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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14151: Casos: a verdade sobre... (2): Jaime Mota (1940-1974), combatente do PAIGC, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, morto em 7 de janeiro de 1974, em Canquelifá por forças da CCAÇ 21 - Parte II (Virgínio Briote / Rachid Bari, ex-sold trms, CCAÇ 21, Bambadinca, 1973/74, natural do Quebo e residente em Portugal)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu  >  Setor de Piche > Canquelifá > CCAÇ 3545 (1972/74) > 18 de Março de 1974 > A paisagem desoladora da tabanca, depois do violento ataque do PAIGC com morteiros 120 e foguetões 122, durante 4 horas... A artilharia do PAIGC era operada e comandada por cubanos e caboverdianos.


Foto: © Jacinto Cristina (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso coeditor (jubilado) Virgínio Briote [ex-alf mil ex-alf mil , CCAV 489 (Cuntima), e alf mil comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá),  cmdt do Grupo Diabólicos (1965/67)]

[Vb, foto à direita, em Seatle, estado de Washington,  EUA,  julho de 2014]


Assunto: Artigo "O martírio de Jaime Mota" [, de José Vicente Lopes]

Caros Luís e Carlos,

O Amadú [Bailo Jaló], embora apresente alguns sinais de melhoria, não está em condições para falar sobre estes assuntos. Está sem memória.

Consegui obter e gravar um depoimento de um fula, o Rachid Bari, que era soldado das transmissões da CCaç 21 e que nesse dia acompanhou e foi testemunha visual do ocorrido. Refuta a acusação de tortura, abertura de barriga, etc. 

O PAIGC não contava com a tropa ali a cerca de 100 metros, encostaram as armas, um pôs-se a trepar uma palmeira e alguns não terão sido apanhados à mão porque um dos militares da CCaç 21 não aguentou a pressão e disparou uma rajada, a que se seguiram séries de rajadas a curta distância. Morreram dois imediatamente e o outro, encurralado, mostrou-se, desafiante. Ainda hoje o Rachid não entende o procedimento desse fula.

Havia directivas muito claras do Com Chefe sobre a questão dos prisioneiros. Aprisioná-los, de preferência sem recurso à violência. Considerava-se que esse modo de actuar era mais adequado para recuperar não só a população como a própria guerrilha. Casos houve, refere o Rachid, em que foram punidos militares por violências exercidas sobre prisioneiros.

Espero que este anexo que remeto seja útil.

Abraço do V Briote


2. Depoimento de Rachid Bari [que vive em Portugal, na zona de Belas, concelho de Sintra,]  sobre o ocorrido em 7 de Janeiro de 1974, na zona de Canquelifá, em referência ao artigo “O Martírio de Jaime Mota", de José Vicente Lopes (*)


Rachid Bari, fula, natural de Quebo, foi incorporado em 22 de Janeiro de 1973 e, depois de ter feito a recruta em Bolama, foi enquadrado na CCaç 21,  comandada pelo tenente [Abdulai] Jamanca. Fez parte da secção de transmissões e desempenhou actividade operacional, uma vez que sempre que um grupo de combate saía dois elementos de transmissões eram destacados para acompanhar o referido grupo.

A CCaç 21, baseada em Bambadinca, desempenhou várias acções na zona, tendo sido destacados para a área de Canquelifá, então sujeita a forte pressão da guerrilha.

Enquanto lá se mantiveram durante cerca de 5 meses não houve qualquer contacto com o IN,  tendo sido então mandada regressar a Bambadinca onde lhe estavam destinadas outras acções.

Logo que abandonaram Canquelifá, foi novamente esta povoação sujeita a bombardeamentos e a CCaç 21 pôs-se de novo em marcha para reforçar o destacamento militar de Canquelifá.

Nesta 2ª estadia em Canquelifá todos os dias e noites saía um grupo, que se emboscava nas imediações do aquartelamento. Num desses dias, por volta das 16 horas, saiu um bigrupo comandado pelos alferes Ali[u] Sada Candé e Braima Baldé.

