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sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23929: Fotos à procura de uma legenda (167): "Apanhado" na Guiné, "apanhado" no PREC, "apanhado" por viver 287 km dentro (!) do Círculo Polar Ártico!... (J. Belo, Suécia)

Um aquário decorado com corais e cornos de rena... e temperatura amena, (24,9º)... Coisas do nosso J. Belo (que está vivo e recomenda-se, embora irremediavelmente "apanhado do clima")




1. Mensagem de Joseph Belo:

Data - quinta, 29/12/2022, 17:46

Assunto - Os "apanhados" do blogue com votos de Bom Ano Novo

“Apanhado” na Guiné,” Apanhado” no PREC,” Apanhado” por viver há 44 anos a 287 quilómetros dentro (!) do Círculo Polar Árctico!

(Obviamente que o aquário é decorado com… cornos de rena!!!!.)

Um abraço, 
J. Belo


2. Comentário do editor LG:

Dizia-se dos gajos, no meu tempo, chegavam da Guiné, que vinham "apanhados do clima"... Eu, que ainda estava do lado de cá do cais de embarque, em vésperas de partir no "Niassa" (em 24/5/1969) só depois é que me dei conta que os portugueses, em matéria linguística, são um povo criativo...

Mas os lexicógrafos, os dicionaristas, os especialistas de língua (e dedo),  vêm-se em papos de aranha para acompanhar o ritmo de produção das "frases feitas"... Esta é uma delas, "Apanhado do clima"... Mas já em 20/2/1998, o especialista do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, José Neves Henriques, lá tentava em vão satisfazer a curiosidade de uma consulente sobre a origem da expressão "anda tudo apanhado do clima".

(...) "Estamos em presença duma frase feita que anda por aí. É muito difícil saber a origem de frases e de diversas expressões desta natureza. Às vezes têm origem na representação de tal ou tal obra de teatro, fita cinematográfica, etc., como é o caso desta, que já pouco se ouve: Não tens planta nenhuma. Dos dicionários que tratam especificamente destas coisas, nenhum regista a frase apresentada pela nossa consulente. E mesmo que registasse, como saber a origem?

Orlando Neves publicou um «Dicionário das Origens das Frases Feitas». Elas são tantas, tantas!... São milhares. Pois o autor só conseguiu dar a origem dumas trezentas e tal. É muito difícil. Não conheço quem informe do que deseja saber.

José Neves Henriques  20 fev. 1998" (...)

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/anda-tudo-apanhado-do-clima/1878 [consultado em 30-12-2022]

Já o termo "apanhado" consta do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa:

a·pa·nha·do
(particípio de apanhar)

adjectivo

1. Que se apanhou.

2. Tacanho, mesquinho, estreito.

3. [Portugal, Informal] Que não é bom da cabeça ou age de modo insensato (ex.: é um casal simpático mas um bocado apanhado). = PIRADO

4. [Portugal, Informal] Que está dominado por sentimento de grande paixão (ex.: ficou logo apanhada pelo amigo do irmão; o tipo é completamente apanhado por futebol). = APAIXONADO
nome masculino

5. Resumo.

6. Refego, prega.

7. [Cinema, Televisão] Filmagem, geralmente feita com câmara escondida, onde os participantes são surpreendidos com situações cómicas, constrangedoras, provocatórias ou insólitas.

"apanhado", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/apanhado [consultado em 30-12-2022].

Cá no blogue, em mais de 5 mil descritores, "tags" ou marcadores", também temos a frase feita" "apanhados do clima"... Vinte e cinco referências pelo menos, embora ainda não tenha arriscado uma definição. 

... Apesar de tudo, ninguém nos ligou nada. Tanto gritámos estes anos todos que estávamos "apanhados do clima", que aconteceu o que aconteceu com a história do rapaz e do lobo... Os gajos da aldeia cansaram-se, preferiram tratar da vidinha de cada um e que se lixe as ovelhas do rapaz!... E pior: o presidente da junta, que é do partido dos animais, até deu uma medalha de mérito ao lobo... que zela pela biodiversidade e pela liberdade de presas e predadores lá nos baldios.... O sacana do rapaz é que era "apanhado do clima", coitado... Pode ser que melhore com as alterações climáticas que toda a gente, há anos, grita que aí vêm... Mas o presidente da junta não ouve, usa aparelho...
___________

Nota do editor:

domingo, 24 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22655: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte X: "apanhado do clima", o fim da comissão e o difícil regresso à vida civil, em Coimbra (Jan - jun 1967)


Guiné > Região do Óio > Porto Gole > Fevereiro de 1967 > A melhor foto de que dispomos, no blogue, sobre o gen Arnaldo Schulz, governador e comandante.chefe (1964/68): aqui sentado,  ao lado do piloto do helicópetrio; pronto a partir depois de visita a Porto Gole;   no banco de trás, duas caixas de cerveja, Sagres e Cristal; à direita, o fur mil José António Viegas, do Pel Caç Nat 54, com camuflado paraquedista trocado com um camarada numa operação no Morés em outubro de 1966.

Foto (e legenda) : © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**). São onze ao todo os postes publicados no blogue, este será o penúltimo



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

Contuboel, 11 de Janeiro de 1967

Chegou alguma da tropa que nos vem render [, CCÇ 1500 / BCAÇ 1877, Fufar, Bolama, Cacheu, Teixeira Pinto Contuboel, 1966/67 ]. O Capitão Miranda, oriundo da Mealhada, também veio. Tenho dó deles. O restante pessoal só virá no dia em que nós daqui sairmos - de hoje a uma semana, que não há instalações para toda a gente. 

Neste momento procede-se à passagem de testemunho e das armas. Quando entreguei a minha, fiquei mais leve e mais livre. Mas sempre pensei que este dia há tanto esperado ficasse percorrido de uma alegria bem mais funda. Tanto a sonhei ao longo destes infindáveis meses, que ela quase toda se gastou e agora encolheu-se e ficou tristinha. Ando magro que nem cação. Estou convencido de que tenho uma ténia agarrada à parede dos intestinos. Quarenta e nove quilos é pouco! Já pedi um medicamento para o efeito no posto médico e vou tomá-lo.


Contuboel, 13 de Janeiro de 1967

Um dia inteiro em jejum, só a água, para que o medicamento produzisse efeito. Nada. Nem ténia nem outros bicharocos. Fiquei ainda mais fraco com a abstinência.


Bambadinca, 18 de Janeiro de 1967

Aqui, à beira do rio Geba, para embarcarmos logo à noite em batelões para Bissau. Amanhã tomamos o Uíge para Lisboa. Assim sem espingardas nem pistolas, parece que ficámos subitamente indefesos e nus. E temos medo. Sobretudo que nos ataquem das margens durante esta noite de viagem por aí abaixo, até Pijiguiti. Não seria a primeira vez. A escolta que vai connosco não daria para as encomendas. Nunca mais acaba o pesadelo, sofremos até à última gota.

Bissau, a bordo do Uíge, 19 de Janeiro de 1967

Veio o Governador 
[, e Comandante-Chefe, gen Arnaldo Schulz]a bordo despedir-se das tropas e agradecer-nos, em nome da Pátria, o nosso esforço, sacrifício e abnegação. Seja tudo por alma da Pátria!, disse-me nos meus fundos. Garantiu-nos no final da derradeira golada de uísque que, em matéria de guerra, deixávamos este rincão pátrio melhor do que o havíamos encontrado à chegada. 

Mentiu com todos os dentes! A guerrilha alastra-se cada vez mais. O Capitão da minha Companhia ficou em terra [, Cap Mil Cav António Tavares Martins,    substituiu o primeiro comandante da CCAÇ 800,   Cap Inf Carlos Alberto Gonçalves da Costa].

