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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5748: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (23): Colonialismo... jamais... jamais...

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 24 de Janeiro de 2010:

Caros Editores:

Será sina vossa aturarem-me a esta hora ou mais tarde? É, salvo erro, o terceiro dia ou noite seguido(a).

Aí vem ele... quem???... o chato do.... e desta, o que é?... jamais??... e procura o Luís Graça no crioulo e o Vinhal coça a cabeça e pensa... pifou... jamais?'... o MR diz: - O gajo andou por Lamego mas não é RANGER... iá...

Aí vai um escrito género açorda depois de noitada de borga... coisas do Alentejo... donde parti e olhei para trás chorando/alentejo da minha alma/tão longe me estás ficando...

Agora vou a Mansambo... passa-se algo.

Abraços para vocês do,
Torcato


JOANITO: Colonialismo, jamais… jamais…
por Torcato Mendonça

O Joanito e o Ohtu encontraram-se já em fim de tarde, tarde de domingo.

Espera. Pára, caramba... Quem era o Joanito e o que é isso de Ohtu?

É do PDI. Cuidado com hipotéticas confusões de iniciais: PDI!

Joanito era rapaz de olho vivo, estudo de primária mal alinhado, emprego de ocasião. Melhor, preferência pelo biscate leve e rentável. Ia assim crescendo enquanto a penugem já quase lhe desaparecia da cara.

A mãe estava a ficar farta daquele filho, daquela ovelha tresmalhada de seus filhos. Pensou, pensou e resolveu despachá-lo para África.

Lá vai Joanito ao encontro de um Tio, comerciante e senhor de outros interesses numa parcela do Império. Homem de poucas falas e mais de actos e factos.

Joanito chega e o Tio recebe-o com friamente. Põe logo o rapaz a trabalhar. Mas o rapaz não gostava de trabalho e logo começou a magicar na sua vida, a dar voltas, a tentar esquemas. Só que ali era diferente e o Tio, olhar frio, homem de actos e factos, trabalho duro e de pouca conversa, de pronto viu o conteúdo da encomenda enviada e passou à acção. Rapidamente falou com Capatazes de uma Companhia do norte e para lá enviou Joanito.

Aí estava agora Joanito a trabalhar numa espécie de escritório, ouvindo ordens aos berros, gritos e lamentos, falando com homens de chibata à cinta e, se necessário, tratado com dureza. Pensava, pensava e não sabia que fazer. Fugir nem pensar, teria logo cães e pisteiros à perna... E fugir para onde ?

O tempo passou. Esperto como era, foi entrando no jogo, na adulação, na mesma forma de vida e acabou recompensado. Foi tomar conta de uma cantina. De tudo se vendia, em tudo desviava uma parte para os patrões e uma pequenina, muito pequenina, para ele.

Joanito quase se sentia gente. Era branco, caramba. Comprou uma bicicleta, pasteleira velha meio enferrujada e ruidosa no rolar. Não se importava e, nos poucos momentos de descanso, lá se distraía, dando voltas ao redor da pequena aldeola. Só que pedalava, pedalava e isso cansava-o. Aborrecido.

Um dia pedalava Joanito e viu um dos mainates da cantina. Rapaz alto e forte, curioso, sempre atento e, sem nas vistas dar, a aprender e a apreender tudo. Joanito parou e berrou:
- Ohtu, Ohtu, anda cá.

O negro veio com o seu sorriso.
- Ohtu, tenho um trabalho para ti. Para já a partir de hoje começas a chamar-te Ohtu, depois começas a empurrar a bicicleta.

Assim foi. Joanito passou a andar mais de biccleta, sentava-se e o Ohtu empurrava, escorrendo suor e praguejando entre dentes.

Joanito berrava:
- Com mais força… mais força… e um dia ainda vamos à cidade ver o Índico. Força, meu sacana de merda, nem para trabalhar prestas.

Othu nada dizia. Empurrava, suava e em cada dia que passava, mais aprendia e apreendia. Aos poucos, sem dar nas vistas, ia lendo e escrevia tudo em pequenos papéis.

Um dia Joanito gritou:
- Ohtu, Ohtu - e nada. O negro desaparecera e levara uma parte, uma ínfima parte, do que Joanito desviara.

Joanito queixou-se dizendo que o negro desaparecera e nada mais. Em vão o procuraram. Anos depois diziam ter ido juntar-se à guerrilha.

Indiferente para Joanito mas, esperto como era, sentia os ventos da mudança e começou discretamente a preparar, ele também, a sua fuga.

Mal os sons de independência cruzaram os ares e já Joanito estava noutro país e, tempos depois, no seu.

Dizem que Ohtu voltou à já abandonada Companhia e procurou Joanito. Dele nem rasto. Só ficou um carro meio rebentado e poucos pertences na casa abandonada.

Joanito, tantos anos depois, ainda vive. Está num Lar como peça descartável, sentado num cadeirão com almofadas aos lados a ampará-lo.

Baba-se, diz palavras sem nexo. De quando em vez aparece um enfermeiro ou auxiliar. Joanito babando-se tenta gritar:
- Ohtu, Ohtu, preto de merda, empurra… empurra… - E cala-se cansado.

Ali fica, babete sujo e pijama mijado… pret… d…

Colonialismo, jamais… jamais…
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5740: Blogoterapia (141): Pensar em voz alta: Fotos esquecidas, imagens de gentes de outrora (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5741: Blogoterapia (142): Aquela janela virada para o heliporto (Jorge Teixeira/Portojo)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5740: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (22): Fotos esquecidas, imagens de gentes de outrora

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Meus Caros
Voltei a ver e guardar melhor fotos que arrumei há dias. Fotos esquecidas, fotos que, de certo modo, provocaram recordações de definição difícil, ou, se o faço direi serem pouco agradáveis. Imagens de uma parte de meu passado.

Militar, Guiné, guerra.

Tudo junto a influir num comportamento, de certo modo, pouco consentâneo com a dita normalidade. Vidas de minha vida. Ou as metamorfoses de um jovem, o claudicar a regras que lhe foram impostas. Regras a vergarem comportamentos futuros ou mentes fracas?

Há escritos aí a necessitarem serem passados à tecla. Adia-se e de repente sai este, sentido, a questionar ainda hoje a influência da vida militar em mim.

Segue o texto e, como sempre terá o destino que entenderem. É vosso.

Abraços, bom fim de semana,
Torcato


IMAGENS
Começava a ficar cansado de arrumar tanta fotografia.

Primeiro foram os slides e recordou certa parte de seu passado.

As fotos falam, dialogam se as olharmos bem. Aparecem acontecimentos de outrora e deixamo-nos embalar nessas recordações. Boas, más, nem uma coisa nem outra? Difícil de nos serem indiferentes. É sempre uma marca do passado.

Como faltavam tantos slides? Recordou então o que acontecera. Fora mau, demasiado mau e aparecia agora, mesmo tantos anos depois em dramáticas recordações, os sons do crepitar das chamas, os gritos de dor, dramático agora, neste momento do presente. Como reagia ele nesse tempo longínquo, aquando dos acontecimentos? Com frieza, com a brutalidade que entrara por ele adentro, com a indiferença por valores que anos antes respeitara. Agora já não, agora não eram valores, agora eram fraquezas.

Desviou o pensamento. Recordou outra perca anos depois, muitos anos depois de outra perca, outra fogueira a entrar na sua vida e perdeu relatórios, livros, projectos em arquivo, fotos e slides de trabalho. Tudo se fora em menos de uma ou duas horas. Porque tinha esta má relação com o fogo? Ou seria uma purificação, um apelo a começar de outro modo?

Que interessava isso agora? Tantas fotos por arrumar ainda. Abriu mais um envelope e parou. Que era aquilo, porque estavam aquelas fotos ali, porque não desapareceram tantos anos depois? Olhou bem o envelope e nada dizia. Não se recordava de as ter guardado. As fotos foram passando lentamente entre os dedos, as imagens entrando olhos dentro, as recordações a virem fortes, demasiado fortes quase se transformando em acontecimentos, não de quarenta anos, mais muitas delas, mas em acontecimentos quase de presente.

Parou depois de ter espalhado as fotos pela mesa. Era doloroso agora rever aquelas imagens. Ela aparecia sorridente, cabelos caídos em ondas largas e olhava a objectiva ou olhava-o ou juntos apareciam numa ou noutra.

Recordava agora aqueles cabelos, aqueles olhos verdes que se fundiam com o seu olhar. Olhar de carinho, de desejo, simplesmente olhar entre pessoas que se dizem amar e trocam promessas. Tantas promessas em juras de fidelidades eternas.

Não, não, isso não. A provar isso ali estavam uma e depois outra foto a atestar a infidelidade, a fuga dele a compromissos, a prisões, a querer sentir-se liberto de ou do nada.

Porque estavam ali as fotos que esquecera. Não as imagens de quem representavam. Sem querer começou a encontrar desculpa na vida militar, na passagem pela Guiné, no enganar-se ainda agora a ele mesmo.

Certo é que a guerra provocou o fim de uma ou outra relação. Certo é que a deriva dos tempos a seguir à vinda também ajudaram. Certo é que hoje, naquele momento não queria ainda assumir culpas, assumir o desejo de voltar a encontrar quem estava naquelas fotos, naquelas imagens. Porque sentia a cabeça a latejar? Apetecia-lhe um cigarro. Não, há anos que não fumava. Um uísque também não.

Arrumou devagar as fotos e esperou pensando em muito do que acontecera.

Onde estariam agora? Que interessava isso? Porque não? Não ia começar de novo ou ia?

Afagava lentamente as fotos e metia-as num álbum da Guiné. Não era a esse tempo que pertenciam? Não fora por ter lá estado que tudo acontecera? Ou eram desculpas?

Voltou a ver as fotos, a rever, a recordar quase uma a uma. Acabou à momentos de o fazer, passada já cerca de uma semana e resolveu guardar bem fundo, mais uma recordação, uma montanha de recordações a ficarem bem fundo.

Recordações de um tempo que sendo ele não o era bem. Desculpas, sempre desculpas.

Eram fotos, simples imagens, imagens de gentes de outrora, gentes que foram passado. Onde estarão? Porque…

Imagens, imagens!

Fnd/22 Jan/010 – 23H50
TM
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5735: Blogoterapia (140): Pensar em voz alta: E agora? (Torcato Mendonça)

domingo, 31 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5735: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (21): E agora?

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Caríssimos Editores
Parou a chuva e veio o frio. Tempo de inverno.
Estava a ler o Expresso, vício de sabado, só que estava enfadonho, aborrecido, reportagens e artigos de opinião confusos e chatos. Sempre o mesmo e não saem disto!

Voltei ao Blog e lembrei-me deste escrito de tempos de confusão. Teclei. E agora? Mando ou não? Ontem foi um em crise de momento. E Agora? Vai! Aí vai então a difícil adaptação... em "português suave"...

Abraços do Torcato


E AGORA?

O carro, um 2 Cv cinzento e velho, rolava, em esforço, estrada acima.

