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segunda-feira, 25 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25306: Tabanca Grande (555): ex-fur mil enf, CCAÇ 2658 / BCAÇ 2905 (Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Paunca, Mareué e Bissau, 1970/1971): senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 885


Victor Jesus Carvalho, ex-fur mil enf, CCAÇ 2658 / BCAÇ 2905 
(Teixeira Pinto, Nhamate, Galomaro, Paunca, Bissau, 1969/71)... 
Membro da Tabanca da Linha, passa a integrar também 
a nossa Tabanca Grande, com o nº 885. 

Foto: Manuel Resende (2024)


Foto nº 1  > O  fur mil enf  Victor Carvalho exercendo 
as suas funções em Nhamate 


Foto nº 2 


Fotonº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 9


Foto nº 10

Guiné > Região do Cacheu > CCAç 2658 > Nhamate > 1970 > Fotos diversas, sem legendagem > O aquartelamento de Nhamate tinha instalações precárias, o BENG 447 andava ainda a desmatar e a construir o aquartelamento. 

Fotos (e legendas): © Victir Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar (Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Victor Carvalho, com quem o nosso editor Luís Graça esteve no 55º almoço-convívio da Tabanca da Linha, em Algés, no passado dia 14, mostrou-nos um lote das suas fotos, algumas com fraca qualidade. Tirámos cópia, com a nossa máquina fotográfica, de um seleção daquelas que nos pareciam melhores. A legendagem tem que ser, oportunamente, completada.

Ficámos a saber que é natural de Peniche, morando em Linda-A-Velha. Ficámos  com o seu número de telemóvel e endereço de email. 

O nosso editor convidou-o  a integrar a nossa Tabanca Grande, o que ele de imediato aceitou. É visita regular dos convívios da Tabanca da Linha. Não tem página no Facebook.

Vai sentar-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 885. 

Temos apenas 11 referências à CCAÇ 2658. O Rogério Ferreira, ex-fur mil at inf MA, era o único representante até agora desta subunidade (**)

Nhamate, subsetor do setor O1 (Bissorã ),  Zona Oeste,  também tem escassas referências (12) no nosso blogue.

De acordo com a "ficha de unidade", em 9 de março de 70, a CCÇ 2658 foi render a CCAÇ 13,  em Nhamate, passando a ter a responsabilidade desse subsetor.


Guiné > Região do Cacheu  > Binar > Nhamate > CCAÇ 13 > 1970 > Tratava-se de um reordenamento, tendo a população sido substraída ao controlo do PAIGC. As NT tiveram que construir um aquartelamento de raíz. Vivia-se em tendas e "buracos"...

"A nossa missão junto da população foi calma, em geral mostrou-se afável e colaborante, embora fosse clara a tristeza por abandonarem a sua antiga casa. Notou-se alguma influência da guerrilha, pois dois elementos da população (guerrilheiros?) chegaram a desafiar abertamente a nossa autoridade, um acabou por ser preso e o outro por ser morto, depois destes incidentes, as relações com a população foram sempre excelentes. Este reordenamento tinha não só o objectivo de retirar a população do controlo do PAIGC, mas também de reforçar a defesa nesta zona, dado que com os novos foguetões 122 mm, seria fácil à guerrilha atingir Bissau a partir daqui... " (Carlos Fortunato). 

Foto do álbum de  Adriano  Silva, ex-fur mil da CCaç 13 (Bissorã, 1969/71).

Foto (e legenda) : © Carlos Fortunato (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



2. Ficha de unidade > CCAÇ 2658 / BCAÇ  2905 

Identificação: BCaç 2905

Unidade Mob: RI 2 - Abrantes

Cmdt: TCor Inf Júlio Teófilo de Assunção Vila Verde | TCor Inf Alberto Alves Pinto Baptista
2.° Cmdt: Maj Inf Ernesto Farinha dos Santos Tavares
OInfOp/Adj: Maj Inf Noel da Silva Fernandes Aguiar

Cmdts Comp:

CCS: Cap SGE Albino Pedrosa Viana

CCaç 2658: Cap Mil Inf Hermenegildo Gomes Ribeiro

CCaç 2659: Cap Inf José Eduardo Miranda da Costa Moura

CCaç 2660: Cap Inf Luciano Ferreira Duarte

Divisa: "Firmes e Constantes"

Partida: Embarque em 3lJan70; desembarque em 06Fev70 | Regresso: Embarque em 02Dez71

Síntese da Actividade Operacional

Após sobreposição com o BCaç 2845, assumiu em 21Fev70 a responsabilidade do Sector 05, com sede em Teixeira Pinto e abrangendo os subsectores de Cacheu e Teixeira Pinto e a partir de 30Abr70 o subsector de Bachile, então criado. 

Em 28Jun71, os subsectores de Cacheu e Bachile foram retirados à sua zona de acção, passando ao Comando directo do CAOP I. 

Em 17 e 28Jun71 foram sucessivamente instaladas novas subunidades respectivamente em Bassarel e Carenque, e ainda em Chulame, este apenas de 26Jun71 a 20Ag071, então incluídas no subsector de Teixeira Pinto.

Desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, reconhecimentos, escoltas e de controlo e segurança dos itinerários, colaborando e fornecendo, ainda, todo o apoio logístico e administrativo à actividade operacional do CAOP (depois CAOP 1) e tendo como missão prioritária a orientação, coodenação e segurança dos reordenamentos das populações a sul do rio Costa (Pelundo) e a sua promoção económico-cultural.

Em 24Nov71, foi rendido no Sector 05 pelo BCaç 3863 e recolheu, seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.
***

A CCaç 2658 seguiu em 13Fev70 para Teixeira Pinto e dois pelotões para Bachile, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCaç 2572 até 28Fev70, após o que substituíu aquela subunidade na missão de reforço do sector do seu batalhão.

Entretanto, em 09Mar70, foi substituída pela CCaç 16 e foi deslocada para Nhamate a fim de render a CCaç 13. 

Em 14Mar70, assumiu a responsabilidade do respectivo subsector de Nhamate, com dois pelotões destacados em Manga e ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 2861, com vista à execução dos trabalhos de reordenamento das populações daquela área.

Em 18Jun70, foi substituída pela CCaç 2529 e seguiu em 22Jun70 para a zona Leste, a fim de reforçar os efectivos do Agr 2957, instalando-se em Galomaro e com três pelotões destacados em Paúnca, estes em reforço do COT 1, a partir de 23Jun70.

 Em 26Ju170, instalou-se em Paúnca, com destacamentos em Paiama e Saré Abdulai, ficando então na totalidade em reforço do COT 1.

