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domingo, 29 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13345: Palavras da Memória (Alberto Alves) (2): Momento de Guerra (Abel Santos)




1. Em mensagem do dia 19 de Junho de 2014, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos mais um texto do livro "Palavras da Memória", de autoria do seu amigo e camarada Alberto Alves, ex-Fur Mil:





PALAVRAS DA MEMÓRIA

2 - MOMENTO DE GUERRA

Sempre as operações militares se processavam de uma forma acostumada e repetitiva, pese embora o secretismo que as envolvia e o especial cuidado posto na sua preparação.
Daquela vez também tudo decorreu dentro das normas usuais, com os mais directamente responsáveis pela condução dos homens a serem chamados pela noite dentro para ouvirem o programa e os objectivos da acção e providenciarem os preparativos com os homens e bagagens-material de guerra.

Por que nunca se tratava de brincadeira, muito menos de utopia, as coisas eram levadas e entendidas com muita seriedade e responsabilidade. Por isso, não eram permitidas “baldas” e tudo era passado a pente fino, desde equipamento bélico, até às refeições, água e mesmo o próprio estado físico, mental e de saúde.

As caminhadas eram longas e duras e era precisa toda a operacionalidade mental e física para aguentar o calor tórrido do início e meio da tarde, as cacimbadas nocturnas, o chapinhar na bolanha e a enorme percentagem de humidade do ar…

Como já não era novato na matéria, as explicações preparativas eram escutadas com grande atenção e as questões e interrogações surgidas, esclarecidas e ponderadas ao mais ínfimo pormenor.
Nestas ocasiões - e porque o início era sempre antes do raiar da aurora - a noite era vencida em amena cavaqueira, entremeada por duas partidas de “king”, com dois copos e um leve petisco à mistura.
Depois, o despertar da malta que, em silêncio atento, tomava conhecimento da operação, aprontava o material, tomava o pequeno-almoço, recebia a ração de combate e esperava pacientemente o início da caminhada.

Um certo e natural nervosismo contrastava com um leve sorriso nos lábios e um olhar distante e frio. Todos sabiam dos cuidados e atenção a ter, da responsabilidade que a cada um cabia. Sentia-se em alguns lábios o murmurar de uma oração silenciosa, rápida fervorosamente sentida, que num ápice dava oportunidade a dois dedos de conversa insignificativa, apenas para preencher o tempo. Nunca faltavam um pouco de humor e os vaticínios de boa sorte.

Como a operação agendava quatro dias, e apesar do reabastecimento estar previsto para um aquartelamento situado algures em cruzamento do trajecto, rigorosa inspecção a armas, munições e refeições, antecipava o início da partida.

Siai, localizado entre Canjadude e Cheche

Não se vislumbrava ainda o raiar do dia no horizonte e já a enorme fila de homens tinha palmeado um bom par de quilómetros, um caminhar cuidadoso quanto silencioso, ouvindo-se apenas o quebrar do capim à passagem e o pisar da terra húmida da bolanha. Não tardaria o sol e o despertar para a vida de milhares de insectos que durante o dia eram grande incómodo para todos. A cada paragem, o cuidado do espaço a ocupar, a redobrada atenção do olhar, a serenidade (inquieta) de momentos difíceis e de grande tensão, misteriosos até pela incógnita que sempre representavam.

Com a Terra em fase de aquecimento pelo calor de um sol brilhante e ávido por penetrar na imensidão da floresta, a grande fila de homens não dava tréguas, e em cuidadosa e lenta marcha ia vencendo quilómetros a fio em terreno perigoso, porque desconhecido e” habitado” pela outra parte, que a convenção de guerra chama de “inimigo”.

Iam-se as horas e os quilómetros. Os corpos escorriam suor e denotavam os efeitos do sol abrasador e o cansaço próprio da caminhada difícil feita em constante pressão psicológica, ainda que o relógio marque pouco espaço para se atingir a uma da tarde.
O intervalo para ingerir parte da ração de combate veio por um pouco de acalmia nas hostes do grupo de combate.