Ainda não completou o tempo de comissão e vai compensá-lo numa repartição qualquer. Nem fiquei triste nem contente, que, com esta magreza, se me esvaíram quase todos os sentimentos. Trouxe comigo o perdigueiro. Não houve qualquer problema na sua admissão a bordo. O Vila Velha, o meu guarda-costas, prontificou-se a tratar dele durante a viagem.


Lisboa, 27 de Janeiro de 1967

Não dormi isto sequer, com a ansiedade da chegada. Navega agora o navio Tejo adentro. Ainda é noite. Está frio lá fora e outro ainda mais gelado cá dentro em mim. Encontro-me no deck, enrolado num cobertor, à laia de capa de estudante de Coimbra que ainda sou. Vejo a ponte nova, Salazar chamada, e ao longe as luzes da cidade. Não me encantam nem me chamam. Ando de um lado para o outro e penso na vida e no futuro. E olho indiferente as luzes que se espelham, tremeluzindo, nas águas do rio. Serei capaz de vencer e de me vencer? 

Vou ter o meu filho no cais à minha espera. Com dois meses apenas. E talvez seja bom assim. Se tivesse entendimento, veria o pai já cansado e envelhecido e dardejando chispas de medo dos olhos fundos. Na flor da idade. Não minto. Vi-me no espelho quando me escanhoava pela última vez. Última, sim. É que daqui em diante vou deixar crescer a barba. Não foi promessa. Foi uma jura. E cada um tem direito à sua pancada. Mas sei as razões desta minha atitude, que, como todo o neurasténico que se preza, tenho explicação para tudo quanto me aconteceu ou porventura venha a acontecer-me. Um dia hei-de contar!


Tomar, 28 de Janeiro de 1967

Agora somos três e ficámos numa residencial junto ao rio Nabão. Logo de manhã cedo, tomei o pequeno-almoço e fui para o quartel novo, agora mais completo do que quando para aqui vim há dois anos. Ultimadas as formalidades de desmobilização, muito mais rapidamente do que pensava, principiei a sentir-me angustiado. Fiquei sem me perceber. Na hora há tanto ansiada em que me desligava do pesadelo, sentia-me em tremuras tais, que tive uma vontade urgente de pedir que me socorressem. Não foi preciso, que logo entrei em pânico. Levaram-me para a enfermaria e aí deram-me um calmante dos fortes. Ao fim de um quarto de hora, já estava mais calmo. 

Regressei à residencial, meio triste, cogitando na vida que tenho agora pela frente. E só então é que me lembrei que, antes de sair, havia tomado duas chávenas almoçadeiras cheias de café. Fui perguntar. Sim, era café puro e forte! Nem sequer posso tomar um dedal de café legítimo, que me dá tremedeira, quanto mais. E já não fiquei perturbado com a minha reacção pânica.

Estação de Fátima, 28 de Janeiro de 1967

Espero o comboio que me há-de levar para Coimbra, onde vou principiar uma nova fase da vida. Está um tempo esclarecido e a temperatura é amena. A alcofa com o meu filho está poisada no chão meio saibroso, meio areento da plataforma, ao ar livre. Dorme serenamente. 

Como não posso estar quieto, passeio com a Otília para trás e para a frente e vou-lhe traduzindo em palavras os meus receios no futuro. Estou deserto por me pôr à prova no campo académico. A minha obsessão é concluir o meu curso de letras. Sei que muitos que voltaram da guerra não o conseguiram. E eu? Chega o combóio. Pego da alcofa e subo para a carruagem. Fecha-se-me um pano de boca de cena atrás das costas.


Coimbra, 1 de Fevereiro de 1967

Entrei na Faculdade de Letras como um condenado. Encontrei no sexto piso o meu velho professor de Língua Alemã, o Doutor Helling, uma santa criatura, que, ao ver-me, se assustou. Não o soube disfarçar, que bem lhe vi o rosto perturbado. Ao fim do baque perguntou-me: 
- O minino sente-se mal, está doente? 

 Respondi-lhe que acabara de chegar da guerra colonial. E pelo que me disse a seguir, verifiquei que podia contar com ele. Sim, iria rever o meu alemão esquecido e, depois de me sentir bem preparado, apresentar-me-ia a exame. Com as regalias militares, posso fazer exame quando quiser. Miminhos da Pátria agradecida.


Coimbra, 14 de Junho de 1967

Os efeitos da guerra continuam e de que maneira. Tenho corrido um ror de médicos no intuito de obter algum alívio. Um professor da Faculdade de Medicina, a pedido do meu conterrâneo, Prof. Linhares Furtado, a quem consultei, descobriu que eu tinha, nos intestinos, um anchylostoma raríssimo. Bicharia da Guiné. 

Ficou contente pela descoberta e não me levou um tostão. Receitou-me um medicamento chamado Mintzol. É um líquido branco, espesso, que tomei por duas vezes, no mesmo dia. Ia morrendo da cura. Estive oito dias de cama, quase sem forças para articular uma palavra e em soltura constante.


Coimbra, 28 de Junho de 1967

Estava há dias estudando num cubículo que tenho no terraço de casa e me serve de escritório, quando a Otília lá entrou a perguntar-me o que queria que ela fizesse da minha farda camuflada, que trazia na mão para me mostrar. Andava em arrumações. Eram dez horas da noite. Havia fogueiras de São João no Largo de São Salvador, na Alta, nas traseiras da minha República. Passou-me um clarão pela cabeça e disse-lhe: 
- Deixa cá ver a farda. 

 Sem uma palavra, passou-ma para as mãos. Fardei-me e saí de casa, sem ouvir sequer um resmungo. Ao chegar ao Largo de São Salvador, o bailarico estava animado e meti-me na roda mascarado de guerreiro. O meu amigo Germano Rego Sousa, da República dos Corsários e aprendiz de psiquiatra [, também ele açoriano de São Miguel, acabou por  especiliar-se em patologia clínica, depois de fazer uma comissão como médico militar em Angola, 1969/71... ], também lá estava. 

Num fim-de-semana que vim passar a Coimbra, quando andava por Mafra, ofereceu-me um poema que começava assim:

Gosto de ti, poeta triste
Que cantas a saudade de mares não percorridos
E trazes o cheiro de estranhas terras
Que não descobriste [...].

Gosto de ti, poeta,
Que chegas com a mala abarrotando
De uma camisa e de um livro de poesia
E que esqueces às vezes a camisa,
Que essa, pode-se esquecer,
Mas nunca a poesia [...].

Quando me viu naquele preparo, fardado de guerreiro da guerra colonial, deve ter torcido o nariz e desconfiado da minha sanidade mental. Aproximou-se de mim. E, muito delicadamente, pediu-me que o seguisse até à República, que queria falar comigo. Falou, interrogou, como se me estivesse praticando psicanálise. Por fim pediu-me que no dia seguinte fosse à clínica onde trabalha com o Louzã Henriques 
 [ 1933- 2019, psiquiatra , etnógrafo, escritor. opositor ao regime de Salazar ], a de Santa Teresa, que me queria fazer testes. Fui. Vim de lá com um arsenal de amostras de medicamentos para tomar. Ando a cair de sono pelos cantos da casa e de mim.