Eu, sem carta de condução, tentava vencer aqueles três ou quatro quilómetros até um cruzamento com estrada secundária.

Dois meses antes, nem tanto, ainda estava na Guiné. Agora, cá estava tentando a difícil adaptação à vida civil, à minha verdadeira vida, interrompida por breves anos plenos de fortes vivências. Anos de mudança, de formação de um outro eu. Seria isso possível? Teria havido essa metamorfose? Ainda hoje, tantos anos depois, não sei. Sabia, nesses tempos de regresso a necessidade de encontrar o outro eu. Estava longe, em parte esquecido e maltratado. Seria possível recuperá-lo? Certamente que sim, mesmo retocado iria aparecer.

Difícil. Sentia ser difícil.

Entretinha-me calmamente a passar o tempo; tirava a carta de condução, passeava ou vagueava por uns dias e voltava mais leve, mais próximo de “eu” de outrora. De quando em vez, talvez vezes demais, deixava-me embalar docemente nos vapores do álcool. Suavizava um pouco em ilusão e, quantas vezes não acabavam em confusão.

Pensava, pensava e não encontrava resposta convincente:

- Que vais fazer agora? Recomeçar os estudos, voltar para a vida militar, encontrar ou aceitar algum dos empregos que me iam prometendo?

O melhor era esperar, somente esperar e ordenar ideias. Estava confuso, com falta de poder de concentração, parte de mim ainda não regressara. Confuso!

Um exemplo, como se fossem necessários, foi um torneio de xadrez. Inscreveram-me e ainda fiz duas ou três partidas. Não conseguia e desisti. Olhavam-me com espanto e pensavam estar em presença de outra pessoa. Não, não estavam. Não conseguia concentrar-me.

Quase sem dar por isso aí estava o cruzamento da estrada secundária. Fui por ali fora, por aqueles quilómetros de rectas, por paisagens conhecidas e revisitadas sempre com alegria. Observava tudo, cantarolava e o vento frio batia-me no rosto depois de entrar pelos buracos daquela “caranguejola”. Podiam ter-me emprestado melhor objecto.

Assim dava-me tempo de ir saboreando a paisagem, as mudanças provocadas pelo regadio, os pinheiros mansos e os estúpidos eucaliptos, tudo numa charneca onde o gado já aparecia. Só que o frio entrava e arrefecia. O frasco de bolso com a “1920” ajudava dele tirando dois ou três goles.

Ronceiro o 2 CV lá ia estrada fora, novo cruzamento, umas curvas suaves e aí estava a povoação e o mar logo a seguir.

Parei no parque e deliciei-me a ver aquela imensidão de mar, tanto mar e que saudade tinha tido dele, estava no meu sangue.

Sempre que necessitava de repousar, pensar para decisão, relaxar simplesmente ali me sentia mais seguro e reconfortado ou protegido. Ainda hoje e dele vivo longe.

Ali estava ele estendido até ao infinito do momento e trazia-me a paz a pensar, ajuda na decisão mas não a resposta à angústia do momento:

- Agora que vais fazer?

Não obtinha resposta e o mar, calmo ou tormentoso, só ia e vinha estendendo-se preguiçosamente na areia ou batendo mais forte nalguma rocha negra e xistosa.

Apareceu um casal de namorados a ver a paisagem. Acenaram e fiz o mesmo. Pus o carro a trabalhar e voltei. Deixava a paisagem só para eles.

No regresso pensei em confusão e, porque não, em revolta no comportamento da maioria das pessoas sobre a guerra no Ultramar. Se tinham familiar lá preocupavam-se. Caso contrário alheavam-se, ou, pior ainda, diziam barbaridades. Estão lá para os militares ganharem dinheiro, não acabam com a guerra porque não querem e outros comentários.

Por vezes perguntavam onde eu tinha estado. Guiné; respondia.

Não se atreviam a dizer coitado. O comentário geralmente era: Azar, se ainda fosse Angola ou Moçambique. Geralmente não respondia, a cara, o sorriso amarelo ou o olhar tudo diziam. Vivíamos em ditadura, tínhamos falta de informação mas, esse desinteresse não justificava tudo. Hoje, dizem que vivemos em democracia e não devia ser diferente a atitude.

E Agora?

Esperava, ia outra vez a Lisboa? Voltava sempre ao mesmo. Só que Lisboa tinha tanto para ver, tanto para recuperar do tempo perdido. Enfim.

Esperava, ia tratando de assuntos pendentes e tentava encontrar o caminho a seguir. Adaptar-me com calma e recuperar o tempo roubado, procurando não ser boémio mas ir vivendo…calmamente.

E tu Camarada não foi difícil a tua adaptação à vida civil, à tua verdadeira vida?

Não? Então felicito-te.

Desculpa, percebi mal. Foi difícil, foi aos poucos. Então compreendes o que comigo aconteceu. Juventudes interrompidas ou roubadas.

Pergunto ainda: dormias bem, tentavas esquecer e conseguias ou, ou de quando em vez, sentias estar lá?

O tempo foi esbatendo, apagando cada vez mais. Até certamente pensaste, como eu – a guerra acabou para mim. Quando sentias situação de perigo, te diziam frase menos correcta e não só; - diz lá camarada, diz a ti, sentias como eu e voltavas lá. Pois!

Vai connosco, vai connosco vida fora e, para despertar basta o toque do clarim e estamos lá. Contudo algo ficou, algo só nosso, algo que só nós compreendemos e a nós diz respeito e perdurará até ao fim: a camaradagem, a amizade e solidariedade.

Nem tudo foi mau ou tempo perdido.

TM
__________

Notas de CV:

(*) Ver postes de:

23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5697: Controvérsias (62): Colonizar versus descolonizar (Torcato Mendonça)

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4963: Blogoterapia (126): Pensar em voz alta: Em noite e dia de "cerrar dente" (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 26 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5713: Blogoterapia (139): Vencer os Traumas de Guerra (Joaquim Mexia Alves) / Recordar é viver (António Rosinha)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5281: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (20): (Im)possível regress(ã)o

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça > Duas Fotos falantes... do seu álbum. A (im)possível regressão...


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados.


1. Mensagem do Torcato Mendonça, Fundão, 26 de Outubro de 2009 :

Caros Editores

São inquietações, dúvidas e outros temores de uma manhã de domingo. Muda a hora e a madrugada e nós vivemos duplamente a hora. Como, e porque não no relato do facto há muito passado? Com que direito ou quem me deu o direito a esse relato?

Ontem fui 'garatujando'... hoje para não me desiludir com o meu Benfica, erro meu, fui teclando e aí vai esta inquietação.

Ah, o Benfica ganhou 6-1 (1 foi fora de jogo) e eu creio não estar louco.

Abraços fortes e fraternos do,
Torcato



2. Blogoterapia > REGRESSÃO PROIBIDA
por Torcato Mendonça

Sento-me, na manhã ensolarada de fim de Outubro, domingo de mudança de hora e não sei se estou no antes ou no depois. Estou.

Entretenho-me, lentamente, a tomar o pequeno-almoço, a sentir o calor outonal a vir da varanda fechada, a ver a encosta da Gardunha a desmaiar o verde e lá no alto, as nuvens ralas a deixarem-se atravessar pelos traços rectilíneos dos poucos aviões que passam. São poucos hoje, porventura como eu perderam a hora. Não perdem certamente o destino; uns para Lisboa, outros para essa Europa de minha saudade. Há tempo, há tanto tempo, demasiado até que não cavalgo o céu num voo qualquer.

Mesmo sem o querer, sem sentir volto à Europa e logo regrido mais e estou em África. Não queria lá voltar e volto. E estou, sem o querer num passado longínquo. Trago ao presente o que queria ser o vazio, o nada, o esquecimento. Volta sempre e vivo-o como a hora da madrugada de hoje que se finou para, de pronto, recomeçar a ser ela de novo. Vêm-me ao presente os ontem de há muito. Este não se passa logo ali. Não, este cristalizou num recanto bem fundo da memória, num pequeno espaço e volta sempre.

Porquê? Não sei. Ficou lá e foi desvanecendo, esvaziando e um dia começou a encher, a vir cada vez mais forte, violento e claro. Protestou por tanto tempo ter sido reprimido e acabou por ser aceite.

Mas questiono-me: como me atrevo hoje a relatar essas vivências passadas sem pudor, sem ter certezas absolutas do correcto relato desses factos. Porquê e para quê? Porque o faço?

Ainda há dias, depois de muito tempo sem nada relatar, o fiz: escrevi, relatei o facto vivido há muito e depois, mais abertamente até dele falei.

Pior ainda, foi lido por não sei quantas pessoas e até falei com uma: a personagem do relato e ele foi ler.

Depois ligou e falamos, falamos e revivemos esse passado e outros por nós vividos, jovens estudantes, jovens a viver a vida alegremente ou, mais tarde mais tristemente e de verde vestidos. Dizia ele:
- Como te lembras de ditos tão meus ? Onde escreveste isso?
- Não escrevi. Guardei num recanto da memória. Parece que ficou marcado com ferro em brasa. Género ferra de gado, lembras-te?

E continuamos a recordar e a esperar pelo encontro da Companhia. Este ano em Évora. Talvez antes, talvez antes o abraço na Pax-Júlia da nossa juventude (*).

Mas temo cada vez mais em escrever, em contar esse passado. Ainda por cima de forma tão intimista.

Será que temporal, factualmente, está correcto e não incomodo ninguém? Que direito tenho eu? Porque e para que escrevo então?

Já nem sei o porquê de trazer ao presente esse passado, essa parte de meu passado, não tão agradável assim e nada digo, nem me atreveria a contar outras partes de um passado que, sem vaidade, valeu a pena viver.

Trago ao presente o momento. O presente não é mais que o breve momento, o instante e logo passa a passado. E esse relato interessará a alguém? Fica a dúvida, o vazio, o nada e a incerteza. Então porque torná-lo presente?

Ah porque não esqueces? Descrevendo-o deixa de ser vazio, alivia e, mesmo não vivendo duplamente a hora como a de ontem, encontro mais tranquilidade. Será? Não sei. Talvez seja um regredir proibido.

[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5140: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2330) (9): Mistura 79 ou quando tive que mandar o Manel a Moricanhe...

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4963: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (19): Em noite e dia de "cerrar dente"

1. Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69, com data de 9 de Setembro de 2009:

Caro Carlos
Parece que continuas de serviço. Certamente apanhaste alguma porrada e nós não sabemos.

Há muito, muito tempo que não escrevia nada e não escrevi. Acontece que arrumei escritos e eteceteras para facilitar formatações e novo alinhamento na informática.

Estou, pensou eu, novamente de saída. Como bom Mouro vou até terras de moirama. Apalpo a areia, ponho o velho lenço avermelhado, mais grenad, com as luas, em quarto crescente ou minguante, as estrelas e outros simbolos do Islão e, quando o Sol aquece muito derramo água pelo lenço turbante - há dias atrás postaste uma foto minha com um lenço, esse era o azul da Cart, na cabeça - Gostos. Refresca...