Alguns piropos davam conta de que a refeição não satisfaz.
- Esta merda está cada vez pior. Devia ser comida pelos “trutas”.
- Se estivessem connosco também comiam.
- Não sei, não sei. Eles estão sempre nas velhas calmas e nós é que damos o corpo ao manifesto. Eles é que deviam fazer a guerra.
- Não digas isso, ainda vais dentro.
- Dava um tiro nos cornos a quem me quisesse deitar as unhas.
- Deixa-te de merdas! Não faltam por aí valentões que se borram de medo quando são chamados a capítulo.
- Estou farto disto. Se me vejo em casa, vou a Fátima a pé.

Tantos e tantos desabafos! Tantas ameaças! Tantas promessas! Tantos sonhos desfeitos em vento. Por vezes, lágrimas receosas afloravam perante o desespero da distância da casa paterna e do regaço familiar. A compensação numa amizade e sincera feita na caserna, no abrigo do aquartelamento, no desespero da emboscada e na caminhada pela mata em tantos momentos difíceis, tornava menos penosos os dias intermináveis que se iam, um após outro.

O sol agora é muito mais quente. São três horas da tarde. As camisas indicam a natural perda de sal através do suor. A interminável fila de homens caminha mais pachorrentamente em direcção a uma zona de ligeira depressão montanhosa. Está previsto que a noite será ali passada. Até lá, os homens tinham de caminhar pelo menos duas horas. Foi um espaço de tempo terrível, com os pés acusarem o efeito da água da bolanha, enquanto os olhos penetravam atentos na densa mata, agora mais densa pelo crescimento do capim.

Aos poucos, a distância vai sendo vencida. A aproximação de uma linha de água é indicativa de que o objectivo está mesmo ali na frente dos olhos. Um leve arrepio percorre os corpos suados e incute nos espíritos algum temor pela natureza do terreno que a partir dali terá que ser percorrido até ao cimo da pequena elevação. O descampado enorme que terá de ser atravessado impõe mil cuidados atenções. Por isso, foi necessário um estudo rápido sobre a estratégia a adoptar. São quase cinco da tarde e o cimo terá de ser alcançado antes que o sol desapareça – na Guiné a noite começa a cair entre as cinco e meia e as seis horas da tarde.

A estratégia encontrada para vencer aquela distância foi posta em prática e referenciava os parâmetros de qualquer manual de guerra subversiva: guardando distâncias entre si de cerca de dez / vinte metros, os homens iam avançando um a um, cobertos na base pelo grosso da coluna; ao chegarem ao destino distribuíam-se de forma a fazerem, também, a segurança dos que iam caminhando na clareira.

Penosa, cuidadosa e atenta, foi aquela caminhada.
- Isto faz arrepiar a espinha!
- É preciso tê-los no sítio!
- O que será que vamos encontrar quando chegarmos lá em cima?!
- Já veremos. Deixa chegar a nossa vez.
- Não tens medo?
- E que adianta? Temos de ir.
- O capitão é corajoso! Olha para ele!
- É miliciano; e os milicianos é que aguentam muito de tudo isto! São eles e nós!
- É isso mesmo. Se a malta se virasse…
- Olha! Está a nossa vez; desejo-te sorte. Abre bem os olhos para os lados.
- Vou indo. Até já.
- Lembra-te que vou nas tuas costas para te guardar! Figas!

Conversa rápida, com os nervos à flor da pele. Agora toda a atenção era pouca. E o ânimo e a coragem eram precisos. Aos poucos toda a gente se instalou do outro lado.
Bonita panorâmica se avistava do cimo, envolto em densa e impenetrável vegetação que foi preciso vencer em curta caminhada.

