Mostrar mensagens com a etiqueta Porto. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Porto. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 5 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25239: Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) - Parte III: Um hino à camaradagem: a última viagem a casa, de três tristes tigres, antes do... "degredo"


Foto  nº 1 > Guiné > Região de Tombali > CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) > O amigo José Beires, fur mil de minas e armadilhas,  a levantar mais uma mina A/C no Cumbijã, com o mesmo carinho com que tratava as Inglesas no Parque de Campismo da Prelada. Tem como ajudantes: O capitão Vasco da Gama, o alferes Abundâncio e o enfermeiro Portilho.


Foto nº 2 - Os famosos Tigres do Cumbijã (CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) nas escadarias do Santuário no Monte de Santa Luzia em Viana do Castelo. Encontro de 2009. Na última fila o amigo Beires (no seu último encontro) conversa com a anfitriã Isabel.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Joaquim Costa, ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74); membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021; autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicarm 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022. Tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto. 



Capa do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.


1. Texto enviado pelo  Joaquim Costa, em 26 de fevereiro passado, 15:52:

Olá,  amigo Luís!

Espero que tudo esteja bem contigo. Foi bom ver te todo catita no convívio do pessoal da Tabanca da Linha.

Ao que parece mais uma contrariedade com as cataratas. Sejam todos como essas,  meu amigo. Já fiz o mesmo aos dois olhos e não custou nada. Nesse dia, quando cheguei a casa todas as pessoas me pareciam mais velhas e vi sujidade e nódoas que sempre existiram mas eu não as via.

Envio-te um post que publiquei no Facebook: "Um hino à camaradagem”. Caso consideres de publicação no blogue, podes fazê-lo. Caso contrário tudo bem.

Seguindo a dica que deixaste na nota final do meu livro, vou fazer nova publicação, revista e aumentada. No fundo é o regresso à minha ideia inicial. Terá uma componente das minhas vivências de infância e juventude aumentadas e uma referência às minhas escolas.

O nosso amigo Mário Beja Santos teve a amabilidade de fazer o posfácio do mesmo. Foi já entregue à editora para revisão dos textos, contudo a sua conclusão ainda vai demorar alguns meses.

Um grande abraço do amigo que muito te estima.

Joaquim Costa



Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã. 1972/74) - Parte III:  

Um hino à camaradagem: 
a última viagem a casa, de três tristes tigres

 

Por considerar um hino à camaradagem, refiro aqui a última visita a casa antes de embarcar para a Guiné.

Fiz a viagem de comboio, de Portalegre ao Porto, já com a cabeça em África que o silêncio e o ritmo do “pouca terra, pouca terra” da máquina de ferro, convidava. 

Sempre adorei, e adoro, viajar de comboio, sendo esta, porventura, a única viagem que não saboreei. Chegados a Campanhã, eu e o amigo da terra das Cristas de Galo, decidimos, atendendo ao adiantado da hora, apanhar um táxi para nos levar até aos nossos destinos, aproveitando assim todos os minutos para estar com a família. O amigo Machado até Vila Real e eu até Famalicão. 

Sim, ficava caro, mas no momento estar com a família não tinha preço. Pois, por muito esforço que fizéssemos para afastar esses maus pressentimentos, sempre nos passava pela cabeça que poderiam ser os últimos. Não nos saía da cabeça o discurso às tropas do sargento Redondeiro: “Militares, infelizmente nem todos regressarão a casa”!

A viagem ficava cara, mas no momento não era problema. Tínhamos recebido uns bons trocos pelo primeiro “ordenado” como furriéis e um subsídio para comprarmos o fardamento de guerra. Mais parecia que o carrasco nos tinha dado dinheiro para comprarmos a espada com que nos queria matar! 

Já nas despedidas, o José Beires, rapaz da cidade invicta (#), abraça emotivamente os dois e informa-nos, com toda a convicção e entusiasmo: 

– Vamos de táxi até minha casa, que eu peço o carro ao meu pai e levo-os a casa. 

Pensando ser mais uma brincadeira do Beires, tentando afastar a melancolia que reinava no grupo, não demos importância à tão inusitada oferta.

Aceitámos, contudo, de bom grado, a ideia de o acompanhar até casa e depois seguirmos, para os nossos destinos.

Chegados a sua casa, para espanto nosso, mandou logo o táxi embora e fez-nos entrar. Não acreditavamos no que estava a acontecer, tentando reter o taxista, sem sucesso dada a determinação do nosso amigo.

Estávamos os dois decididos, esperando ver  o pai do Beires para lhe  agradecer muito esta atitude altruísta do filho,  mas que seguiríamos só os dois viagem. Pensávamos nós que facilmente iria dissuadir o filho, trazendo-o à terra, mais não fosse pela arriscada viagem de regresso a casa sem companhia. 

Passado uns minutos vem o Beires, sozinho (não obstante o burburinho na sala ao lado da família reunida), e com as chaves na mão, dizendo com todo o entusiasmo, e um sorriso de menino: 

– Vamos embora! 

Uma vez que não tivemos o grato prazer (infelizmente) de conhecer o pai do Beires, nada mais podíamos fazer se não aceitar, tão altruísta oferta.

E aqui fomos nós, incrédulos com este gesto de nobreza extrema do camarada Beires, em amena cavaqueira até Famalicão. Chegados a minha casa, já de madrugada, o trabalhar do carro e o alerta do cão fadista acordou a minha mãe, que abriu a janela acabando por descer, logo seguida pelo meu pai e pelos gatos. 

Depois dos cumprimentos, preparavam-se os amigos para abalarem até Vila Real, vencendo o temido Marão, quando logo a minha mãe diz:

 – Não! Só saem daqui depois de comerem e beberem qualquer coisa. 

Logo partiu presunto, queijo e pão e se encheram três malgas de verde tinto (bons  tempos em que o verde tinto, ainda, não “afetava” a condução!(…

Para meu sossego tudo correu bem. Ficou contudo uma grande admiração por este gesto de grande nobreza deste nosso camarada. Só quem foi militar o poderá entender.

Sempre que nos encontrávamos, as primeiras palavras do Beires eram: “Malas Minho e Malhas Minho”. Duas referências que lhe dei para seguir caminho até Vila Real.

Na linda cidade de Estremoz, onde a companhia se formou, consolidou-se uma grande amizade. Na Guiné, que se nos entranhou e onde estúpida guerra enfrentámos, construiu-se uma verdadeira família. Cito, uma vez mais, o que escrevi no meu livro: "Memórias de Guerra de um Tigre Azul – O Furriel Pequenina", sobre o dia em que vimos tombar, em combate, um camarada aos nossos pés:

“Este foi também o momento de viragem, onde passamos , inexplicavelmente, a relativizar perdas, onde todos perdemos um pouco de nós (tal como eramos) e passamos a ser outros sem deixarmos de ser nós próprios. Confuso mas foi assim mesmo…

"Passamos a esquecer o dia de ontem rapidamente (em defesa da nossa saúde mental); a viver o presente intensamente (não deixando de viver a nossa juventude, mesmo naquelas condições, em convívio com um grupo de amigos que as contingências da guerra nos unia ao ponto de o sofrimento ou alegria de um ser o sofrimento e a alegria do grupo) e a não pensar muito com o amanhã (aprendemos com o tempo a não sofrer por antecipação)”.



Todos os anos (e já lá vão 50) esta família se reúne, fazendo-se acompanhar por filhos,  netos e bisnetos, contando sempre as mesmas histórias mas com a emoção como se que fosse a primeira vez. Nestes alegres e sempre emotivos encontros, de ano para ano, cada vez correm mais lágrimas que cerveja e vinho.

 Joaquim Costa

____________

Nota do autor:

(#) Menino (quase) da Foz. Porventura um dos últimos “fidalgos” do Porto, com tertúlias sempre marcadas no Orfeu (café na Boavista – Porto). Aperfeiçoou o seu Inglês no “engate” de Inglesas no Parque de Campismo da Prelada, tratando-as com o mesmo carinho como tratou as minas que levantou no Cumbijã (Guiné). Herdou o nome do seu tio-avô: José Manuel Sarmento de Beires, ´major do Exército Português (Lisboa, 4 de Setembro de 1893 – Porto, 8 de Junho de 1974), pioneiro da aviação, tendo feito o Raid aéreo Lisboa -Macau e a primeira travessia aérea noturna do Atlântico Sul.

____________

Nota do editor:

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24898: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (23): Pequeno glossário do português... à moda do Porto


Porto > 2016 > Zona Histórica do Porto > "Pormenor do Morro de Penaventosa visto do miradouro da Vitória. Casario, Sé Catedral, Paço Episcopal e Igreja de S. Lourenço, mais conhecida como Igreja dos Grilos"... 

Foto (e legenda) do nosso saudoso camarada, e grande fotógrafo, amante da "Invicta", o Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017) (ex-Fur Mil Arm Pes Inf, Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), membro do Bando do Café Progresso.  Publicada  no seu blogue A Vida em Fotos (2 de setembro de 2016), que ele criou em março de 2010 e que alimentou, com grande rigor e  paixão, até fevereiro de 2017, a escassos dois meses de morrer (7 de abril de 2017). É  uma das mais completas fotogalerias do Porto, que eu conheço.  Foto reproduzida aqui com a devida vénia... e com muita saudade.