Quando estavam emboscados viram aproximar-se um grupo de 7 elementos armados. Cautelosamente o comandante do grupo emitiu sinais de alerta e, ao mesmo tempo que começaram a manobra de se disporem em V, avisou que só deveriam disparar ao sinal de fogo.

Inesperadamente um elemento da CCaç 21 disparou uma rajada, a que se seguiram mais rajadas de outros militares até repararem que elementos IN estavam em fuga e que dois ou três teriam sido abatidos. A correr dirigiram-se para o local e enquanto se apoderavam das armas e de um rádio Racal [1] apareceu-lhes de frente um guerrilheiro do PAIGC, fula, com uma Kalash assente na anca direita tendo-os por mira que,  depois de perguntar por que motivo irmãos andavam em guerra, carregou no gatilho. 

A rajada saiu alta e os militares da CCaç 21 responderam a tiro, abatendo-o.

Depois, o grupo recolheu os corpos, improvisaram macas e trouxeram-nos para Canquelifá. Estavam a acabar de entrar na povoação quando começaram a ser bombardeados pela artilharia e o fogo partia da Guiné-Conacri. Não tiveram tempo de mais nada, a não ser abrigarem-se rapidamente, depositando os corpos na pista. A primeira granada acertou no gerador, a segunda no depósito de géneros e o inferno estava instalado em Canquelifá, com as granadas a caírem todas dentro da povoação-aquartelamento.

Ao amanhecer,  o pessoal da CCaç 21 procedeu às cerimónias do funeral do fula, tendo sido seguidos os procedimentos habituais entre os muçulmanos. Corpo envolvido num lençol branco e, depois das orações na mesquita,  o corpo foi enterrado.

Em relação aos dois outros cadáveres,  levantou-se a questão, logo de início, de que como eram de tez muito clara, deviam ser cubanos e para o efeito entraram em contacto com o COP de Nova Lamego pedindo instruções. Foi-lhes dito que aguardassem, que um médico se iria deslocar a Canquelifá e só depois deveriam enterrar os cadáveres. De facto, momentos depois, o médico desembarcava na pista e foi observar os cadáveres.

Dois dias depois da ocorrência procedeu-se ao enterro dos cadáveres na pista de aviação de Canquelifá, depois de terem sido lavados e vestidos com a farda nº 2 do Exército Português.

Rachid diz que, posteriormente, teve a informação que tinham sido feitas análises e que os resultados admitiam a possibilidade desses guerrilheiros serem brancos. Daí o facto de se admitir a ideia de que eram cubanos.

[Depoimento recolhido por Virgínio Briote]



[1] Quando foi emitida para o QG a mensagem da operação com a indicação do material capturado, alguém confirmou, através do nº do aparelho, que o radio Racal era o que as NT tinham perdido, cerca de dois anos antes em Morés. [Vb]

Guiné 63/74 - P14150: Casos: a verdade sobre... (1): Jaime Mota (1940-1974), combatente do PAIGC, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, morto em 7 de janeiro de 1974, em Canquelifá por forças da CCAÇ 21 - Parte I (Virgínio Briote / Amadu Djaló / José Vicente Lopes)



[Foto à direita: Jaime Mota, 34 anos, combatente do PAIGC, natural de Cabo Verde, Pim, Ilha de Santo Antão, morto em combate, em 1974. Reproduzida,  com a devida vénia,  do sítio da Fundação Amílcar Cabral, Praia, Cabo Verde]:



1. Mensagem de 13 de Junho de 2014 às 11h01, do jornalista e escritor de Cabo Verde José Vicente Lopes:

Prezados senhores:

Chamo-me José Vicente Lopes, sou jornalista, cabo-verdiano, e tenho investigado a história recente de Cabo Verde (e um pouco da Guiné), com alguns livros já publicados, casos de Os bastidores da independência e Aristides Pereira, Minha vida, nossa história.