Como o sol não tardava a “ recolher”, rapidamente se fez um reconhecimento ao terreno para que os homens se instalassem com segurança para pernoitar. Foi escolhido o planalto.
Depressa se montou um esquema de defesa – dispositivo em forma de meia lua – e procedeu-se ao tempo disponível para a refeição da noite. O habitual esquema de segurança e vigilância não foi esquecido e começou logo de imediato a funcionar.

Estavam a chegar as seis horas da tarde. Notavam-se já as primeiras sombras da noite.
Mal houve tempo de “ajeitar” o chão para o relaxamento dos músculos…
Rá-tá-tá-pum! Rá-tá-tá-pum!

- Eles aí estão!

Foi o grito unânime e o levantar rápido, como que impulsionados por molas. Ao grito sentiu-se o contínuo rebentar de granadas de morteiro e lança-rockets e o trabalhar certeiro de metralhadoras pesadas e armas ligeiras. Reacção pronta dos homens instalados que, de armas aperradas, disparavam para a sua frente, por onde a escuridão da noite, convencidos de uma acção eficaz e capaz de terminar logo com aquela “brincadeira”. Ninguém sabia ao certo de onde vinha o fogo do “inimigo”. A única certeza era a de que as armas estavam aperradas e num cântico certeiro “cuspiam” projecteis como se ensaiassem uma nova melodia para a morte. Ao barulho das armas juntava-se um cheiro agridoce, que significava sangue e suor, e gritos de “apanha à mão, apanha á mão” que vinham do lado de lá. A tudo misturavam-se frases injuriosas e palavrões que, de um e outro lado eram proferidas com um misto de raiva e ansiedade pelo final de toda aquela trapalhada.

Parecia não ter fim aquela emboscada nocturna. Mas o espectáculo era digno de apreço: a enorme clareira que cuidadosamente tinha sido atravessada hora antes, fora transformada num enorme novelo de fogo por efeito das morteiradas que incendiaram o capim; as balas tracejantes voavam no espaço com rapidez, descrevendo trajectórias de rara beleza geométrica; o efeito das rocketadas nas copas das árvores lembrava o melhor e o mais belo fogo-de artifício!...

Foram duas horas que mais pareceram uma eternidade. Um cheiro acre a suor, misturado com sangue e pó e uma respiração ofegante, anunciava que nem tudo estava normal. A vozearia confusa dos homens não deixava perceber o resultado do tiroteio, mas era indicadora de maus presságios. Um certo nervosismo de passos apressados que iam e vinham, confirmavam que algo de anormal se estava a passar. De repente, uma ordem do capitão colocava serenidade nos ânimos e deixava antever que havia gente gravemente ferida, a precisar a precisar de socorros urgentes.

Era noite cerrada e a alvorada ainda estava a muitas horas de distância… Tornava-se imperioso manter a maior serenidade e calma para uma avaliação da situação e, sobretudo, analisar a gravidade dos feridos. Depressa se soube que um dos enfermeiros tinha que ser evacuado com urgência, juntamente com outros igualmente feridos com gravidade. Na maior escuridão, foram prestados os socorros possíveis, ficando ao sabor da vontade e generosidade de Deus e o piorar das coisas. Preocupados estavam todos e as dúvidas eram mais que muitas. Gemidos e murmúrios abafados foram o “pai-nosso” daquela noite longa e angustiosa para todos os homens. Não se percebia uma nota daqueles murmúrios, mas adivinhava-se a revolta, o medo, a dor e o sofrimento a ânsia de abandonar o local, apesar da coragem e do destemor de toda aquela malta que resistiu a uma ofensiva forte e traiçoeira – mas a guerra subversiva é, toda ela, feita de acções deste género.

Respirava-se a indignação. Sentia-se o corpo “empapado” pelo nervosismo de ocasião. Veio o amanhecer e com ele o suspiro de alívio. As pessoas agora podiam ver-se e sentir melhor a realidade. Em cada rosto a máscara de uma noite de insónia nervosa e expectante; um corpo moído e cansado pela caminhada do dia anterior e pela falta de descanso.