(Continua)

[ Revisão / fixação de textos / imagem e legenda / links / notas entre parêntesis rectos / subtítulo, paar efeitos de publicação deste poste: LG ]

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22254: O nosso blogue por descritores (3): "Apanhados do clima" (com mais de 20 referências)

 





Alguns membros da FNAC - Fundação Nacional dos Apanhados do Clima (, criada em Jolmete, em meados de 1970, pelos graduados da CCaç 2585 do BCaç 2884, Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto,1969/71):De cima para baixo, da esquerda para a direita: (i) Fur Mil Araújo, Alf Mil Godinho, Fur Mil Gomes; (ii) Fur Mil Gondar, Alf Mil Ferreira, Fur Mil Filipe; (iii)  2º Sgrt Mesquita, Fur Mil Rodrigues e 1º Srgt Vinagre... Cada membro (chamado "organizado" nos estatutos)  tinha um "nome artístico". (Vd. poste P8377 (*).

Foto (e legenda) : © Manuel Resende (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Inaugurámos há duas semanas uma nova série, "O nosso blogue por descritores" (*)... Com mais de 5 mil "descritores", de A a Z, torna-se difícil (se não impossível) aos nossos leitores fazer uma pesquisa exaustiva de um determinado tema ou assunto no nosso blogue que já tem 17 anos de existência e mais de 22 mil e duzentos postes.

O descritor "lavadeiras" (com mais de 4 de dezenas de referências no nosso blogue) inaugurou esta série. Hoje temoa a frase feita "apanhados do clima", Além de uma mini-imagem, o poste é refenciado por:

(i) data;
(ii) número de ordem (cronológica);
(iii) série em que vem inserido;
(iv) título (e subtítulo);
(v) autor(es) (dentro de parênteses, no final) (não aparecendo este campo, o poste é, por defeito, da autoria de um ou mais editores do blogue)

A listagem só não traz o link de cada poste, porque seria muito consumidor de tempo para os editores recuperá-lo. Mas os nossos leitores podem consultar o poste inserindo o seu número na janela do canto superior esquerdo do blogue, antecedido sempre da consoante P, de poste: por exemplo P2272).

A título de curiosidade, refira-que o poste que teve mais visualizações (n=6348) foi o P2272... mas apenas com 2 comentários.

O nosso blogue por descritores (3): apanhados do clima
(que tem mais de 2 dezenas de referências)




4 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22253: Estórias avulsas (106): o aspirante Carvalho e a nossa (in)sanidade mental (Fernando de Sousa Ribeiro , ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)


12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21889: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (17): O morcego, a cria, os pelicanos... e os apanhados do clima


10 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21878: Os nossos médicos (91): recordando o sentido do humor do nosso saudoso J. Pardete Ferreira (1941-2021), ex-alf mil médico (CAOP, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1969/71)


29 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15173: O nosso querido mês de férias (10): Eu fui um dos que nunca teve férias...Razão: por ser o "eterno comandante interino"... No máximo, passei oito dias em Bissau a tratar de assuntos oficiais... e a descansar não ficar de todo "apanhado do clima"! (Manuel Vaz, ex-alf mil, CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67)


 4 de março de 2015  > Guiné 63/74 - P14320: Inquérito online: resultados finais (n=112): três em cada quatro reconhece que mudou muito, fisica e/ou psicologicamente


 1 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14105: Manuscrito(s) (Luís Graça) (42): Requiem para um paisano... (à memória do meu infortunado camarada Luciano Severo de Almeida)


16 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14037: Estórias cabralianas (85): uma floresta de árvores de Natal... (Jorge Cabral)


17 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13300: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XI: (i) a história de um acidente com uma viatura por causa do "enterro do bacalhau"; (ii) sonâmbulos e "apanhados do clima"; e, por fim, (iii) com minas e armadilhas não se brinca(va) (Avelino Pereira, madeirense)


15 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11097: Álbum fotográfico de Abílio Duarte (fur mil art da CART 2479, mais tarde CART 11/ CCAÇ 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) (Parte III): A nossa messe, no Quartel de Baixo, em Nova Lamego, decorada pelo famoso Pechincha, fur mil op esp e desenhador de profissão


25 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10569: (Ex)citações (201): Não me lixem com o Pifas! (Salvador Nogueira)


13 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10528: (Ex)citações (200): Pois que viva... o VAT 69! (Tony Borié / Luís Graça)


6 de junho de 2011 > Guiné 63/74 – P8377: Memórias de Jolmete (Manuel Resende) (2): FNAC - Fundação Nacional dos Apanhados do Clima
 

29 de maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8346: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (18): Não se brinca com coisas sérias...


8 de julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4658: Vindimas e Vindimados (José Brás) (6): Achamos nós que não nos conhecíamos
 

17 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)


7 de setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)


28 de julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (II): tirem-me daqui!


19 de julho de 2006 > Guiné  63/74 - P972: Cacimbados ou apanhados do clima? (Zé Teixeira)


19 de julho de 2006 > Guiné 63/74 - P970: Os efeitos do 'cacimbo' (Joaquim Mexia Alves)
 
17 de julho de 2006 > Guiné 63/74 - P965: 'Cacimbados', 'apanhados do clima'... ou os nossos comportamentos de risco, bravatas, diabruras, loucuras...


13 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): Sexa o Caco (Baldé) em Missirá...

16 de junho de 2005 > Guiné 63/74 - P59: Esquecer a Guiné...por uma noite! (Luís Graça)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de junho de 2011 > Guiné 63/74 – P8377: Memórias de Jolmete (Manuel Resende) (2): FNAC - Fundação Nacional dos Apanhados do Clima

(**) Postes anteriores  da série > 

Guiné 61/74 - P22253: Estórias avulsas (106): O Aspirante Carvalho e a nossa (in)sanidade mental (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535/BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)


Angola > Ao centro, o capitão miliciano de infantaria João Manuel de Morais Lamas de Mendonça e Silva, que comandou a CCaç 3535 até à primeira quinzena de janeiro de 1973.  


Foto (e legenda) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro [ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), do BCAÇ 3880; é licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; vive no Porto; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018, sentando à nossa sombra do nosso poilão no lugar n.º 780; tem 2 dezenas de referências no blogue.]
 
Date: terça, 1/06/2021 à(s) 18:22
Subject: Mais um texto meu (o último) (*)
 

Caro Luís,

Tenho mais um texto a partilhar contigo, e que poderás publicar no teu blogue se quiseres, relativo a um aspirante que conheci em Angola e que era doente mental. O texto não faz parte do meu livro, porque eu não tenho qualquer intervenção na história. O meu estatuto foi unicamente de observador. Posso, contudo, assegurar-te que os casos narrados no texto se passaram tal como os descrevo, nomeadamente o incidente com a granada de mão. A versão do incidente que o próprio agressor pessoalmente me contou é coincidente, quase palavra por palavra, com a versão que a vítima me tinha contado antes. Garanto, por isso, que o incidente se passou tal como o descrevo. 

Eu não tenho em minha posse qualquer fotografia do aspirante, nem sei onde poderei encontrar uma. Nesta situação, só posso descrever-to, dizendo que ele era um indivíduo relativamente baixo e entroncado e que usava óculos, uns óculos bastante redondos, que apropriadamente lhe davam um aspeto um tanto ou quanto alucinado.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro, 
ex-alferes miliciano, 
CCaç. 3535 / BCaç 3880, Angola 1972-74


2. Estórias avulsas > O Aspirane

No meu tempo de tropa, os muitos capitães milicianos que tiveram a responsabilidade de comandar companhias operacionais na guerra colonial eram habitualmente selecionados para esse posto em função da idade. Seguia para capitão, e não apenas para alferes, quem estivesse indicado para vir a ser oficial miliciano com uma especialidade operacional e tivesse uma idade superior a um determinado limite. Não me lembro ao certo de qual era esse limite, mas julgo que devia ser à volta de 23 ou 24 anos. Olhe-se para os jovens que agora têm 23 ou 24 anos, repare-se nas criançolas que quase todos eles ainda são e compare-se com as brutais responsabilidades que foram exigidas aos capitães milicianos na guerra. 