Recorro à vossa comunidade/préstimos para o seguinte: em 7 de Janeiro de 1974, na zona de Canquelifá, na Guiné, numa emboscada, morreu o cabo-verdiano Jaime Mota, um cubano e um guineense, do PAIGC.

Em primeiro lugar, gostaria de saber quem era o comandante do quartel dessa zona.

E,  se possivel,  também se alguém me saberá dar conta do que realmente se passou com os três individuos. O cabo-verdiano, sei, foi capturado vivo e depois morto pelos Comandos Africanos que o aprisionaram.

Grato desde já pela vossa colaboraçao me despeço atenciosamente

JVL

PS - tentei mandar a mesma mensagem para Luís Graça, mas parece que o email tem algum problema.




Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > Em primeiro plano, o Virgínio Briote e o Amadu Djaló, um e outro muito acarinhados por todos. Não sei o que é o que Virgínio, um homem sábio, europeu, estava a pensar, mas possivelmente estava a organizar a sua resposta à questão, pertinente, levantada pelo Amadau, outro homem sábio, africano:

 "Os portugueses, a alguns povos, deram-lhes novos nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisávamos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos"...

Vai daqui um grande abraço fraterno para os dois, e com votos de bem sucedida recuperação, para o Amadu Djaló,  da grave crise de saúde que o levou recentemente a ser internado no Hospital Militar, no Lumiar e onde continua, em tratamento.

Foto (e legenda): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados

2. No dia 8 do corrente, o nosso editor Luís Graça reencaminhou a mensagem supra, para o Virgínio Briote, com o seguinte pedido:

Tenho este assunto "emperrado" desde junho de 2014, por falta de tempo (para uma pesquisa mais demorada)... Mas gostava de responder ao jornalista José Vicente Lopes...

Na pag. 269, do livro do Amadu Bailo Djaló ("Guineense, Comando, Português", Lisboa, Associação de Comandos, 2010), há uma referência à Ação Minotauro. que se realizou em 7/1/1974 (nota de rodapé, da tua autoria, como todas as outras)..

Nessa ação o Amadu refere a morte de 3 guerrilheiros, "um cubano e dois fulas" (sic), que foram depois transportados para Canquelifá. Foram apanhadas as respetivas armas e um rádio, nosso, que tinha sido perdido em 23/12/1971...

Nesta altura, o Amadu já está na CCAÇ 21, comandada pelo tenente 'comando' graduado Abdulai Jamanca, e que foi reforçar Canquelifá (onde estava, como unidade de quadrícula, a CCAÇ 3545, comandada pelo cap mil inf Fernando Peixinho de Cristo).

O jornalista José Vicente Lopes quer apurar a verdade (e nós ainda mais) sobre o que se passou:

(i) "a 7 de Janeiro de 1974, na zona de Canquelifá, na Guiné, numa emboscada, morreu o cabo-verdiano Jaime Mota, um cubano e um guineense, do PAIGC";

(ii) "gostaria de saber quem era o comandante do quartel dessa zona" (...) também se alguém me saberá dar conta do que realmente se passou com os três indivíduos"

(iii) O cabo-verdiano, sei, foi capturado vivo e depois morto pelos Comandos Africanos que o aprisionaram"...


Apelo à tua memória e às longas conversas que tiveste com o Amadu para a elaboração do seu livro de memórias... E, a propósito, espero que ele se recomponha da situação de doença que o levou recentemente ao hospital militar...

Em tempo: pelo que conhecemos do Amadu, ele seria incapaz de confundir um fula com um caboverdiano. E. se facto, houve uma execução sumária (, coisa que me parece pouco provável), o Amadu ter-te-ia seguramente referido esse facto.  Nesse dia, Canquelifá foi atacado em força (bem como Copá), facto que é referido pelo Amadu (p. 270): os 3 corpos foram trazidos para Canquelifá e, durante um intervalo dos bombardeamentos, sepultados junto à pista de aviação...