Isto tudo para te dizer que devo voltar a sair; que falam nos médicos, e bem, mas há um, infelizmente desaparecido, que eu recordo com saudade: - o David Payne. Ia para as Companhias no mato. A prova está numa foto dele a fazer pequena cirurgia, quase á luz da vela na minha Cart. Foi médico do Bat 2852 em Bambadinca 68/69. Padrinho do Mário Beja Santos, creio eu, quando estava já em Bissau.

E,nas arrumações, encontrei esse escrito de Fev/09. Teria sido enviado? Perguntei-lhe mas ou por indisposição ou mau feitio nada disse. Sacana. Anexo o dito.

Um abraço forte, não tamanho de nada, só forte e fraterno. Estendo outros aos restantes Editores e a todos os Camaradas desta Tertúlia enorme.

Um abraço Carlos Vinhal do Torcato



Pensando em voz alta em noite e dia de “cerrar dente”!

1 – Pergunto, não ao vento, mas às horas que passam, na noite calma, no silêncio, quase em misantropia, respostas para interrogações e dúvidas minhas advindas de transformações, divergências, nas diversas maneiras de relatar o facto ou o acontecimento vivido.

Não podemos ter a pretensão da igualdade do relato, individual, se foi vivido colectivamente. O relato posterior diverge sempre. Parece-me natural e até desejável que assim seja. As contradições, se analisadas calmamente e em busca de consenso, a maioria, são, desde logo superadas. Outras, fruto de orgulhos ou outros sentimentos menores, tornam os relatos irredutíveis no consenso. Dispensáveis e, salvo se houver a pretensão de tornar a discussão absurda, nunca se encontra a verdade. Subsiste ainda o esquecimento fruto do passar dos anos, décadas no caso vertente, e à consequente evolução do nosso próprio pensamento. Ou seja: o relato, dos factos há décadas passados terá que ser forçosamente relatado, não só em apelo à memória mas à maneira ou à forma do pensar de outrora. Difícil? Evidente. Mas assim aproximamo-nos mais da realidade passada, vivida e, se relatada, mais próxima do acontecido.

Em fundo tenho música tirada do Korá mandinga de Braima Galissá.

Estou louco? Não. Se assim pensas é porque não viveste o que eu vivi. Vidas!

Mas no futuro, que se quer breve pois há muito tempo perdido, têm que se discutir com frontalidade e objectividade certos temas.

Porque não já hoje?

Não particularizo qualquer caso. Todos nós pensamos, de imediato, num ou noutro. O blogue, este sítio é certamente o lugar para se contarem estórias, analisarem acontecimentos controversos e, por isso mesmo, serem contributos válidos para a história da guerra da Guiné. Não só da guerra mas de vários assuntos que necessitam ser tratados. Não posso dissociar a guerra da Guiné da guerra colonial noutras frentes. Só que aqui é, quanto a mim, preferível ser tratada, por quem viveu lá os acontecimentos e faz o seu relato.

Outro ponto é este tratamento ser feito por militares não profissionais. Nada tenho contra a Instituição Militar ou os profissionais. Vinquei em mim certa maneira de pensar, certo tipo de comportamento que se deve a esse tempo e, ainda hoje, se mantém. Pode e deve ser discutido também por profissionais. A guerra não era feita por eles? Evidentemente que os profissionais eram minoria e faziam comissão atrás de comissão. Aliás muitos profissionais dão aqui o seu contributo e, muitas vezes a eles se recorre no tirar de certas dúvidas.

Isso é assunto a merecer um tratamento e uma discussão própria. Parece-me, no entanto, que é assunto de consenso.

De quando em vez aparece um assunto ou um tema a suscitar maior divergência, por fugir do habitual;

De quando em vez fica o relato, a divergência a merecer um maior aprofundamento;

De quando em vez este blogue parece um bi ou tri blogue, devido a diversidade de assuntos tratados;

Não de quando em vez mas sempre, é obrigatório encontrar o consenso.

Utópico?

Não, nada disso. Entre Homens que têm um laço comum tão forte, não pode ser de outro modo.


2 – Há muito tempo que, através do Paulo Raposo, surgiram cinco questões. Não consegui reflectir e encontrar respostas do meu agrado.

Assim vou voltar a elas e responder o mais sinteticamente possível. Tentem…

i) - O heroísmo do soldado português;

R: Foi grande. Os heróis principais já não estão entre nós.

ii) - A confiança que os soldados depositavam em nós, quadros;

R: Certamente que tinham. Haveria excepções? Penso que sim mas desconheço.

iii) – A nossa passagem por África, que benefício social, económico trouxe a Portugal;

R: A certos grupos económicos certamente que muito. Foram cinco séculos de Império… ao Zé soldado… pouco ou nada. Deve ter havido excepções para validarem regras. Difícil a questão e, se respondida dava resmas de papel.

iv) – A religiosidade, de então e actual, e o porquê da diferença;

R: A de resposta mais difícil para mim. Convivi com homens de fervorosa religiosidade, homens do Norte. Outros, de outra Fé, Muçulmanos, de igual e forte religiosidade.

Mas os Deuses ou Deus, Pai de todos porque deixava os seus filhos serem tão maltratados? Isto ontem. Hoje haverá diferenças? Creio que não!

v) – As nossas famílias, que amarguras passaram por cá aquando da nossa ausência;

R: Muita creio eu. Muita mesmo. O sofrimento foi enorme.

Não quero escrever mais sobre esta questão. Arrepia-me.

A partida em sofrimento terrível (não quis a minha família presente) mas vi cenas inesquecíveis; a comissão; a alegria, quantas vezes a falsa alegria, da chegada. Depois, e mais importante: os deficientes e os que não vieram.

Muito difícil responder e não se diz nunca tudo. Bem colocadas as questões, pela abrangência e a profundidade.

Responder honesta e frontalmente eram muitas folhas. Parabéns Paulo e obrigado pelo que me fizeste reflectir, pensar e tentar, sem nunca responder. Se o não fizesse, assim tão levemente ficava mal comigo. Respondo assim e alivia muito pouco. Mexe connosco.

E tu Camarada? Respondes facilmente?

Não entro no caso do dia. Eu e os Homens que comandei, branco e negros, Homens portanto (só há uma raça a humana), combatemos com dignidade, estivemos não sei quantas horas debaixo de fogo, muitos foram feridos, alguns morreram de arma na mão, outros juntei os bocados. Quase todos voltaram connosco, pois a esta Terra pertenciam. Outros ficaram lá na sua Terra e alguns foram fuzilados. Porquê? Porque combateram comigo e com outros como eu. Fomos Camaradas, somos Camaradas e a justiça está por fazer.

Quase todos, os que voltaram foram recebidos em alegria. Muitos adaptaram-se mal à nova vida e, mesmo hoje ainda sofrem cerram o dente, muito docemente, muito passivamente choram por dentro em raiva surda. Até um dia Camarada, há sempre um dia de acertar contas, fazer justiça.

E, não erro certamente, se nos juntássemos um dia, lá, haveriam abraços com lágrimas. Porque os Homens também choram e era encontro de Irmãos.

FND, 25 de Fev 09
__________

Notas de CV:

Vd. último poste de "Pensar em voz alta" de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3648: Blogoterapia (82): Pensar em voz alta: Guileje ainda é cedo, Saiegh 18/12/78: foi há trinta anos...(Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4922: Blogoterapia (125): No dia dos meus anos, brindei à amizade e à camaradagem forjadas em tempo de guerra (José Martins)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3648: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (18): Guileje ainda é cedo, Saiegh 18/12/78: foi há trinta anos...


MEMÓRIAS ou PENSAR em VOZ ALTA


Torcato Mendonça



1 - Não sei ao certo se “Penso em Voz Alta” ou o faça só para mim.

Pensar só para mim foi um recalcamento de anos. Um esconder, um calar uma parte do meu passado, tão curto e tão intensamente vivido.
Uma Memória, uma velha, cada vez a ficar mais velha recordação da passagem pela guerra da Guiné.
E porquê? Para quê tentar esconder ou recalcar essa memória que, em nada envergonha essa parte, enquanto jovem, do meu passado. Pelo contrário.
Por isso:

Hoje, pela manhã abri o Blogue e li ao rolar do rato. Apareceu Peniche e o “Cerro do Cão”. Parei a pensar um pouco, somente um pouco. Afazeres e compromissos vários, obrigaram-me a sair. Não me impediram de pensar.

Agora, com a noite fria a bater lá fora gelando esta Cova entre serras, recolhi ao lar e reli o texto. Mais calmamente e, curiosamente ou nem por isso, identifico-me com que lá foi escrito.
Senti essa maneira de pensar e recordar o passado, certo passado comum a tantos homens. Não só no apelo á memória e a torná-la presente, mas também o encontro com velhos companheiros ou camaradas, daquela parte comum de vida. Depois conviver novamente em recordação desse passado e, aos poucos, sentir a alegria do encontro, do convívio.
Só que há um custo: Há sempre um custo. A este chama-se despedida, afastamento e até para o ano ou para a próxima, que se quer logo ali.
Mas vale a pena. Não sou muito assíduo destes encontros. A minha vida corrida …! Prefiro contudo justificar, até porque o sinto com a frase ”Dói-nos muito comparar o que somos e o que fazemos com o que fomos e o que fizemos”…

2 – Parece que não, talvez seja pensar pelo absurdo, para mim claro, mas podemos entroncar o que atrás foi dito com a sondagem sobre o abandono de Guileje.


Quando a vi, á esquerda da página do Blogue disse para mim:
- É prematura. Devia esperar-se um pouco mais. Possivelmente não terei razão. Possivelmente há pessoas com ideias já formadas. Possivelmente há…só que a mim ainda me faltam documentos de análise. O livro pode ser uma ajuda.

Quando foi público o telefone do Coronel Coutinho e Lima entrei em contacto com ele. Falei com a esposa e posteriormente o Coronel ligou-me. Depois da apresentação enviava-me o livro. Espero por isso. Preciso de o ler. Necessito conhecer, a versão de quem decidiu abandonar um aquartelamento.

Sempre me questionei sobre tão melindrosa tomada de decisão. Não tenho opinião formada. Fui treinado para vencer. A divisa do Capitão Comando Zacarias Saiegh, assassinado em 18 de Dezembro de 1978, era “Matar ou Morrer”.
Pode haver quem não apoie ou concorde. Pode haver quem concorde. Pode haver…na guerra elimina-se o inimigo, abate-se…e não se mata.
Só que fomos treinados para morrer se necessário, para cumprir e fazer cumprir ordens.
Só que dar ordens não é fácil. Em jogo estão a vida de homens. O erro, a ordem indevida pode provocar a morte de quem comandamos. E o inverso?

Fui um simples oficial subalterno, um soldado, do Senhor Marechal António de Spínola, Brigadeiro e depois General enquanto estive na Guiné. Respeitei-o e respeito a sua memória. Por ora é suficiente.
Conheço o Senhor Coronel Alexandre Coutinho e Lima. Respeito-o. Nada mais adianto. Não tenho o direito, legitimidade e os conhecimentos para opinar. Qualquer juízo será pessoal e só a ele o diria. Vou ler o livro.
Acrescentar algo mais é dispensável. Seria pretensioso de minha parte.