1. Nesta série sobre os "falares" da gente do nosso tempo de meninos e moços (*), não podia faltar o calão e a gíria do Porto, que é mais do que a cidade, a zona histórica, a  Invicta... "O Porto é uma "Naçom", o Porto e o Grande Porto, ultrapassando as barreiras físicas do rio Douro e da estrada da circunvalação.  

Os nossos camaradas do Norte até trocavavam os bês pelos vês, de indignação,  se a gente não postasse aqui o "galizo" deles... Ora eu não quero que eles digam que eu tenho a mania de ser "dono da estação de São Bento", até porque já tenho uma costela nortenha (daqui a dois anos  vai fazer meio século desde que "cambei" pela primeira vez o rio Douro, na Arrábida, e depois o Tâmega,  em Canaveses)... 

Para que não me chamem mouro, sarraceno, sulista, e outros mimos, aqui vai uma pequena amostra que recolhi, em cima do joelho,  e que atesta a riqueza, a plasticidade, a criatividade, a graça, a verve, o pícaro, o humor  dos falantes da língua portuguesa da "Inbicta"... Outros contributos, e nomeadamente dos camaradas nortenhos, serão bem vindos. Naturalmente que algumas  destas pérolas linguísticas também circulam pelo Sul. E outras podem ter caido em desuso...
LG


Pequeno glossário do português
... à moda do Porto

Alapar –  Assentar
Amarfanhar – Apertar, roubar
Amassos – Troca de carícias
Andar à gosma – Viver à custa dos outros, andar na moinice
Andar de calcantes  Andar a pé
Andor biolete - Desanda
Andrades - Adeptos do FC Porto (não cofundir com "tripeiros")
Apanhador – Pá para o lixo
Arpoar - Fazer uma conquista amorosa
Arreganhar a tachá – Rir à  gargalhada
Arrostar postas de pescada –  Rir à gargalhada
Azeiteiro – Rufia, malandro, chulo

Badalhoca – Porca, desmazelada, prostituta; também nome de uma famosa tasca no Porto
Badeleira  – Mulher que fala demais
Barona – Beata, ponta do cigarro
Basqueiro – Barulho ("Alto basqueiro)
Benha ! – Venha! (termo usado pelos arrumadores de carros)
Besuntas – Mulher muito gorda
Bezana – Bebedeira
Bisga – Escarro
Bitaites – Palpites, dicas, bocas
Bófia –  Polícia
Bóias  Mamas, seios
Bolacha – Bofetada
Boa (boua) como milho  – Diz-se de uma mulher gira
Briol  Frio
 

Cabeça de giz – Polícia sinaleiro (figura cada vez mais rara)
Cachaço – Bofetada no pescoço
Caga e tosse –  Não anda nem desanda
Calacantes baris – Sapato fino
Canalha – Criançada
Carago –  Caraças; forma eufemística de dizer c...alho (o falo, o orgão sexual masculino; do esanhol, "carago")
Cav(b)alão  –  Mulher "atoucinhada" (como diria o Camilo Castel Branco) e de pêlo na venta
Chá de bico – Clister
Chaço – Carro velho,  também "chocolateira"
Choninhas  Gajo mole, sem iniciativa (também se diz "Cunanas")
Chotegane – Arma, arma de cano curto (do inglês, "short gun")
Chica –  Menstruação 
Chuço – Guarda chuva
Coiras – Chatas, más. 
Coirão –  Indivíduo reles com cabedal de respeito
Cor de burro quando foge – Diz-se quando não se sabe a cor de algo
Cresce e aparece  Desanda
Croque – Pequeno murro na cabeça com os nós dos dedos
 

Dar corda aos sapatos 
– Deitar a fugir
Dar corda aos v(b)itorinos – Correr
Dar de frosques – Fugir
Dar lhe a filoxera  Desmaiar
Dar o garfeiro todo – Doer os dentes
Dia de pica-boi  Dia de trabalho
Deitar a fateixa  Conquistar (uma mulher)
Desatinar Dar uma volta
Dobradiças – Joelhos

Encher a mula – Comer muito
Enchousadela – Bater, tareia
Engrupir – Enganar
Estapor – Estupor, mau, cruel
Estar de beiços – Estar amuado
Estar de gesso – Diz-se de alguém que não trabalha
Estar com os bitorinos encharcados – Estar bêbado
Esticar o pernil – Morrer
Estrugido – Sarilho, encrenca ("Meter-se num estrugido"). mas também ligação amorosa ("Ter um estrugido")


Fajardice Trafulhice
Falar para a central – Falar sem ser ouvido ou ouvir sem prestar atenção. 
Faneca – Gaja boa, bonita
Fino  Imperial (cerveja)
Fino como um alho  – Esperto, vivaço, sagaz, astucioso
Fisgar –  Engatar
Flauta 
– Pénis
Foguete – Buraco nas meias (collants)
Foleiro das garulas  – 

Gabardina 
 Preservativo (masculino)
Galga  Mentira, mas também pénis
Galgueiro – Mentiroso
Gangada – Seita, grupo de rapazes, normalmente organizado
Garulas  –  Pernas ("foleiro das garulas", mal ds pernas)
Grav(b)eto  Dinheiro
Grito  Frio
Guna – Ranhoso; rapaz ou rapariga de origem social baixa, de "bairro camarário" que usa roupas de marca, por vezes brincos e boné de pala virado ao contrário

Ir de saco – Ser preso
Ir fazer tijolos  – Morrer
Ir medir caixotes – Morrer

Jeco – Cão

Laurear / laurear a pev(b)ide – Passear, pavonear-se 
Labagice – Porcaria, mistura de comida
Lázaro – Idoso, asilado
Leiteira  Sorte
Leiteirão – Sortudo
Lontra – Pessoa obesa, gorda, que come muito
Lostra  Chapada, estalo

Mais v (b)ale uma rua do Porto que a Gaia toda (lê-se: "cagai-a toda") 
Mamona – Pessoa interesseira
Mandar uma bisga  Escarrar para o chão
Mandar uma traulitada – Dar um murro
Mânfio – Sabidola, astuto
Manguela – Malandro, indivíduo preguiçoso
Martelar – Fazer sexo
Matrona – Mulher desmazelada
Meter os garfos    Palmar, tirar dos bolsos de alguém
Micar  – Perceber, entender,observar
Mijão – Sortudo, "leiteiro"
Mitra - Infiltrado
Moina – Polícia
Molete – Pão, carcaça
Mor – Termo utilizado pelas vendedeiras, abreviatura de «amor» 
Morcão – Estúpido, lorpa

Nardo  – Pénis (também se diz sarda, morcela)
Narizinho de cheiro – Diz-se de alguém que se ofende facilmente, vidrinho
Negócio das carnes – Prostituição

Ouras (Ter) – Ficar atordoado, enjoado

Paiba – Cigarro de substância ilegal
Paleógrafo – Conversa fiada ( “Gajo cheio de paleógrafo”)
Pandeireta – Mulher velha
Pandorca –  Badalhoca, mostrengo, vasculho
Pasteleira – Bicicleta velha, pesada
Passar a ferro – Possuir sexualmente; atropelar
Pastelão – Omeleta; patanisca;  pessoa muito lenta
Pastor – Palerma
Peixão –  Mulher que dá nas vistas, lasca, traço
Picar o ponto – Namorar
Pinoca –   Indivíduo bem arranjado
Pipi da tabela   Todo pinoca, bem vestido, efeminado
Pito - Crica, vagina, mas também frango ("Bibó Pito da Maria")
Play-mobil – Polícia; agente da autoridade
Pôr-se a fancos  – Estar atento, ter cautela
Presunto  – Parolo

Quilhar  – Usado como em “vai-te lixar”

Rópia 
 Vaidade
 
Sameira – Carica, sama,
Selo – Mancha, sujidade nas cuecas
Sêmea – Rabo de mulher
Sertã – Frigideiram da cabeça
Sofrer da cuca –  Não regular bem da cabeça
Sostra – Pessoa preguiçosa

Tecla Três – Anormal, deficiente (por analogia da tecla 3 dos telemóveis)
Toura – Mulher jeitosa
Trav(b)esseira - almofada
Trengo – Atrasado, apalermado
Tripas a moda do Porto  Dobrada
Tripeiro  – Natural do Porto (não confundir com "andrade", adepto do FCP)
Tótil – Muito, “bué”, "manga de" (como se dizia na Guiné)
Trombil – Cara, "fuças"

V(b)ai-te, Afonso 
 Vai-te quilhar, lixar, f...der
V(b)ai no Batalha – Mentira, filme (referência ao cinema Batalha)
V(b)agem – Feijão verde
V(b)ergar a mola – Trabalhar
V(b)idrinho  Diz-se de alguém que é muito suscetível
V(b)ira-v(b)entos  Volúvel

Zaruca 
 O mesmo que sofrer da cuca
Zequinha – Pessoa meio apalermada

Com os contributos de: António Graça de Abreu, Carlos Vinhal, Fernando Ribeiro, Joaquim Costa, Jorge Teixeira, Valdemar Queiroz
________

Fontes (além dos dicionários de português e da Net):
  • Almeida, José João - Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas (recolha de José João Almeida,. Universidade do Minho. 2023. Disponível em https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf
  • Brito, João Carlos - Dicionário de Calão do Porto. Editora Lugar da Palavra, 2016 (Tem mais de 4 mil verbetes ou entradas)
  • Pacheco, Hélder - Porto: outra cidade. Porto: Campo das Letars, 1997.
  • Praça, Afonso - Novo Dicionário de Calão", 2ª ed. rev. Lisboa, Editorial Notícias, 2001.
  • Simões, Guilherme Augusto - Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Lisboa: Perspectivas & Realidades, 1985.
___________

Nota do editor:

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24707: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (2): O martírio da viagem de comboio de Afife ao Porto (Valdemar Queiroz, Afife, Viana do Castelo)


Viana do Castelo > Afife > A soga > Postal iliustrado, s/d, c. 1940. (Diz-se "levar os bois à soga"; a soga é uma tira de couro cujas extremidades se prendem às pontas do boi, e pela qual ele é puxado ou guiado.)