Um abraço fraterno. Luis

PS - Tomo a liberdade de dar conhecimento ao jornalista dos factos que entretanto apurei bem como do teor desta nossa conversa. Entretanto, lê a versão, repleta de pormenores macabros, sob o título "O martírio de Jaime Mota", que o jornalista publicou, no jornal A Nação, 20/1/2014, e reproduzido no sítio da Fundação Amílcar Cabral

3. No mesmo dia, o jornalista mandou-nos a seguinte mensagem:

 Obrigado pela resposta, ainda que tardia, já que tive de avançar com o artigo publicado, como diz o texto em anexo, no jornal A Nação. O texto republicado pela Fundação Amilcar Cabral, como se terão apercebido, é meu, está muito maltratado, por gralhas, nalguns casos perfeitamente identificáveis. 

Tirando isso, este é um assunto que continua a interessar-me já que estou a escrever sobre a presença de cabo-verdianos na guerra da Guiné. Tudo indica que a operação por vós relatada, a 7 de Janeiro, é a mesma da morte de Jaime Mota, do tal cubano e mais um guerrilheiro guineense. Efetivamente, Jaime Mota era cabo-verdiano, sendo negro/mulato é possivel que tenha sido tomado por fula.  

Gostaria de ter o livro [. do Amadu Bailo Jalé,] a que se refere na vossa resposta. Como poderei obtê-lo? 

Um bom ano a todos e continuaçao de sucessos no vosso trabalho. 

JVL 

4. No mesmo dia fiz o seguinte pedido ao Virgínio Briote:

Vb:

Aqui tens a resposta do jornalista que é também o autor do artigo republicado na Fundação Amílcar Cabral... O artigo, lido por alto, parece-me muito fantasioso, baseados em fontes (?) pouco credíveis ("  dados obtidos por Joaquim Pedro Silva, Baró,  especialmente junto de um piloto português, que vivenciou aquele momento")...  

A cena da tortura e da morte do tal Jaime Mota parece-me ser "cinematográfica" demais para ser verdade... A captura, tortura e execução do Jaime Mota é, parece-me,  erradamente, atribuída ao grupo especial de Marcelino da Mata [ "Os Vingadores, que não me parece estar em Canquelifá nessa data, mas sim em março de 1974, quando é apanhada uma ambulância do PAIGC que transportava armamento].

Tu conheceste o Abdulai Jamanca, do tempo dos comandos do CTIG (1965/66)... Pergunto se era homem e militar para autorizar esta barbárie ? A CCAÇ 21 só tinha militares guineenses, incluindo graduados e quadros especialistas, alguns deles da minha antiga CCAÇ 12, já com grande experiência operacional...

Mandam as boas regras da investigação social o respeito por 2 regras básicas: (i) a triangulação de fontes e versões dos factos (princípio do contraditório); e a (ii) saturação  da informação (o que implica ouvir várias versões, e se possível complementares, dos acontecimentos) ...

Acho que é importante manter a ponte com Cabo Verde, país irmão, e neste caso com este jornalista e escritor que eu não conheço, mas que se interessa (e ainda bem!) pela historiografia da presença cabo-verdiana nas fileiras do PAIGC durante a guerra colonial na Guiné, presença sobre a qual temos falado pouco no nosso blogue. 

Seria interessanet poder mandar-lhe o livro do Amadu ou cópia da parte que lhe interessa... Que me dizes ?... Ab. Luis


5. Em conversa telefónica, há uns dias atrás o Vb prometeu fazer ume entrevista, gravada,  com o Rachid Bari, que foi soldado das transmissões da CCaç 21 e participou na Ação Minotauro. Ele vive na região de Lisboa (Belas, Sintra).  O testemunho dele já me foi entregue ontem, pelo Vb, para ser publicado no poste a seguir.