3 – Parei aqui, jantei e passado tempo voltei ao blogue.

Espanto meu Os Guias. Falavam deles, de guias que no meu tempo foram (os que me guiaram) amigos, camaradas. Outros, antigos combatentes do PAIGC, depois das missões eram entregues a quem de direito…agora leio, releio e…foi aqui escrito que eram abatidos alguns…Aguiar (não da Beira – de malvadez)?! Quando, onde e porquê trazer isso á colação?
Porquê?
Lembrei-me do tal “Sítio de Afectos”, do tal lugar, sitio, site ou o que lhe queiram chamar, onde, velhos combatentes, escrevem, desabafam, contam estórias dentro de regras (X dez) definidas. Divergem, convergem – convivem.
De quando em vez um pequeno desvio. Lógico, normal e, até, salutar. Não mais que um desvio, um pequeno desvio…Aguiar, ainda por cima pior que isso…Aguiar só da Beira (vou ver o mapa), fiquei, geograficamente, confuso.

4 – Ainda o Cherno Rachide.

É uma figura incontornável da Guiné.
O Poder dele, talvez, quem sabe, era tal que os 82, os 122 e eteceteras se desviavam de Quebo e quedavam-se por outro lado…quem sabe? Quem sabe…malhas que o Império teceu…

5 – De facto sinto a “velhice”.

Mas o Apocalipse Now, A Dança das Valquírias, a loucura…ficam…marcam-me, dizem-me que o soldado Português, com Viras e Fados, era melhor combatente.
Lá, cá, na solidão, na alegria ou tristeza, gosto de música clássica em alto som. Precisava dela agora. Fico-me pelo “ Oceano Pacifico “ na R.F.M.
__________

Notas de vb:

1. Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69

2. Último artigo da série em

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3517: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (17): Está-me a faltar a "memória colonial"

Pensar em voz alta


Torcato Mendonça


ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo (1968/69) e
Ex – Militar Preguiçoso; Guerra e Paz e outras Questões



Talvez nem seja “ Um Pensar em Voz Alta”. Digamos, ser mais a constatação de que me está a falhar a “memória colonial”.

Eu esclareço. Melhor, tento esclarecer: sinto dificuldade em escrever, ou através da memória, relatar acontecimentos de uma parte do meu passado. Depois há um quase despir, uma exposição pública de acontecimentos e sentimentos outrora vividos.
Claro que vistos com os “olhos” de hoje, cortando aqui e acolá, não relatando tudo. Ainda o nome, o verdadeiro nome, o dar a conhecer-me em excessivo protagonismo. Mau, bom, nem mau ou bom? Efectivamente não sei. Talvez dispensável, na forma como o tenho feito. Curiosamente chegam ecos e isso desagrada. Efeitos da época do ano!? Ou deixar andar e continuar. Talvez seja preferível assim.

Por isso:
Hoje quando me levantei, oito horas, mais minuto menos minuto, estava um frio dos diabos. Ainda por cima aquela hora é madrugada para mim.

Sabia ter trabalhos urgentes e fui à agenda. Perseguem-me, há muitos anos, tais objectos, mudando logicamente de ano para ano. Porventura, no berço em vez de pandeireta brincava com uma agenda. São elas que determinam muito dos meus dias. Curiosamente, os meus suportes de “memória colonial” são dois objectos desses, milagrosamente sobreviventes ao tempo e ás andanças.

Hoje, ainda por cima em madrugada gelada, lá fui eu e confirmei as tarefas. Não gostei. Ainda por cima numa 2ª feira, dia de caminhar pausadamente. Depois de “tratar” de mim para enfrentar o vento frio da manhã e antes de sair abri o blogue (vicio ou hábito repetido quotidianamente). Antes de começar o dia – zás, blogue e gmail …. Achei engraçado o post sobre o proselitismo. Ainda por cima escrito pelo nosso camarada Beja Santos. Antes de ler fui fazer um café de “plástico” e, calmamente, enquanto beberricava a mistura de arábica ou robusta mais aditivos, devorei a prosa. Copiei a informação.
Geralmente, aqueles posts com muita informação guardo-os, bem como outros com determinada informação. Eu gosto. Outros parecem que não. Haja Deus. Ainda bem que não gostamos todos do mesmo.
Mas parei a reflectir sobre a minha “escrita” para o blogue. Ia escrevendo ou anotando com a “velha” pena e o tempo passou rápido. Atrasei-me.
Agora teclo, resumidamente, aquele amontoado de palavras. Mas cada vez sinto mais dificuldade em “escrever”, em sentir a descrição daqueles acontecimentos. Ou será por não os descrever completamente?
As “Estórias do José “pararam em Fá Mandinga, aonde o malandro do José se acoitou, e ficaram por lá (1).

Já fiz duas ou três tentativas para o fazer sair. Vãs tentativas! Mas tem que sair. Só que, por vezes, vejo-o tão bem instalado…Falo com ele, promete, qual político, mas cumprir nada! Políticos! Perdão, gente que não quer trabalhar… ou, mesmo suportando veementes apelos para trabalhar, parece sentir que perdeu a memória de “guerreiro de fim de império”. Esgotou-se ou será amnésia temporária? Esperemos que seja a ultima ou, isso sim, preguiça!

Depois sinto haver algo mais importante. Leio e gosto imenso de muitos e variados posts ou textos. Até pela sua diversidade temática: - da culinária, à introdução da G3, da cópula de um senhor Sargento a virar bebé, ou um Comandante de Batalhão a mostrar a eficácia do bem varrer (à vassoura…) e tantos, tantos outros que, certamente no futuro serão determinantes para se compreender a Guerra Colonial para mim, do Ultramar para outros e, curiosamente de Libertação para alguns. Há cada uma…

Apesar disso há assuntos que gostava de tratar. Melhor, talvez ver tratados por outros. Um exemplo ou dois: - a introdução da G3. Parece ter ficado tal assunto melhor esclarecido. Pessoalmente lembro-me de em 1961, quando ainda recebia instrução com a Mauser e Manelicher, terem vindo as G3 e as FN. Se foram ou não para a Guiné desconheço. Só as vi, se bem me lembro. Um parêntesis: podem questionar sobre a minha idade. Tinha 16 (dezasseis anos). Outras vidas. Tal assunto da G3 ficou esclarecido. Isso é que interessa.
Melhor ainda, outro, mais importante, está esclarecido por quem, de certeza aqui ou desde que se saiba quem tal afirma, ser, alguém incapaz de contrastar: o nosso Camarada Mário Dias. São Homens de Vidas e memórias importantes.

Gostei. A Fling existiu! Agora pode é não valer a pena tratar, neste blogue, da história da “chamada luta de libertação”. Íamos longe e infringíamos regras. Até se podia (não pode) falar de um ataque ou algo de semelhante á casa do Presidente da Guiné-Bissau. Ou de eleições e outros assuntos. Mas…

Preocupa-me mais o Povo afável e bem disposto daquele País. Tenho aqui um recorte do DN: - a história, breve, de Amadu Candé, 28 anos, Guineense da zona de Bafatá. Tentou durante 16 meses emigrar clandestinamente, por cinco vezes para a Europa. Foi sempre preso em Espanha.
Quantos “Amadus”, quantos africanos sofrem, esperam e desesperam para sair de sua Terra? Pensam erroneamente encontrar fora de África o direito a viverem uma vida mais digna. Contudo é lá, no seu Continente, no seu País na sua Terra que podiam encontrar o direito a uma vida melhor.

Porque não então? Só levemente: - porque alguns dos seus dirigentes têm fraca qualidade ou preferem actuar…não se pode criticar? Ponto!

Só lá? Claro que não! Há dias, sábado "Expresso", uma referência a um Povo que “não se governa nem se deixa governar”…com outra conjugação verbal…

Voltava ainda ao proselitismo e questionava: quantos prosélitos (católicos claro) haveriam, houve ou haverá na Guiné?

Quando lá cheguei, passado um tempo, disse para mim mesmo: o que andámos nós a fazer por esta terra durante cinco séculos?

Tanta questão…Penso em Voz Alta…penso e vai ou não pelo ciberespaço….vidas…
Ontem arquivei o texto. Falei sobre África com quem não conhece guerra lá ou noutro lado. Pessoa de paz, de saber, de querer e gostar conhecer o que se passa naquele Continente e neste nosso Mundo. Valeu a pena. Falar com amigos, vale sempre a pena. Aquele é especial e aprendo. Continuo e quero continuar a aprender. Ainda sou um jovem e mesmo que não fosse…
Hoje rebusquei este texto devido ao post do Mário Dias e nota do Luís Graça.
Termino fazendo uma pergunta:
- Onde estava você no 25 de Novembro…?
__________

Notas de vb:

1. As páginas do Zé Maria estão a meu cargo. Não estás esquecido, caro Torcato.

2. Da série em

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3398: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (16): O veterano e o Macaquinho

O Veterano e o Macaquinho

Meus Caros

Estava por aqui e, de um texto antigo apaguei, acrescentei, falei com o Macaquinho e anexei. Se o fulano (macaquinho) falasse diria estar o "dono" e amigo com problemas de "cuca".

Não sabe que existem pessoas que vão, em estupidez, muito para além do egoísmo. Curiosamente chocamos com eles no nosso quotidiano e já pensamos ser a normalidade. Devia dizer antes: eu e não nós.

Aconteceu-me, escrevi e aí vai o escrito.Desabafos numa noite Outonal...



Torcato Mendonça

ex-Alf Mil da CART 2339 (1968/69)

A tarde envelhece rápida, cada vez mais rápida, à medida que este Outono avança.
Ouvi-te atentamente.
Desligaste sem acabarmos a conversa.
Talvez por isso, ia sair mas parei. Sentei-me a pensar. Fico calado, nada digo? Mas, pensando melhor, porque não o faço?

Diz, na esquerda do blog sermos uma espécie em extinção. Não vou tão longe ou não quero ir. Penso é que há muita gente a "borrifar-se" nos antigos Combatentes. Depois a geração dos nossos filhos tem outros problemas e a que se instalou, entre nós e eles, quer é tratar da sua vidinha.
Por isso resolvi alinhar umas palavras e enviar-te. Preciso fazê-lo.

Também eu envelheço, neste Outono de vida, cada vez mais curta, mais enrugada em cada dia que passa. Por isso e não só, respondo-te, pois, escrevendo.

