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sábado, 18 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2060: Bibliografia de uma guerra (14) : o testemunho de Pedro Pinto Pereira. "Memórias do Colonialismo e da Guerra", de Dalila Cabrita Mateus (Virgínio Briote)


Cópia da capa do livro de Dalila Cabrita Mateus . Memórias do Colonialismo e da Guerra. Porto: Edições ASA. 2006. Colecção: Arquivos Históricos. 672 pp. Preço: 24,00 € (com IVA).

Fonte: © Edições ASA (2006) (com a devida vénia...).


Testemunhos da Guiné, de quem esteve do outro lado, são raros, como se a guerra naquela terra tivesse sido um caso menor.  Pelo interesse e valor histórico, com a vénia devida a Dalila Cabrita Mateus (DCM), trancrevo excertos do longo e interessante depoimento prestado por Pedro Pinto Pereira (PPP) à autora, em Setembro de 2001 (páginas 547 a 569).
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Pedro P. Pereira nasceu em Bissau em 1926. Em Bissau concluiu o 5ª ano dos liceus. Em Portugal tirou um curso de Guarda-Livros. O seu tetravô, Honório Barreto, foi Governador. O avô foi director da Alfândega. E o pai, comerciante e vogal da Câmara de Bolama, terá sido arruinado pela Casa Gouveia, da CUF.

(....) Um primo seu, James Pinto Bull, foi secretário provincial e deputado pela Guiné à Assembleia Nacional. Um outro primo, Benjamim Pinto Bull, académico, foi agraciado com a Ordem do Infante. E um filho seu foi ministro da Administração Pública na Guiné (Kumba Yalá).

Foi preso pela PIDE em Março de 1966. Os agentes apoderaram-se, então, de duas medalhas com a efígie de Salazar, de que se confessa admirador. Uma emissão do PAIGC na Rádio Senegal afirmou que "até mesmo os seus cães...como o Pipi Pereira...foram parar ao campo de concentração" (1).
Levaram-no para a 2ª Esquadra da PSP, onde passou 335 dias. Em Fevereiro de 1967, por despacho do então ministro do Ultramar, Silva Cunha, foi-lhe fixada residência no Campo de S. Nicolau (Angola), onde permaneceu até Setembro de 1969.

Após a independência da Guiné, foi detido (pelo PAIGC) sob a acusação de ter sido fundador do Movimento de Libertação da Guiné (MLG).

Em 1976, intentou uma acção contra Portugal, sob a acusação de ter sido ilegalmente preso. Em 1992, Portugal foi condenado pela Comissão Europeia dos Direitos do Homem a pagar-lhe 800 contos.

(1) IAN/TT (Torre do Tombo), Arquivos da PIDE, Processo 641/61, PAIGC, 3º volume, "Emissão do PAIGC na Rádio Senegal, 8.02.1972, fls. 112 ss.
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Nota do co-editor Virgínio Briote: o depoimento de Pedro P. Pereira é extenso, a sequência é muitas vezes alterada, acontecimentos dos anos 60 misturam-se com alguns recentes, as opiniões pessoais abundam. Para melhor enquadrar os factos históricos, os que são dos nossos tempos, procurei sequenciá-los, respeitando o discurso do Pedro Pereira.
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" O primeiro governador da África Negra foi o meu tetravô, Honório Pereira Barreto. Embora não use Barreto, porque o governador apenas se "juntou" com uma prima minha, recusando-se a casar. Por isso, o meu avô não pôde usar o apelido. Mas foi o primeiro filho de Honório Barreto, que o mandou estudar em Portugal.

(...) mas não posso deixar de ter orgulho em ser descendente de Honório P. Barreto, que foi um grande governador, um grande defensor de Portugal. Grande mesmo, embora talvez prejudicando o próprio país, a terra que o viu nascer e que é a Guiné.