Depois de frequentarem o COM (Curso de Oficiais Milicianos) em Mafra, tal e qual como acontecia com os militares que iriam ser alferes milicianos de Infantaria, os futuros capitães milicianos frequentavam o chamado CCC (Curso de Comandantes de Companhia). 

Eu não estou em condições de descrever em que é que consistia o CCC mas calculo que os futuros capitães teriam que aprender a lidar com as diversas questões relacionadas com o comando de uma companhia, nas quais se incluiam as questões operacionais, administrativas, contabilísticas, logísticas, disciplinares, etc. 

No âmbito do CCC e em jeito de estágio, já com o posto de alferes, os futuros capitães milicianos eram enviados para África por cerca de quatro meses, para que, integrados numa companhia real, pudessem aprender como é que as coisas se faziam na prática. Na minha própria companhia, a Companhia de Caçadores 3535, em Zemba, esteve durante algum tempo um destes alferes, que tinha ido para lá estagiar junto do capitão Lamas da Silva, que era então o comandante da mesma. O próprio Lamas da Silva já tinha tido um estágio deste tipo, antes de se tornar capitão miliciano. O estágio do Lamas deve ter acontecido no ano de 1971 e ocorreu na cidade do Luso (agora chamada Luena), no leste de Angola. 

Quando o Lamas da Silva (Foto n.º 1, acima) chegou ao Luso para o seu estágio, estava lá colocado um aspirante a oficial miliciano que sofria de sérias perturbações mentais. Era o aspirante Carvalho. Nalgumas unidades chamavam-lhe Meireles, mas Carvalho é que era o seu último apelido. Este aspirante, porém, nunca assinava Carvalho com todas as letras; sempre e sistematicamente assinava Carvalho sem V! Até no bilhete de identidade ele tinha assinado Carvalho sem V… 

Enquanto esteve no Luso, este aspirante fez diversas tropelias, algumas inocentes, mas outras perigosas. Por exemplo, uma noite ele foi visto a correr completamente nu pelas ruas da cidade, com a malta atrás dele para o agarrar! 

Este indivíduo mantinha-se no posto de aspirante sem ser promovido a alferes, por causa das asneiras que ia fazendo e das sucessivas punições que estas lhe iam valendo. Ele não tinha um comportamento que lhe permitisse ser promovido. Na verdade, ele nem aspirante deveria ser. A sua doença mental era tal, que ele deveria ter sido isentado de todo o serviço militar e submetido a um tratamento psiquiátrico em condições. Mas não foi isso o que lhe fizeram. Limitaram-se a passá-lo aos auxiliares. 

De vez em quando, ele era enviado para o Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Luanda, onde ficava internado. O Serviço de Psiquiatria era uma coisa verdadeiramente tenebrosa. Nem os campos de concentração nazis conseguiam ser piores do que aquilo. O Serviço ficava numas instalações situadas na zona da Samba, longe do centro da cidade. Estas instalações eram constituidas por alguns pavilhões muito próximos uns dos outros e estavam rodeadas por muros altíssimos e coroados de arame farpado. Lá dentro, era impossível estabelecer todo e qualquer contacto com o mundo exterior, a não ser que alguém abrisse o portão, a única ocasião em que os doentes lá internados poderiam ver uma nesga do largo fronteiro às instalações. De resto, o isolamento do mundo para quem estava internado era total. Lá dentro, não se via outra coisa que não fossem muros e paredes, nas quais se roçavam os doentes de olhar perdido, encharcados em drogas. Estar internado em tais condições implicava ficar doido varrido para o resto da vida. 

No entanto, o aspirante Carvalho não se deixava amarfanhar por aquilo e, por mais sedativos que lhe dessem e por mais tratamentos que lhe fizessem, ele conseguia sempre fugir dali para fora. Como fugia só com a roupa que trazia no corpo e sem dinheiro, acabava depois por ser encontrado a dormir na rua... 

O incidente mais grave que o aspirante protagonizou no Luso envolveu o então alferes Lamas da Silva. Por razões que desconheço ou sem razão alguma, o aspirante ganhou um ódio de morte a um certo sargento que estava lá no Luso. Uma noite, depois de jantar, enquanto o resto do pessoal que estava na messe de oficiais ia conversando e bebendo as suas cervejas e os seus whiskies, o aspirante levantou-se de repente e afirmou: 

— Vou matar o filho da puta do sargento Fulano. 

Foi ao seu quarto, saiu de lá com uma G3 nas mãos e dirigiu-se à messe de sargentos. Logo se gerou uma enorme confusão, com o pessoal a procurar demovê-lo dos seus intentos, mas a medo, porque aquele maluco estava armado. No meio da confusão, o Lamas da Silva conseguiu arrancar a arma das mãos dele. 

O incidente parecia ter terminado desta forma, mas não terminou. Quando foi para a cama, o Lamas levou consigo a espingarda do aspirante, colocou-a debaixo do travesseiro e deitou-se. 

A dado momento, o aspirante apareceu à porta do quarto do Lamas com uma granada na mão, dizendo: 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada. 

— Não dou — respondeu o Lamas da Silva. 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada — repetiu o aspirante.

 — Não dou. 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada. 

— Já disse que não dou!... 

O aspirante lançou a granada para dentro do quarto do Lamas da Silva.  Este só teve tempo de saltar para debaixo da cama e proteger-se o melhor possível, antes de a granada explodir. Se a granada fosse defensiva, daquelas que espalham estilhaços de ferro quando rebentam, o Lamas não teria saído dali com vida. 

Mas a granada era ofensiva. Não espalhava estilhaços de ferro, mas tinha um grande poder explosivo. Ao rebentar, a granada destruiu o recheio do quarto e o Lamas da Silva ficou ferido por estilhaços. Foi evacuado e ficou internado no hospital. Mesmo quando, mais tarde, comandou a companhia 3535, o Lamas ainda tinha no corpo alguns estilhaços, que os  médicos não tinham podido tirar-lhe. Ele valeu-se disso para conseguir sair definitivamente de Zemba e abandonar o comando da companhia. 

Um dia, quando o capitão Lamas da Silva ainda estava em Zemba, quem foi que desembarcou lá, chegado numa coluna vinda de Santa Eulália, a fim de cumprir uma pena de prisão de um mês? O aspirante Carvalho! 

Quando o viu, o Lamas da Silva ficou branco como a cal da parede. 

— Tu aqui?... — balbuciou o Lamas, espantado. 

— É a vida! — respondeu o aspirante, encolhendo os ombros. 

E nunca mais se falaram. Mais do que isso, até. Não só não se falaram, como nem sequer se cruzaram mais. Se o Lamas da Silva ia para um lado, o aspirante ia para outro e vice-versa. O aspirante tinha ido para Zemba cumprir uma pena de um mês de prisão por causa de um incidente que ele tinha provocado em Santa Eulália, onde estivera colocado ultimamente. 