Fonte: Arquivo Municipal de Viana do Castelo (com a devida vénia...)


1. O Joaquim Costa (*) e agora o Valdemar Queroz já pagaram a "obada" ou "côngrua" ao "prior desta freguesia", escrevendo e publicando a uma historieta do tempo de antigamente... (Aqui não se paga em espécie, mas em géneros...).

O primeiro escreveu sobre a feira, em Vila Nova de Famalicão, onde ia, mais a mãe, comprar chancas (não se podia ir descalço para a "escolinha"...). O Valdemar, esse,  lembrou-se da sua primeira viagem de comboio (em tudo na vida, há sempre uma primeira vez)... Uma história não menos deliciosa de um menino que gostava era de andar descalço e comer "coubes", lá na casa da avó, em Afife, em "Biana" do Castelo...

Afife fica a 10 km a norte de Viana do Castelo, sede do concelho. Hoje a distância ao Porto (70/80 km) faz-se em menos de uma hora de carro ou de comboio. Mas em 1955 devia ser uma eternidade, a avaliar pelo "martírio" quer sofreu o nosso "djubi", como ele conta aqui com verve e com graça...

Minhoto de nascimento, alfacinha por criação, avô de netos neerlandeses, e para mais vivendo sozinho trancado em casa na Rua de Colaride, Agualva-Cacém, é uma figura muito querida da Tabanca Grande. 

Que os bons irãs lhe deem vida e qualidade de vida (que  a saúde, essa, anda muito remendada, por mor de um raio de uma DPOC)...


Valdemar Queiroz, minhoto por criação, lisboeta por eleição, 
ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, 
Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; 
aqui, na foto, em Contuboel, 1969.


O martírio de viagem ao Porto

por Valdemar Queiroz

Com dez anos fiz a primeira viagem de comboio (#), foi no correio de Afife ao Porto.
Foi à casa de uma tia nas férias grandes de Verão.

O martírio começou em casa da minha avó, continuou estrada abaixo até à Estação e só melhorou quando o comboio partiu e eu descalcei umas botas novas que me apertavam os pés.

Eu ia sozinho e com medo de me roubarem as botas atei-as à cintura,  até parecia um "cowboy" com duas pistolas,  e fiz toda a viagem descalço, que nada me custou por estar habituado.

O martírio das botas passou, mas outro tão complicado apareceu, passada a Ponte de Viana: 

− Nunca saias do teu lugar!  − dissera-me a minha avó à frente do chefe da Estação que parecia um polícia.

O tempo ia passando e eu, com uma grande vontade de correr dentro do comboio, para ver o que se passava nas outras carruagens. E assim foi,  até chegar à carruagem de 1.ª classe com os bancos de couro avermelhado.

Não passou muito tempo de admiração para levar com um 'estás a levar um puxão d'orelhas, vai já pro teu lugar', disse-me o "polícia'" da carruagem.

Lá me sentei no meu lugar do banco de pau da 3.ª classe (?) e adormeci até chegar ao Porto.

No Porto foi um martírio calçar as botas, andar com elas a olhar para todos os lados que nunca tinha visto.

Passado pouco tempo de andar de boca aberta na grande cidade, comecei a chorar e a pedir para voltar à minha terra pra casa da minha avó.

Foram quinze dias de martírio, aflito dos pés e ser obrigado a comer bife com esparguete.
Ah! que saudades quando regressei a Afife, poder andar descalço e a comer couves com batatas, toucinho e chouriço.

Manias de criança mimada.

Valdemar Queiroz

Nota do autor: (#) no ano seguinte voltei a viajar de comboio pra Viana, para  ir fazer o exame da 4.ª classe (Instrução Primária)

27 de setembro de 2023 às 15:29 (*)

______________

Nota do editor:

(*) - Ultimo poste da série > de 4 setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24674: Manuscrito(s) (Luís Graça) (232): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte III: de herói patuleia a perseguido e fora-da-lei



Capa e contracapa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")


1. Aos 19 anos, por volta de 1836/37, José Teixeira da Silva (nascido em 22 de junho de 1818, no concelho de Penafiel), vai cumprir o serviço militar, no regimento de lanceiros nº 2, os "Lanceiros da Rainha", na Ajuda, em Lisboa. (*)

 Eis, a seguir,  como o Camilo Castelo Branco, a partir das confidências do Zé do Telhado na prisão do Tribunal da Relação do Porto (por volta de 1860/61), relata a sua vida na tropa e depois a sua participação na “Revolta dos Marechais” em julho de 1837, e mais tarde, em 1846/47 na revolta da “Maria da Fonte” (primavera de 1846) e na guerra da “Patuleia (novembro de 1846/junho de 1847). No primeiro caso, indo integrado nas forças do duque de Saldanha (que estava do lado dos “cartistas”) e no segundo caso como ordenança do general Sá da Bandeira, "setembrista", que tinha tomado o partido da Junta do Porto. 

Em 15 de novembro de 1846, num combate de Valpaços, Trás-os-Montes, José Teixeira da Silva (por alcunha, "Zé do Telhado") ganha por atos de excecional bravura a condecoração da Torre e Espada, grau de cavaleiro.  

Aos 19 anos, o Zé do Telhado trabalhava, como "capador" ou "castrador",  com o tio materno, no concelho vizinho de Lousada, e pretendia casar-se com a sua prima, Ana Lentina  de Campos, já órfã de mãe. O Camilo diz que este tio era de origem francesa, facto que está por comprovar. O pai da moça recusou-lhe a pretensão. Desgostoso, o rapaz alista-se no exército.

(…) Foi o moço para Lisboa, e jurou bandeira no segundo Regimento de Lanceiros, denominado o da Rainha [Dona Maria II] . A esbelta figura de José Teixeira era o encanto dos oficiais. Nenhum camarada caía tão airoso na sela, nem meneava mais garboso a lança. O cavalo entendia-lhe o mais ligeiro tremor de pernas, e enfeitava-se orgulhoso do possante e galhardo moço, que lhe embridava os ímpetos para realçar-lhe as soberbas graças.

Na conhecida revolta dos Marechais, em 1837 [1] saiu José Teixeira na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou quem era nos combates do Chão da Feira [2] e Ruivães [3]

“Lá ouvi” − me dizia ele – “a cantiga das primeiras balas e algumas me queimaram o cabelo, e vinham dizer-me ao ouvido que estivesse sossegado. O barão de Setúbal [4]  disse-me uma vez que choviam balas; e eu mostrei-lhe a lança, e disse: “Cá está o guarda-chuva, meu general; deixe chover!”.

Não esqueceu o valente Schwalback 
[4] o afoito gracejo, quando a derrota lhe desordenava as filas. Como, em remate de luta, tivesse de emigrar para Espanha, o barão de Setúbal levou consigo, como sua ordenança, José do Telhado.

Fez-se a Convenção de Chaves [5] a tempo que o lanceiro recebia a Carta da sua prima, chamando-o a toda a pressa para se casarem com o consentimento do pai. Requereu o soldado a baixa, e obteve-a do barão de Vilar de Turpin, comandante da Terceira Divisão Militar. Recebeu o francês [seu tio materno e futuro sogro, que vivia na Lousada] em braços paternais e dotou a filha com abundantes bens para mediania aldeã. (…)

Seguiu-se a revolução popular de 1846 [5]. A populaça carecia de um chefe, e rejeitava os ilustres caudilhos, que saíram de suas casas nobres a especular com o braço do povo. Conclamaram à uma José Teixeira, e quase forçaram a comandá-los.

O chefe, conhecendo-se obscuro de mais para aceitar a responsabilidade e prestígio de cabecilha guerrilheiro, convenceu os seus amigos da precisão de se ajuntarem, sob outro chefe, às legiões populares que confluíam para a cidade heróica [o Porto].

Entrou José do Telhado ao serviço de Junta [do Porto] na arma de cavalaria. Comprou cavalo, e fardou se à sua custa a todo o primor. Repartia do seu dinheiro com os camaradas carecidos, e recebia as migalhas do cofre da Junta para valer aos que de sua casa nada tinham.