Após deslocamento prévio de pelotões para Mareué, em 17Dez70 e meados de Jan71, assumiu, em 01Fev71, a responsabilidade do subsector de Mareué, então criado na zona de acção do BCaç 2893, mantendo, no entanto, dois
pelotões em Paiama até meados de Mai71 e depois apenas um até Jun71.

Após deslocamento, em 18Ago71, de dois pelotões para Bissau, foi rendida pela CCav 3405, em 05Set71, tendo seguido, em 08Set71, para Bissau, a fim de substituir a CCaç 2724 no subsector de Brá, ficando na dependência do COMBIS, com vista a garantir a segurança e protecção das instalações e das populações da área.

Em 23Nov71, foi rendida pela CCav 2765 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º  112 - 2.ª Div/4.ª Sec, do AHM).

 Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 141/142

________________

Notas do editor

(*) Vd. postes de 


6 de janeiro de  2024 > Guiné 61/74 - P25040: Tabanca Grande (554): Alberto Pires, "Teco", natural de Angola, ex-fur mil da CCAÇ 726 (Guileje, out 64/ jul 1966): passa a sentar-se à sombra do nosso poilão, no lugar n.º 883

sexta-feira, 22 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25297: Os Nossos Enfermeiros (18) : O Enfermestre, a estória de um furriel enfermeiro que não quis ser vagomestre (António de Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro)

O Fur Mil Enf António Carvalho em Mampatá

1. Em mensagem do dia 20 de Fevereiro de 2024, o nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, (Mampatá, 1972/74), conta-nos a estória de um furriel enfermeiro que não quis ser vagomestre substituto:


O Enfermestre

Havia quartéis onde se comia melhor, noutros pior ou muito pior, mas todos os militares recebiam o mesmo para a alimentação, pelo que é óbvio poder-se considerar que a honestidade entre quem geria não era uma virtude distribuída de forma homogénea.

A gestão dos bens alimentares estava a cargo de três pessoas, respectivamente o Capitão, o Sargento da Secretaria e o Vagomestre, mas era este último que detinha a função específica de fazer chegar aos cozinheiros os géneros alimentícios, pelo que, quando vinha de férias, era quase imperativo o Capitão convidar um Furriel de outra especialidade para o substituir na função.

No caso que me foi contado, ocorrido a pouco mais de trinta quilómetros de Mampatá, lembrou-se, segundo me contaram, o capitão dessa companhia de convidar o Furriel Enfermeiro, para substituir o Vagomestre quando este se ausentou em gozo de férias. Que lhe custava muito aceitar tal função, porque se não queria tirar dela qualquer proveito, tão-pouco suportaria essa fama que sabia impender sobre o titular do cargo. Respondeu-lhe então o Capitão em jeito de o meter entre a espada e a parede: Se não aceita substituir o Vagomestre vou dar a função ao Cabo Enfermeiro Silva, mas fica a saber que passa a alinhar para o mato sempre que o grupo dele saia. O Furriel Enfermeiro, apesar de ser muito "alérgico" a sair para o mato, respondeu-lhe que entre os dois males, optava por sair mais vezes para o mato.

Contou-me ainda o tal Furriel Enfermeiro que, no decurso desse mês de férias do Vagomestre, o Enfermestre recebeu o "agrement" do 1.º Sargento para vender um bidão de vinho ao pessoal da Engenharia, sossegando-o de seguida sobre o modo de resolver a falta dele, como se lhe desvendasse o segredo do ovo de colombo: em vez duas barras de gelo dentro do balde deveria passar a pôr quatro.

Um grande abraço, para os administradores do blog e para todos os combatentes.
Carvalho de Mapatá

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25004: Os Nossos Enfermeiros (17) : Dois meninos, dois amigos, dois destinos... (António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68, novo tabanqueiro, nº 882)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25219: As nossos geografias emocionais (23): O Hospital Militar Principal (HMP), à Estrela, e o Anexo, a Campolide, que eu conheci (Carlos Rios / Rogério Cardoso / Jorge Picado / Antóno Tavares / Armando Pires)

Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > O saudoso Carlos Filipe (Porto, 1950-Lisboa, 2017), radiomontador, CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1972/74): esteve internado 32 dias em Bissau, no HM 241, antes de ser evacuado, com hepatite, para o Hospital Militar da Estrela em Lisboa, onde iria permanecer 173 dias...

Foto (e legenda);  © Juvenal Amado (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Eis alguns comentários (que republicamos) de camaradas nossos que conheceram o Hospital Militar Principal (HMP), à Estrela, e o seu anexo, em Campolide, na Rua da Artilharia Um, vulgo "Texas".

Antes, porém, convém lembrar que o HMP era constituído nos anos 60/70 por várias áreas fisicamente separadas (*), incluindo o Anexo, a Campolide, na rua  Artilharia 1.



Figura 1 – Esquema do HMP, evidenciando as três áreas geograficamente separadas:  a área 1 (o "núcleo histórico"), na Calçada da Estrela, contíguo ao Jardim da Estrela; a área 2 (nas traseiras da Basília da Estrela); e a área 3, delimitada pelo início da Av Infante Santo (no sentido descendente) e a Rua de Santo António à Estrela (que inclui o edifício de 12 pisos, a Casa de Saúde da Família Militar, construído já 8 em 1973).  O Anexo, a Campolide, não consta aqui desta figura.

(Com a devida vénia... Fonte: Anuário do HMP de 2004, citado por major Rui Manuel Pereira Fialho, "Alterações na estrtutura do Hospital Militar Principal", Revista Militar n.º 2566 - Novembro de 2015, pp 909 - 918. (Disponível aqui em pdf: https://www.revistamilitar.pt/artigopdf/1064).


Carlos Rios, ex-furriel mil, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)

(…) Fui dos que passou pelas instalações e sofri as piores atribulações [n]aquelas miseráveis e desumanas instalações, principalmente o anexo (Texas), do Hospital Militar Principal (HMP).

Ali passei seis anos com imensas operações, vindo a ficar estropiado, de 1966 a 72. 

O director era um déspota bem como a maioria do pessoal ligado àquilo que deveria ser o lenitivo para as misérias que nos atingiam mas que afinal se vinha a transformar como que um castigo por termos sido feridos. De tal maneira que já no Depósito de Indisponíveis, onde se encontrava o pessoal em tratamentos ambulatórios, termos sido metidos nas escalas de serviço, como se os doentes em tratamento estivessem numa Unidade.

Imagina um Oficial de dia,  quase maneta,  e eu próprio, já coxo, a fazer o içar da bandeira na porta de armas, vindo ao exterior a comandar a guarda e dar ordens militares para o caso. Fui um espectáculo macabro, eu só consigo andar com uma bengala. Calcula o ridículo.