Uma noite, encontrando-se ele de serviço como oficial de dia ao Comando de Agrupamento 3952, a que então pertencia, o aspirante abandonou o seu posto e foi para a sanzala, onde andou aos tiros com a pistola de serviço. Felizmente não acertou em ninguém. O coronel de Infantaria Carlos Lacerda, que com o posto de major foi segundo-comandante do Batalhão de Caçadores 3880. Como não podia deixar de ser, quando chegou a Zemba, o aspirante foi apresentar-se ao comandante da unidade, que naquele momento era o major Carlos Lacerda, porque o tenente-coronel estava de férias. O major, ao observar os papéis que o aspirante tinha trazido, comentou: 

— Você tem aqui um currículo impressionante! São porradas e mais porradas... E agora vem aqui cumprir mais um mês de prisão... Pois olhe, a única prisão que temos aqui em Zemba é uma coisa que há ali num torreão. Mas aquilo não tem condições nenhumas, não é prisão nem é nada. Este quartel aqui em Zemba é que é todo ele uma prisão, isso sim! Isto é um autêntico campo de concentração. Até eu, que não cometi crime nenhum, estou aqui preso. Se eu quiser sair daqui, só posso ir com uma escolta. Portanto, considere-se preso e ande por aí... Mas veja lá como é que se comporta! Ao mais pequeno incidente, eu abato-o, ouviu? Abato-o! 

— O meu major abate-me?! — admirou-se o aspirante. 

— Abato-o, já disse! 

— Ó meu major, se isto aqui em Zemba é assim à Texas, então o melhor é irmos os dois ali para o meio da parada, para ver quem é que dispara primeiro... 

— O quê? Você não se assustou com o que eu lhe disse? — perguntou o major, surpreendido com a reação do aspirante. 

— Eu não — respondeu este. 

— Não teve medo? A sério? 

— A sério. 

— Eh, pá! — exclamou o major. — Você é dos meus! É de gajos assim que eu gosto! Gajos de tomates, sem medo... Acho que nos vamos dar bem. Venha daí beber um whisky. 

E assim nasceu uma grande amizade entre o major Lacerda e o aspirante Carvalho. Como poderão confirmar todos quantos estiveram em Zemba nessa altura, o aspirante nunca causou qualquer problema, fosse de que ordem fosse, enquanto lá esteve. Quem o visse em Zemba, diria que ele era um indivíduo perfeitamente normal, alegre e bem disposto e que se dava bem com toda a gente (menos com o Lamas, claro). Fartou-se de jogar matraquilhos com a malta. 

— Aqui em Zemba é que me sinto bem — confessou ele uma vez. — Sinto-me tão bem, que até já deixei de tomar os medicamentos para a cachimónia. Não sinto falta nenhuma deles. 

Quando terminou a pena de prisão, o aspirante, em vez de voltar para Santa Eulália, foi transferido para o Batalhão de Artilharia 3860, sediado na Damba, a cerca de 100 km a sul de Maquela do Zombo. Foi a sorte dele, e já vamos ver porquê. Na Damba, as condições mentais do aspirante voltaram a deteriorar-se. Os incidentes que ele provocava eram cada mais frequentes e cada vez mais graves. O comandante do batalhão da Damba já estava pelos cabelos, já não podia aturá-lo mais. O aspirante arriscava-se a apanhar mais uma punição de um momento para o outro. 

Um dia, chegou à Damba a notícia de que tinha mudado para Maquela do Zombo um tal Batalhão de Caçadores 3880... Logo o aspirante pediu licença ao comandante para integrar a próxima coluna que se deslocasse a Maquela, para fazer uma visita ao seu amigalhaço Lacerda. Talvez para se ver livre dele por umas horas, o comandante deu-lhe autorização e o aspirante lá foi. Quando voltou à Damba, o aspirante vinha mais bem disposto e passou a comportar-se melhor. A visita ao major Lacerda tinha-lhe feito bem. 

Então o comandante da Damba passou a ter o seguinte procedimento para com o aspirante: sempre que este começasse a fazer muitas asneiras, era metido numa viatura e levado para Maquela. Mais tarde, quando ficasse mais calmo, voltava para a Damba. 

E assim se passaram alguns meses, sem que o aspirante voltasse a sofrer qualquer punição. Por volta de janeiro de 1974, o batalhão da Damba chegou ao fim da sua comissão militar e o aspirante Carvalho (ou Meireles, como era chamado na Damba) regressou finalmente à Metrópole, juntamente com o batalhão. 

Ao todo, o aspirante fez cerca de quatro anos de comissão. E nunca foi promovido a alferes; ficou aspirante até ao fim. (**)

 [Tíitulo do poste,  da resposnsabilidade do editor: LG ]
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Notas do editor:

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21889: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (17): O morcego, a cria, os pelicanos... e os apanhados do clima


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; 

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem 2 dezenas de referências no nosso blogue; vive em Esposende, é professor reformado.


Mensagem de 2 do corrente: 

Assunto - O morcego e a cria

Estimado amigo:

Mais um texto produzido que tinha em arquivo e que sofreu ligeira alteração.
Um abraço
Carlos Barros


O morcego, a cria, os pelicanos... 

e os apanhados do clima 


por Carlos Barros


O Comando da 2ª Cart de Nova Sintra escalou, mais uma vez, o 3º grupo de combate para garantir a segurança da estrada Tite-Enxudé, uma via de extrema importância , uma vez que garantia o acesso, por via marítima e fluvial, à cidade de Bissau, através da utilização de várias embarcações: LDM, LDG, sintex...

Numa 4ª feira o furriel Barros estava descansado, devidamente armado, no seu posto de vigilância nesse percurso e, por sinal, entretinha-se a caçar alguns pássaros com a sua arma de pressão, no meio dos cajueiros.

Num desses cajueiros, amarrado a um ramo, encontrava-se um morcego e o Barros, decidiu dar-lhe um tiro já que nunca tinha visto “ao perto” um morcego.

Pegou na sua arma de pressão, zás!, um tiro certeiro... Passados segundos, esse animal cai no chão poeirento do posto de vigilância e algo de imprevisível tinha acontecido: O morcego caiu morto e tinha uma cria junto de si e o destino da cria estava traçado…

O Barros estava amarelo e tremendamente arrependido por ter morto o morcego, já que nunca tinha suspeitado que existiria uma cria em amamentação pois, se soubesse, jamais atiraria ao infeliz animal.

Um dia estragado, mais um “desastre” na caçada do Barros e este militar, como muitos outros, andavam um “pouco apanhados” da guerra que transformava os homens em autênticos “animais irracionais”…

Faz-me relembrar que, numa das idas a Lala, cais de reabastecimento de Nova Sintra, no Rio Geba, o alferes Domingos do 3º Grupo, a que pertencia o Barros, pegou na sua G3,  e começou a abater inúmeros pelicanos que estavam no cimo das árvores, no período de nidificação, sendo alguns trazidos para o aquartelamento de Nova Sintra para serem cozinhados na improvisada cozinha do destacamento, pelos cozinheiros Rochinha e Eduardo.

O Furriel Auto José Elias não se fez rogado e, com o amigo furriel Mendonça, participaram alegremente no repasto comido na messe dos graduados. A um canto da messe, o sargento “Rasteiro” perguntava ao soldado “Bichas”:

- O que é que aqueles furriéis estão a comer?

O Bichas sempre afoito, respondeu ao sargento para ir á mesa perguntar para saber a resposta…

Naturalmente, que o “Rasteiro” não foi saber a resposta e saiu em grande velocidade pela porta fora da messe porque temeu enfrentar o furriel Elias que andava de “candeias às avessas” com o sargento…

O Barros ficou revoltado com a situação, barafustando com o seu superior hierárquico, cujas relações sempre foram amistosas e respeitadoras. 

As indefesas crias,assistiram a esta carnificina e ficaram no cimo das árvores , “piando”,  talvez protestando contra este “vil assassinato” de aves que não incomodavam ninguém.