Perguntaste-me porque nunca mais escrevi no Blogue. Não és o primeiro a fazê-lo. Posso responder-te de várias formas. Depois juntas tudo, agitas e terás, possivelmente, a resposta. Assim:
- Tive um Julho quase parado. Idem em Agosto e um Setembro igual. Claro que andei por aqui e ali. Pouco, é certo, e, muito menos que o habitual. O Outubro voou ou quase nem o senti, tal a voragem dos dias.
- Posso acrescentar que me faltou a vontade, inspiração e preferi ler a escrever. Gosto de o fazer. Música em fundo e apago-me, ou, se preferires, vou caminhando conforme o tema da leitura.
- Mas se acrescentar os montes de leituras e trabalhos atrasados, muitos ainda assim permanecem, para pena minha, já estás mais perto.
- Posso ainda acrescentar algo que me levou muito tempo e deu um imenso prazer. Porventura prazeres de jovem ou de homens com rugas de mil sóis.

Bem aí tens quase tudo. Agitas então e zás sai a resposta…Acrescenta ainda o hábito quebrado ou interrompido. Mas África, a Guiné está sempre presente.

Isto sem falar de assuntos que me transcendem. O blog não é meu e os Editores são soberanos. Ponto final.

Olha, aí por fim de Agosto e Setembro estive quase um mês, menos, sem ler o blog. Fi-lo depois ao correr da “rodinha” do rato. Estive “fora” e sem Net.Gostei de uns escritos e nem tanto de outros. Fiz dois ou três comentários em “mata insónia”. Caminhar pela noite é a normalidade. Hábitos e gostos ou a necessidade do silêncio, da solidão, do encontro connosco.

Ao ler aqueles escritos todos, verifiquei um ponto comum: a saudade, o gosto pela Guiné e pelas suas gentes. Feitiço, não de mulher, mas daquela Terra.

Depois pensei:
– Então não é preferível ler tal diversidade de opiniões e de memórias, a escrever? Ou, se for escrevendo, vou arquivando. Claro que tenho aqui uma resma para teclar, uma série de escritos que já foram. Outros terão que ser cortados aqui e acolá – género trabalho de alfaiate do antigamente – e depois ver o que deles fazer.
Acrescento ainda que os ventos não sopram de feição. Outras vidas.

Falei de comentários. Fiz alguns. Um ou dois viraram post. Não queria comentar ou intrometer-me tanto. Um, há muito tempo, era sobre um dos mais conhecidos Pilotos da FAP. Conheci-o. O Capitão Neto, nascido no ex-Congo Belga, creio eu amigo do Jean… tratava o Piloto Honório por irmão. Aliás tratavam-se por irmãos. O Cap. Neto, antes ou quando regressamos à Metrópole no Uíge, contou-me o que se passou no desastre do Cheche. Não te vou contar agora, pois disso já muito se falou. Merecia um dossier.

Cherno Rachide

Comentei vários escritos ou posts. Poucos? Muitos? Nem sei que te diga. Um, que era mail virou post também. Era sobre a hipotética duplicidade da actuação de Cherno Rachide.

Claro que, forçosamente, a sua actuação tinha que estar de acordo com as duas forças beligerantes. Era um homem africano, profundamente conhecedor do seu Povo. Outros, não africanos, não fariam jogo duplo? Só que agente duplo pressupõe uma “arregimentação”. Ora se aplicada ao Cherno talvez seja forte demais. Se aplicada a outros nada tem de anormal ou pejorativo. Não se faz nenhuma guerra sem serviços de informação capazes. Perdem-se sempre sem eles…adiante!

Um comentário, talvez mais um cumprimento, um abraço, foi sobre o tratamento que o Estado continua a dar aos antigos combatentes, ao abandono dos militares africanos que connosco trabalharam, aos que por lá ficaram sepultados e aos que, após a “libertação” foram, cobardemente, fuzilados.


O meu macaquinho

Devo comentar menos. Quando leio e, caso não me agrade ou agradando, sinta vontade de dizer algo, por vezes não posso nem devo falar para não levantar polémicas, falo com o meu Macaquinho.

Não conheces o meu macaquinho? Bem, tenho vários e variados. Um é especial e acompanha-me há muitos anos. Senta-se sobre a secretária. Baixo, talvez dez ou doze centímetros, pelo negro e macio, cara marota de tom acastanhado. Tinha um apito. Com o tempo ou, se preferires, a idade, estragou-se. Antes, se abanado apitava. Agora só se ouve o barulho do rolar do apito.

É o meu confidente. Zango-me com ele, questiono-o sobre todos os temas. Como felizmente não fala, se o fizesse que problema tínhamos, ajuda a descarregar o bom ou mau humor, os problemas que um tipo tem e por aí fora. Ora falar mais com o macaquinho é menos problemático e ele logo me “diz” os caminhos a percorrer.

Aí tens um monte, uma mão cheia de motivos para nada de préstimo escrever. Repara que, caso tenhas lido o blogue, terás tido ocasião de sentir textos de forma e conteúdo diferente. Gente nova a arejar, a fazer pensar e sentir que, posso estar enganado, mas é bola de neve – rola e engrossa no tempo. Disse isso ao Luís Graça há muito tempo. Parece-me ter razão.


Para pensar

Mas não esqueçamos os “velhos”. Um colocou cinco questões que me têm feito pensar. Já escrevi e risquei. Voltei a pensar. Difíceis as questões. Tu que criticas sempre. Tu, que para lá da crítica, tenho que to dizer, nada ou pouco fazes a não ser em teu proveito ou que te traga algo… pensa nelas, medita e diz-me. Podes ficar aborrecido por te ter chamada egoísta, no mínimo. Pára, pensa e diz-me. Eu atrevo a repetir a questões:

(i) O heroísmo do soldado Português;
(ii) A confiança que os soldados depositavam em nós, os quadros;
(iii) A nossa passagem por África, que beneficio social e económico trouxe para Portugal;
(iv) A nossa religiosidade, de então e actual, e o porquê da diferença;
(v) As nossas famílias, que amarguras passaram por cá aquando da nossa ausência.

Então? Difíceis? Pois eu meditei, escrevi, risquei, voltei a reflectir e a escrever. Falta muito para chegar onde quero.
Serás tu capaz de, depois de pensar bem nelas, ou numa ou noutra somente, escreveres a dizeres-me o que pensas?

Já me mandaste “passear”. Fazes mal. Se reflectisses e escrevesses algo, fazia-te bem.

Olha, eu “falei” com o macaquinho, em troca de conversa de louco e peluche, mas isto é assunto sério demais. Pensa e diz algo, a mim claro. Eu continuo a reflectir e a escrever. Não mostro a ninguém. Se um dia o fizesse, enviaria primeiro a uma ou duas pessoas…

Até…

Torcato Mendonça

Um alentejano que vive hoje no Fundão
__________

Notas: artigos relacionados em

2 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3394: Blogoterapia (68): Amnésia, vergonha, denegação ou ocultação dos próprios nossos mortos (Luís Graça)

domingo, 17 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3136: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (15): À noite...

Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69), de 3 de Agosto de 2008, dirigida a Luís Graça

Caro Camarada
Tenho a informática avariada ou em férias. Mas vai um escrito. Se receberes diz-me por favor. Texto simples, de noite de ontem que se mantém hoje em abandono de sono. Vidas.
Roubo-te tempo e disso me penitencio.
Perdi todos os endereços que estavam no outlook. Sobram poucos no gmail.
O informático formatou e apagou... é obra... DIZ-ME ENTÃO.

Um abraço do
Torcato Mendonça

PENSAR EM VOZ ALTA – H (*)
Por Torcato Mendonça

1 - À noite, quando o silêncio melhor se instala, para não nos sentirmos tão sós, pomos a tocar, em fundo, música suave e, a partir daí instalamo-nos, pensamos, lemos, escrevemos ou, simplesmente, vamos trilhando caminhos num doce embalar, sonhando ou pensando – num por vezes; pensar em voz alta – permanecendo mais, ali ou além, num ou noutro ponto, esquecendo o tempo, o avançar da noite.

Aconteceu hoje, sentindo assim mais o que acabamos de ler. Tínhamo-lo feito no ecrã, ao correr do cursor. Preferimos imprimir e ler atentamente no papel. Já não se usa dizes-me tu Camarada. Talvez tenhas certa razão. Mas texto de importância, escritos que envias para quem gostas ou recebes, diz-me se não preferes o papel. Claro que sim.

Por isso li pausadamente, apreendendo e aprendendo, confirmando e questionando-me, anotando e, já numa das notas finais deste texto de vida dizem-me que: um Homem nasceu numa ilha de poetas, de flores e de mulheres bonitas. Diz-me tu se a beleza desta trilogia não te levava a querer ter nascido e a viver em semelhante lugar? Não sentes o peso forte e indissociável desta trilogia? Sentes. Eu sabia que sim. Olha eu parei e pelo silêncio da noite, pela suavidade da música, pelo teor tão diverso do texto anteriormente lido, ou, talvez, isso sim pelo somatório de tudo e porque sou assim, sonhei acordado, viajando não sei para onde, viajei e, mesmo neste primeiro dia de Agosto, quase que senti o frio de Inverno, o silêncio da neve ao cair, o caminhar na noite braço com braço, com uma mulher e sentia, ao andar, o calor dela vindo, atravessando pele de casacos, a voz, a voz dela a entrar doce neste caos de ideias, de sonhos, ia, íamos caminhando, contando confidências, alheios a tudo rumo ao desconhecido. Sim porque era um sonho de pessoas e lugares. Um sonho só de alguns. Só que a realidade é outra, quer a do texto lido quer o voltar lá sempre. Hoje, nesta data sofri, há muitos anos atrás, um ataque em Cansamba. Estava a trabalhar para a 2405 de Galomaro e para o COP7. Parou o sonho e veio, como sempre à memória. Não queria falar de guerra, nem pensar nessa brutalidade agora. Mas vem sempre, por ler textos assim, por pertencer ainda, em parte, a esse passado, àquela terra, as suas gentes e sinto e gosto mesmo sabendo não terem ainda direito a serem felizes.

Dizes-me: - Mas que sabes tu daquele terra se nela só fizeste guerra?

Certo. Estás certo. Mas talvez por isso a sinta, os sinta mais fortemente. Talvez por isso, tudo com eles relacionado é, em intensidade, por mim vivido. Que queres Camarada?! Sou assim.

- Assim como? Bem, que queres que te responda? Que queres que te diga? Foi há tanto tempo o meu regresso, foi tanto o deambular perdido ou convencido por tanto lado. Mas aquele tempo, aquela guerra é que para mim conta. É como uma segunda terra, como uma gente que sinto de forma diferente. Sabes, sei que sabes, mas repito-me: tenho dificuldade de ser de algum lugar. Dizia-te: depois de regressar ia tendo conhecimento do que se passava, ia sentindo, ia apertando os dentes, anotando mas, incompreensivelmente, anotando e guardando no fundo da memória. Era tempo de outras vidas, de outras vivências e prioridades. Por isso quis ler atentamente aquele belo escrito de vida ou vidas. Sentimos algo misto de carinho e fraternidade. Sentimos também, por fraqueza nossa, certa revolta. Muito nós sabíamos. Não sentimos ódios pois não entram na nossa vida, no modo como a atravessamos. Sentimos, isso sim, revolta connosco, com outros, poucos por nem isso talvez mereçam. São pequenas peças de um sistema abjecto da vida real. Sim Camarada lá existe mas diz-me só lá? Calas-te. Certo. Não só e muitos sistemas bem piores até são tolerados e aplaudidos.