_______________

Nota do editor:

(*) Excertos de "O martírio de Jaime Mota", de José Vicente Lopes. (Reproduzidos, com a devida vénia, do sítio da Fundação Amílcar Cabral, Praia, Cabo Verde. (Seleção e fixação de texto: LG]

(...) Jaime Mota figura na galeria dos heróis cabo-verdianos tombados na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde, sob a égide do PAIGC, gesta esta que, no caso deste arquipélago, completa, no próximo sábado, 39 anos. Os seus restos mortais foram traslados para o país natal, quinze anos depois, em 1991, juntamente com as ossadas de outros dois combatentes, Justino Lopes e Zeca Santos.

Tirando isso, fora o facto de seu nome ser patrono de um quartel militar na cidade da Praia, pouco ou nada se sabe acerca desse Cabo verdiano, Jaime Mota, nomeadamente, das circunstâncias em que a sua morte aconteceu. Até companheiros seus de armas, que com ele estiveram, pouco ou nada sabem do que aqui se vai relatar.

Osvaldo Lopes da Silva, por exemplo, de quem Jaime Mota era muito chegado, ao ponto de dar o nome desse companheiro ao seu filho, sabe apenas que o mesmo foi ferido e morto em combate. Álvaro Dantas Tavares, mesma coisa, já que a morte desse patrício deu com ele fora da Guiné. E escusado será perguntar às gerações mais novas, de 50 anos para baixo, por que razão Jaime Mota é herói cabo-verdiano.

Jaime Mota, conforme os dados recolhidos para este artigo, foi capturado vivo, a 7 de Janeiro de 1974, no nordeste da Guine, quando, juntamente com outros guerrilheiros do PAIGC, entre eles o também cabo-verdiano Amâncio Lopes, se preparava para fustigar com a sua artilharia o quartel de Canquelifá, na zona de Pirada e Pitche, região de Gabu, fronteira com o Senegal, quando, de repente, se viram sob fogo cerrado. Na hora, tombaram um artilheiro cubano e um combatente guineense. Os demais elementos, lá conseguiram escapulir, deixando para trás Jaime Mota, que terá sido atingido também. Embora não mortalmente.

Os dois cabo-verdianos Amâncio e Jaime faziam parte do grupo de antigos emigrantes de Santo Antão mobilizados em Moselle, França, para um desembarque em Cabo Verde, depois de treinados em Cuba, onde permaneceram de 1965 a 1967. Gorado o plano, o grupo de 31 cabo-verdianos, entre eles uma mulher, é encaminhado para uma nova formação, desta feita, na então União Soviética (Rússia).

A entrada de cabo-verdianos nas frentes da Guiné, sobretudo na artilharia, a par de morteiristas e artilheiros cubanos, é um dos factores que vão ajudar a imprimir à guerra naquele território um novo tipo de confrotação, até então baseada em acções típicas de guerrilha, de “morde e foge”, como diria Che Guevara. Com recurso à artilharia, os confrontos directos, quase corporais, deixaram de ter lugar, com bombardeamentos à distância, de vários quilometros, das posições do inimigo, com muito menos baixas humanas da parte da guerrilha. (...)

CANQUELIFÁ, OUTRO INFERNO

Não muito de longe de Copá, a cerca de 12 quilómetros, estava Canquelifá, onde Amâncio Lopes, Jaime Mota e outros guerrilheiros de PAIGC actuavam, com peças de artilharia. Aqui, em Canquelifá, uma outra testemunha portuguesa, também soldado, relata que, no dia 7 de Janeiro (o mesmo dia da morte de Jaime Mota, nota-se), é emboscada uma coluna de viaturas, que ia levar alimentos a um pelotão acampado no quartel de Copá, sito a 21km de Bajocunda, na qual morreram dois soldados o Sebastião Dias e o José Correia e duas (viaturas) Barliets foram destruídos: “ uma rebentou uma mina e a outra ardeu”. (..)