No decrépito anexo não havia um espaço onde pudessemos ter um bocadinho de lazer, havendo apenas uma horrorosa cantina pequena para largas centenas de todo o tipo de doentes, cegos, amputados, loucos, etc...tudo á mistura. 

Não podiamos estar nas camas depois das nove horas nem sair para o exterior antes das catorze, exceptuando os acamados. Era-nos sugerido, quase obrigado, que não andássemos fardados. 

Enfim atribulações e peripécias dos pobres que eram arrancados às familias para servir alguém. (...) (**)

Rogério Cardoso, ex-fur mil, Cart 643, Águias Negras (Bissorã, 1964/66)

(…) Também eu passei as passas do Algarve no chamado Texas [na Rua da Artilharia 1]. Estive lá de fevereiro de 1966 a meados de 1967.

De facto o Director era uma pessoa intragável, assim como muito do pessoal lá destacado. Voltando ao director, assisti uma vez, ele dar uma bofetada num 2º sarg enf por ele não ter chamado á atenção de um fur mil que estava deitado em cima da cama, pelo meio da manhã. O homem até chorou, pela humilhação sofrida. (…)

 (…) Estou lembrado de mais uma cena humilhante. Nós, sargentos, instalados no anexo Texas,  frequentemente tínhamos consultas no HMP, à Estrela, estou a falar no ano 1966. A deslocação era feita numa carrinha Mercedes, salvo erro de 18 lugares. 

Até aqui tudo bem, mas a nossa vestimenta era pior do que a de um recluso. Calças de cotim com dezenas de carimbos com uma estrela, com os dizeres HMP, camisa branca sem colarinho tipo moço de estrebaria, também com carimbos, casaco cinzento de golas largas (capote cortado a 3/4) e barrete branco de algodão, igual aos que os velhotes usavam para dormir no século XIX, além de sapatilhas brancas.

A nossa vestimenta era mais do que ridícula, os reclusos eram uns "pipis" comparando. Era o tratamento a que os combatentes que tiveram azar, eram sujeitos. (…)  (**)


Jorge Picado, ex-cap mil, CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72


(...) No Hospital, Anexo (ou "Texas"),  existente na Rua de Artilharia 1, tive as primeiras visões horríveis, do que me poderia esperar, qualquer que fosse o TO que me saísse na rifa. 

Isto aconteceu talvez nos finais de setembro de 1969, quando estava a frequentar o CPC em Mafra. Aí funcionavam, não sei se outras, as consultas de Ortopedia, para onde fui encaminhado pelo Oficial Médico mil da EPI, face aos problemas da coluna lombar de que já padecia.

Para chegar à zona das consultas tinha de percorrer vários corredores (ou seria só um muito comprido, mas dividido por várias portas?), atulhados com macas ocupadas por estropiados brancos e negros, meio ao "Deus dará". 

Da primeira vez fiquei meio "zonzo" com aquelas cenas e nas seguintes procurava chegar rapidamente ao local olhando par o ar...

Quanto ao Cap Med do QP, chefe da Ortopedia, fiquei com as piores recordações, respondendo-lhe "torto" e chamando-lhe a atenção que não estava a falar para um analfabeto, mas sim para um licenciado como ele, mas isso são outros contos. (...)(**)


António Tavares, ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912 (Galomaro, 1970/72)


 (...) Em Janeiro de 1969 estive internado no anexo do Hospital Militar Principal, Rua Artilharia 1, onde vi e assisti a episódios sem classificação...

Impossível a sua descrição. (...) (**)

Armando Pires, ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70

(...) Conheci o Hospital Militar Principal, à Estrela, e o Anexo, na Rua de Artilharia Um, a Campolide, em dois momentos diferentes da minha carreira militar: primeiro como internado (Março a Maio de 67) e a seguir como enfermeiro (Junho/67 a Outubro/68).

 Em Outubro iniciei a formação do Batalhão  [BCAÇ 2861] e em Fevereiro parti para a Guiné. 

Vamos ao Hospital. 

(i) A Estrela [HMP], após o início da guerra, foi equipada  com o que de melhor havia e nela trabalhava obrigatoriamente a nata da classe médica portuguesa. 

(ii) O Anexo de Campolide [na Rua Artilharia Um] funcionava como centro de recuperação para os mutilados, para os necessitados de apoio psiquiátrico e psicológico, também como linha de apoio a várias especialidades médicas da chamada "medicina geral", e ainda como "depósito de feridos ou doentes de guerra" em regime ambulatório... porque era preciso criar vagas para os casos mais graces no Hospital Principal.  

Sim, têm razão quase todos os comentários que aqui foram produzidos sobre o Anexo. Decrépito, sem dignididade hospitalar, refeitório de miserável qualidade alimentar e roupas militares próximo da indigência humana. 

Mas, atenção, o chamado serviço 6, no topo norte do Anexo, onde eram recebidos para convalescênça os mutilados, era um lugar à parte. Digno! 

E já agora o pessoal. Por favor, não confundir os militares que ali eram colocados em serviço de linha com o pessoal médico e enfermeiros.

Sim, de acordo, o Director era uma besta! 

E já agora, nada de exageros. Ali não eram despejados cadávares e feridos. Os mortos tinham uma capela enorme para os manter em ambiente de dignidade antes dos funerais. 

Os feridos iam sempre, em primeiro lugar, ao Hospital Principal. 

Muito, mas muito, haveria para dizer. Mas este é apenas o espaço de comentário e pareceu-me haver aqui algum exagero e alguma injustiça. Só isso. As minhas desculpas e o meu abraço,  camarada. (...) (***)

 ____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25215: As nossas geografias emocionais (22): O antigo Hospital Militar Principal (HMP), Lisboa, Estrela

(**) 1 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8455: Memória dos lugares (156): Texas, o anexo do Hospital Militar Principal, na Rua da Artilharia Um, em Lisboa (Carlos Rios / Rogério Cardoso / Jorge Picado / António Tavares)

(***) Vd. poste de 22 de junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8459: (Ex)citações (142): Em defesa do Hospital Militar Principal (Armando Pires, ex-Fur Mil Enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25004: Os Nossos Enfermeiros (17) : Dois meninos, dois amigos, dois destinos... (António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68, novo tabanqueiro, nº 882)




Guiné > Bissau > c. 1966/68 > O António Reis e o seu amigo Sherifo

Foto (e legenda): © António Reis (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O António Reis, o nosso mais recente tabanqueiro, n.º 882, vive em Avintes, a terra da mais famosa broa de milho do país; ex-1.º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68, é autor de pelo menos dois livrinhos com memórias  da Guiné.