Se houvesse, na altura uma Associação Protectora dos Animais, o Barros assumiria a culpa e suportaria as consequência e, digo isto, porque o furriel, em parte, recuperou das mazelas psíquicas que a atroz guerra provocou.

A partir desse momento, a arma de pressão entrou de férias durante muito tempo…

Nova Sintra 1974

Barros - ex-furriel do BART 6520, 2ª Cart

“Os Mais de Nova Sintra”

Esposende, 2 de fevereiro de 2021          

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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21878: Os nossos médicos (91): recordando o sentido do humor do nosso saudoso J. Pardete Ferreira (1941-2021), ex-alf mil médico (CAOP, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1969/71)


Ministério do Exército > CTIG > HM 241 > Bissau, 24 de junho de 1962 >
BI Militar do alf mil médico José António Pardete da Costa Ferreira, assinado pelo então 
Director do HM 241, Major Médico Filino de Almeida (falecido em janeiro de 2011)



1. O nosso camarada, ex-alf mil médico J. Pardete Ferreira, que nos deixou em 13/1/2021, na véspera de completar os 80 anos (, nasceu em Lisboa a15 de fevereiro de 1941), era um homem que tinha e cultivava o sentido do humor... e que amava a vida e o convívio (*).

Entrou para a nossa Tabanca Grande em 27 de junho de 2011, já depois dos 70 e aposentado do SNS. O seu filho, Jean-Jacques Pardete,  teve acortesia e o cuidado de me participar a sua morte. Ao seu filho e à sua filha já apresentei as nossas condolências em nome da Tabanca Grande.

Infelizmente, não privei com ele, em vida,  falámos ao telefone uma vez ou outra  e trocámos mails, ao longo destes últimos anos. 

Aconselho, de resto, os nossos leitores a ler ou reler o  seu livro “ O Paparratos – Novas Crónicas da Guiné – 1969/1971" (romance). Lisboa: Prefácio – Edição de Livros e Revistas, Lda, ISBN: 972-8816-27-8". Irei em breve fazer uma detalhada recensão bibliográfica desta obra. (Jà há uma, feita pelo Mário Beja Santos.)

O talentoso criador literário de Paparratos,  soldado 'comando', bem  do médico miliciano João Peckoff, era um arguto observador da "fauna humana" e tem deliciosos apontamentos sobre a vida estudantil em Lisboa, em 1962 e o "movimento católico juvenil" dos anos 60, bem como sobre a tropa e a guerra... Antes de ser mobilizado para o CTIG, foi médico na EPA, a Escola Prática de Artilharia, por onde também passou o nosso "alfero Cabral"...

Fui respecar dois pequenos apontamentos, honrando a sua memória como nosso camarada (***):


(i) Comentário do José Pardete Ferreira  ao poste P12222 (*)

A história [do Jorge Cabral] está gira. Fui Médico na EPA [, Escola Prática de Artilharia,m em Vendas Novas], de Fevereiro a Outubro de 1968. 

Onde nós íamos era à tasca / "restaurante" do Zé do Calção, junto à estrada, à direita de Sul para Norte, já a Chegar a Bombel(i).  Tinha umas febras de porco notáveis. A Casa das Bifanas já trabalhava mas era muito diferente. Os mais abonados iam ao Manel das Bombas (que se licenciou em Direito depois de "enviuvar") ou então a Montemor(i). 

Havia um Capitão, que regressara da Guiné, e que, depois do jantar, fazia o trajecto Montemor-Vendas Novas, pela faixa esquerda da estrada para... treinar os reflexos.

Já não me lembro bem mas tenho a impressão que era o Cap. Reis,  não tenho a certeza. Os anos passam... Abraço.



(ii) Mensagem que J. Pardete Ferreira me enviou no dia seguinte:


Date: quinta, 31/10/2013 à(s) 12:07
Subject: Vendas Novas

Caro Luís Graça,

Na minha última intervenção  sobre uma história hilariante de Vendas Novas (**), escrevi que havia um Capitão, que regressara da Guiné, que,   quando ia jantar a Montemor, voltava pela esquerda para treinar os reflexos.

E, embora não me soasse muito bem, chamei-lhe Cap Reis. Esta noite, às quatro da manhã, acordei: "Rei"! 

Com efeito, tratava-se  do Cap Rei, que regressava fora de mão com o seu Carocha e que só 
regressava à sua faixa quando via as luzes.

Abraço, Pardete
 
___________

Notas do editor:


terça-feira, 29 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15173: O nosso querido mês de férias (10): Eu fui um dos que nunca teve férias...Razão: por ser o "eterno comandante interino"... No máximo, passei oito dias em Bissau a tratar de assuntos oficiais... e a descansar não ficar de todo "apanhado do clima"! (Manuel Vaz, ex-alf mil, CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67)


1. Mensagem de 22 do corrente, do Manuel Vaz [ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67]:

Verifico pela "amostra" (*), que fui dos poucos que nunca tive férias, durante a Comissão, não por razões económicas, mas de oportunidade. Passo a explicar:

A minha Companhia, organizada em três Grupos de Combate, chegou à Guiné em abril de 1965 e a Gadamael um mês depois, para guarnecer este aquartelamento e o destacamento em Ganturé. 

Passados 3/4 meses o Capitão foi para o Quartel General, tendo passado eu a comandar interinamente a Companhia.

Os meus planos, quanto a férias, eram de uma vinda à metrópole, sensivelmente a meio da Comissão. Entretanto em janeiro de 1966, o Grupo de Combate do Alf Pinheiro, sofre uma emboscada, juntamente om o Pel Rec Fox na estrada de Gandembel.(Corredor de Guileje) 

A coluna sofreu 5 mortos e 14 feridos, sendo um destes o Alf Pinheiro que nunca mais regressou à Companhia. Na sequência desta baixa e das férias que outro camarada gozava, ficamos anenas dois Alf:eres, eu na sede, outro no destacamento.

Demorou algum tempo até que a situação da falta de quadros fosse reposta. Mas quando tudo parecia normalizado o Cap Mil que veio comandar a Companhia, desentendeu,se com o PCA numa operação no "Corredor de Guileje" e foi transferido, tendo eu passado a comandar interinamente a Companhia, situação que se arrastou, até faltarem três meses para virmos embora

Foi então em que apareceu um Capitão a que faltavam também cerca de três meses para ser promovido a Major. (**)

Nesta altura, não valia a pena vir à metrópole, pensei. Fiquei-me oito dias por Bissau, onde vim tratar de uns assuntos oficiais e para "não ficar apanhado do clima"!... (***)

Um abraço a todos,
Manuel Vaz

(...) Ainda com o Cap. Vieira dos Santos que passados 3 ou 4 meses foi colocado no QG, a Companhia começou a operar no “corredor de Guiledje”. Era claro que, para além do patrulhamento e segurança do setor, a Companhia teria que dar apoio logístico no reabastecimento de Sangonha e Guiledje e intervir no “corredor de Guiledje”. (...)

(...) No entanto, a Companhia estava condenada a não ter Capitão. Passado algum tempo, depois do Cap. Vieira dos Santos sair, foi nomeado Comandante, o Cap. Mil. Anacoreta Soares que não se manteve até ao fim, acabando por ser transferido para o Norte. Quando faltavam três meses para a Companhia regressar à metrópole foi atribuído o Comando da mesma ao Cap. Vilas Boas a quem faltava sensivelmente o mesmo tempo para ser promovido a Major. A situação diminuiu a capacidade operacional da Companhia que só actuava como tal, quando tinha Comandante efectivo. (...)

quarta-feira, 4 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14320: Inquérito online: resultados finais (n=112): três em cada quatro reconhece que mudou muito, fisica e/ou psicologicamente


Resultados finais da última sondagem (que decorreu, "on line", de 25/2 a 3/3/2015)


1. Recorde-se a nossa pergunta, de 25 de fevereiro último (*):

Camaradas, será que mudámos assim tanto, física e psicologicamente, ao fim destes 40/50 anos ?... Ao ponto de um irmão e camarada (Manuel Carvalho) não conseguir reconhecer outro irmão e camarada (o Carvalho de Mampatá, o Toni), numa foto de agosto de 1974 ? Vd. poste P14296 (*).