José Teixeira empenhou-se grandemente para satisfazer o que em parte era capricho e em parte largueza de alma.

Acompanhou a expedição a Valpaços, e foi dado como ordenança ao senhor visconde de Sá da Bandeira. As proezas cometidas nessa temerosa e mal sortida batalha, estão escritas na condecoração de Torre-e-Espada que o general, por sua própria mão, lhe apresilhou na farda.

Fora o caso que do cômoro duma ribanceira alguns soldados do regimento traidor [leais aos Cabrais] apontavam as armas ao general, conturbado pela fumaça das descargas, José Teixeira arranca do cavalo a toda a brida, toma as rédeas do cavalo do general, e obrigou a assaltar um valado. Mal deram o saldo, passaram as balas poucas polegadas acima da cabeça de ambos.

A este tempo três soldados de cavalaria avançaram desapoderados sobre o visconde de Sá. José Teixeira embarga-lhes a arremetida, desarma o primeiro de um golpe, fere mortalmente o segundo, e persegue o terceiro, que fugia, até lhe arrancar a vida pelas costas.

Quando voltou da fação, já o general tinha suspensa a medalha, que o valente recebeu com mais delicadeza que entusiasmo de honras.

Feito com o convênio de Gramido, José Teixeira arrancou as divisas de sargento e foi para casa, onde o esperavam a saudosa e atribulada mulher com os seus cinco filhos.

Como se disse, a casa estava onerada de dívidas, os credores perseguiam-no e as autoridades, avessas à sua política, esquadrinhavam disfarces para o 

afligirem. (…)

(Excertos: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862), pp. 87-91. Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
____________

Notas do editor LG:

[1] De 12 de julho até 7 de outubro de 1837

[2] Chão da Feira: perto da Batalha (28 de agosto de 1837)

[3] Ruiváes, Chaves (15 de setembro de 1837)

[4] João Schwalbach (1774-1847), barão de Setúbal

[5] Maria da Fonte e Patuleia (1846/47)
______________

Nota do editor:

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24656: Agenda cultural (837): O nosso grã-tabanqueiro João Graça, violino (ex-Melech Mechaya) acompanha hoje, no "Passos Manuel", Porto, às 21h30, o músico anglo-indiano Will Samson (que vai tocar temas do seu último disco, "Harp Swells")


Cartaz do espectáculo muscial de Will Samson, hoje, às 21h30, no Porto, no"Pass os Manuel", clube noturno e de dança, sítio de referência da noiote do Porto  (Rua Passos Manuel, 137, 4000-382 Porto,  (ao Coliseu).

Ver aqui mapa. Duração: 70 m | Entrada: preço, 12,5 €. | Telefone: 22 205 8351


1. Breve apresentação do músico (que será acompanhado por João Graça, ex-Melech Mechaya, violino, membro da nossa Tabanca Grande);

Desde a edição do disco de estreia Balance em 2012 (com produção de Nils Frahm), que o músico e compositor anglo-indiano Will Samson (baseado em Portugal há mais de um ano) tem criado um catálogo recheado de texturas delicadas e imersivas que exploram os espaços entre a música ambiente, a eletrónica e até mesmo a folk.

Agora, Will Samson, prepara-se para editar um disco de uma toada mais ambiental e totalmente instrumental. A data de edição é o dia 8 de setembro. A editora,  a 12k (fundada pelo músico Taylor Deupree). E o nome do disco Harp Swells.


Com parentes nascidos entre o Chile e Bengali Oeste (que mais tarde se conheceram no Quénia) é certo que Will Samson tem mantido uma certa inquietação no que diz respeito ao seu lado artístico e pessoal. 

Nascido em Oxford, emigrou ainda criança com os pais para a Austrália onde viveu por 10 anos até regressar ao Reino Unido. Pouco mais de uma década após o seu regresso, Will Samson, inicia então o seu périplo por outras cidades como Berlim, Brighton, Lisboa, Bruxelas, Bristol e finalmente, Almada. 

É fácil compreendermos o porquê da sua música focar muitas vezes o sentimento de pertença e procura de identidade.


________________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de junho de  2023 > Guiné 61/74 - P24440: Agenda cultural (836): Palestra "50 anos Debaixo d´Àgua", por António Mário Leitão, e apresentação do seu livro "Aprendiz de Mágico" (2022), no CPAS - Centro Português de Actividades Subaquáticas, Rua Alto do Duque, 45, Lisboa, 6ª feira, 30/6/2023, às 21h30

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24554: Notas de leitura (1606): "Um cripto na terra vermelha da Guiné", por Humberto Costa; 2.ª edição, 2020, Eudito (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Mais uma edição de autor, tive a dita de a encontrar na Biblioteca da Liga dos Combatentes, um fornecedor sempre generoso. Temos o percurso do cabo Humberto Costa, operador cripto em Mansoa e Bissau, foi coligindo notas do seu itinerário desde a recruta à disponibilidade. Homem manifestamente sociável, atento à miséria das populações, realça aspetos divertidos e bizarros que a tropa sempre oferece. Não há nenhuma farronca, não se disfarça de herói o combatente, diz o que sente debaixo de fogo, provou diversas flagelações, e por ser cripto vai tomando nota da atividade operacional do setor de Mansoa. Edição profusamente ilustrada, faltava-nos o depoimento constituído por notas de um cabo cripto quase no final da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário



Um cripto na terra vermelha da Guiné

Mário Beja Santos

É o primeiro livro de Humberto Costa, 2.ª edição, 2020, Eudito (geral@eudito.com), natural de Cedofeita, infância vivida no Monte Aventino, com currículo de grande participação como autarca e desportista; é atualmente presidente do Grupo Dramático do Monte Aventino. Ajunta as suas notas diárias entre 1971 e 1974: recruta em Viseu (8 horas de viagem entre o Porto e Viseu, o comboio era dos antigos com máquina de carvão), conta episódios divertidos de desenfianços e calacices; curso de escriturário em Leiria, nota-se sempre a preocupação em registar o nome de amigos e conterrâneos; curso de operador cripto na Trafaria. Explica-nos o que é ser operador cripto, a natureza das mensagens (romeo – rotina; uniforme – urgente; óscar – imediato; zulo – relâmpago); vai estagiar na Figueira da Foz, nunca se escusa a contar uma boa pilhéria. Chega a Bissalanca em 13 de março de 1972 e segue diretamente para Mansoa, regista as elevadas temperaturas, anota por onde passa:

“Vimos um povoamento, era Infandre, que fica separado de Mansoa pelo rio Mansoa, atravessámos a ponte e entrámos em Mansoa. O quartel estava do lado direito, em frente ficava a vila com uma igreja grande, um cinema ao ar livre, um posto de gasolina, o campo de futebol dos Balantas e o mercado municipal, bem como a igreja. O comércio era exercido maioritariamente por libaneses. Foi colocado na Companhia de Caçadores n.º 15”.

Dá-nos a composição das unidades militares sediadas em Mansoa. Tem batismo de fogo em 31 de março, ataque a Mansoa e Cussaná. Regista o seu espanto de ter visto crianças com latas na porta do refeitório, esperando que os soldados acabassem de comer para irem limpar as mesas e empurrar os restos para dentro das latas. Em 5 de abril há flagelação a Infandre bem como a Mansoa, que sofreu mortos e feridos na população. Dias depois anota que três elementos civis foram vítimas de mina antipessoal.

A obra está repleta de imagens de Humberto Costa, imagens de obuses, rescaldo de flagelações, crianças, patuscadas, a família da lavadeira, jogos de futebol, infraestruturas, e muito mais. Em 27 de abril, regista que numa coluna entre Bissorã e Mansoa rebentou uma mina; em maio fugiu um soldado operador cripto. Vê-se perfeitamente que registou um elevado acervo de sinistros desde emboscadas a flagelações, Mansoa em 26 de junho é flagelada com intensidade. 

“Um foguetão atingiu a torre da igreja junto ao meu local, outro a bomba de gasolina na mesma rua, mas mais ao longe. Estilhaços de granada de canhão sem recuo caíram perto de mim, atirando terra para as minhas costas, então pus a mão e senti húmidas as costas, pensando logo que era sangue. Quando me levantei senti que estava bem”.

Inventaria acidentes, as atividades operacionais da CCAÇ 15, as festas dos seus aniversários passados na Guiné. Está sempre pronto para contar peripécias. Nos seus apontamentos não escusa a deixar notas pessoais como o que se sente debaixo de fogo:

“A tremedeira do nosso corpo, o bater forte do nosso coração que parece mesmo que não vai resistir, a cabeça que pensa rápido, mas fraqueja. Só pensamos em esconder e proteger pelo menos a nossa cabeça. Mas quando se ouve um camarada aos berros, porque foi atingido por um estilhaço ou bala e diz alto ‘vou morrer!’, isto é terrível, sentimos também a dor dos nossos camaradas. A pressão é enorme naquela altura. E então vem o silêncio e nós dizemos que já acabou por hoje. Assim, mais calmos, corremos para os nossos camaradas feridos e para aqueles que estão em estado de choque. No dia seguinte e pela mesma hora estamos todos a olhar para o céu para ver se vem mais guerra”

Dá nota de um acontecimento, durante meio ano aproximadamente foi tempo de pausa na guerra de Mansoa.