1. Postagem publicada na página do Facebook do António Reis, em 10 de fevereiro de 2023, âs 17:15 (que adaptamos para poste da série "Os Nossos Enfermeiros" (`)


Dois meninos, dois amigos, dois destinos 

por António Reis


– Não vás embora, cabo Reis!  Dizia me o Sherifo, parece que ainda o estou a ouvir...

Não posso, Sherifo, tenho a família e a Rosa à minha espera!...  –  respondia eu.

Tinha acabado a minha comissão de dois anos, dividido entre posto de socorros, sala de observações e cirurgia 1, onde ficavam os mais graves à espera de evacuação para a Metrópole. 

Passei à civil e a ter um requisito dos pais que tinham filhas para casar, que diziam às filhas:

– Arranja um rapazinho livre da tropa.

Casei, mudei de emprego, fui estudar com vinte e seis anos e melhorei a minha posição na empresa, e segui vida fora sem atropelos, cumprindo as regras como fruto da época, produto do sistema.

O Sherifo chegou lá de helicóptero 
[ao HM 241],  foi apanhado num conflito, e ficou na minha enfermaria, cama 9, sempre de cabeça coberta com um lençol. Aos poucos foi-se descobrindo, aos poucos foi comendo, aos poucos foi-se adaptando.

Recuperado, ficou na enfermaria ajudando, fizemos-lhe uma farda, ficou oficialmente com caserna e refeitório e uns trocos no fim do mês. Vinha comigo até Bissau, com autorização oficial. 

Pelas minhas contas ele tinha em 1974, 18/19 anos. Nunca mais soube dele, nunca lhe fiz perguntas, podiam ser melindrosas. Espero que ele não se tenha alistado nas milícias, que era a pior coisa que ele podia fazer. 

As milícias eram africanos que lutavam a nosso lado, eram-nos fiéis, não conheciam outra bandeira nem outro hino e que acreditavam estarem certos. Os que não acreditaram nos acordos (acordos estes que eu sempre lhes chamei de má fé), fugiram, os que acreditaram, nem vou falar do que lhes aconteceu, senão amanhã estou a ouvir dizer que a vida é para se viver, e eu vivi-a e sou feliz. Mas sou fruto de uma época e ainda não inventaram um clique que faça esquecer o que eu vi e que não agarrei, mas que nunca me largou.

A verdade deve ser toda contada e não só metade.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 8 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22080: Os Nossos Enfermeiros (16): O António José Paquete Viegas, da CCS/BCAÇ 1877, que eu conhecia de Faro e reencontrei em Porto Gole (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas, 1966/68)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24926: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13): O cruzeiro das nossas vidas

Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), que foi 1º cabo inf, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1941/43, entretanto integrado no RI 23. Sem legenda no verso. Com toda a probabilidade, a autoria é da famosa Foto Melo.


O N/T Serpa Pinto, com as cores da CCN - Companhia Colonial de Navegação. Fonte:  Blogue Restos de Colecção >  7 de outubro de 2015 > Paquete "Serpa Pinto" (com a devida vénia...)

O N/T Serpa Pinto foi uma das glórias da nossa marinha mercante. Era um navio de passageiros, com  cerca de 142 metros de comprimento e cerca de 8,3 mil toneladas de arqueação bruta,  operado, desde 1940 (e até 1954), pela Companhia Colonial de Navegação na Carreira da América do Norte (Lisboa–Nova Iorque), na Rota do Ouro e Prata (Lisboa–Rio de Janeiro–Buenos Aires) e na Rota das Caraíbas (Lisboa–Havana), entre 1940 e 1955... Era originalmente  um navio inglês, da Royal Mail.  Em 1944 esteve na iminência de ser afundado por um submarino alemão. Foi salvo "in extremis"...

Para mostrar aos beligerantes da II Guerra Mundial, que pertenciam a um país neutral, os  nossos navios (bem como os barcos de pesca, incluindo a "frota branca")  eram pintados de negro,  com o nome de Portugal, bem visível, pintado a branco,  tal o nome do navio. Toda as as tripulações da nossa marinha mercante, bem como da nossa frota bacalhoeira,  sem esquecer a marinha de guerra, foram verdadeiros heróis, naquela época. E não poucos, bravos marinheiros e pescadores, perderam a vida, engrossando a lista de vítimas da nossa história trágico-marítima

De facto, e embora com pavilhão de um país neutral, os nossos navios e barcos da frota pesqueira  eram frequentemente intercetados tanto pelos Aliados como pelas potências do Eixo (e em especial pelos alemães, cujos submarinos "infestavam" o Atlântico...) e alguns foram atacados e afundados. Por exemplo, o  barco de pesca "Exportador primeiro" foi cobardemente atacado a tiro de canhão por um submarino italiano, a sul do Cabo de São Vicente, em 1/6/1941... Ou o navio de carga  e passageiros, da CCN, o "Ganda", afundado, "por engano", por um submarino alemão, ao largo da costa de Marrocos, em 22/6/1941... Estes são apenas 2 dos 11 navios, de pavilhão português,  afundados durante a II Guerra Mundial. 

Diz a Wikipedia a propósito do N/T  Serpa Pinto: 

 "Foi o navio de passageiros que, durante a Segunda Guerra Mundial mais viagens transatlânticas realizou entre Lisboa, Nova Iorque e Rio de Janeiro, transportando refugiados da guerra em geral, e particularmente judeus em fuga do nazismo, trazendo de volta à Europa, cidadãos de origem germânica expulsos dos países americanos. Adquiriu assim popularidade, ficando conhecido pelos epítetos de "Navio da Amizade", "Navio Herói" e "Navio do Destino". (...)

O incidente mais grave ocorreu na noite de 26 de maio de 1944 quando se encontrava 600 milhas a leste das Bermudas, a caminho de Filadélfia. Depois de examinada a documentação e feito refém o primeiro imediato do navio português, um submarino alemão, U-2, ordenou a evacuação total dos 500 passageiros para as baleeiras (em 15 minutos!) e solicitou a Berlim o torpedeamento do Serpa Pinto. Durante toda a noite, a tripulação e os passageiros aguardaram nos escaleres pela decisão do Estado-Maior da Marinha Alemã.

Depois dessa noite de angústia, só pelas 3 horas da tarde do dia seguinte chegou a resposta do almirante Karl Dönitz (1891-1980), a de não autorizar o afundamento... Recorde-se que, na altura, a Marinha Alemã já em estava em pleno declínio. (No final da guerra, a Alemanha terá perdido mais de metade da sua frota de submarinos. )

Na operação de abordagem do N/T Serpa Pinto, faleceram três passageiros, o médico do navio (vítima de um ataque cardíaco), um cozinheiro (que se atirou ao mar), e um bebé polaco de 16 meses de idade (que seguia acompanhado pelos pais judeus).