O DIA FATAL

Amâncio Lopes conta que, embora Jaime Mota fosse, inicialmente, de uma outra frente, integrando a unidade de Osvaldo Lopes da Silva, depois da operação Guilege, no Sul, pede para ir juntar-se a ele; Amâncio, no Leste, tendo em conta a velha amizade que havia entre os dois, desde os tempos de Mossele. “ É assim que ele chega ao Leste e faço dele meu companheiro de reconhecimento”, acrescenta Amâncio. “ No dia 3 de Janeiro de 1974, vamos para a operação de Canquelifá, que corre bem. No dia 7, voltámos ao mesmo quartel e cometemos um erro que foi fatal para Jaime e outras pessoas”. 

“Quando se ataca um quartel”, explica aquele antigo guerrilheiro, “ não é aconselhável voltar ao mesmo lugar num curto espaço de tempo, salvo se deixarmos tropas no terreno a controlar a situação. Ora, três ou quarto dias depois, regressaremos para atacar o mesmo quartel, no que fomos surpreendidos e o Jaime caiu”. 

É que, detectada a presença do grupo do PAIGC, um pelotão de comandos africanos acaba por surpreendê-lo pela retaguarda, precisamente no momento em que Amâncio, Jaime e os restantes guerrilheiros procediam à recolha de dados para mais um bombardiamneto ao quartel de Canquelifá, como atrás descrito pelas fontes portuguesas. “ Canquelifá era um lugar perigoso, aí sempre perdemos gente. Uma vez, os tugas nos tomaram um morteiro 120 mm”, recorda Amâncio Lopes.
Como atrás foi dito também, na zona, actuavam os comandos africanos, capitaneados por Marcelino da Mata, embora houvesse vários outros grupos desse tipo de unidade especialmente treinada para a contra-guerrilha.  (...)

EMBOSCADA FATÍDICA

Regressando ao fatídico 7 de Janeiro de 1974, Amâncio Lopes recorda que o Cubano – um oficial da artilharia cujo nome não se recorda - foi para a operação à revelia dos guineenses e cabo-verdianos presentes. “ Tínhamos ordens expressas de que os cubanos não podiam ir para a frente de combate. Cabral era taxativo quanto a isso: ele não queria simplesmente. Recebíamos ajuda e apoio deles, mas, para a frente, não deveriam ir, porque a guerra na Guiné era assunto nosso, dos guineenses e do cabo verdianos. Mas o cubano, nesse dia, insistiu, a pessoa que nos estava a chefiar não teve pulso para lhe dizer não, ele foi e caiu”. 

Cabral, realmente, não queria repetir o que acontecera a Pedro Peralta, um capitão cubano, preso em combate, em Novembro de 1969, no Sul da Guiné, constituindo essa a prova cabal da presença de estrangeiros nesse território, um facto explorado por Lisboa na sua propaganda contra os “comunistas” do PAIGC. Além disso, no decorrer da guerra, tinham já morrido vários outros internacionalistas cubanos, o primeiro doa quais, Félix Barriento Loparte, em 2 de Julho de 1967, no ataque do quartel de Melle, facto que provocou em Cabral “ uma profunda dor”, conforme testemunhas de Oscar Oramas.

No caso em apreços, a emboscada fatídica, segundo Amâncio, aconteceu já no fim da tarde, quando ele e os seus homens aguardavam que escurecesse um pouco mais para procederem ao bombardiamento do quartel de Canquelifá e, como era hábito, desaparecerem rapidamente do terreno. “ Sentámo-nos. Estávamos a comunicar, o Cubano sentou-se numa bagabaga (formigueiro), o Jaime sentou-se também um pouco atrás de mim, o radialista guineense também havia mais três elementos do meu staff para defenir a direcção do fogo (só na artilharia, éramos uns sete ou oito elementos). Nisso, sentimos tiros. Na fuga, eu ensaio ir numa direcção, no que um dos guineenses me grita, aflito, ‘ por ai não, camarada Amâncio, porque o tiro está a vir dessa direção!' '’

“ Invertemos a fuga; no recuo, verificámos que nem o Jaime nem o cubano estavam connosco. Mandei toda gente parar e eu disse: ‘Faltam-noe o Jaime e o cubano’. O artilheiro guineense me diz: ‘ camarada Amâncio, na direcção em que o Jaime e o Cubano ficaram, não há chance… se você quiser ficar também… Pense bem. Não podemos voltar, porque se o fizermos será a nossa morte também”. 