(...) naquela altura, quiseram tomar as ilhas de Bolama. Os ingleses foram lá com dois vasos de guerra e mandaram chamar o governador ao palácio. Sabe o que o governador fez? Foi a bordo de pijama e chinelos. eles é que deviam desembarcar e ir ter com o governador. Ele não se sujeitou àquele atrevimento de o mandarem chamar ao barco.

inauguração da estátua de Ulisses Grant (*) em Bolama (imagem in águalisa, de J. Tunes)
(...) O meu avô era de Cabo Verde, da Praia. Foi director da Alfândega da Guiné, primeiro substituto do juiz (...).

Mas o avô dele era biafada, de uma tabanca chamada Beduco.

(...) teve várias profissões (o pai, Vítor Gomes Pereira). Foi, por exemplo, comerciante: no seu tempo comprava 80 por cento dos produtos (mancarra, coconote), quando a CUF comprava 20 por cento. Então fizeram-lhe uma guerra terrível.

(...) Bastou dar o monopólio da exportação à Casa Gouveia, da CUF. Meu pai, natural da Guiné, era comerciante, empresário, comprava a mancarra e vendia-a para a Alemanha.

(...) Porque fui preso? Que me viram em casa de um rapaz chamado Mário Baldé, cujo pai fora criado na casa de meu pai. (....) Fui preso no dia 12 de Março de 1966. E acusado também de dar dinheiro para o partido, o que era mentira. Bem, tinha uma certa admiração pelo primeiro partido que existiu antes do PAIGC, que era o MLG (Movimento de Libertação da Guiné). O chefe desse partido era o Zé Lacerda, filho de um capitão português que viveu muito tempo em Bolama.

(...) Houve um desentendimento quando o Amílcar Cabral chegou à Guiné, como engenheiro agrónomo. De modo que dois rapazes de Cabo Verde, o Fernando Fortes e o Infante Souto Amado, foram ter com o Amílcar, e lá se fundou o PAIGC; também era a única maneira de Cabo Verde se tornar independente.

(...) (a sede da PIDE em Bissau), era ao pé do campo da bola, na altura o Estádio Nacional. Quem saía do Estádio para ir para a Praça do Império, era naquela rua. A primeira casa à direita de quem vai.

(...) (esteve em interrogatórios na Pide) Dois dias e tal.

(...) (o meu primo) Era o dr. James Pinto Bull. O pai dele era de origem inglesa, era da actual Serra Leoa. O Pinto era da irmã da minha mãe, e o Bull, do pai.

(...) (virei-me para o subinspector) O senhor já me devia ter dito (de que era acusado). Você fez isto e aquilo, mostrando-me as provas. Ou então mande-me para minha casa.(...)

Então isto é assim? Disseram-me que ia a tribunal, mas onde está o advogado, onde? Já passaram dois dias, e o meu advogado onde está? Veio cá para tratar comigo de uma procuração, e o senhor correu com ele, porque ele lhe perguntou o que é que eu tinha feito.

Este advogado era o dr. Macaísta Malheiros, que depois foi juiz.

(...) Mas voltando atrás. Não se atreveram a bater-me, mas eu também fui muito corajoso. (...) (estive) Sempre, durante trezentos e trinta e cinco dias preso na 2ª esquadra.

(...) Ouviu falar do dr. Henrique Medina Carreira? Foi ministro depois do 25 de Abril. É filho de António Barbosa Carreira, que só tinha a 4ª classe.
Esse Henrique Medina Carreira fez primeiro o curso de agente técnico de engenharia electrotécnica, depois foi para a Guiné trabalhar nos correios, esteve lá dois meses a trabalhar, mas foi ter com o pai e disse-lhe que se queria ir embora para estudar.

O pai respondeu-lhe que não tinha dinheiro, que dali não saía. Então ele foi ter com uma pessoa amiga do pai, um grande comerciante em Bissau, Mon Ali Amon, que também foi preso comigo.

(...) Mandaram chamar o Duarte Vieira, esse que tinha sido servente nas Obras Públicas e que chegou a tenente miliciano do Exército Português. (...) O tal Duarte Vieira, pediu a máquina de escrever e escreveu, escreveu, chamando-lhes nomes. Levou tanta pancada, que lhe quebraram a cabeça. Foi depois sepultado no cemitério.

(...) Mataram-no sim. Mas disseram que fugiu, que batera com a cabeça e morrera.