Pum! Pum! Pum!
Num momento as armas voltaram de novo à posição de “vomitarem” a canção da morte. Das gargantas um grito seco e estridente: “eles aí estão”! Mas… às três morteiradas segui-se logo silêncio. A malta manteve-se atenta e serena. A experiência nestas andanças aconselhava a manter o sangue frio, não reagindo àquela “música” pesada que logo pela manhã pretendia causar inquietação. Prosseguir a acção era o passo seguinte da operação. A grande preocupação eram os feridos, alguns dos quais a necessitarem de tratamento adequado em hospital.

O contacto via rádio tinha sido estabelecido com o aquartelamento mais próximo e aguardava-se a todo o momento a chegada de meios que a possibilitassem a evacuação dos feridos. Restava, por isso, esperar com paciência. Cuidadosamente, foi feito um reconhecimento ao local e iniciada a caminhada de regresso, segundo os planos estabelecidos. Uma caminhada mais lenta e cuidadosa, na medida em que era preciso transportar alguns feridos em macas improvisadas. Pelas dez da manhã, um novo contacto, agora com unidades da Força Aérea, permitia a chamada de helicópteros para evacuação dos feridos, operação que seria feita sem incidentes e em curto espaço de tempo. Agora sim, podia respirar-se com mais algum alívio. Para os restantes, a marcha continuou: lenta, cuidadosa, não fosse o diabo tece-las.

À medida que as horas iam passando e os quilómetros iam sendo vencidos, o ânimo e a melhor disposição voltavam aos rostos e corpos cansados dos homens que continuavam em longa fila à espera de um pacato canto para o relaxe e descanso. Mais de quatro horas – depois de longa paragem para a dose de ração de combate – foram precisas para vencer a distância até ao aquartelamento onde estava previsto o reabastecimento e algumas horas de repouso. Foram horas difíceis, marcadas pelo cansaço próprio de horas seguidas de caminhada lenta, agravadas pela noite terrível de insónia e nervos, com tinha sido a noite da emboscada.

Pachorrenta, a fila de homens arrastava-se com tranquilidade mais animadora, porque cheirava já a proximidade do quartel – meia dúzia de abrigos cavados no chão, com algumas casas dos nativos e arame farpado a cercar todo o espaço.
- Estamos a chegar, cheiro isso à distância.
- Ainda bem. Sinto-me num oito. Dói-me o corpo todo.
- Deixa lá. Os que foram embora estão em piores condições.
- É verdade. Como estarão eles?
- Tens água?
- Devo ter algumas gotas no cantil. Toma. Vê o que tem. Podes gastar à vontade.
- Ah! Tinha as goelas secas!
- Tiveste sorte. Poupei-a muito durante o trajecto.
- Não sentes um cheiro esquisito?
- Não. Sinto um cheiro doce e parece-me que corre humidade no ar. Estamos próximos de um rio.
- Deve ser o rio Corubal.
- É isso, é. Uma banhoca para tirar o pó vem mesmo a calhar.

Em surdina, a conversa ia animando a marcha e provocava nos homens uma sensação de alívio e confiança. Para trás ficavam alguns temores com tiros e sangue à mistura, que ainda seriam temas de grandes discussões e exemplos para cuidados e preocupações.
O ritmo cadenciado dos passos ia martelando os ouvidos atentos, enquanto os olhos se espraiavam pela vegetação menos e convidativa a uma marcha mais acelerada.
O pular de pequenos símios nos ramos das árvores emprestava ao ambiente um ar divertido e era prenúncio de que por ali não podia rondar qualquer perigo. Começava a avistar-se, lá longe, a população que trabalhava a cultura do arroz e do milho e recolhia o gado. Outros carregavam trouxas à cabeça. Era sinónimo de que a povoação estava ali mesmo na frente do nariz dos homens que continuavam ordenadamente em fila e deixavam correr pelo corpo o suor próprio de uma longa caminhada debaixo de um sol ardente.