És português como eu e por isso respondes: que havemos de fazer? Paciência, é a vida!

2 - Não te quero roubar mais tempo, menos ainda inquietar em tempo de agostos, mês de paragem de trabalho em países de primeiro mundo, como é o nosso. Só que li uma notícia a invalidar talvez sermos do primeiro mundo. Cortamos na pensão anual dos antigos combatentes e poupamos milhões. Ou seja, passa-se a pensão de 150, para 100, ou 75 Euros, em corte a 290 mil e poupa-se 13 milhões. É obra. Não ficam, alguns, tão à vontade no pagamento da factura da farmácia ou em beberem mais um copo para terem melhor sono… mas poupa-se. Os tipos já estão a ir… calma camarada não apertes os dentes. Não pedimos nada mas exigimos respeito. Começa a aborrecer Camarada, começa a aborrecer. Que dirão certos homens de muitas estrelas e galões desta poupança de tostões? Ajuda alguma missão de auxílio a povo aflito, ou à prestação de um pandur, ou lá o que é, ou F16, submarino ou eteceteras… mas... olha não te chateies Camarada… vai-se resolver pois cada vez somos menos…

3 – Estás a pensar que estou a ficar desequilibrado ou a não ter paciência por não calar. Nada disso. Não te preocupes. Agradeço a tua preocupação pela minha sanidade mental.

Digo-te que ainda hoje tenho orgulho de ter pertencido ao Exército do meu País.

Agradou-me ouvir um Militar, a sério, dizer que pertencia a seu Exército ou pensar como eu que: - Em cada dia que passa e nada de novo aprendemos é um dia perdido.

Hoje apreendi e aprendi muito com aquele texto de um Homem e uma Mulher que me deram uma lição de vida. Espero que amanhã ou nos dias seguintes não sejam dias perdidos…

Não te aborreço mais.

Deixa-me voltar a sonhar com a neve a cair e sentir o calor e afecto de quem ao meu lado caminha…lentamente vai o sonho e entra, de mansinho, o sono…
____________

Nota de CV

(*) - Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3080: Blogoterapia (58): Pensar em voz alta... Que vidas, que merda! (Torcato Mendonça)

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3080: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (14): Que vidas, que merda!

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > O Torcato Mendonça, lui-même, há 40 anos atrás, noutra encarnação... Era então Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)...


1.Foto e mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... Mensagem enviada em 14 de Julho:


PENSAR em VOZ ALTA – G (*)

Leio certos escritos, no blogue, aprovo ou desaprovo mas, em nome da liberdade de expressão e da diferente maneira de pensar, aceito e respeito.

Reli agora um texto meu mas no bloco. Os olhos acabaram por atrapalhar a leitura. Porque escrevi assim? A recordação, a saudade é forte demais. Sofro?! Escrevo pouco agora, para envio. Talvez certas memórias, se trazidas à escrita, se tornem dolorosas e me impeçam de escrever. O prazer da escrita, do alinhar letras em tecla corrida, fique, talvez, devido àquele escrito e outros, de pena e tecla, como em auto flagelação.

Impensável. Isso não!


Por vezes certas situações, motivam a vinda de recordações ou desejos de mudança. Surgem dúvidas estarei certo ou errado? Não sei!

Eu conto:


1 – Manuel

- Uma moedinha... uma moedinha é para o café, um euro, só um euro…
- Estás com pior aspecto, Manuel. A barba, o cabelo sem ver água há dias e as botas sem cordões.
- Vá lá um eurosito. Estou bem, estou bem…é assim…ah…

Dou ou não? Não é mendigo e só pede aos amigos ou conhecidos. Olha-me com aquele olhar vazio e baço:
- Vieram buscar-me o cão, uns tipos dos animais e a GNR; não era meu, andava atrás de mim. Gostam de mim, os cães…
- Vai tomar o café ali, que eu pago.
- Ali não, não me deixam entrar.
- Pronto, toma e vai a outro lado; foste pára-quedista Manuel, esqueceste-te?
- Não, não. Fui Furriel pára-quedista, instrutor de… - e conta, com um brilho nos olhos e um sorriso a aflorar nos lábios uma série de especialidades. Ponho a mão no ombro e dou-lhe pequena palmada.
- O que mudou, Manuel? Porquê?- Volta ao olhar triste e diz:
- Foi psicológico… foi psicológico. Não aguentei.

Encolhe os ombros e afasta-se, bamboleante, a arrastar as botas sem cordões. Não sei bem a história dele. Foi furriel pára-quedista, por uma razão de bebida ou outra saiu. Dizem ter uma pequena pensão. Mas é um homem destroçado, a necessitar de amparo e de tratamento. É, para mim, pessoa estimável.

Vagueia no centro da cidade, vagaroso no andar, descansando num ou noutro banco de jardim, esperando o nada.

Entro no café, sento-me e trazem-me a bica. Talvez como o Manuel, estou ali não estando. Nem abro os jornais. Olho o nada e penso:
- Quantos Manuéis?

Este não fez a guerra colonial, terá quarenta e muitos anos, cinquenta não, perdeu-se por outros motivos. Não sei ao certo.

Lembro-me de ter lido, no blogue Luis Graça e Camaradas, um poste de um Zé da Desordem, antigo combatente e encontrado morto numa madrugada.

Quantos? Quantos Zés ou Manuéis, viraram “corpos vazios”, fartos da vida dita normal, vivendo hoje no seu mundo. Em comum têm o serviço militar, neste caso. Outros - quantos ? - foram antigos combatentes.

Porquê? Porque tardam em ser ajudados, tratados? Aos poucos são menos…pois pela ordem natural…
- Uma moedinha… um euro para o café… - Palavras que me martelam na cabeça. Tento abrir o jornal e os olhos caiem no café por beber…Merda, levanto-me e saio, para lado nenhum… Prefiro apanhar o calor da tarde…
- Quantos?

E ando e penso. E sai em voz alta e cai num papel qualquer, leiam ou rasguem e se passado à tecla é mais fácil, basta delete


2 - VERDES ANOS

- Quantos?

Não sei! Sei, isso sim, que milhares e milhares de jovens, nos seus verdes anos, durante década e meia, tiveram a juventude interrompida.

Milhares e milhares, cá, ou pior ainda, lá, numa qualquer parcela do Império, em nome da Pátria, em nome do Dever, foram empurrados adiando vidas. Regressaram um dia, diferentes, fartos, jovens em corpo e mente de velhos, endurecidos, amarrotados, enxovalhados. Alguns vieram não vindo e, ainda hoje, vagueiam vida fora, mais lá do que cá, em vapores de álcoois e destroço de vidas a serem encurtadas em cada dia que passa. Outros ficaram lá ou vieram em caixão de pinho. Quantos? Lá ou cá? Quantos?

Muitos não iam. Geralmente os mais acérrimos defensores do Regime autista de então, ou alguns “em desculpa ou mesmo do contra” a preferirem viagem até uma Europa aqui mais perto. Ainda os que o poder do favor ou o dinheiro, em minoria é certo, do Império se libertavam… mas o mesmo glorificavam.

Aos poucos a “Evolução Natural da Humanidade” pôs fim à sangria.

Regressaram muitos, então, dessas europas, palmas batendo, cânticos e gritos de ordem lançando e ensinando as regras de uma vida melhor e democrática. Alguns, rápido, ocuparam os lugares dos antigos Senhores pois muitos deles estavam em viagem apressada até aos brasis ou mais perto, para retorno mais rápido após a acalmia dos desmandos da populaça.
- Alguns com razão, pois tanto desmando, não! E tanta repressão passada, sim?

Ficou uma nova clique em mistura com gente que queria um País… Aos poucos, os que obrigados vaguearam pelo Império, ficaram com a raiva contida, a recordação, a frustração, as maleitas, a velhice precoce. Memórias...e Honra. Só, ou sós, em grupos nostálgicos…

Os de Sonho fácil ainda acreditam no dia de justiça reposta. Qual?

E volto lá sempre. Por vezes nem sei quanto de mim lá ficou.

Sonhos, tormentos, recordações dolorosas como a morte do Uro Baldé. Ali deitado, destroçado pela estúpida da mina. Eu a apanhá-lo aos poucos, raiva contida, soluço a embargar a respiração.

E o sonho, sempre o sonho a vir de quando em vez, a carne destroçada, o esparguete do almoço antes tomado, a sair e a misturar carne, sangue e massa…e a raiva a vir: - Cabrões… Vão pagar-me, cabrões… - e rio e a G3, em rajada curta fá-los saltar, torcerem-se de dor...
- Turras de merda… - o riso é abafado pelas rajadas curtas, certeiras, sempre na barriga… o riso louco... cabrões...

Acordo a escorrer água, a cabeça a apertar, boca seca, respiração descontrolada. Lentamente volta ao normal, lentamente. Ainda bem que estou só naquela “tabanca”, ainda bem. Tormentos de periquito.

O tempo, o hábito, tantos Uros… geraram rotinas normalidades… Quem me leva os meus fantasmas… como diz a canção. A Vida???


3 – VIDAS


O Calor ainda aperta, a chuva cai e formam-se pequenos regatos entre as tabancas. Ruídos de vida vêm das outras tabancas, em redor de sua, habitadas pelos picadores africanos e famílias.

Vidas partilhadas. Bebe mais um longo gole de uísque, acende um cigarro e olha os ponteiros luminosos do relógio. Tão cedo.

Não quer adormecer e, menos ainda, beber mais um comprimido daqueles.

Em caso de ataque está mais desperto.

Vidas! Ali, sem luz, sem nada, só, a poder encontrar-se com ele mesmo. Tem todo o tempo. Isso não falta até Mansambo ser aquartelamento. De dia, os militares, na mão direita pá ou pica e na esquerda a G3. Tretas! Mas era duro.

Que vidas. Os novos “aguentadores” do Império. Até quando?

Ali está, só, meio deitado, tronco nu, fumando, pensando e, por estranho que pareça, resignado. O objectivo é manter vivos os camaradas e ele. A missão: construir o aquartelamento, fazer operações, aguentar os ataques IN. Para isso fora treinado e outros treinara. Mais um “beijo” na garrafa de uísque.

Que vida! O pensamento voa para o País dele, tenta logo contrariar. Mas pensa:
- O meu País é enorme, vai do Minho a Timor, “uno”, desenvolvido. Ou não?

Será pequeno, “paroquial”, bafiento, pleno de medos e temores, de vénias, de classes de benesse e favor. De ajuda a pobres? Pára. Volta a concentrar-se na chuva e nos ruídos.

Sem querer sente-se pobre, coitado, a precisar de ajuda. Sem querer, é levado a pensar naquelas Senhoras que ajudam os pobres soldados. Muitas bem intencionadas, algumas com filhos ou familiares lá. Outras menos, a matarem o tempo, a viajarem pelas “províncias”, pouco pela Guiné, e a voltarem a Lisboa, felizes com “os nossos rapazes”. Depois de breve descanso, promovem reuniões, chás e canastas, récitas e outras, possíveis, fontes geradoras de angariação de fundos para os rapazes.