2. Total de respondentes: 112.

Resultados finais da sondagem: "Ao fim destes 40/50 anos, mudei muito, física e psicologicamente " (Resposta múltipla) 

1. Sim, mudei muito > 37 (33%)

2. Mudei muito fisicamemte > 53 (47%)

3. Mudei muito psicologicamente > 39 (35%)

4. Não, não mudei muito > 29 (26%)

5. Não mudei muito fisicamente > 18 (16%)

6. Não mudei muito psicologicamente > 29 (26%)

7. Não sei > 2 (2%)

Votos apurados: 112
Sondagem fechada em 3/3/2015

3. Alguns comentários de camaradas da Tabanca Grande (**)

 (i) Eduardo Santos

Olá caro (s) amigo (s). Em resposta ao vosso inquérito, é evidente que, no meu caso pessoal, a resposta está nos pontos 2 e 3: mudei muito física e psicologicamente. Para o melhor, mas também para o pior.

É a lei normal da vida, o que não impede que ainda hoje sinta uma certa nostalgia desses tempos. Era o auge da vida, convém lembrar. Não concordando politicamente com o Governo de então, limitei-me a cumprir a minha obrigação (imposta) para com o país. Sinto dever cumprido, não fugi como muitos, arrostei com o que foi necessário. Fiz mais de 22 meses na Guiné como 1º cabo entre 1967/69. Conservo com muito orgulho um louvor que me foi outorgado como militar distinto, com um sentido de profissionalismo (era operador cripto) elevado e exemplo a seguir (era da praxe dos louvores de então).

Para todos os meus ex-camaradas um abraço amigo. Eduardo

(ii) Leão Varela

Olá, Amigos e Camaradas: Achei piada a esta sondagem bem como aos comentários complementares...

Oh! Amigo e Camarada Luís Graça, achas que passadas mais de 45 Luas (no meu caso) que não mudei muito?  Claro que mudei... não muito, mas mudei...principalmente fisicamente (o contrário só se tivesse sido "embalsamado" aos 30 anos e agora "ressuscitado").

Contudo, acho que psicologicamente a mudança - até à data - não foi muito acentuada (salvo quanto a uma maior dificuldade em fixar e relembrar-me nomes e fisionomias - o que aliás, diga-se, foi quase desde sempre um defeito muito meu)...pois continuo o mesmo Varela com os seus pontos fracos e fortes mas sempre com os mesmos valores que sempre me pautaram - quer na guerra quer na paz - e que herdei dos meus saudosos pais e que fui adaptando e actualizando a cada momento da minha vida.


(iii) Carlos Milheirão

Acho pertinentes as questões postas. De um modo ou de outro, todos mudámos tanto física como psicológicamente. No que me diz respeito, se não fossem as rugas, as cãs e, como é óbvio, as manchas da velhice, podia considerar-me igual ao outro eu de 1973/74.

Mantenho e tenho mantido ao longo dos anos, as mesmas medidas de roupa. O peso andou sempre nos 65/70 kg. Quanto à parte psicológica, a juventude intelectual ainda por cá mora apesar de ter sofrido algumas (poucas) restrições. Pelo menos assim o penso porque, de vez em quando, ainda gosto de fazer as minhas incursões na noite com alguns amigos. Cantam-se uns fados e bebem-se umas "bazukas".

Abraço a todos os Tabanqueiros, Carlos Milheirão

 (iv) Luís Marcelino

Caríssimo camarada Luís Graça: É com muito prazer que participo na sondagem, para dizer: 4. Não, não mudei muito; 5. Fisicamente também não mudei muito; 6. Não mudei muito psicologicamente

Um abraço, Luis Marcelino

(v) Carlos Vinhal 

Caro Luís:  Quando respondi ao inquérito, fui o segundo a dizer que tinha mudado muito. Folgo por a rapaziada se estar a aproximar do meu ponto de vista. Somo já quase um terço dos respondentes. É que,  se somarmos o aspecto físico com a inevitável alteração psicológica, a verdade andará pelos 80%. Atendamos a que mesmo entre os que cumpriram a sua comissão só em Bissau havia muitos (inexplicavelmente?) apanhados do clima.

28 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14309: Pensamento do dia (21): Por que é que este blogue é tão importante para os ex-combatentes (Torcato Mendonça)... E por que é que eu me sinto tão bem ao pé deles... (Jorge Rosales)

27 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14307: (Ex)citações (263): Eu respondi à sondagem "4. Não, não mudei muito"... Mas acho que mudei, não sei se para melhor, se para pior (Hélder Sousa, ex-fur mil, trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14105: Manuscrito(s) (Luís Graça) (42): Requiem para um paisano... (à memória do meu infortunado camarada Luciano Severo de Almeida)


Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Sinchã Mamadjai, ou Sinchã Qualquer Coisa... Algures, numa tabanca do regulado de Badora, em autodefesa, reforçada pelo 3º Gr Comb, com os respetivos furrieis mlicianos: o  Luciano Almeida (foto nº 1) e o Luís Graça [henriques] (foto nº 2), junto a um dos abrigos e posando com o RPG 2 para a fotografia... O fotógrafo foi o Arlindo Roda.

Fotos © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]







Regressávamos da guerra, com a morte na alma e mazelas no corpo, num navio, quase fantasma,  da marinha mercante,  da Companhia Colonial de Navegação.

Como se tudo continuasse como dantes e a vida corresse normalmente, "contra os ventos da história" (como então se dizia), nessa viagem de regresso à pátria servia-se a bordo, na chamada classe turística, reservada aos sargentos: (i) uma sopa de creme de marisco; (ii) seguido de um prato de peixe (pescada à baiana); e (iii) um prato de carne (lombo estufado à boulanger)... sem esquecer (iv) a sobremesa: a bela fruta da época, o bom café colonial, o inevitável cigarro a acompanhar um uísque velho, antes de mais uma noitada de lerpa ou de king...

Obrigado ao Humberto Reis e à sua famosa "memória de elefante" por me lembrar que o 17 de Março de 1971 foi o primeiro dia do resto das nossas vidas...  E, nas costas da ementa de um desses jantares a bordo, talvez o do último dia, deixámos escritos os nossos nomes e moradas. Dois de nós já não estão entre os vivos: é o o caso do Luciano Severo de Almeida (que morava no Montijo, desaparecido em trágicas condições e em data que ninguém sabe ao certo), bem como do António Branquinho que voltou para a sua terra, Évora, e que morreu em 2014, de doença...   


Quando soube da triste notícia da morte do Branquinho, não consegui  despedir-me dele sem  lhe reservar um lugar à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande, sob o nº 661...  Quanto ao Luciano Almeida, a esse, já em tempos lhe fizera um poema ("Requiem para um paisano") tendo prometido publicá-lo aqui, neste blogue,  "um dia destes"... Pois esse dia  chegou hoje, o primeiro dia do ano de 2015 quando vão 44 anos do nosso regresso no T/T Uíge... Quis, com este gesto,  que  a memória destes dois meus camaradas de armas  não ficasse  por aí, na vala comum do esquecimento...