Chamado á razão pelos demais elementos do grupo, Amancio diz que teve de se render á evidência.

António Leite, que estava em Cundura (região fronteira da Guiné Conakry), recorda-se de se ter deslocado ao local, juntamente com um outro oficial cubano, de nome Gouveia, para se inteirarem do que se tinha passado, “ Eu e esse cubano quando lá chegamos, no dia seguinte à notícia, não encontrámos absolutamente nada, a não ser alguns rastos de presença deles e do confronto tido”.

O FIM TRÁGICO DE JAIME MOTA

Será depois do 25 de Abril que Amâncio Lopes e outros cabo-verdianos, que estiveram nessa zona da Guiné-Bissau, ficarão a saber dos pormenores do que se passou com Jaime Mota, após a sua captura. Este, segundo os dados obtidos por Joaquim Pedro Silva, Baró,  especialmente junto de um piloto português, que vivenciou aquele momento, foi capturado vivo pelos comandos, quando viram que o Jaime era cabo-verdiano, torturaram-mo, massacraram-no, de todas as formas. Indo até às últimas consequências”.

Ainda de acordo com o tal piloto, diz Baró, uma das coisas que fizeram ao prisioneiro cabo -verdiano foi abrir-lhe a barriga com punhal.

Àgnelo Dantas, que também recolheu informações sobre o episódio, já que na altura também estava no Leste como comandante, conta igualmente que na emboscada o cubano é morto de imediato, o Jaime é ferido. “ Capturado, é arrastado, torturado pelos comandos africanos e uma das coisas que lhe fizeram foi cortar-lhe os testículos”.

António Leite especifica que Jaime foi ferido numa perna e, neutralizado, os seus captores improvisam uma forquilha com galho de um arbusto, que lhe amarram ao pescoço e a arastam até ao local onde acabam por o matar.

Mas, antes disso, segundo Agnelo e Baró, o prisioneiro foi tambem chicoteado; o chicote feito de pele humana ou por genitais de hipopótamo era uma arma muito utilizada pelos comandos africanos nas suas acções. No fim desse suplício, o corpo do guerrilheiro cabo-verdiano foi esquartejado, num ritual ainda hoje comum entre certas etnias guineenses, bastando para isso lembrar o que aconteceu a Nino Vieira em 2009. 

(...) Amâncio Lopes diz que, embora o acto tenha sido cometido por comandos africanos, é ao comandante do quartel de Canquelifá, um português cuja identidade nunca consegui saber, a responsabilidade pelo sucedido. Para todos os efeitos, salienta, “ o Jaime era um prisioneiro de guerra e, nessa qualidade, devia ter sido tratado”.  (...)

ÓDIO AOS CABO-VERDIANOS

Quanto ao ódio dos comandos guineenses aos cabo-verdianos, Agnelo Dantas tem a seguinte leitura: “ Eu tenho a impressão de que todo aquele pessoal que estava do lado de lá tinha ódio aos cabo-verdianos. Os comandos, talvez mais, por que eram instruídos nesse sentido. A política do Spínola era essa, apontando Cabral sempre como cabo-verdiano”. 

Osvaldo Lopes da Silva diz que o ódio entre os comandos e os combatentes do PAIGC era recíproco. “ As posições de um lado e doutro eram muito radicais. Eu, dos anos em que lá estive, vi vários prisioneiros portugueses, brancos, que eram tratados lindamente; agora, prisioneiros comandos africanos, isso nunca vi; apanhados, eram logo despachados pela nossa gente guineense. De modo que, tendo capturado o Jaime, eles também não estiveram pelos ajustes, ainda por cima um cabo-verdiano”. 
 