Há tarde, a meio da tarde, reúnem-se, falam, combinam, dão pequenos goles no chá, diminuta dentada no bolo com creme que, quase directo, lhes vai aumentar as adiposidades derramadas no veludo das cadeiras.

Depois partem alegres, comedidamente risonhas e sentem-se mais frescas, menos afrontadas, nas menopausas há muito iniciadas.


Ele pensa será justo assim pensar? O País dele é assim? Uísque ou loucura?


Que Vidas!... Aos poucos sente o sono a chegar e deixa-se ir com ele…
- Morfeu, olá…

Lentamente, ele vai… espera, é sono sem sonhos ou tormentos…

Quantos estarão assim? Quantos… ? Que vidas !

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. alguns dos postes mais recentes do T.M., relacionadOs com a série Blogoterapia... Pensar em Voz Alta:

23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2978: Blogoterapia (57): A Guerra estava militarmente perdida...o 10 de Junho. (Torcato Mendonça)

9 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2925: Blogoterapia (55): Pensar camarada...! (Torcato Mendonça)

16 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2851: Blogoterapia (52): Pensar em voz alta... De quantas mentiras é feita a verdade ? (Torcato Mendonça)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2768: Blogoterapia (48): Pensar em voz alta... A nossa por vezes difícil mas sempre boa con(v)ivência (Torcato Mendonça)

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2758: Blogoterapia (47): Pensar em voz alta... O tédio que às vezes nos invade (Torcato Mendonça / Carlos Vinhal / Virgínio Briote)

1 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2597: Blogoterapia (45): Pensar em voz alta (Torcato Mendonça)

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2558: Blogoterapia (44): Pensar em voz alta (Torcato Mendonça)

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2978: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (13): A Guerra estava militarmente perdida... o 10 de Junho

Pensar em Voz Alta


Penso em voz alta e envio ou não? Se for, vagueará ciberespaço fora e pode aterrar; se não for ou não aterrar no destino, perde-se mais um amontoado de palavras ditas ou escritas.

Nesta tarde já de verão de 2008, quente e chata, resolvi tratar de assuntos para a segunda-feira que se aproxima. Li um bocado e abri o mail e a seguir o blogue.

1 - Faço por isso um breve comentário, puxando pelo que retive do que acabei de ler. O Texto (s) do Mário Fitas é uma reacção natural e epidérmica. O VB edita e não vem o nome de quem escreve. Mas ele sabe e certamente terá outra razão para o não fazer. Ser padre em certas freguesias é difícil ou deve ser. Creio eu. Assunto esclarecido e a polémica da guerra perdida ou ganha, a dar belo assunto de consulta, ao menos para memória futura, é pena ter acabado. Outra questões se levantarão.

2 – No texto escrito pelo Coronel Bernardo, em nota no ponto 2: diz o nosso Camarada Virgínio Briote ser responsável…meu caro Editor e Camarada, podes efectivamente ser – e és responsável – pela colocação do texto. Em tudo o mais, concorde-se ou não com o teor, todos os tertulianos se sentem sempre, penso eu e não me desiludam – claro que não…claro que não… – co-responsáveis pelos textos aqui, neste espaço colectivo, “postados”.
Se sentirmos a necessidade de comentar fá-lo-emos: - aprovando ou desaprovando!
No caso vertente, penso ser da mais elementar justiça que os nomes daqueles meus Camaradas venham a ter o nome deles no "Monumento". È assunto a levar páginas de escrita.

Só nota breve: foram cobardemente assassinados, pelo exército de libertação e sabemos, ou não sabemos?... Quem foram os responsáveis. Parece ser assunto a tratar um dia. Merece.
Há ainda tantos assuntos pendentes, tantos. Podem dizer ter eu um fraco pelo “Comando”. Certamente que sim e os Milícias e outros??? Bem…



3 – Não tenho escrito. Se escrevo não teclo ou se teclo directo como agora, muitos ficam. Motivos vários: expõe demasiado; pode provocar divergência e estou em tempo de pouca paciência; escrevo ao correr de…na recordação ou no avivar da memória daquele tempo, sentindo ainda hoje os verdes da mata, os putos e a alegria e risos de gente que sofria e mantinha a alegria; o pôr-do-sol; tudo isso e muito mais a virem brincar, ainda hoje, com os meus olhos e a entrarem calmamente na minha mente.

Um passado a virar presente, despretensiosamente, escrito da forma mais “primária” que consigo.
Relato a memória da guerra sem ir á guerra porca, á violência vivida. Era a guerra e…procuro não ir além de….

4 - Por isso se recebo e-mail de alguém, não em critica, talvez só em mera constatação – esse escritos perturbam…fico perplexo, daí talvez seja termo demasiado forte, admirado. Ai se eu fizesse o relato do que ficou gravado com “ferro em brasa”…

5 – Por formação sou solidário. Nem sei como se pode viver livremente sem essa prática. Pareço frio no trato ou na convivência. Vidas!
Isto a propósito do 10 de Junho do corrente:
Cá – não comento as palavras de um economista e dois "pensadores". Mas terão algo que comentar?!

Lá – há tempo, menos de dois anos, uma Senhora foi tratada de forma menos correcta por Militares. Ora um Militar, cidadão fardado tem o duplo dever de tratar correctamente todos e, mais ainda uma mulher. Está, hoje, um pouco esbatida essa questão do sexo ou de ser mulher. Sou velho e rejo-me por princípios de outrora e burro velho não aprende línguas. Mostrei, aqui neste espaço a minha solidariedade e disse que um militar tinha, por obrigação, um comportamento correcto. Devia ter ou não honrava a farda. Mas calei-me a pedido. Claro que sei que a democracia e a liberdade, como a entendo, ainda por lá lentamente se constrói…Desta vez nada digo.
Somente o lastimar e aproveitar para dizer: As Duas Faces da Guerra – ou as duas faces da Paz…

Tanto para comentar, tanto para dizer ou tanto para recordar. A assiduidade deve ser mantida.



Torcato Mendonça
Fundão
__________


Notas

1. Edição da responsabilidade de vb.

2. Caro Torcato:

O trabalho do editor está muito facilitado. As regras estão escritas no canto esquerdo, os tempos que levamos são de respeito pelo outro e as nossas idades também contam... E não estamos pressionados com shares. Mas vou pensar mais que uma vez antes de publicar um artigo não assinado.
Continua a Pensar em voz alta e não te esqueças de enviar.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2925: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (12): Pensar camarada...!



Torcato Mendonça
ex-Alf Mil
CART 2339
Mansambo
1968/69


1. Mensagem do nosso camarada Torcato Mendonça de 7 de Junho de 2008, com mais uma das suas já famosas e sempre bem-vindas dissertações.

Caríssimos Editores:
Não vos tenho escrito.
Há por aqui escritos mas… ficam.
O do nosso III encontro nunca foi… o Silva, depois do desaparecimento do José, o malandro ficou em Fá Mandiga e de lá não sai…
Temos as Estórias de Mansambo paradas (nada se perde)… depois saltei, na vã tentativa de desbloquear e aterrei nas férias de Janeiro/69 (salvo seja) e entrei numa doce recordação… estão a ver… teria quarenta???... E se conto e sai pela Net??? E se… pois… e se ela… olha ainda hoje sinto a Matilde. Caso sofrido e disso não falo mais. Ainda se sente… Escrever, recordar não é fácil. Para mim não é. Há escritos que deixam marca. Por isso nada tenho dito e vão esperando. Além disso têm saído escritos bem melhores. Os meus são de pena ou tecla corrida… um debita letras.

Para verem a dificuldade anexo umas reflexões. Dou um toque no título. Se leio ainda fica.

Mas vou desbloquear as estórias de Mansambo e o Silva vai sair de Fá. Malandro. Mas antes vai contar muito… depois vai até Mansambo e o mais que se verá…

O País hoje está feliz. Até que enfim! A bola… eles não sabem que o sonho… já não me lembro… não interessa. Somos uma potência futebolística e o Ronaldo é nosso… é isso que interessa.

Abraços e bom fim-de-semana.

2. Pensar Camarada…! - (Pensar em Voz Alta)
Por Torcato Mendonça

Para ti Camarada, para ti, que prematuramente partiste… e para vocês Camaradas que comigo andaram, pelejaram, sofreram, riram e festejaram pouco. Vieram quase todos. Outros ficaram lá, na Terra deles e continuaram… até quando?

Algo se passa. Sente-se. Parece ter havido uma, chamemos-lhe, inflexão pós III Encontro. Temos ainda a questão: - A guerra estava militarmente perdida?

Parece que o pensamento de um camarada estava certo: é questão infindável. Discute-se, debate-se, confrontam-se ideias e, sem darmos por isso, afastamo-nos de assuntos mais tristes.

Dizia-me, na Ortigosa, o Mário Beja Santos – estás tão azedo, tão tristonho… Talvez seja isso e eu esteja a ver mal… estou a azedar…

Sinto a tal inflexão bloguista e talvez não exista. Pois, nos intervalos, voltamos a ler estórias contadas, vividas, sentidas. Memórias de um tempo que foi meu, teu, nosso. Sem pretensões, sem tentar pôr salto alto ou bicos de pés. Parece-me por vezes sentir isso. Deformação minha, erro meu, má fortuna, amor por uma terra vermelha e ardente…

Talvez o III Encontro tenha sido, isso sim, um Marco. De Organização e Camaradagem foi. Subjectivo claro. Assumo a afirmação. Assumo aliás todas as que faço, concordantes, discordantes com… desalinhadas ou como queiram classificar. Sinto certo afastamento Tertuliano. Será?

Escrevo e não teclo, ou teclo sem escrever, como agora, e fica por aí.

Surgem-me, no entanto, várias questões e penso, reflicto e não sei. Assim:

Uma questão prende-se com a guerra – colonial, do ultramar, de libertação. Porquê? Guerra do ultramar ou colonial, para nós antigos combatentes e de libertação para os Guineenses. Haverá dúvida? Temos, legitimas divergências na designação colonial/ultramar. Respeito a designação do ultramar. Mas, para mim é colonial. Dizias isso, lá na Guiné? Parvoíce se assim questionado. Claro que não, para mais problemas já bastava assim. Pode é dizer-se, pode!?, que a guerra na Guiné contribuiu para acelerar a queda do regime e deu algum contributo ao golpe em 25 de Abril.

Se já havia a divergência no comentário e na designação, então agora piora tudo. Deixemos Abril, por ora. Mas:

Terá libertado ou foi só o nome, guerra de libertação para os Guineenses claro. Não temos conhecimento, ou eu não tenho, o que o Povo da Guiné pensa sobre isso. Ou haverá conhecimento? Ou havendo não é conveniente dizer que o Povo não se libertou ainda. Ou libertou? Hoje vive melhor do que no tempo colonial, pois, além da liberdade, tem o desenvolvimento que propícia uma vida melhor? Será que tem? Mesmo a liberdade terá sido alcançada?