Estava quase gasto o tempo de duração de dois dias. As pernas estavam mais ou menos bem, mas o resto do corpo continuava a sentir a noite de insónia e o estômago alegrava-se quando na mente passava um cheirinho a caldo quente e bem cozido. Não admirou, por isso, que a distância até ao aquartelamento que começava a divisar-se fosse percorrida com maior entusiasmo e rapidez.

Foi enorme a satisfação de alívio que a rapaziada encontrou quando se achou em bem mais seguro e que dava por finda a caminhada daqueles dois dias. Sabiam que outro tanto tempo faltava ainda para chegarem ao ponto de partida. Mas esta situação era menos importante e transmitia aos homens nova confiança e mais esperança.
Não estranhou que a grande maioria dos homens caísse na água tépida e límpida do rio e desse largas a um distender mais relaxado e confiante dos músculos.

Não foi uma refeição farta. Mas ajudou bastante no retemperar nas forças e moral dos homens que antes de adormecerem no chão duro da tabanca ou do abrigo, tiveram oportunidade para dois dedos de conversa diante da luz mortiça da garrafa com petróleo que servia de candeeiro e a acalmia de um cigarro bem apetecido e apreciado.

Não havia lua naquela noite. Talvez por isso as manchas escuras das árvores emergissem ainda mais majestosas naquela imensidão de floresta tantas vezes perigosamente enigmática.
- Anseio cada vez mais que isto acabe.
- Também eu.
- Não sentes mais medo agora do que no princípio?
- Acontece com todos. Hás-de ver que daqui para a frente é pior.
- Santo Deus! Onde a malta veio cair!
- Deixa lá. Isto está quase no fim. Muito mais de metade está passado.
- O rabo da cabra… não é?
- Dizes bem.
- Apesar de tudo, temos de dar graças a Deus.
- Porquê?
- Temos um Comandante de Companhia que é mais do que nosso pai. Não permite baldas. Percebe disto. Tem-nos safado bem. Gosta muito de todos.
- Tá bem. Mas não nos safa destas merdas.
- Ele também está metido nelas. Decerto se ele mandasse ninguém vinha para cá.
- Ou a merda da guerra já tinha acabado.
- Já pensaste bem nesta vida? O que temos feito? O que temos passado? Os tiros que temos dado? O que nos esperará ainda?
- Sei lá. Só sei dizer que isto não interessa a ninguém.
- E eu ainda tenho um irmão que pode vir cá cair.
- Ninguém se safa.
- É difícil de perceber. Dizem que estamos a defender a Pátria. O que quero é defender a pele.
- Há tempos ouvi o alferes F dizer que os “turras” têm razão. Que esta é a terra deles e que por isso têm todo o direito de lutar.
- Eu quero lá saber. Que fiquem com a terra, mas que me deixem ir embora. Eu não pedi para vir.
- É como o outro: mas agora que estou cá…
- Não me f …. A malta está farta. E se perguntares ao pessoal, está tudo farto de andar aos tiros sem saber a quem e para quê.
- Por falar nisso: viste os rastos enormes de sangue que ficaram da emboscada de ontem?
- Morreria alguém ou seria só na pele?
- Não sejas cínico.
- Pois não; e os nossos?
- Também tens razão.
- É sempre a mesma música; tiros, sangue, feridos graves e ligeiros, mortes.
- Já nem durmo só de pensar nisso.
- Não penses e dorme.
- É o que vou tentar fazer. É só acabar o cigarro.
- Não te esqueças de apagar a vela.
- E tu não te esqueças de colocar a G3 a jeito.
- Não esqueço, não.
- Então, até…

Sem grande alvoroço, a malta despertou ao chamamento. Mais preparativos, novas e cuidadas recomendações, pequeno-almoço e pés ao caminho.
Está fresca a manhã. O sol ainda vai demorar, pois são apenas cinco da matina.