Em setembro de 1973 deixou Mansoa para ser integrado no Centro Cripto da CCS do Quartel-General em Bissau. Deixa anotados os encontros com a malta amiga e vizinha, mais um rol de fotografias e escreve nos seus apontamentos em 4 de novembro:

“Ao quartel-general chegou um operador cripto que estava num quartel junto à fronteira com o Senegal. Disse que tiveram de abandonar o quartel depois de um ataque do inimigo. Andaram perdidos durante vários dias. Alguns seguiram o caminho certo e encontraram população ligada às nossas tropas. Outros andaram sem norte, passavam fome e sede, beberam a própria urina para resistir à seca dos lábios. Até que um dia foram avistados. Este operador cripto ao contar isto tremia por todos os lados. O medo era muito forte, não sabiam para onde ir, então corriam para o mato que era mais escondido. Muitos, depois da calma, lá vinham ter com os companheiros, outros perdiam-se”.

Volta a Mansoa em 12 de dezembro, acompanha o seu substituto na CCAÇ 15. Nessa noite foram atacados, teve mais medo porque estava no final da sua estadia em Mansoa. Descreve assim o seu Natal de 1973: 

“Estando eu nos Adidos na véspera de Natal, comi uma posta de bacalhau pequena e duas batatas cozidas para ter algo que me lembrasse o Natal. Comprei dois bolos e uma lata de Fanta”.

 Em 6 de janeiro saiu de Bissau para Lisboa. Os últimos elementos da sua obra são considerações sobre as guerras que travámos em África, mostra curiosas ilustrações da ação psicossocial do Exército Português para atrair as populações do mato e termina o seu trabalho saudando o 25 de Abril.

Posto de gasolina de Mansoa danificado depois de uma flagelação
Igreja Católica de Mansoa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24549: Notas de leitura (1605): "O Elogio da Dureza", por Rui de Azevedo Teixeira; Gradiva Publicações, 2021 (Mário Beja Santos)

sábado, 22 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24497: Facebook..ando (31): Heróis dos anos 50 (António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68; natural de Avintes, V. N. Gaia)

1. O António Reis não integra formalmente a nossa Tabanca Grande. Tem apenas quatro referências no nosso blogue. Mas é um dos nossos, um  camarada da Guiné: foi 1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966-68. 

Tem pelo menos dois livros publicados com as suas histórias e memórias, incluindo0 aquelc cuja capa se reproduz abaixo (3ª edição agora aumentada e melhorada: "A minha jornada em África", Vila Nova de Gaia, Palavras & Rimas, 2015, 110 pp.). 

Teve a gentileza de, na altura.  nos mandar 3 exemplares do seu livro (*)

Da sua página do seu Facebook, sabemos que o António Ramalho da Silva Reis, de seu nome completo:

(i) trabalhou como Eletrotécnico na empresa TLP - Telefones de Lisboa e Porto; 

(i) andou na escola Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia; 

(iii) vive em Vila Nova de Gaia;

(iv) masceu em 28 de fevereiro de 1944, em Avintes, V. N. Gaia (a terra da famosa broa);
(v) é casado;

(vi) é seguido por 106 pessoas;

(vii) tem 18 amigos em comum com a Tabanca Grande Luís Graça.

Fica aqui o  convite para ele se sentar à sombra do poilão da Tabanca Grande, convite que já na devida altura foi feito por nós. Basta-nos uma foto atual e o seu endereço de e-mail.


Cápa do livro de António Reis, "A minha jornada em África" , 3ª ed. 
(Vila Nova de Gaia, Palavras & Rimas, 2015, 110 pp.). (*)


Com a devida vénia reproduzimos aqui duas postagens da sua pãgina do Facebook: 



Porto, rio Douro, ponte Dom Luís I.
Foto da página do facebook
 do António Reis (2023).
Com a devida vénia,,,
2. OS HERÓIS DOS ANOS 50

por António Reis (Facebook, quinta feira, 20 de julho de 2023, 11:15)


Em 1954, a minha escola tinha cerca de 40 alunos (só rapazes). Dois conseguiram chegar à 4ª classe, o Mário Sancho e o Isabelino.
 
Em 1955 éramos 4, eu, o Zé Bombeiro, o António Guedes e o Oliveira Santos.
 
Em 1956, centenas de miúdos com 12, 13 e 14 anos atravessavam a pé o tabuleiro de cima desta ponte, uns calçados, outros descalços. Um deles era eu.

Com as soletas enfiadas 
na cintura, só as calçava depois de ter 
atravessado a ponte, porque era proibido 
andar descalço no Porto, dava multa.

Profissão: moço de bate-chapas. | Local de trabalho: Campo 24 de Agosto. | Transporte: a pé, sempre a pé, cerca de 10 km, porque os moços ganhavam 5$00 diários e o meu transporte custava 3$30 para cada lado. Quer dizer que o que eu ganhava, não chegava para o transporte.

Horário: de segunda a sábado, das 8h às 17h. | O pior dia: sábado. Os moços não recebiam os 30$00  [ em meados de 1956, valeriam cerca de 16, 30 euros a preços atuais] e sem a limpeza feita, o que acontecia por volta das 19h (ainda conseguíamos chegar a casa antes da meia noite).
 
Quem não aguentava ia para moço de trolha. Eu fui para moço do Sr. Joaquim Bitangolo ganhar 11$00 diários
[ cerca de 6 euros a preços atuais, valor reportado a meados de 1956] e tive sorte, porque nunca o vi bater nos moços, o que era anormal.
 
E dizem que éramos alegres, felizes e contentes. Uma ova! Heróis e humildes sim, ou o Cardeal Cerejeira não tivesse dito a Salazar que o povo para ser humilde tinha que passar fome. (**)





Facebool > António Reis > Postagem de 21 de maio de 2023 > 

Antigamente havia uma canção que tinha na letra: "Ó Tono, ó Quim, ó Zé, se queres ser amigo vem à romaria". E então o Tono, o Quim e o Zé lá iam. Mas esta foto é de outra "romaria", e ai de nós que não fossemos a ela. Aqui os "foguetes" eram outros. Eu só os via e ouvia de longe, o Zé via-os em São Domingos, o Quim estava em Bissau mas ia a muitas "festas" destas (era Comando). Éramos 3 meninos a quem roubaram três ou quatro anos da nossa vida.

Saudades,  grande amigo Zé! Descansa em paz.

 

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24491: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (4): Amigos para sempre!


Foto: © Luís Graça (2011)

Contos com mural ao fundo (4) >   Amigos para sempre!

por Luís Graça (*)

Foi o primeiro encontro da Companhia, depois do regresso da Guiné... Vinte anos depois (!)... Na Anadia, em 1991, o ano em que nasceu a Internet, pelo menos a Internet que conhecemos hoje, em que as pessoas estão familiarizadas com as redes sociais, e usam o telemóvel e o correio eletrónico.

A organização coube ao "Vagomestre", auxiliado pelo "Transmissões"...  Não lhes foi fácil descobrir nomes, moradas, telefones  e até faxes... E juntar "boas vontades". (Ainda não havia endereços de e-mail, comunicava-se por  telefone,  telegrama  e fax.)

Faltou muita gente, a começar pelo ex-capitão, ainda no ativo, então na GNR, ao que se dizia. Ou talvez já na reserva, que ele nessa altura deveria  estar próximo dos sessenta... E outros, não poucos, disseram ao organizador: "Guiné, meu?!... Não,  obrigado!... Já dei para esse peditório!"...

Estavam presentes um alferes, o Azevedo, o "Ranger", uma boa parte dos furriéís e outras tantas praças, cabos e soldados, sobretudo do Centro e Norte. Ao todo não mais do que uma trintena, menos de um quinto da Companhia. 

O "Vagomestre",  também conhecido pela infame alcunha de "Unhas de Fome" (insultuosa para ele), fora o  principal organizador. Era de Aveiro, e tinha agora uma empresa de contabilidade ligada ao setor das pescas. O Oliveira, o "Transmissões", esse, ia fazendo também pela vida, sendo assessor jurídico de uma federação de sindicatos, ligada à CGTP-IN, depois de completar o curso de direito em Coimbra.

Também apareceu o "Pastilhas". O seu "bunker" era  a "República dos Feliz... ardos", os que não iam para o mato: ele, o transmissões, o gajo da ferrugem, o vagomestre, e dois sargentos (um deles, o  Félix, que chefiava a secretaria), e ainda  alguns primeiros cabos, como o cripto, o escriturário, o quarteleiro, o bate-chapas (o "Chapinhas*)... 

Toda a gente vivia em "bunkers", feitos de troncos de cibe, chapa de bidão, bidões  de terra e umas tantas das poucas pedras que havia  naqueles terrenos de aluvião... "Vida de ratos", queixava-se o Andrade que, à noite, passava horrores na expectativa de um ataque ou flagelação ao quartel.