Fonte: NovoMilénio > Rota de Ouro e Prata, página de José Carlos Rossini > 7 de julho de 2013 > Navios: o Serpa Pinto

O cruzeiro das nossas vidas  

por Luís Graça


"Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia" 
(Eça de Queiroz, A Relíquia, 1887) 


A bordo do Niassa
Quarta feira,  28 de Maio de 1969. 


Eis-te nos tristes trópicos, parafraseando o título brasileiro do livro de viagens e de etnografia do  francês Lévi-Strauss,  que levas na babagem que está no porão. (Trazes uma mala de cartão cheia de livros, convencido de que vais passar umas férias a um país exótico com extensas praias de areia branca e fina, bordejadas de palmeirais, e bar aberto.)

Atravessaste hoje o Trópico de Câncer, com velocíssimos peixes voadores e alguns alegres e endiabrados  golfinhos a acompanhar-nos. Quem sabe se não vieram do estuário do Tejo a "escoltar-te"... Deviam pressentir o nosso destino e queriam consolar-nos e quiçá proteger-nos...

Lembraste-te, por outro lado, do romance escaldante do Henry Miller, também em edição brasileira (não havia edição portuguesa), mais tarde proibida pela ditadura militar. (Ditadura e erotismo parecem que não combinam bem; mas as grandes democracias norte-americana e britânica, para não falar do Vaticano, puseram  também o livro no  Index Librorum Prohibitorum).

Lembraste-te sobretudo do "teu velho", que esteve em Cabo Verde, como "expedicionário" (adoras a palavra!), com o posto de 1º cabo, em plena II Guerra Mundial, mobilizado pelo RI 5, das Caldas da Raínha. (Ironia da história, também foi lá que fizeste a recruta, era o quartel mais perto da tua casa.)

Mas a ti não te chamam "expedicionário", indivíduo que faz parte de uma "expedição", o mesmo é dizer, "enviamento de tropas a determinado ponto e com determinado fim".  Sabes, isso sim,  que vais para a Guiné.  Mas não exatamente para fazer o quê: a tua reduzidíssima companhia (um terço do que seria normal),  leva um capitão, quatro alferes, um primeiro sargento, dois segundos sargentos, "todos chicos", mais 13 furriéis milicianos (5 especialistas e 8 atiradores de infantaria, e umas cinco dezenas de praças, entre cabos e soldados, todos especialistas em qualquer coisa, condutores,  mecânicos, operadores de transmissões, enfermeiros, cozinheiros,  etc.)

Segredo de polichinelo... Alguém, na véspera de desembarcares em Bissau, irá dar com a língua nos dentes, e dizer, numa rodada de uísques, que a malta iria dar formação a uma companhia... da "nova força africana" do Spínola!... Ninguém gostou da "sorte grande"... E ficou a pairar no ar a dúvida sobre o nosso próximo destino...
 
E enquanto ainda estavas a bordo do T/T Niassa (que navegava ao largo da costa de Marrocos, sem qualquer escolta visível...),  vieram à tona de água da memória as histórias de tubarões que o "teu velho" te contava, ainda quando criança. Ele gostava de fazer mergulho e nadar, na baía do Mindelo, do Porto Grande, mas tinha medo que se pelava dos tubarões! E dava-te exemplos arrepiantes: de um que ficou com o peito todo marcado pela dentadura de aço de um tubarão: de um outro, abocanhado, que conseguiu escapar mas sem uma perna; de um terceiro tipo, que ele salvou de morrer afogado, tinta-se atirado do cais, desesperado, depois de lhe ter sido amputado o  pilau (por "venéreo", acrescentava pudicamente o teu velho, sem te explicar que raio de doença era essa).

Trazes contigo uma das suas fotos. Lês no verso: "No dia em que fiz 22 anos tirei esta fotografia em Mindelo, celebrando as minhas vinte e duas primaveras felizes.   Em 19/8/942. S. Vicente, C. Verde. Senti neste dia muitas saudades dos meus, dos amigos e também da minha terra (...)".

"Vinte e duas primaveras felizes", com todo o mundo em guerra, em plena II Guerra Mundial!...  E o Atlântico , cemitério de centenas de navios e dezenas e dezenas de milhares de vidas.

Em 28 de maio de 1969 (data aziaga!), na véspera de chegares a Bissau, tu tinhas 22 anos e 4 meses. Do fundo da memória, vêm-te à superfície fotos amareladas de barcos e tubarões. Barcos ingleses, italianos, alemães, portugueses, ancorados na baía do Mindelo, ou ao largo, numa entente cordiale... Grandes navios de cruzeiro italianos transformados em hospitais, e que traziam doentes, refugiados e diplomatas... Acabada a grappa a bordo, bebiam álcool puro, os diplomatas ao serviço do "Duce", contava-te o teu pai...

Lembraste-te de um desses navios da nossa frota da marinha mercante, o Mouzinho de Albuquerque, que tomou o nome de um trágico herói colonial... Dizem que o Mouzinho, o herói de Chaimite, o "carrasco do Gungunhana" (dizia-te a tua professora da 4ª classe) se suicidou por não suportar o boato que corria nos mentideros de Lisboa de que era o amante da rainha Dona Amélia, fidelíssima esposa do seu amado rei D. Carlos... (Ele era o precetor de um dos principes; por outro lado o rei estava longe de ser um exempo de virtudes.)

E o mítico Serpa Pinto (cento e quarenta e tal metros de comprido, um pouco menos que o Niassa), que na Jugoslávia escapara, em 1940, de cair nas garras dos nazis,  para passar a ostentar o pavilhão português... Estará no periscópio  de um U-2 para ser abatido quatro anos depois.

A bordo do Niassa perguntavas-te a ti próprio:

– E se Cabo Verde tivesse sido invadido, em 1941, 42 ou 43, como ao que parece chegou a estar nos planos dos Aliados ou até das potências do Eixo ? 

Muito provavelmente tu nunca terias nascido, ou se tivesses nascido falarias hoje alemão,  e não estarias agora a caminho da Guiné, a bordo do Niassa, um navio da carreira colonial fretado pelo exército… O teu pai só tinha barco (e correio) de três em três meses, mas escrevia todos os dias, compulsivamente (as cartas dele e as dos camaradas que não sabiam ler nem escrever).