Em silêncio, a longa fila de homens caminha pela mata, mas depressa tem de atravessar extensa bolanha com água que, em alguns sítios, dá acima do joelho.
- Que mal faria eu para me acontecer isto logo pela manhã?!
- Cala-te e vê o que vais a fazer.
- Quando sofreres dos ossos escreve-me a mandar-me calar…
- Não me esquecerei. Mas agora anda lá e toma cuidado. Olha onde pões os pés para não deixares cair a arma. E toma cuidado com as granadas que levas à cintura.
- Não sei para quê tantas recomendações, quando precisas de tomar as mesmas cautelas.
- É para ver se te calas e caminhas com mais cuidado que isto ainda vai durar.

Lentamente a caminhada prossegue, com cuidado, com o olhar atento e penetrante, agora que as formas escuras da vegetação tomam outras formas e outra luz, pois o dia começa a clarear. Sente-se desaparecer no ar a humidade do cacimbo, embora as gotas desse “orvalho” dêem conta de si quando nos bate no corpo a ramagem da espessa vegetação que nos rodeia.
De novo virá o sol quente, provocando uma aragem abrasadora e sufocante em virtude da grande percentagem de humidade que caracteriza o clima da Guiné; de novo virá a noite sempre enigmática e duplamente perigosa e o dormitar a espaços, porque toda a atenção será pouca; voltará novamente o despertar para o início da caminhada rumo ao aquartelamento onde nos espera um pouco de descanso e uma boa oportunidade para relaxar enquanto não se prepara nova acção.
Vão ser mais horas de terrível pressão psicológica, pela atenção e cuidados a ter; novamente o cansaço, o suor, a sede, os mosquitos e a incerteza que dali do interior da mata densa e misteriosa surja a surpresa da emboscada. Então, serão mais umas nuances para a “melodiosa” versão do “tango dos barbudos”, em mais uma canção para a morte.

P.S. - Texto escrito algures no nordeste da Guiné, no ano de 1969.

Do livro "Palavras da Memória" de Alberto Alves, ex-Fur Mil da CART 1742
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12353: Palavras da Memória (Alberto Alves) (1): Reflexão sobre a amizade (Abel Santos)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12353: Palavras da Memória (Alberto Alves) (1): Reflexão sobre a amizade (Abel Santos)




1. Em mensagem do dia 22 de Novembro de 2013, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos este texto sobre a amizade alicerçada num convívio permanente e partilha de emoções, retirado do livro Palavras da Memória, de autoria do seu amigo e camarada Alberto Alves, ex-Fur Mil:




AMIZADE

No exterior da porta pode ler-se em letras garrafais: “TABANCA DA VIZINHANÇA”.

O papel é branco, parece bem cuidado e forte e as letras constituem um bonito artefacto de engenho e arte, são um hino a quem estudou caligrafia feita com aparo próprio em ESCOLA COMERCIAL. Mesmo ao lado, em traço de fino recorte arquitectónico, o desenho macabro de um crânio descarnado, que deixa ver a profundeza do local onde estiveram implantados os olhos, a boca, o nariz e os ouvidos, e a legenda habitual nestas circunstâncias: “PERIGO DE MORTE”. Dois riscos simples lembram descargas eléctricas e dão colorido a todo o conjunto do significativo e macabro painel.

Do outro lado da porta, o quarto de dormir. Melhor dizendo, a camarata: equipada com seis camas de ferro, colocadas em beliche e armários de folha de latão. Os ocupantes - jovens do sexo masculino - cumprem serviço militar obrigatório, algures na Guiné-Bissau, no ano da graça de 1967, onde a guerra de guerrilha parece habitar todos os cantos do território. Os inquilinos do espaço descrito são: o “Tacos”, o “Gato Estúpido”, o “Macaca”, o “Comprimido”, o “Parafuso” e o “Caixa d`Óculos”.

Da esquerda para a direita. Nogueira-Gato Estúpido; Amaro; Pinto Mendes-Parafuso; Alves-Tacos e Viola-Caixa d'Óculos

São iguais, porque são portugueses e militares; porém, todos diferentes, porque assim rezam a psicologia da personalidade e do carácter; também porque são de regiões diferentes e porque cada um pensa por si.