Tinha piada,  as voltas que o mundo dera: o "Pastilhas" era agora tratado com outra deferência... Conseguira, ainda antes do 25 de Abril, entrar em medicina... Depois do Serviço Médico à Periferia, entrara na carreira de clínica geral, em 1983, e era, já em 1991, médico do trabalho numa fábrica de montagem de motores para automóveis, na região Centro.

Mas a figura principal do encontro, na ausência do capitão, era o "Campanhã", o valente "Campanhã", o "herói da Companhia"!... Era com emoção, "com alguma emoção, mal disfarçada" (sic), que o Neves, furriel do seu pelotão,  voltava a abraçar, ali na Anadia, nesse já longínquo ano de 1991, o "Campanhã", com o seu inimitável sotaque tripeiro e "a franqueza que era timbre da boa gente do Norte".

Dos presentes, havia mais um que tinha "subido na vida", o Azevedo, autarca social-democrata e empresário (fizera, logo na primeira hora, uma distribuição profusa do seu "cartão de visita" e transpirava felicidade e prosperidade por todos os poros)... 

O "Campanhã", esse, ninguém sabia ao certo o que fazia agora... Mas apresentava alguns sinais exteriores de riqueza, a avaliar pelo BMW ("em segunda mão, nada de confusões!") com que viera do Porto, com mais dois ou três camaradas "da corda", um dos quais nem sequer tinha nada a ver com a Companhia, fora paraquedista em Angola. 

O Neves, esse, ainda continuava, infeliz e mal pago, a trabalhar como jornalista num semanário da capital, e a fazer mais uns  biscates na rádio.

− E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Chegou a major, ainda a guerra não tinha acabado para nós... − disparou o "Campanhã", a "abrir as hostilidades".

A taça ?!... − ouviu-se, lá do fundo da mesa, a voz do "Vagomestre", que estava com um ouvido atento à conversa do grupinho do "Campanhã", e outro orientado para as graçolas de alguém que recordava o pobre diabo  do "Peniche", a "Bichona",  o "bobo da corte" da Companhia, que assegurava que ainda havia de mudar de sexo antes de morrer. (Infelizmente morrera  de HIV/SIDA, uns bons anos antes,  por volta de 1985, com o mesmo corpinho  com que  tinha saído da barriga da mãe.) 

− Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês… insistiu o "Campanhã".

−  Mas, ó pá, era a vida dele, a carreira dele! – atalhou o ex-alferes miliciano Azevedo, tambem tratado por "Ranger", transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

 E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhou o "Vagomestre",  tentando, com sua proverbial falta de sentido de humor, deitar água na fervura.

− E, nós, o mexilhão, a tropa-macaca, os soldados do contingente geral! – ripostou o "Campanhã".

 Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa!  opinou, por sua vez, o "Pastilhas", agora o "xô dôtor" Andrade.

 Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão, que eu sou um home do Norte, carambas! – vocês até eram uns fidalgotes: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, pretas ou verdianas, de vez em quando, em Bafatá e em Bissau; iam de férias, na TAP, à Metrópole…

E lá continuou o reguila do "Campanhã" a vociferar contra os privilegiados da tropa, neste caso os milicianos que na guerra tinham messe,  à parte, com direito a comer de garfo e faca, toalha branca na mesa e... até criados de libré!... 


Recorde-se que o capitão, um minhoto ("de sangue azul", dizia-se, com solar lá na terra, e todo cheio de nove horas), até lhes arranjou, aos impedidos na messe, uma farpela a condizer!... Um deles era justamente o "Peniche", soldado básico, ex-desertor e ex-presidiário (tinha passado pela Companhia Disciplinar de Penamacor; viera 
 a "ferros"  no T/T "Niassa", "um espectáculo confrangedor", recordava o Neves).

 Criados de libré, já não me lembrava dessa, ó meu! − comentou o "Campanhã", para o Neves, e outros que lhe estavam próximos, na mesma mesa (que, na prática, era só uma, comprida, onde cabiam todos os convivas; de fora tinham ficado, daquela vez, no primeiro convívio da Companhia, as caras-metade e demais famíliares).

 Messe com criados de libré, só em dias de festa, convém lembrar!... Por favor, nao exagerem!..?.O nosso capitão explicava que era para "os senhores oficiais e sargentos se sentirem em casa, não perderem a noção do tempo e não ficarem cafrealizados"  recordou o Azevedo. − E que pena ele não poder estar aqui hoje com nós! 

− Cafrealizados?! − interpôs o Neves que nunca tinha concordado com a ideia de uma messe, separada do rancho, num quartel do mato como o da Companhia.

− Cacimbados, apanhados do clima, se quiseres! − esclareceu o "Ranger".− Afinal, sempre foram quase dois anos fora da civilização.

 Alguns de vocês, alferes e furriéis (não vale a pena aqui citar nomes) até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a puta da canhota no mato, a embrulhar e a foder o coirão!... 

Em boa verdade, um dos alferes da Companhia tinha feito o curso de capitães e ainda fizera uma comissão em Angola, passando a integrar o QEO - Quadro Especial de Oficiais. Ninguém sabia do seu paradeiro. Alguém terá dito que ficara na África do Sul, depois da inpendência de Angola, o que carecia de confirmação.

E, dando um salto na cadeira, continuou o "Campanhã", de dedo em riste:

− Mais, seus c..., alguns milicianos que eu conheci, na tropa e depois na Guiné, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser talvez a mesada do velho…

 Calma aí e pára o baile, ó "Campanhã"! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas!  interrompeu, de chofre, o Azevedo, que tinha vindo direitinho do seminário para a "Máfrica"  (onde fez a recruta) e depois para Lamego (onde tirou o Curso de Operações Especiais), com passagem por Tancos (para tirar as 'minas & armadilhas').

−  Bom amigo e camarada, tenho que te  lembrar que muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos, e alguns começaram bem cedo, feito o 5.º ano ou o 7.º,  do liceu ou equivalente... 
  atalhou o Neves, ajudando a cortar o fio à meada do  discurso torrencial (e perturbador) do "Campanhã", e sabendo que os primeiros goles da zurrapa do espumante do Zé dos Leitões começava a abrir as goelas da desinibição. 

 Cá o Zé Soldado, como eu,  já era chefe de família e há muito que fossava  no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam disto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos iguais, brancos e pretos, oficiais, sargentos e praças, que elas no mato, c.., não traziam código postal!

 
O "Campanhã" e o Neves tínham-se  tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia verdadeiros amigos, amigos do peito, mas apenas gente que partilhava a mesma condição, o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo "bunker", a mesma vala, o mesmo espaldão, o mesmo beliche, a mesma cama, enfim, o mesmo buraco)... 

Voltaram ambos a recordar  essa memorável viagem de comboio que, em meados de 1969, tinha levado a  Companhia, ensonada, do Campo Militar de Santa Margarida até ao cais de embarque, em Lisboa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. 

Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o "Campanhã" fora-lhe contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, mas também os seus tropeções, fazendo do Neves o seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, "lucidamente deprimido" (escreveria ele mais tarde), à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras 
banhadas pelo Tejo, ronceiro, sonolento e lúgubre, pela calada da noite, e o "Quarteleiro" tirava uns acordes sinistros do seu acordeão. Mas a maior da malta dormitava, encostada aos ombros de uns e outros, para acordar, estremunhada, com a brisa do estuário do Tejo...

Muitos deles ainda se tratavam, neste primeiro convívio anual, em 1991, pelas alcunhas da tropa. E, em rigor, o Neves já não se lembrava sequer dos nomes próprios da maioria dos seus camaradas da Companhia. O "Quarteleiro", por exemplo, sempre o havia conhecido por "Quarteleiro" e era um gajo impecável que  punha a G3  num brinquinho, quando a malta regressava do mato, coberta de pó ou enlameada, "a tresandar a merda". E, depois, animava a malta com o seu acordeão de arraial minhoto, tal como o Oliveira, que tocava viola e cantava uns fados e baladas de Coimbra. 

Da dura história de vida do "Campanhã", o Neves, com o seu traquejo de jornalista, tinha, porém, tomado notas, no seu diário. Lá em Baião, o último concelho do distrito do Porto, ficava uma infância pobre, e no Porto, em Campanhã, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário da ferrugem. 

Filho de pequenos rendeiros pobres, cedo pegara na trouxa, num ato de rebeldia contra o "pai e patrão", para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa "ilha" do Porto, na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa. Tinha um irmão mais velho, operário na CP, que trabalhava na manutenção da via férrea, e que lhe deu guarida nos primeiros tempos.

 Parti, sem a benção do meu pai, e com a minha mãe em alta berraria, em som estereofónico que era para as vizinhas ouvirem bem... Fui em busca de melhores dias na Invicta, já que em casa o caldo, a broa e a pinga mal chegavam para dez bocas. Nem sequer tinha graveto para comprar o bilhete. Viajei escondido num vagão de mercadorias, como um cigano ou um ladrão.

 Falas em fome... mesmo, a sério?!  insinuou o Neves, timidamente.