Alguém se lembrou, entretanto, de abrir uma garrafa de "champagne" (um espumantezeco nacional, de cabaré) como se a malta tivesse atravessado o Equador ("ali mais abaixo"),  em alegre cruzeiro de meninos ricos de colégio fino pelo Atlântico Sul. Era o sargento Vidigal que também já andara noutros  "cruzeiros", a caminho de Angola e Moçambique.  Com um sorriso verde-amarelo, também participaste estupidamente, a contra-gosto,  nesse ritual de iniciação, erguendo a tua taça:

– Afinal, estamos todos no mesmo barco! – comentaste para o teu parceiro do lado, o furriel miliciano enfermeiro..., a quem desde cedo, desde Santa Margarida, tinham posto a alcunha do Pastilhas... (Todos os enfermeiros eram Pastilhas.)

Não chegaste a saber se ele terá percebido o teu humor negro. Não era tipo para achar piada às tuas piadas, ali deslocadas. Recorda-lo,  ainda hoje, como um homem simples, sensível, tímido, reservado, com ar bonacheirão mas assustado, a par de uma calvície precocemente galopante:

– Estamos todos no mesmo barco, camarada!... Quero eu dizer: estamos fo...didos, quilhados, lixados,  embarcados numa aventura que pode ser sem regresso… –  repetias-lhe tu, em vão.

Tu que te julgavas um tipo bem educado e civilizado, começaste a falar mal, a praguejar como o carroceiro que, na tua terra, fazia o serviço combinado com a CP, e tinha quatro possantes cavalos pretos que puxavam a sua galera.  Rosnavas, entre dentes, desde que soubeste da tua mobilização para a Guiné, em finais de fevereiro de 1969. A falar mal, a beber e a fumar. Falava-se mal, na tropa. Bebia-se e fumava-se, em demasia, no teu tempo de tropa. Como se o Niassa fosse uma extensão marítima do Cais do Sodré e das suas espeluncas. 

O enfermeiro, por seu turno,  era incapaz de dizer uma asneira: constava-se que já era enfermeiro na vida civil… Mas tu sabias pouco ou nada dele. Em boa verdade, sabíamos muito pouco uns dos outros.  Nem valia a pena fazer perguntas: nunca tinhas ido às terras deles, nem eles à tua... Para ti, Freixo de Espada à Cinta era no Cu de Judas... Viajava-se ainda muito pouco nos anos 60...  Portugal, todavia, estava bem representado, de Norte a Sul, na tua minicompanhia: dos alferes e furriéis milicanos, havia gente de todo o lado, do Algarve a Trás-os-Montes, da Estremadura  ao Minho, sem esquecer  a Madeira e o Alentejo. 

Tinha piada, as voltas que o mundo dará: o Pastilhas, que voltarás a encontrar muito mais tarde, em 1991, na Anadia, no 1º encontro do pessoal da companhia, vinte anos após a "peluda", virá  depois a fazer o curso de medicina.   E o ranger Azevedo, transmontano, tinha-se tornado empresário e autarca. 

A bordo comia-se e sobretudo bebia-se o dia todo, pelo menos os privilegiados dos graduados, para matar o tédio, para suportar a angústia da viagem, para fazer lastro e sobretudo para não dar parte de fraco e andar a chamar pelo Gregório pelos cantos do navio. 

Não há gaidjas, queixava-se o Vidigal, o 2º sargento do quadro, também ele transmontano, que à última hora ainda havia desafiado alguns gajos da corda   para ir fazer a despedida ao Bairro Alto. Um safado que, à conta da úlcera no estômago, iria depois arranjar maneira de escapar à dura vida no mato.  Um 1º cabo irá tomar conta da sua secção... Sempre era mais novo, com pelo menos 15 anos de diferença... Aquela guerra só podia ser feita por putos com 20 anos... Pobre do capitão que tinha 38 e estava à bica para ser promovido a major.

Era a velha tradição das rotas da navegação colonial, o álcool.  Havia os viciados da lerpa e do king. Como haveria depois, no teatro de operações da Guiné (no TO da Guiné, para utilizar a nossa linguagem de código), os viciados do álcool, da comida, do sexo, da caça, da guerra, da escrita diária de aerogramas (ou "bate-estradas")... 


Os oficiais superiores (eram poucos, e iam em rendição individual), esses, divertiam-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da classe turística escrevia cartas, aos pais, namoradas, noivas, mulheres, madrinhas de guerra..., cartas que tu imaginavas já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades.

As praças, essas, vomitavam nos porões. (Só uma vez tiveste "estômago" para  "ir lá baixo".) Eram a "carne para canhão",  transportada como gado, queixava-se o nosso cripto, o Joselito. Um riacho de água verde-escura, fedorenta,  escorria pelo convés. Todo o navio fedia, tresandava a merda,  e no meio do cheiro nauseabundo havia um desgraçado de um desertor  que ia a ferros, qual gado levado para feira. Diziam que fora apanhado pela Pide na fronteira de Vilar Formoso, e recambiado para Santa Margarida, ainda a tempo de apanhar o comboio-fantasma até ao Cais da Rocha Conde de Óbidos onde o esperava o Niassa. (Enfim, uma história mal contada, como tantas outras, com que nos entretinhamos para aliviar a angústia da incerteza sobre o nosso destino, uma vez desembarcados em Bissau.)

– De mal o menos, ó Peniche , vais como básico, para a Guiné. Melhor do que seres atirador ou ficares a apodrecer no presídio militar de Elvas ou Penamacor…– consolaste-o tu e Oliveira, que estava de sargento de dia.

O pobre do desertor era alvo da chacota da maralha: alguém insinuara que o gajo era maricas e que não teve tomates (sic) para ir para a guerra… Faltosos, refractários e desertores eram a "escória da Nação", opinava o Gravata... Era um velho truque da velha instituição militar que das tripas sabia fazer coração, que da merda fazia nervos de aço, e dos cagarolas heróis... Só para manter o moral das tropas, só para aguentar a guerra, de vitória em vitória até à derrota final…

– Até quando ? – interrogavas-te tu, em silêncio.

– Lembrem-se, seus cabrões, que vocês são a fina flor da nação! – massacrava-te o tenente da tua companhia, na parada em Tavira, no Curso de Sargentos Milicianos…

Dentro de um dia desembarcaríamos na Guiné da qual espantosamente tu não sabias nada a não ser aquilo que te haviam impingido nos bancos da tua velha escola do Conde de Ferreira (onde o teu velho e o teu avô também andaram, e se calhar ainda o avô do teu pai) e que tu terias reproduzido, como um papagaio, no exame da 4ª classe ou da admissão no Liceu Passos Manuel:

– Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem mais do que um terço da superfície de Portugal Continental...

E acrescentavas tu,  de acordo com o livro de leitura:

–  O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, muçulmanos. 

E finalizava com a informação sobre a agricultura da província que dava tudo, era só semear e adubar com sol e chuva... Tão rica que até exportava arroz... para a o faminto arquipélago de Cabo Verde.

Desde que deixáramos as Canárias, que tu não suportavas aquele calor pegajoso, aquela angústia difusa que destilavas através dos poros da pele. Tinhas sintomas de febre e já não sabias distinguir onde acabava a realidade e começava o delírio. O Pastilhas deu-te um LM para baixar a febre. LM, o comprimidinho milagroso , a panaceia do Laboratório Militar, que o nosso Pastilhas  irá distribuir, às centenas, todos os dias, à população indígena , e que sofria de todos os males, do paludismo à lepra, da desnutrição à desinteria, das doenças venéreas à tuberculose...

De facto tudo fora tão brutal: a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco, aonde davas instrução de recruta; a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra, em 28 de fevereiro de 1969; a apresentação no Campo Militar de Santa Margarida; a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO)  com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; os breves dias, tristes, vazios, de licença antes do embarque, em que decidiste não te despedir de ninguém; a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; os capacetes brancos dos polícias militares; os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns, poucos,  de gravata preta; as gaivotas, agoirentas,  estranhamente pousadas nos mastros dos navios; as fragatas do Tejo, silenciosas mas tensas, polvilhando o estuário; os guindastes, o Tejo, a ponte que, de Almada, tu viras elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, arrepiante como o sentimento indefinível de quem em Lisboa partia e de quem em Lisboa ficava; o marinheiro que soltava as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo da costa da África Ocidental, entre o Senegal e Cabo Verde, tu próprio tiveras a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia tu, que fazíamos nós – o Pastilhas, o Vidigal, o Joselito, o Tony, o Ranger Azevedo,  o Zé Neves, o Campanhã, o Meia Leca, o Vagomestre,  o Vat 69, o sacana do Gravata, e tantos outros, que ainda mal conhecias, mais o desgraçado do Peniche, e centenas e centenas de homens, milicianos ou do contigente geral, estes último acondicionados como gado em beliches, nos porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se o Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeitas as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo, e para os eldorados que havia por achar?!...

– Duplamente embarcado, meu velho. Fo...dido, quilhado! – repetias tu, de novo para o Pastilhas ao avistarem ao longe algumas  luzes trémulas 
Ilha do Rei, à entrada do Porto de Bissau, no estuário do Geba,  e ao ouvirem pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

– As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é a linda e moderna Bissau... Blá-blá, blá-blá...

Foi a pensar nas zonas pantanosas e alagadiças da Guiné, nos seus mil e rios e braços de mar, nas suas margens lodosas, nos seus tentáculos traiçoeiras, que tu encomendaste ao teu velho
 um par de botas de cano alto, à cavaleiro... Coitado do teu velho que nunca passará da cepa torta,  pomposamente colectado nas finanças como industrial de sapataria, e dando trabalho a um série de mânfios (sapateiros eram às carradas na tua terra, antes do grande éxodo do país... Julgavas tu, na tua santa ignorância ou ingenuidade, que ficarias melhor protegido contra as temíveis sanguessugas e víboras, crocodilhos e outra bicharada... Felizmente, tiveste  o bom senso de cancelar a encomenda à última hora, com as medidas e a forma do pé já nas mãos de um dos oficiais de sapateiro que trabalhavam para o teu pai...

– Tite, Fulacunda, Jabadá! - alguém alvitrava nomes, como se fosse o cicerone daquele estranho tour by ngiht de aproximação à capital de um país em guerra...


Bissau. 
Quinta feira, 29 de Maio de 1969... 


De manhã, a malta desembarcava numa cidadezinha plana,  desenhada a régua e esquadro no tempo da República (a avenida principal, a única avenida digna desse nome, chamava-se "da República"),  de casas térreas, de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, papaieiras, bananeiras e trepadeiras, e onde em dois ou três quarteirões  se concentrava a administração, o comércio,  a tropa e a religião (católica, apostólica e a romana).

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de fim de maio, putos vendiam mancarra e tu começavas a aprender as minhas primeiras palavras de crioulo. Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejavam bugigangas de contrabando, falando um estranha mistura de francês, crioulo e dialectos locais. Os sons, os sabores e as cores de África baralhavam-te os sentidos e as emoções.


Nunca esquecerás aquela baforada de ar quente quando, nos primeiros dias, saímos dos Adidos e púnhamos o pé em cima da terra vermelha escaldante ou do asfalto quase líquido... E dos primeiros pesos gastos em bebidas em lata  bem geladinhas... Foi em Bissau que tu pela primeira vez viste bebidas em lata que se bebiam dum sorvo, à sombra de uma mangueira ou debaixo de uma ronceira ventoínha... E quanto nais bebias, mais a sede aumentava, devido o teor de açúcar... Foi em Bissau que descobriste a Seven-Up, a Orange ou a Coca-Cola, em lata...

Em relação à Cola-Cola, confessarias mais tarde que não te tornaste fã, talvez por uma razão tão estúpida como  político-ideológico: partilhavas dos preconceitos da época segundo a qual a Coca-Cola era a água suja do imperialismo norte-americano... O ódio ao imperialismo estava na moda, por causa da guerra do Vietname  e da velha doutrina Monroe segunda qual a América era dos americanos, explicava-te o Zé Neves, que era jornalista,  o mais politizado de todos nós.

As imagens que tu tens de Bissau, entre 30 de maio e 2 de junho de 1969, são fugidias, impressionistas, estereotipadas... Logo de manhãzinha, já as esplanadas estavam cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutuava uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze e aos poilões pintados com uma barra branca, uma mulher passava com o filho às costas e um balaio à cabeça. Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partiam do lodoso cais do Pijiguiti, sulcando as águas lamacentas da ria, em busca de mafé...

Tinhas uma vaga ideia do que se passara naquele cais, 10 anos atrás, em 3 de agosto de 1959, pelo que leras ou escutaras da pouca propaganda clandestina do PAIGC que  chegava à capital do império, ou que era difundida pelas emissões que se ouviam, às tantas da noite, das rádios afetas aos forças oposicionistas: a Rádio Portugal Livre, a emissora clandestina dos comunistas, e a Rádio Voz da Liberdade, que emitia partir de Argel, ligada à Frente Patriótica de Libertação Nacional.

Ronceiros aviões levantavam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, frente ao mamarracho do monumento "Ao Esforço da Raça", há um sacana que exclama, histriónico (seria o Azevedo, o Ranger, que ia no UNimog da frente):

– Camaradas, cinco séculos de honra e glória vos contemplam! 

E toda a gente teve de gramar a formatura de boas vindas, no dia seguinte em Brá, e o discurso do "ventríloquo" do  general Spínola:

– Bem vindos à Spinolândia! – ironizava o Zé Neves, que não ia à bola com o com-chefe. 

Estragado com o calendário do fim-de.semana ficara o Vidigal que, não tendo arranjado transporte nem guarda-costas, desistira da ideia de ir ao Pilão... "mudar o óleo" (sic). 

Nos Adidos, três ou quatro topónimos eram pronunciados com um misto de temor e de respeito:  Gandembel, Madina do Boé, Guileje... Os dois primeiros aquartelamentos tinham sido "retirados" no princípio do ano de 1969...


Pelo Geba acima, na LDG 101 Alfange... 
Segunda feira, 2 de junho de 1969. 

Três dias depois iriam dar-te uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida te porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma equipa de fuzileiros navais que, à medida que o rio estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime, em Ponta Varela… Uma ração de combate e dois cantis de água mais ou menos potável:

– Seus sacanas – vociferava  o Ranger, ao lado do capitão, de lencinho preto ao pescoço, era o seu "amuleto"  – aprendam desde hoje a gerir a auguinha. E ficam a saber que neste barco de cruzeiro, rio Geba acima, não há bar aberto a estas horas...

Íam dois, tu e o Pastilhas, sentados em cima de uns colchões de espuma, empilhados numa Berliet, à mistura com centenas de malas de viagem, algumas já rebentadas e atadas por cordões… O fogo de morteirete dos fuzileiros apanhou-te de surpresa… E qual não é o teu espanto quando o enfermeiro, à saída da primeira granada se lançara de cabeça para o fundo da LDG!… 

Tu, que era de armas pesadas de infantaria, não tiveste felizmente reflexos tão rápidos como os dele que, na queda, acabou por ser a  primeira vítima da Companhia na Guiné.

– Vítima do fogo amigo! – comentaste, entre a risota, a compaixão e a  apreensão, ao vê-lo de olho inchado, e o sobrolho a sangrar.

Com um olho-à-Belenenses e com contusões no rosto, o pobre do Pastilhas, por ironia enfermeiro, foi o primeiro de nós a testar a competência dos nossos cabos auxiliares de enfermagem, seus subordinados dos serviços de saúde militar, que, noutras circunstâncias bem mais dramáticas, irão salvar a vida a alguns de nós: pelo menos sabiam aplicar um garrote e administrar o soro... a um desgraçado, atingido por tiro ou estilhaço n0 mato ou na picada.

 Como um cão apanhado na rede! –  resmungavas tu sentado na capota da Berliet, prescrutando a linha do horizonte, a bordo da LDG Alfange...

Pobre do Olho-à-Belenenses, pobre do Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. 

Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, pensas que ele foi o o teu  primeiro herói, ou melhor, o teu primeiro anti-herói: nunca o viste  a pegar uma arma, nunca deu um tiro (nem sequer contra um jagudi),  nunca matou ninguém, duvidas até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhara com a malta em operações, mesmo nas grandes operações; recorda-lo sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem (alguns seguramente gente de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta, etc.,  quiçá até vivendo no mato, sob controlo do PAIGC, ou do IN, como se dizia eufemisticamente)...

Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos  esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo, ou pintar o cu com uma estranha poção à base de tintura de iodo quando chegávamos lá, de pernas arqueadas, com a flor do Congo estampada no cu...

Ele foi o talvez o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local... Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto, gratuitas e até perigosas: recordas-te de um dia, às tantas da noite, no regresso de um patrulhamento ofensivo com emboscada até à meia-noite,  dois ou très chanfrados, "apanhados do clima", o terem acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da companhia (qwue até era um homem bonacheirão), já na parte final da comissão, a vestir o camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... 

Simularam uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido temíveis nomes como Ponta Varela, Poindom, Ponta do Inglês, Baio, Burunbtoni, Fiofioli, Curobal... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo... 

Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Pastilhas teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico...

No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas e a dar as suas picas e os co,primidos LM, os "mezinhos",  aos doentes africanos da tabancas em redor... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

Voltarás a encontrá-lo, muitos anos mais tarde, vinte anos depois, na Anadia no "Zé dos Leitões": era o dr. Andrade, médico de clínica geral em Aveiro, e médico do trabalho, numa fábrica de automóveis em Cacia.

Voltaste a encontrá-lo mais tarde e lembras-te de ele me ter falado, sem ressentimentos, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, dos seus dois filhos, um deles médico e professor na NOVA e outro engenheiro aeroespacaial, a trabalhar em Montepellier, França
.. 

Perdeste-lhe entretanto o rasto,   mas confessaste ao Zé Neves que gostaria de voltar a encontrá-lo,  para lhe dizer que ele agora fazia parte da tua "galeria de heróis", a ele que tinha sido vítima  de  algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas, praxes de mau gosto, que ele suportou com a sua proverbial bonomia... Na realidade, sermpre houve "bullying" na caserna, e não apenas na esccola, na catequese, no liceu, ou no local de trabalho.

– A guerra é estúpida e cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem, 
 primata social, territorial e predador,  tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade... – comentataste tu para o Zé Neves, agora jornalista reformado, profundo conhecedor do Bairro Alto, em Lisboa, e que tu reencontravas com alguma frequência na Cervejaria Trindade, nos idos anos de 1975.

O Pastilhas tivera o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança  sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O enfermeiro era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses na Guiné: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque...  

Por outro lado, ele cometera, ainda a bordo do Niassa, um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º sargento Gravata, com quem de resto tinha mais afinidades ... Os furriéis milicianos, sobretudo os operacionais, em conflito com Gravata, marcaram o Pastilhas e às vezes faziam-lhe a vida negra...

 Não tens qualquer esperança que ele te leia este "conto com mural ao fundo"... Há uma conversa que tu e ele começaram  no Niassa e  se prolongou  pela LDG Alfange, mas que ficou por terminar... Nunca gostaste de conversas interrompidas a meio... De qualquer modo,  vais ter de lhe perguntar: 

–  Afinal, em que ponto é que a gente ia, depois daquele incidente na LDG quando  seguíamos rio acima até ao Xime ?... Ainda te lembras, em 2 de junho de 1969?"... 

Claro que ele não se vai lembrar de coisa nenhuma: terá sido o primeiro de todos nós a esquecer a Guiné... para sempre! 

– Guiné ?!, um pesadelo de um noite de verão!... Esquece, não sejas masoquista!... – arrematava-te o Zé Neves, entre duas imperiais e um bife à Trindade, no verão quente de 75 .

© Luís Graça (2006). Nova versão, revista e melhorada, em 1/12/2023. 
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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24808: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (12): de Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"