Gente simples, alegre, que pratica a amizade e a solidariedade, com a generosidade própria de quem é jovem. Gente respeitadora de princípios e valores que fazem as sociedades mais justas e fraternas. É interessante vê-los a discutir com entusiasmo e até com alguns excessos. A verdade é que o abraço amigo e sincero está sempre presente para serenar alguns ânimos que, porventura, surjam mais exaltados.

Poder-se-á chamar a família da “Vizinhança”, tantos são os actos que definem a política de entreajuda e as coincidências que os corações exprimem relativamente ao são espírito de camaradagem, compreensão e respeito.
Dizem-se, apesar de tudo, “terrivelmente terríveis”.

No espaço que lhes foi atribuído para se instalarem, conjuntamente com o resto dos elementos que compõem parte da Companhia a que pertencem, não havia luz eléctrica. A iluminação nocturna dentro das instalações fazia-se através de garrafas de cerveja vazias e posteriormente enchidas com petróleo e uma torcida. Esta dificuldade causou curiosidade e despertou o interesse da rapaziada que fez um estudo pormenorizado da situação, que englobou contas e cálculos, meteu raiz quadrada e logaritmos, e, por artes chamadas de berliques e berloques, mestre parafuso, juntou fios e lá conseguiu o extraordinário brilharete de “dar à luz”, num parto difícil, mas sem dor. Foi o delírio para quem vivia às escuras.

Mas o pior estava para vir, pois de outras paragens choveram os “como” e os “porquê” sobre os métodos usados na descoberta do fornecimento de tanta luminosidade por ocasião da noite.
Seriam muitas as histórias para contar que foram protagonizadas pela equipa da “Tabanca da Vizinhança”. A luta diária contra o IN, contra o clima, contra o isolamento e a solidão, era a questão difícil de ultrapassar e trouxe para muita gente problemas graves do foro psicológico.

Luta desigual, que nem a automática G3 resolvia nem dava segurança, era a que todos os dias, pelo anoitecer, travavam com os mosquitos. Autênticas naves aéreas, voavam como “setas e virotões” virados aos corpos seminus dos que pretendiam resguardar-se do calor. Para além da marca da picada, a mente registava com grande acuidade o forte zumbido daqueles insectos incomodativos, difíceis de travar, que tantas noites de insónia provocavam.

Como na sua sucessão os dias nasciam sempre iguais em duração e sempre diferentes em tudo o resto, aquela malta não perdia oportunidade para espalhar e fazer sentir à sua volta a esperança de um sorriso feliz no futuro que se ansiava chegasse rápido. Pelo meio ficariam alguns sonhos de realizações impossíveis, outrossim de caminhadas da vida travadas pela bala ou pela mina traiçoeiras.

Esta verdade de todos os dias martirizava as mentes e os corações que viviam apaixonados pela realidade da vida do outro lado do oceano quando corriam ao encontro daquela palavra de magia “correio”… mesmo sabendo que as notícias tinham alguns dias e mesmo semanas de atraso…

Porém na sua contagem voraz, passava o tempo e algumas histórias que nem por isso conseguiram apagar do tempo e no tempo a amizade que uniu tantos corações em momentos inesquecíveis de sofrimento, de ansiedade e de isolamento, também de grande alegria e satisfação.

Marcadas no espaço, a amizade e a união prevaleceram durante muitos meses e contribuíram para que num dia de muita luz e tranquilidade se pudesse ouvir o grito de alegria que anunciou o regresso e o início o reinício de uma caminhada interrompida algures no tempo, mas agora mais amadurecida pelos anos, pela dor e sofrimento que marcaram um tempo de guerra e incertezas com sangue e morte à mistura…

Guiné-Bissau, 1967
Do livro "PALAVRAS DA MEMÓRIA", de autoria de Alberto Alves, ex-Fur Mil da CART 1742.