(...) (a acção contra Portugal) Meti. Foi o dr. Orlando Marcelo Curto que meteu a acção. Aqui em Portugal perdi três vezes. (...) Recorri sim, para a Comissão Europeia dos Direitos do Homem. E ganhei.

(...) Em 1976, mas só a ganhei em 1992, dezasseis anos depois.

(...) (quem assinou o despacho) Foi o dr. Silva Cunha, ministro do Ultramar e da Defesa. Foi ele que assinou a nossa deportação para Angola.

(...) Éramos catorze.

(...) O inspector Reis Teixeira disse que íamos para São Nicolau, que o governador-geral de Angola até tinha feito a proposta de voltarmos para a Guiné (Arnaldo Schulz, o então governador da Guiné, ter-se-á oposto). Estive em São Nicolau 56 meses.

(...) Que assistira ao fabrico de uma bomba. Quando eles (PIDE) é que tinham deitado uma bomba em Farim, onde mataram muita gente (**).

(...) (quem lançou a bomba?) Foi a PIDE que mandou, tenho a ceteza disso. Lançou a bomba para depois dizer que nós até matávamos africanos. Ali não havia quartéis, só havia casas comerciais, onde era fácil lançar bombas e fugir. Porque é que não lançavam as bombas nos quiosques, frequentados pelos militares portugueses? E iam deitar onde só estava a população?Queriam arranjar pretexto para fazer prisões. Havia, então, uma festa numa tabanca e morreram mais de cem pessoas. Isto passou-se no dia 1 de Novembro de 1965.

(...) Comigo foram o Fernando Fortes, o Souto Amado, e muitos mais. Esteve lá um europeu connosco, o Cordeiro. Ele era duro, insultava a PIDE na rua abertamente. Ele tinha dois cães, a um chamava "pide" e ao outro o nome de um inspector que estava lá.(...) Era um grande técnico de raios X.

(...) Saí em 18 de Setembro de 1969, às 5 horas da manhã. (...) E fui recebido pelo governador da altura, o general Spínola, quatro dias depois de lá estar.

(...) Olhe, já me esquecia de lhe contar. Na altura em que a PIDE me foi prender, roubaram-me medalhas de bronze com a figura de Salazar. Ainda hoje sou um grande admirador de Salazar. Sou admirador da sua honestidade, do seu valor. Até fui a Santa Comba Dão para conhecer a casa dele!

(...) (porque fui preso pelo PAIGC) Por ter fundado o partido MDG (Movimento Democrático da Guiné). Estive preso vinte e seis meses. No tempo de Nino Vieira também não me davam autorização para exportar, dava-na a toda a gente, menos a mim."
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(*)"Ulysses Grant foi um general e estadista americano, nascido em 1822 e falecido em 1885. Andou na Guerra do México, em 1847, e participou activamente na Guerra da Secessão, lutando ao lado dos Nortistas, tendo dado o golpe de misericórdia aos Sulistas em 1865. Candidato a Presidente dos Estados Unidos, venceu por maioria esmagadora, tendo governado de 1868 a 1876, como 18º Presidente. De 1877 a 1880 fez uma viagem triunfal em volta do mundo, onde foi sempre calorosamente recebido."

"Pois foi este famoso estadista que defendeu abertamente a posse da Guiné para Portugal. Em memória de alguém que, sendo grande, soube advogar com generosidade uma causa justa, o Governo Português encomendou a Manuel Pereira da Silva a respectiva estátua."


in Joaquim Costa Gomes - Três Escultores de Valia: António Fernandes de Sá, Henrique Moreira e Manuel Pereira da Silva. Ed. Confraria da Broa de Avintes.


(**) Confirmado o incidente, a PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar, afirma que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças.

Foi detida meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir militares (?). Para o fazer, teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC.

(AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

O interessante é que Pedro Pinto Pereira, um adepto do regime e admirador de Salazar, atribua o incidente à própria PIDE. Aliás, fazendo-se eco da versão que, na altura, circulou entre a população africana, como o reconhece a própria Polícia (DCM).