha uma série delas tiradas em Pegões, e ficaram de mas mandar, mas até hoje ainda nada apareceu. Até eu estou a ficar aborrecida, mas o remédio é ter paciência. Quando me for possível, eu tas mandarei.

Neste momento estou a escrever-te do consultório médico. Vim com a mãe, vamos ver o que diz o médico. Não te aflijas porque [ela] anda bem, o médico é que quer ver se está melhor.

Quanto às uvas, para já o preço de 2$80 o kg, não é mau de todo mas a s vindimas só podem ser feitas a partir do dia 28. Isso é que será pior e mais ainda se agora não parar a chuva, então teremos tudo podre.

Por hoje é tudo, resta-me finalizar com um abraço da família Barbosa e meninas, cumprimentos dos vizinhos, beijinhos dos pais e da tua mana uma xi-coração de amizade. Maria Alice.

PS – Escreve para casa porque, embora trabalhe todos os dias, venho cá dormir.



5. O projeto  FLY – Cartas Esquecidas  (1900-1974) (Centro de Linguística da Universidade de Lisboa)

Recorde-se que a  Alice disponibilizou a sua coleção de cartas e areogramas da guerra colonial (cerca de três centenas e meia) para um projeto de investigação, chamado FLY. Todos os documentos foram devidamente digitalizados, sendo depois devolvidos à proprietária (e, no caso das cartas do mano, fiel depositária). Cito aqui a investigadora e doutoranda Leonor Tavares, da Equipa FLY, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa:

(...) "O projecto FLY - Cartas Esquecidas (1900-1974) é um projecto que procura recolher, digitalizar e editar cartas do século XX dos contextos de prisão, exílio, guerra (colonial e mundial) e emigração. Este projecto continua o projecto CARDS - Cartas Desconhecidas (1500-1900) que já conta com 2000 cartas transcritas. Os dois projectos estão neste momento parcialmente disponíveis no site http://alfclul.clul.ul.pt/cards-fly/.

"O objectivo do projecto FLY é recolher e editar 2000 cartas dos contextos referidos, sendo que se estipulou um total de 700 cartas para o contexto da guerra colonial. Este arquivo digital (composto pelas 2000 cartas do projecto CARDS e as 2000 do projecto FLY) estará disponível para investigadores de várias áreas (principalmente as áreas da Linguística, da História e da Sociologia), para que os documentos (as cartas) sejam imortalizados como objectos históricos de grande relevância linguística. Os estudos que podem ser feitos a respeito deste tipo de documentos compreendem, entre muitas outras hipóteses, aspectos relacionados com a sintaxe, a fonologia, a pragmática, a história cultural e/ou social e aspectos da sociologia das migrações, das desigualdades e classes sociais.

"O projecto FLY compromete-se a omitir todos os dados pessoais dos intervenientes nas cartas, nas transcrições e nas imagens disponibilizadas on-line. (...)".


Recolha de cartas portugueses do Século XX (1900 a 1974) > Apelo

“Se guarda em sua casa cartas particulares e deseja que ela sejam dignificadas enquanto objeto de conhecimento, por favor contacte os investigadores do projeto FLY 1900-1974 (Cartas Esquecidas).”

Rita Marquilhas
Centro de Linguística da Universidade de Lisboa
Avenida Professor Gama Pinto, 2, 1649-003 Lisboa
Telefone : 21 790 49 57
Fax : 21 796 56 22

Email : fly@clul.ul.pt
Endereço do site : http://alfclul.clul.ul.pt/cards-fly/

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8494: As mulheres que, afinal, foram à guerra(18): As madrinhas de guerra e a Cecília Supico Pinto,precursora do Facebook (António Matos)