Quanto aos outros camaradas da lista, felizmente  ainda estão vivos e recomendam-se: o Piça, o Jaquim, Fernandes, o  Tony Levezinho, o Humbertos Reis... Ficámos todos amigos... para sempre !

 
Foto:  © António Levezinho (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]}

Requiem para um paisano

por Luís Graça


(À memória do Luciano Severo de Almeida,
meu camarada
da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, 

Contuboel e Bambadinca, 1969/71,
e dos meus demais camaradas da Guiné, 
desconhecidos,
que morreram,
de morte violenta,
já como paisanos, 

depois do regresso á pátria,
por homicídio, suicídio ou acidente)



Disseram-me que tinhas morrido,
meu infortunado camarada,
já muito depois do nosso regresso a casa.
Talvez nos finais dos anos 70
do século passado, 
não posso precisar.
Morrido, lerpado,
para usar o nosso calão de caserna
bruto e feio, 
Lerpado, assim, sem mais nada,
sem uma palavra,
sem uma despedida,
sem uma oração,
talvez até sem um ui nem um ai,
sem um grito,
sem um ato de contrição,
sem um último desejo,
nem sequer um xeque-mate!

Morrido, de morte matada,
morrido, como um cão,
de um tiro na nuca,
como os cães que abatemos,
uma noite, em Bambadinca,
a Noite das Facas Longas,
lembras-te?!


Disseram-me que tinhas sido encontrado,  
morto,
longe da nossa Guiné,
dessa terra verde e vermelha que tu amavas,
longe da tua Sinchã Mamadjai,
e da morança da tua bela Fatumatá,
de mama firme,
que se escapulia para a tua morança,
nas noites de lua cheia,
em que uivava a hiena…
Longe do tarrafo do Geba,
da Ponta Varela e do Poindom, 
do Mato Cão,
dos Nhabijões,
da Ponta do Inglês,
da Missão do Sono,
da Ponte do Udunduma,
da orla da bolanha,
do poilão,
do bagabaga…

Onde, afinal ?
Não longe dos teus verdes anos,
não longe do arco-íris do teu céu de menino.
perto do teu Tejo,
numa valeta de uma rua escura da tua cidade…
Ou de um qualquer subúrbio triste e cinzento
de cidade nenhuma.

Que morte tão crua, a ser verdade,
oxalá fosse boato a notícia de fait-divers
que alguém leu no jornal,
a notícia de uma morte 
em que eu não te (re)vejo.
Oxalá, meu camarada,
tenhas simplesmente desaparecido,  emigrado,
tenhas sido sequestrado,
tenhas mudado de código postal
ou até de identidade,
sempre era menos mal.
E poupavas-me este requiem,
o teu elogio fúnebre,
que é a pior das missões
que se pode pedir a um camarada de armas.
Disseram-me (, mas eu não quis crer,)
que tinhas sido morto,
sem honra nem glória,
depois de cumprido o teu dever
para com a Pátria que te foi madrasta,
cruel Jocasta.
Já depois da última nau da Índia ter naufragado
no mar da Palha da tua infância,
já muito depois dos últimos guerreiros do império
terem feito o espólio de todas as guerras
e o relatório da sua errância
desde Quinhentos.


No século passado, meu amigo,
no século transato, meu irmão!...
Lembro-me de o velho Uíge,
navio da velha Companhia Colonial de Navegação,
nos ter devolvido a terra,
à nossa cidade e capital.
Nas praias de Alcântara,
no cais da saudade,
no cais de pedra donde partíramos,
quase às escondidas,
vindos do comboio noturno e soturno
de Santa Margarida,
do Campo Militar de Santa Margarida.
Não sei quem te esperava
nesse dia 22 de Março de 1971,
mas seguramente os mesmos entes queridos
que me esperavam a mim, a todos nós, 
que ali, no cais,
passávamos à condição de paisanos,
depois de nos depedirmo-nos,
bebendo o último gole de uísque sem gelo
e fazermos promessas de amizade para sempre.

Vestidas as calças à boca de sino,
e as camisas às florinhas,
regressávamos ao doce lar,
com as exóticas bugigangas compradas no Taufik Saad,
ao lar e à rotina das nossas vidas, 
pequenas,
insignificantes.
E a uma outra guerra,
a da lufa lufa do quotidiano.
com outras picadas,
com outras minas e armadilhas,
com outras emboscadas e golpes de mão.

Tu tinhas um lar, 
todos tínhamos um lar,
uma família, 
alguns um emprego,
muitos uma namorada 
ou uma noiva 
ou uma mulher à nossa espera…
Mas eu…, eu, o que sabia de ti ?
O que sabíamos uns dos outros ?
E dos nossos sonhos ?
Muito pouco, afinal…
Casaste ? 
Tiveste filhos ?
Não, não tiveste tempo de ser bom filho, nem bom pai,
muito menos avô bababo…


Nunca mais voltei a rever-te,
em todos estes anos,
em que tantas coisas aconteceram,
para o pior e o melhor,
na nossa Pátria,
uma palavra, repara,
que saiu do léxico dos tugas,
e já não se usa mais…
A Pátria...
Afinal o que é a Pátria, camarada ?


A imagem mais forte, não a última,
que retenho de ti,
é a do menino e moço
que saiu, fardado, garboso,
da casa de seu pai e sua mãe…
É a imagem do puto reguila,
quiçá rebelde, 
temperamental,
belicoso mas generoso,
da margem sul do Tejo.
Com jeito para o desenfianço,
o desenrascanço,
que a vida era dura para os homens
da CCAÇ 12, brancos e pretos.


Retenho ainda a imagem do nosso patético duelo
no bar de sargentos de Bambadinca,
tendo por arma, letal,
uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
sei apenas que era scotch, e do bom,
daquele que vinha From Scotland
for the Portuguese Armed Forces with love!,
da Escócia para os tugas
com amor)…


Um duelo de morte, 
gole a gole,
até ao gole final,
em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
apostas a dinheiro,
mirones e claques de apoio,
como mandavam as regras
dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
exaustos,
usados e abusados,
filhos de Sísifo,
filhos de um deus menor,
condenados ao mais insano dos suplícios,
uma guerra a que chamavam
de contraguerrilha,
do gato e do rato.
de subversão e contrassubversão…
Não, não, era a roleta russa,
ninguém tinha pistolas de tambor,
era o fado lusitano,
era o fado da Guiné,
meu camarada,
meu amigo,
meu irmão,

Era a nossa triste condição,
era a nossa quiçá estúpida,mas viril, 
maneira de matar… o tempo,
o tempo em tempo de guerra,
o tempo de espera entre uma e outra operação,
o tempo de espera que podia ser entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
era a raiva, traiçoeira,
era a lucidez da loucura a tomar conta de nós…. 

Foi esse fado que te matou,
essa maldita toxina,
essa adrenalina,
que trouxeste das águas do Geba 
e das bolanhas do Corubal,
e que te impedia de parar para pensar,
simplesmente parar,
simplesmente pensar,
simplesmente viver,
simplesmente respirar
à tona de água.
meu irmão,
meu camarada.
meu amigo.

Foi o sobressalto da vida,
foi a vida em sobressalto,
foi a vida em saldo,
foi a alma em carne viva,
foi a dor em lume brando.
Foi isso que te matou.
No pós-guerra,
na guerra dos paisanos.
Foi isso, 
foi a Guiné que te matou.
Ao retardador.
Ou não ?!


v10 1jan2015


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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14027: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41): Maresias, Lisboa, Tejo, memórias, amnésias... Parte II: O Terreiro do Paço e a(s) cenografia(s) do poder