 Não, vocês, lá na capital, nem sabem o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; o ranço da salgadeira na loja quando eu ia buscar o verdasco; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… E um pingo de azeite, com cebolinhas, e castanhas cozidas no outono e inverno... Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não direi. Digamos que passei... necessidades!... Até ir para o Porto, nunca soube o que era o leite da vaca, nem queijo, manteiga ou iogurte, nem muito menos cerveja. Nem sequer um ovo estrelado, que a minha mãe vendia os ovos para fazer algum dinheiro!...  Não, nunca conheci calças sem remendos.  Ou sequer um par de botas. O meu furriel sabe o que são socas?

 Não, não faço ideia! Peço perdão, sou um citadino...

 Tarocas, tamancos, chinelos, um calçado aberto, com um tira de couro por cima e sola de pau... Era o que a gente botava nos pés, quando ia à vila ou à escola. 

E no Porto, na sua Campanhã (onde ainda morou depois de vir da Guiné, sendo mais tarde alojado num bairro camarário), antiga zona popular e operária da cidade, faria entretanto a sua "universidade da vida" antes  da tropa: moço de recados, marçano, aprendiz de  barbeiro, trolha, futebolista júnior, empregado de café, barman, "chulo de puta fina" – "azeiteiro, como se dizia lá na "ilha" – até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da ferrugem (leia-se: da fábrica metalúrgica, que foi o seu primeiro emprego a sério, com descontos para a "Caixa", em Massarelos, a célebre Fundição de Massarelos, que já  havia conhecido melhores dias, e que irá fechar os portóes a seguir ao 25 de Abril).

 "Cães grandes"?!.. Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, de socas, mas já com pêlo na venta e os tomates inchados, depois de feita a 4.ª classe, acompanhava o meu velho na visita anual à Casa da Fidalga, pelo São Miguel... 

− São Miguel?...

− Sim, no fim do ano agrícola, lá para o fim de setembro... Para acertar a renda e renovar o contrato: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista (que o povo dizia que era do "Supremo" e condiscípulo de Salazar) e  que tinha mais quintas na região, entre o Marco e Baião, do que eu dedos na mão…

"Cães grandes" era uma expressão que lhe era querida, e suficientemente ampla para nela caber todos os que lhe podiam morder o fundilho das calças e "foder o coirão", do 1.º sargento ao oficial superior, do abade ao "fidalgo"... Em Santa Margarida, tinha levado uma porrada do "sorja", o Gravata, por evidente abuso do poder do seu superior hierárquico, acrescentaria o Neves, que foi contemporâneo dos acontecimentos...


O Neves aproveitou o reencontro da malta, em 1991, para recapitular, com o "Campanhã", o  que se tinha passado, ao certo, em Santa Margarida em maio de 1969, na formação da Companhia: o 1.º sargento era um "chicalhão" de cavalaria e não gozava das simpatias de ninguém, a começar pelos cabos milicianos, futuros furriéis... Por outro lado, o homem esperava ir passar apenas umas férias na Guiné, antes de ser chamado para a Escola Central de Sargentos , em Águeda. 

Às praças não perdoava que se esquecessem de lhe bater a pala!... Foi o azar do "Campanhã", para mais "reguila" desde o início da formação da Companhia. 

− Andavas já debaixo de olho do nosso primeiro!... Ele nunca foi à bola com reguilas como tu, e para mais do Porto!

De nada valeram os pedidos, insistentes, que os cabos milicianos lhe fizeram, para rasgar a participação. Era um homem inflexível, e irascível,  oriundo da arma de cavalaria "como o Spínola" (como gostava de lembrar). E alguns de deles até tinham um certo ascendente sobre ele, haviam começado, ainda em Santa Margarida, a dar-lhe explicações de português, francês, matemática e outras disciplinas essenciais para um futuro tenente SGE (Serviços Gerais do Exército)... 


O "Campanhã", que era uma figura popular, muito querida entre a malta da Companhia, acabou mesmo por levar uma porrada, na véspera de ser promovido a cabo, e lá partiu para a Guiné, "com muita mágoa e raiva", como simples soldado atirador de infantaria. O capitão, que precisava dos bons ofícios do 1.º sargento, para mais logo no início da formação da Companhia, nada fez para demover o 1.º sargento,  acabando por  dar andamento à participação, o  que causou evidente mal-estar entre a generalidade dos cabos milicianos.

O "Campanhã" falava do seu "velho", do  seu pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.

 As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. A "porrada", injusta, do nosso 1.º sargento ainda me dói, e vai-me continuar a doer pela Guiné fora. 
confidenciou ele, nessa inesquecível viagem de comboio.

Foi despromovido, podia ter ido no "Niassa", com as divisas de 1.º cabo, "com toda a cagança e mérito, porque as conquistei com muito suor"... E perguntava ao Neves:

− Acha justo eu estar a comandar uma secção, na falta de um furriel,  com o reles posto de soldado raso?... Nunca lhe perdoarei, àquele "cão grande"!... Se ele alguma vez tiver o azar de alinhar no mato (o que nunca irá acontecer, eu sei) ou se eu o apanhar a jeito nalgum ataque ao quartel, juro que o mato com um tiro na testa...

E, depois,  arrependendo-se da enormidade que tinha acabado de proferir, emendou, não fosse alguém ouvi-lo e denunciá-lo à "bófia":

− Não o mato, pela simples razão de que eu tenho uma filha pequena para criar... Mas sou capaz de lhe pregar um susto quando o pessoal  se instalar no 'parque de campismo'...

E prosseguiu, já com uns bagaços a mais, enquanto o comboio uivava na breu da noite:


 As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... As fodas, um gajo vem-se e, ala, moço, que se faz tarde... Qual amor, qual carapuça!... Nunca soube o que era isso.  

O Neves, "alfacinha" (que ue  não conhecia  nem imaginava até o que era a pobreza de muita gente do campo e da cidade que vivia  no Norte)  não conseguiu disfarçar as suas próprias emoções  quando uma grossa lágrima caiu pela cara  abaixo do "Campanhã " ao evocar  a figura do pai, num longo e pungente monólogo:

 − Veja o meu falecido pai: trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Jó, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro ou cigano sem eira nem beira. Sem saber sequer uma letra, nunca foi à escola, tal como a minha mãezinha que Deus já lá tem, um e outra.... Sem nunca ter ido sequer ao Porto visitar-me e ir à Foz, de elétrico, para ver o mar… Nunca viu o mar, o meu velho!... Nem ele nem ela... Conheceu muitos 'fidalgos', como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, uma casa térrea e uns socalcos, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestadada, viveu por favor dos que mandavam neste mundo... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila, corrécio, estroina ou pior... Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem. Olhe, até fiz uma filha a uma gaja, menor, com quem fui obrigado a casar...

O Neves recordava estas palavras, ouvidas com empatia, no tal comboio da noite que transportava "carne para canhão", no longínquo ano de 1969... Curiosamente, verificava ali naquele almoço de convívio de antigos combatentes, vinte anos depois de "tudo ter acabado em bem" (como dizia o safado do Azevedo),  que nenhum deles se desculpava por feito aquela guerra e, muito menos, não de a ter perdido, mas de ter perdido a sua juventude, os seus "verdes anos" (como cantarolava o Oliveira).  Em contrapartida, haviam-se ganho novos amigos:

− Amigos para sempre! − concluiu o "Ranger", embevecido.

Para alguns deles, porventura para a maior parte deles, agora "despidos e despedidos" (a expressão era do Neves), desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que haviam ido à inspecção, alcunhados de ex-combatentes da guerra do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, "mal amados" (pelo poder democrático do pós-25 de Abril)  − "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do "Peniche", o básico, a falar sozinho, lá do outro mundo,  orgulhoso,  porque  sempre acabara por ir parar à "vida artística da noite") − , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das suas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. 

 Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes... - completou, dedilhando a velha viola, ao lado do Neves, irónico, o "baladeiro" do Oliveira, ex-furriel de transmissões, que era de Coimbra (ou arredores) e que, entretanto, se formara em direito.

− Um longo parto, meu furriel, um longo parto! 
− arremataria o "Peniche", no meio da galhofa geral, se fosse vivo, repetindo a frase que lhe dera celebridade e impunidade: "E eu inda hei-de ficar grávida (sic)... e dar à luz, com a ajuda da ciência!"...

Talvez, o Neves, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do restaurante do Zé dos Leitões, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar com o pagode. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a anacrónica, tardia, guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas, não, nenhum dos presentes levantara o copo de espumante para gritar "Viva ou Morra"!...

 Éramos todos, afinal,  bons rapazes! 
 confidenciou, desalentado,  o Neves para os seus botões...

É que todos faziam ali o  jogo da cumplicidade e da camaradagem, jogo cujas regras tácitas ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabiam que nunca mais voltaria a repetir-se esse encontro na Anadia, em 1991, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irem comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Azevedo, "agora autarca do poder local democrático" e empresário do setor agroalimentar).

 Para o ano em França de Bragança, camaradas!... São todos meus convidados!

 Eu já lá pus os butes, na França de Bragança, na quinta do Azevedo, e bibu no Porto, que é longe como o carago!... O nosso alferes faz o favor de continuar a ser meu amigo e camarada. 
 ironizou o "Campanhã" que continuava, amiúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul, os "mouros". 