O Povo está sempre pronto a receber os portugueses, tenham eles sido velhos combatentes ou não. Refiro-me mais aos militares e a outros não enfeudados com o colonialismo, porque houve colonialismo. Aquele Povo, aquelas gentes são assim… e os velhos sabem como nós fomos e somos. Para os mais novos funciona a educação oral. E as elites, a classe dirigente? Como pensam? Ontem no DN o general Tagma N´Waié, Chefe do Estado-maior General da Guiné-Bissau, – “expressou alguma reserva á escolha de um general, da antiga potência colonial, para chefiar a missão europeia”… DN 4 de Junho/08 pag. 17.

Podemos ver, esta tomada de posição, pelo menos, de duas formas. De qualquer forma subsiste sempre, para mim, a dúvida anteriormente apontada: o que pensa a classe dirigente? É somente uma reflexão que faço na solidão e, se passada à tecla, não vai sair em torrente caudalosa. Sai antes em palavras cautelosas. Penso porque existo, tenho o direito a opinar mas não, isso não, a expressar publicamente o fruto dessas reflexões.

Ou o e-mail que me é enviado por um camarada não racista. Coloca ele a questão, quanto a mim pertinente: só os brancos são racistas? E os negros e outros? Para quem, como eu, que aceita haver só uma raça, independente da cor, que sentido faz? Há só a raça humana. É utópico ou estúpido, eu pensar assim e não querer aceitar que muitos pensam de forma diferente. Independentemente da cor da pele. Essa a realidade, infelizmente, que urge combater.

Outra questão, a que se prende com a guerra porque cada um passou. Melhor dizendo, foi obrigado a passar. Complexo o tema de a minha, a tua, a dele. Ou o tormento de viver alguns meses seguidos em abrigos.

Sabes isso camarada… eu sei que sabes.

Terrível, desgastante e a torcer o corpo todo. Digo isto porque, depois de estar cerca de três meses em Fá, na Guiné sempre dormi em abrigos. Excepto nas passagens por Bambadinca, Bissau e em alguma cama paga. O resto foram em abrigos, melhores ou piores. Alguns com direito a banho e musica, ou seja, na época das chuvas caía água por cima e por baixo alguma rã atrevida cantava.

Pouco confortável camarada, pouco confortável.

Sei que passaste pior, em mais duras condições e, ainda por cima a isso não estavas habituado. Mas suportavas. Eu e os meus camaradas fomo-nos habituando. Aguçamos o engenho e a arte. Tínhamos roupeiros, paióis pequenos e outros locais de arrumação. Simples… escavávamos um buraco, nas paredes, em terra, dos abrigos e lá metíamos, de roupa a munições e diversos. Casa de banho e sanita a mais perto era em Bambadinca, a sede do batalhão para o qual trabalhávamos. Isto nas Tabancas e na sede da companhia… eu conto:

Em Mansambo, quando construíamos o aquartelamento (oito abrigos e anexos) recebíamos o material por colunas auto. Um dia, junto ao material veio um engenheiro. O Capitão mandou-me chamar. Lá fui contrariado. Descansava recuperando de uma emboscada ou patrulha do dia ou noite anterior.

Eu sei que sabes camarada, eu sei que sabes que é chato estar uma noite à espera e nada. Aparecem mosquitos, macacos e do In. Nada!

Falei com o engenheiro e vi os papéis. Trazia o projecto de instalações higieno-sanitárias; casas de banho, sanitários e complementos. Se fosse hoje talvez tivesse hidromassagem. Mas tinha tratamento de efluentes. Era de tal maneira eficaz que quase se podia beber água depois de tratada. Do género mija aqui e bebe acolá. Nós tínhamos uns bidões ligados em série e, por debaixo estavam os duches. A água, de lá saída regava uma minúscula horta. Tinha um contra, a bateria de bidões nos ataques, invariavelmente era furada…tapavam-se os buracos a capim e alcatrão. Sanitas também não tínhamos. Três valas em paralelo e duas tábuas e uma pá por vala. Prático, eficaz e pouca privacidade.

Estás a ver camarada, estás a ver. Um tipo punha os pés na tábua e…

Não se recusou, directamente, o projecto do engenheiro. Que sim… se tivéssemos dificuldades diríamos. Foi-se o engenheiro no dia seguinte e, por azar, sofreu uma emboscada ali perto. Lá fomos tentar ajudar. Estava sentado, um olhar triste e disse-me: - "Saio pouco mas, quando saio acontece quase sempre isto". Azarado o engenheiro. Arrumado o assunto da emboscada, lá foi o pelotão e o engenheiro. O projecto não me lembro o destino que levou. Nunca foi concretizado.

Vivia-se bem e comia-se melhor. Um dia a amibiase atacou-me e, como fui destacado para Candamã, na passagem por Bambadinca falei com o Dr. Payne, o saudoso Payne. Ouviu, receitou de pronto e aconselhou dieta: tomas isto e a dieta tem que ser feita. Talvez tenha cofiado a barba e perguntei: Oh Payne para dieta aconselhas: feijão-frade, catarino, branco, manteiga… com chispe holandês ou com cavala portuguesa?

Eu sei que comeste o pão que o diabo amassou, bem pior que nós.

Por pão… estive tempos e tempos sem lhe ver a cor, quando andava pelas tabancas. Até tive um desejo, um forte desejo e sonhava com aquilo. O aquilo era uma sandes com manteiga e fiambre e, para beber, uma Coca fresca, quase gelada. Um dia satisfiz o desejo. Entrei no bar, pedi o desejo. Até disse para trazer a Coca junto da sandes. Salivava pior que o cão do Pavlov. Veio o pedido e o sorriso do soldado barman. Agarrei a Coca e deitei devagar.

Estás a ver camarada, estás a ver… pouca espuma. Depois agarro cuidadosamente na sandes e desilusão a minha. Aperto e espalmei a sandes, género duas bolachas com recheio. Olhei e perguntei: – "Que merda é esta? - É da Caritas meu alferes, farinha da Caritas. Porra, de quem?" - A desilusão foi tal que saí mais que… isso camarada, isso, eu sei que acertavas no palavrão.

Porque falo nisto se tu sofreste mais, nesta guerra de diz tu digo eu e o Solnado podia nela ter-se inspirado. Que violência ou má-língua. Bolas, aquilo por vezes chiava fino. Pois claro, com tantos tiros e granadas. Um tipo com aquela barulheira toda, nem tinha tempo para ter medo.

Tiros não ou tiros sim? Sabes mais disso do que eu. Tiveste certamente ataques terríveis, montaste emboscadas e sofreste outras. Fizeste outra guerra mais consentânea com quem percebe daquela arte. Eras miliciano, mas podias ser profissional. Seriam os profissionais melhores? Estavas na primeira comissão e podias estar na décima. Era-te indiferente.

Olha camarada eu ouvi tiros, ouvi caírem granadas disto e daquilo. Não digo que não atirei. Não. Atirei para acertar, provocar baixas ao inimigo, destruir e aniquilar. Mandei atirar o mais possível para destruir e provocar baixas. Sei que na guerra não se mata – aniquila-se ou provocam-se baixas. Por vezes eram mais de papel do que reais. Mas estava, estávamos, prontos a abater. A princípio causa certa confusão. Depois é rotina. A morte até tem aquele cheiro adocicado e provoca um silencio enorme á volta de quem morre.

Lembraste camarada?

Um militar morto, frio, ali estendido e o silencio… ou ferido e aquele cheiro adocicado a entranhar-se ou, caso tivesse morrido e ficasse carbonizado, diminuía tanto que ficava menino. Lembro um caso: a Moricanhe era uma Tabanca defendida pelo pelotão de Milícia 145. Foi atacada e apareci lá depois. Haviam mortos e feridos. Mas um estava carbonizado e pensei ser menino. Não era. Disseram-me o nome do soldado milícia e eu fiquei a olhar descrente. Conhecia-o e era maior do que eu. Depois compreendi. A água tinha-se evaporado e as extremidades desapareceram. Foi o primeiro que vi. Depois geram-se hábitos, ódios, indiferenças à condição humana… sabes melhor que eu camarada. Sem nos apercebermos estamos prontos a abater, a formiga ou o elefante… ou todos os quadrúpedes e bípedes entre eles… Mexiam-se… logo! Tu não? Claro que não! Sim? Ora bolas… francamente!

Deixou pesadelo nas noites de sono? Acontece. Olha Lagartil 10 – seria esse o nome? Ajudava? Preferia meia de uísque. Também tu camarada?! Bem me parecia que concordavas comigo.

Convergíamos nas ideias, na actuação, no sentir e, porque não nas vivências naquela terra vermelha, por vezes negra com o tarrafe ou em tom verde, com tantos verdes da mata… e os sons… os cheiros… a beleza de um por de sol…?

Pensas que ainda estou louco? Nada disso. Já se passou tanto tempo, tantas vidas… quando vieste que fizeste? Tentaste adaptar-te, viajaste, tentaste esquecer, dormias com mulheres a cheirar bem, bons restaurantes e tudo para entrar na vida normal. Claro limpaste-te e borrifaste-te nos que faziam comissão atrás de comissão ou dos que lá ficaram. Sacana! Não? Fizeste bem. Hoje penso que fizeste bem. Eu fiz isso tudo e borrifei-me. Sacanas. Nem te digo, nem plagio o Neruda – confesso que vivi…. Que queres? Não sou perfeito. Ainda por cima sou um plagiador de frases e pensamentos. O estupor da memória tem um compartimento que armazena, armazena e um dia estoira.

É a bolha. Só escrevo quando me dá na bolha. Hoje deu, alinhei letras em palavras e estas em ideias loucas.

Ah e a bolha é plágio. Vem do Luis Sttau Monteiro; Um Homem não Chora, Angustia para o Jantar; as crónicas no Diário de Lisboa… e, salvo erro no S. Carlos, na apresentação de uma peça de teatro ignorou o PR da altura. Claro que viajou logo até Londres. Lindo! Naqueles tempos de liberdade era assim… Que tem isto a ver com a guerra? Está tudo interligado… Pronto já sei que não gostaste do tratamento dado a Sua Exa. Tudo bem. Aceito sempre um pensamento diferente. Desculpa lá, camarada mas gostei e recordar são prazeres da memória… plágio… espero que aceites o pensamento diferente. Não seremos todos diferentes e todos iguais. Utopia? Não se aplica aqui?!

Tens razão. Dói-me a cabeça, a mona, a meloa. É da loucura. Será loucura?

Passa bem Camarada. Estás no além… olha tenho que, um dia, vir a acreditar nisso… mas, enquanto estiveste por cá, que terrível guerra a que fizeste. Ainda por cima sem luz eléctrica. Será que Candamã já tem luz eléctrica? O quê nem Bissau têm? Porquê?

FND
Jun/08
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Nota de CV:

Vd. poste de 16 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2851: Blogoterapia (52): Pensar em voz alta... De quantas mentiras é feita a verdade ? (Torcato Mendonça)