UM HOMEM DE TERRENO

Recordando o velho companheiro, Amâncio Lopes diz que, até hoje, não se conforma por ter perdido naquelas condições. “ Ainda hoje, não consigo explicar como é que Jaime e Cubano forma apanhados naquilo”, lamenta. “ Eu e o Jaime éramos como dois irmãos”. Osvaldo Lopes da Silva diz-se também muito chagado a Jaime Mota. E, ainda que involuntariamente, sente-se associado á morte do velho camarada. 

“ Estivemos juntos, primeiro, no Sul, em 1969, na minha unidade; em 1970, fui para o Leste, como comandante de artilharia e ele também; depois fomos para a Marinha, em Conakry, e de lá fomos para uma formação na União Soviética; no regresso, entendemos que já não dava para voltar de novo para a Marinha, como pretendia Cabral, porque o ambiente era claramente hostil aos Cabo-verdianos. Aliás, como se vem a verificar pelo 20 de Janeiro, o centro da conspiração era lá na marinha;  juntos, fomos de novo para Sul e, em Maio de 1973, estamos na operação Guilege. Logo de seguida, depois da tomada deste quartel, vou para Gadamael e ele fica no Sul, comigo em Gadamael, sou chamado para uma missão à Líbia, da qual regresso pouco depois; nisso, nesse meio tempo, passou a constar entre os combatentes que eu tinha sido transferido para o Leste. E é assim que o Jaime larga a sua unidade, no Sul, para ir ter comigo no Leste, mas, lá chegando, não me encontra, fica junto de Amâncio, outro grande amigo dele, e vão para essa tal operação, em que ele acaba atingido” .

“ O Jaime”, conclui Lopes da Silva, “ era um bocado destemido, um pouco indisciplinado também, tanto assim que larga a unidade dele no Sul e vai para o Leste, por sua própria conta. Era um bocado senhor de si, não admitia abusos, a única pessoa que o continha era eu. Como eu, ele também não gostava de Conakry, era claramente um homem de terreno”.

Honório Chantre recorda o seu conterrâneo como um homem muito ponderado e seguro. “ O Jaime não foi tropa portuguesa, mas tinha uma formação militar muito sólida, esteve em Cuba, na União Soviética e tinha a experiência de combate adquirida no terreno da Guiné. Era um combatente, digamos, normal, mas muito seguro. Juntamente com Amâncio e o Bibino, ele tinha a quarta classe daquela tempo, feita nos anos quarenta ou cinquenta, ao contrário de alguns colegas de Santo Antão que foram alfabetizados por nós em Cuba. Sem dúvida que essa malta de Santo Antão era em grupo de homens muito especiais, desde logo, pela forma como se entregaram á luta, e o Jaime é disso um claro exemplo”, conclui. (...)

António Leite participou, com Amâncio Lopes e Eduardo dos Santos, da operação de recolha e transladação dos três cabo-verdianos. “ Fomos ao Leste e conseguimos localizar os restos do Jaime, que pouco restava. Mesmo assim, foi fácil, porque sabíamos que ele tinha um dente de ouro e encontrámos uma caveira com dente de ouro. Depois fomos recolher os restos do Justino e do Zeca Santos, que sabiamos onde estavam. Havia um outro cabo-verdiano – António Leite, o primeiro de nós a morrer na Guiné, mas dele já não encotramos nada. O local onde tinha sido enterrado, no Sul, estava transforamdo numa plantação de arroz”.

Na Praia, segundo aquela fonte, o pequeno caixão com os restos de Jaime Mota foram enviados para Santo Antão, Paul, onde foi depositado. As outras duas urnas, de Justino Lopes e Zeca Santos, essas, foram enteadas na várzea, já que ambos eram naturais de Santiago.  (...)

 (*) texto de José Vicente Lopes,

Publicado no jornal "A Nação" de 20.01.14