No fundo, todos aqueles homens, a caminho do meio século de existência no bilhete de identidade, sabiam que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, imperceptíveis, do futuro no século XXI que se aproximava a passos de gigante, deveriam perturbar aquele insólito e fugaz mas inesquecível encontro de umas escassas dezenas (não mais do que trinta!) de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do almoço (e depois de uma nova rodada de uísques, de uma Old Parr de 1970, que o "Vagomestre" trouxera de lembrança, daquelas garrafas ainda com a etiqueta "From Scotland with Love For  the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto, a bizarria ou o azar de se lembrar de evocar os mortos da Companhia...

 Agora é que foderam tudo, c...! –  exclamou, em voz alta e pose teatral, o  "Campanhã".

Comentava o Neves que nunca conhecera nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: "nenhum actor, nenhum pantomineiro, com lágrima tão fácil como a dele"... Ele e o "Peniche" eram verdadeiros "artistas" da palavra e do sentimento, nunca se sabendo ao certo quando falavam "a sério" e abriam o "livro"...


Fez-se um "minete de silêncio"  (uma infeliz bocarra do "Campanhá") pela memória do "Peniche",  o "bobo da Companhia" e que, na "peluda", ainda chegou a ser  um popular mas meteórico  artista de cabaré.  O Peniche, "ofendido e humilhado", com 4 ou 5 anos de tropa no lombo, de tal modo que  o capitão desistira, logo no início, de lhe dar mais "porradas"....

Falou-se pouco da guerra. E de mortos e feridos. E de minas e armadilhas. E de colunas logísticas. E de emboscadas. E de operações. E de ataques e flagelações ao quartel e aos destacamentos da Companhia, que era de quadrícula. E de prisioneiros e de interrogatórios de prisioneiros... 

Enfim, havia um lado "sujo" da guerra que ninguém queria relembrar, pelo menos naquela hora e lugar. E o Neves, surpreso, descobriu que, nestes convívios, a generalidade da malta só queria falar afinal das coisas boas da guerra, as tainadas, as bezanas, os desenfianços, as bajudas, as lavadeiras, as anedotas...

Por outro lado, nenhum destes "bravos da Guiné" fora condecorado por feitos em combate, à exceção do "Campanhã" que, esse, sim, tivera uma cruz de guerra do Spínola depois de, "em luta corpo a corpo", ter "limpo o sebo" a um roqueteiro do PAIGC que, atrás de um bagabaga, se preparava para arrancar a cabeça do Azevedo. 

Esta foi, pelo menos, a versão do "Ranger" que, sendo o segundo comandante da companhia e o comandante da operação, fez o relatório do sucedido e foi, em abono da verdade, advogado em causa própria... (Sendo embora um bom operacional, gostava sempre de ficar bem na fotografia!...)

O "Campanhã" fazia parte da 2.ª secção do 1.º Grupo de Combate, que era comandado justamente pelo "Ranger" Azevedo. O "Campanhã", que era reconhecidamente um grande operacional, um "chanfrado dos cornos" (sic), também manteve sempre essa versão oficiosa que alguns, talvez "com dor de corno", consideravam no mínimo "fantasiosa"... 

O Neves lembrou que não podia confirmar ou infirmar os factos que ocorreram nessa operação. Estava com paludismo nessa ocasião, safou-se desse embrulhanço mas não de outros, que não foram melhores. Era o comandante da 3.ª secção.  

O Neves era o único furriel do 1.º pelotão. Os outros dois foram mais espertos do que ele, e procuraram outros ares. Não apareceram no convívio, para conforto dele e tranquilidade do seu espírito. Claro que o Neves, mal humorado, também fez questão de dizer, alto e bom som, não tinha mesmo vontade nenhuma em revê-los, sobretudo ao Pires, que desertara, aproveitando a licença de férias na metrópole, em 1970, segundo notícia que lhes dera depois o capitão, e que deixara a malta toda  "descolhoada" (sic)... Nada o fazia prever, nem nunca ele tinha dado a entender que o poderia fazer... Para a rapaziada que veio com ele, de Santa Margarida, o Pires era o exemplo do mais que improvável desertor: um gajo certinho, pouco ou nada falador, amigo do seu amigo, que sabia "fazer as  coisas pela calada"...

De qualquer modo, o Neves sempre achou que a cruz de guerra, "com mais ou menos água benta da caldeirinha do padreco do Azevedo", ficava bem no peito do bravo "Campanhã".

Ao que parece, a 1.ª secção do 1.º pelotão já estava na "zona de morte" de um grupo IN emboscado, com o Azevedo e o guia  à frente. O "Campanhã", que vinha com a 2.ª secção, na curva do trilho, viu de relance, de perfil,  o tubo do RPG2 a sair do bagabaga, com a granada pronta a disparar.

 Parecia um c... das Caldas, a sair do forno, a passo de caracol. Só tive tempo de gritar: Todos pró chão, seus c...!', e disparar uma rajadada, a matar, sobre o vulto que estava, de pé,  por detrás do bagabaga. Despejei-lhe um carregador sobre o tronco, visto de perfil...


Não terá havido nenhuma luta corpo a corpo. Mas quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto... O "Campanhã" recuperou apenas o RPG2 com a granada e salvou a secção do Azevedo de um massacre. Este ficar-lhe-ia reconhecido para o resto da vida... Ainda hoje são amigos e o "Campanhã" é visita da sua casa em Bragança... No relatório, redigido e assinado pelo Azevedo, "o IN teve várias baixas, uma confirmada e 2 estimadas, pelos rastos de sangue"... 

O Neves recordou, para um grupo mais restrito, à mesa, o gozo interior, e o ar sereno, do "Campanhã", quando recebeu, de peito inchado, a cruz de guerra e o capitão lhe voltou a pôr as divisas de 1.º cabo, no 2.º ano da comissão, já o "nosso primeiro" tinha seguido para a grande escola de cabos de guerra de Águeda...

 Tenho pena que esse 'cão grande'  (sic) já não esteja aqui entre nós... Fazia questão de lhe enfiar a cruz de guerra pelo cu acima e depois mandar-lhe uma traulitada direta à caixa dos fusíveis ... - disse-me ao ouvido do Neves, no gozo. 


Naturalmente que o amigo (e camarada de pelotão) desculpava-lhe este lado de fanfarrão a que também têm direito os heróis de guerra. Aliás, também, naquele tempo, não havia assim tantos heróis de guerra por metro quadradao: o "Campanhã" fora um deles e o Azevedo nunca chegara a sê-lo, com muita pena dele.

O Neves ainda voltou a um um outro convívio da companhia, já no virar do milénio... E num deles reencontrou o capitão, então já coronel, na situação de reforma. Ter-se-á emocionado, o antigo capitão, quando evocou as trágicas circunstàncias em que foi morto o primeiro homem da Companhia, logo nos dois primeiros meses de Guiné... Estavam emboscados, de noite, quando há um militar que sai da sua seção para ir "arriar o calhau" (sic), sem dizer nada a ninguém e quebrando a rigorosa disciplina imposta... No regresso, ao ouvir restolhar o capim, o capitão instintivamente disparou uma rajada... Teve uma agonia horrorosa, o pobre soldado, durante quase uma hora, sem possibilidades de ser helievacuado... 

− "Herói ou santo", parece que era o lema de vida do Azevedo, já do seu tempo de menino e moço. Nunca foi uma coisa nem outra, e soube, entretanto, que infelizmente já morreu há dois anos, em 2011... E o nosso "Campanhã", também infelizmente, está em Custóias, à espera de julgamento.  Foi um choque para todos nós a revelação da sua vida dupla.  Uma vida madrasta.  Esperemos poder voltar a abraçá-lo, de novo, o mais 
breve possível.  Quero crer na sua inocência. 

De resto, o Neves nunca mais estivera com nenhum deles, o "Ranger" e o "Campanhã",  depois do convívio na Anadia, em 1991. E também não tinha podido ir, no ano seguinte, a França de Bragança, como ele escrevera, em email enviado ao organizador do convívio de 2013, no Porto.

No discurso, de improviso, que fez no Porto, à hora dos brindes, nesse convívio de 2013, o Neves (que não era dado a tiradas patrioteiras) disse tudo o que achava que se podia dizer sobre estes encontros de saudade, dos ex-antigos combatentes da Guiné:

Em verdade, nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam ter existido: afinal, essa guerra nunca existiu e, se  chegou a existir, nós perdemo-la, justamente por falta de heróis improváveis como o "Campanhã" ou grandes combatentes como o nosso "Ranger", que nem sequer foram reconhecidos. De qualquer modo, honra e glória para eles!... Mas, em boa verdade, não foram heróis, não se consideravam heróis... Foram portugueses que apenas cumpriram o seu dever para com a Pátria, que está sempre acima de qualquer regime político, souberam fazer a guerra mas também a paz. E nós todos, aqui presentes, neste convívio, não passamos afinal de bons rapazes que, agora, no ocaso da vida, se juntam para  beber uns  copos,  conviver e matar saudades do tempo perdido. Mas ficámos  amigos, isso sim, ficámos amigos para sempre, citando o nosso saudoso "Ranger".

© Luís Graça (2007). Última versão, revista e melhorada: 19/7/2023.
__________

Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:


26 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24433: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (2): Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!

8 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24379 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (1): À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas.