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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9309: Memória dos lugares (170): Regresso a Missirá em Janeiro de 1990 (Mário Beja Santos)


Aqui fica uma prova provada da revolução de costumes em Missirá: a discoteca. O Tangomau não teve coragem de perguntar nada sobre o horário de funcionamento e a natureza dos serviços prestados.



1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
 
Espero que a lembrança vos dê satisfação. Aí a páginas 250 deste calvário que levo na escrita e que tenho que aprontar até ao fim de Fevereiro, reconstituo a visita que fiz a Missirá vinte anos depois de lá ter estado. Foi um encontro inolvidável, o mundo mudara mas aquela paixão pelo Cuor mantinha-se firme. Mantinha-se e mantêm-se.

Desejo-vos do coração um novo ano com a saúde em pleno e sinto-me grato pela vossa amizade,
MBS


O regresso a Missirá em Janeiro de 1990

Maria Leal Monteiro e o Tangomau iam comer regularmente à Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, sempre superintendida por D. Berta de Oliveira Bento. Foi aqui que conheceram outro cooperante, o Dr. Francisco Médicis, que estava ligado a um projecto da segurança social. Suspirava-se, no fim de uma tarde de quinta-feira, para encontrar um transporte no fim-de-semana para ir até ao Cuor, era mesmo crucial fazer esta visita durante o fim-de-semana, pois estariam de regresso a Portugal na terça-feira seguinte. Com uma enorme candura, o Dr. Francisco Médicis assegurou-lhes que os levava ao Cuor no domingo, aquele domingo ficava por conta de alguém que sentia um enorme fascínio por aquele regulado que ele não conhecia nem nunca ouvira falar. Estava prometido, o Tangomau voltava ao seu chão.

Alvorecia em Bissau quando os três se puseram ao caminho numa carrinha de caixa aberta, de Bissau até Nhacra, antes de Mansoa tomaram a estrada em Jugudul, era a primeira vez que o Tangomau percorria caminhos outrora interditos; não se entrou em Porto Gole, a nova estrada alcatroada seguia por Malafo e passava perto do Enxalé. 

Nesta altura já o Tangomau estava alvorotado, via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendeu-se com as culturas do cajueiro, a grande novidade; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentiu-se desnorteado, pois percebeu que o novo traçado da estrada se afastara do rio, era impossível ter perdido de vista aqueles formosos palmares nas vizinhanças de Mato de Cão; viu a indicação da povoação com este nome, muito depois de Saliquinhé, perguntou aos passantes onde estava o rio e todos disseram que estava longe, mais a mais o curso de água encontrava-se na vazante, era impossível aproximar-se daquele local mágico que visitara todos os dias, uma das razões porque se atirara ao caminho, vem pelos homens e vem pelos lugares, vem pelos cheiros, pela fauna e pela flora, está de regresso ao Cuor, que lhe pertence; conformou-se com a desfeita da natureza, mas não deu o tempo por perdido, nesse mesmo Mato de Cão foram mostrar-lhe o planalto, foi então que se apercebeu que por ali houvera um quartel exactamente no local onde pernoitara tantas vezes, que calcorreara em todas as direcções, agradeceu a recepção, a carrinha de caixa aberta, por indicação de outros passantes, mais adiante, em Gambana, inflectiu à esquerda e tomou o caminho da velha estrada do Geba, que ele tão bem conhecia, em dado ponto até exclamou que estava a ver Malandim, no lado direito e ao fundo a opulenta, a luxuriante bolanha de Finete.

É um dia de Janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, o caminho é acidentado, predomina a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá começam a despontar terrenos cultivados, o Tangomau entra em transe, já se avista a curva de Canturé, a carrinha vai sempre em frente, mesmo aos tombos em tantos buracos, disseram em Bissau que é preciso ter muito cuidado pois há muitas estradas alagadas, são os resquícios da época das chuvas, o Dr. Francisco Médicis prefere a segurança deste empedrado que muito mais adiante, de acordo com a carta e a percepção do Tangomau, irá desembocar em Cancumba.

 Agora está um calor de enlouquecer, vê-se uma indicação de Maná, a carrinha prossegue imperturbável, e quão curioso vai o antigo alferes de Missirá, Maná é um percurso de antanho, prenhe de memórias, por ali há um túmulo de um régulo do Cuor, um nome inesquecível de um Soncó; dentro da viatura não se ouve um comentário, tripulante e passageiros levam frequentemente à boca a garrafa de água; o terreno agora é mais escalavrado, o Tangomau tem um arrepio, recordou à esquerda a entrada para Mato Madeira, num ponto alto do alcantilado avista-se uma tabanca à direita, pelas informações que dispõe trata-se de Sansão, foi recriada no fim da guerra, estão pertíssimo de Missirá; agora a estrada alarga-se, melhor dito é a natureza liberta da floresta, temos ali as palmeiras de Cancumba, a carrinha inflecte numa picada, alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá; o estradão está de facto pejado de hortas, o Tangomau reconhece os altos poilões e o mar de cajueiros, Missirá está em frente, quando a viatura franqueia a entrada ouve-se o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, os viajantes põem-se em terra.

Sempre que descrevia o acontecimento, o Tangomau comentava: entrei e saí de Missirá a soluçar, é uma experiência inenarrável, 20 anos depois sentir a atmosfera, ver alguém que se aproxima e logo se reconhece, é Lamine Mané, a criança tornou-se num homem robusto, guarda a inocência no sorriso, pega o Tangomau pelos ombros e dá-lhe as boas-vindas dentro de um abraço caloroso. Explode a gritaria, o Baké regressara, claudicando aparece Quebá Soncó, depois dos cumprimentos efusivos dá instruções para se juntarem os bancos, vai começar o cerimonial das conversações, mas o Tangomau está frenético, procura as mulheres grandes, encontra duas, partem mantenha, elas fazem a reverência, perguntam pela família, pedem cola; se já vinha desnorteado, dentro de Missirá perdeu a bússola, está tudo modificado, a única referência a que se agarra é ao edifício dos abastecimentos, não o demoliram; o cerco estreita-se, ele tem pela frente alguém que lhe estende os braços e que o ampara, vibrante, é Bacari Soncó, o seu irmão, o Tangomau já não pode mais, soluça encostado a uma estaca de querentim, sente a cabeça à volta parece o dia da ressurreição dos vivos, que andavam tão distantes. Quebá Soncó sente-se na obrigação de pôr ordem, há autoridades do PAIGC que pedem explicações para esta explosão de alegria, trocam-se cumprimentos, as autoridades falam em crioulo e Quebá traduz: nosso alfero é muito bem-vindo.

Cumpre-se o protocolo dos cumprimentos, Quebá perora em mandinga, Maria Leal Monteiro e o Dr. Francisco Médicis estão manifestamente siderados com o cerimonial, olham para a pequena multidão silenciosa, o povo aguarda o ritual dos cumprimentos, parece que voltámos aos tempos bíblicos. A assembleia posiciona-se: no extremo de um longo U um banco para os visitantes, estes já receberam pratos de papaia e copos de água fresca; em frente, sentado numa cadeira de vime, pontifica Quebá, compete-lhe a batuta de toda a conversa; logo atrás todos os homens grandes, estão ali festivos nas suas fatiotas multicoloridas, vêem-se ali os Soncó, os Sani e os Mané; aos lados, temos os jovens adultos e os blufos, a maior parte mantém-se de pé, são obrigados ao respeito, compete-lhes ouvir a confirmação de uma história que já ocupou muitas noites da vida de Missirá, o Baké existe, é um Soncó que regressou nesta visita meteórica, mas existe, não é lenda nem tem a forma de um Deus; ao fundo estão todas as mulheres e as crianças, só as mais velhas estão sentadas, elas tiveram o privilégio de conviver com o branco da família, que não pára de chorar, coisa inconcebível de se mostrar em público, ele deve ter um amor muito entranhado, deve ter vindo amarfanhado pelas saudades para quebrar os deveres da honra, um homem não chora, mais a mais ele é o guerreiro que nenhuma bala pode derrubar.

É longo o discurso de Quebá e mal se faz silêncio um homem jovem, vestido à europeia, começa a traduzir para português, fraseia e articula sem mácula, o Tangomau está intrigado e pede explicações e Quebá prontamente responde: é o nosso irmão mais novo, Abudurramane Serifo Soncó, é professor, está de férias, tinha sete anos quando houve o grande ataque que destruiu Missirá, em 1969. Feita a saudação inicial, levanta-se imponente Aladje, o ancião dos Soncó, lança uma oração de graças, o Deus misericordioso nunca falta ao apelo dos seus crentes, é bom este regresso de alguém que jamais foi e será esquecido, chegou o momento do ilustre visitante falar com a família. O Tangomau, para sua própria surpresa, tem o coração oprimido mas discursa sem nenhuma congestão narrativa, recorda todos os seus amigos, as idas ao médico e os trabalhos do abastecimento em arroz, naquele preciso momento sentia grande comoção em recordar Mussá Mané, praticamente todos os dias o chefe de tabanca lhe vinha suplicar uma coluna extraordinária para suprir carências de toda a espécie, recordou o régulo Malã e aquele dia de despedida em que ele se transformara num Soncó. Aqui a sua voz tremelicou, resolveu abreviar, que ninguém duvidasse que ele nunca esquecera Missirá e Finete, as belezas indizíveis do Cuor, o regulado mais belo do mundo, que vinha para colaborar com a Guiné-Bissau e que sentia uma grande alegria por este reencontro e que pedia licença para ir rezar com os homens grandes à mesquita, dar hossanas e desejar as maiores venturas a quem ali vivia.

O que se passou nas horas seguintes ainda hoje permanece confuso, veio o novo régulo, um Soncó que vivia no Senegal, no tempo da guerra, de nome Mamadi; furtiva ou abertamente, entregavam-lhe bilhetes, trouxe dezenas deles, pedindo equipamentos de futebol, livros, chapa ondulada, bancos para a escola; percorria Missirá de uma ponta a outra quando foi sacudido pela emoção maior: sempre discreto e estendendo-lhe as mãos ali estava Cherno Suane, que tanto sofrera na prisão do Cumeré, andara a monte e finalmente fora autorizado a residir perto de Missirá, em Biassa. 

O Tangomau nunca se arrependeu da promessa impulsiva que logo ali lhe fez: juro-te que tu vais para Portugal, se quiseres. É quando começa o fim do dia que o Dr. Francisco Médicis, com mansuetude, lhe recorda que a viagem até ao tapete alcatroado tem os seus riscos, é melhor partirem, tem consciência de que é muito difícil agora a despedida, apela à sua compreensão. E começa o cerimonial do adeus, garante a todos que é bem provável que volte em breve, na caixa aberta vão as prendas, várias galinhas a cacarejar, com as patas atadas. Cherno Suane vai erecto e altaneiro na caixa, despede-se de todos como se amanhã partisse para Lisboa. Esta despedida é igualmente emocionante, a carrinha está imobilizada à entrada de Missirá, são adeuses sem fim, o Tangomau parece querer congelar no olhar aquele céu sem uma nuvem, agora a temperatura é benfazeja, depois prosseguem pela estrada alcantilada, em Cancumba os habitantes insistem em cumprimentar, correu célere a notícia da presença do Baké, muita desta gente veio de Madina, Belel e Quebá Jilã, se fosse necessário prova mais eloquente de que já se consumou a reconciliação entre guineenses e portugueses, ela aqui estava, neste final feliz da visita.


Esta é a nova Missirá e estes meninos olham para o futuro. Está na hora de partir, o Tangomau sabe que vai voltar, mais cedo do que a população de Missirá pensa. Até porque há muita coisa para ver nos arrabaldes: Madina de Gambiel, Sansão, Maná. Há uma grande nostalgia por percorrer a velha estrada que ligava Bissau a Bafatá. O Tangomau não sairá defraudado. Toda a comitiva entra no carro de combate conduzido por Calilo Dahaba e marcha-se para Mato de Cão. Ponham-se em sentido todos aqueles que ali vigiaram e viveram!


Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9305: Memória dos lugares (169): A CCAÇ 2464 em Biambe e Binar (António Nobre)

sábado, 29 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7694: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (9): O último

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2011:

Queridos Amigos,
Muito obrigado pela boa companhia que me deram nesta viagem.
Acabaram-se as imagens, começou o vago rumor, mal localizado, que precede a nova viagem.
Agora, anuncia-se a batalha verbal, os jogos de cintura a construir um livro, aparentemente enorme. Fosse eu disciplinado e teríamos livro até ao Outono.
Vamos ver, tenho muita Guiné pela frente.

Um abraço e até ao meu regresso,
Mário


OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (9)

O ÚLTIMO ÁLBUM


Foi a última imagem que captei na Guiné, anoitecia em 1 de Dezembro de 2010. Estava na Pensão Central, a bagagem arrumada, eu muito feliz com as compras, sobretudo o Ninte Kamatchol e a escultura bijagó usada na dança do tubarão martelo. Lá em baixo, é aquele espectáculo fantástico dos veículos a fugirem das covas e do alcatrão carcomido. Ao longe, à esquerda, ainda uma nesga do ilhéu do Rei, ao fundo, à direita, vestígios do Pidjiquiti e ao fundo o canal do Geba e a extensão de Bissau. O dia apaga-se, é impossível fugir da atracção daquela bola de fogo que desce meteoricamente sobre o mar vegetal e o mar salgado. É a recordação obsidiante, a imagem fixa, acompanha-me em todas as recordações que me puxam até à Guiné. A partir daqui, só as recordações da cabeça, que nalguns casos possuem uma impressão muito próximo da fotografia. Consigo ver-me no restaurante Jordani, a comer bifinhos de sereia, enquanto via imagens da neve em Portugal; parece que estou a tomar um táxi que me leva para Bissalanca onde os seguranças me remexem desavergonhadamente toda a roupa, sempre sussurrando “dá qualquer coisa para o mata bicho!”; as horas em que me entretenho a ler, o voo só parte às três da manhã; o roncar do Airbus, uns saem outros sobem numa atmosfera de estufa; o último abraço do embaixador de Portugal e depois uma viagem com um jovem bijagó ao lado que vai aterrado, é o seu primeiro voo, procuro desanuviar a tensão pedindo-lhe informações sobre a dança do tubarão martelo; e o raiar do dia quando chegamos a Lisboa, trago a Guiné em todos os poros, em todos os átomos da emoção, venho desvanecido pelos reencontros, pelas descobertas.


Foi o cabo dos trabalhos despedir-me da Maria Fausta, a mulher do Abudu. Visitara-a mal chegara a Bissau, no dia 18 de Novembro à tarde, na companhia do Sr. Sabino, o motorista da embaixada. Estes bairros populares nada tem a ver com o que me lembrava de há 40 anos: Santa Luzia cresceu desmesuradamente, o Bairro Militar, Quelele, o Bairro Missirá, transformaram-se em autênticas favelas, impressionam pelo lixo, as irregularidades do solo, a guerra perdida em prol do saneamento básico. Esta fotografia foi tirada depois do nosso encontro. É muito duro conhecer alguém a quem se vai dizer, sem ambiguidades, que o marido não tem condições físicas para viver na Guiné, precisa de acompanhamento constante e medicamentos, há a esperança da naturalização, é o menos que Portugal pode fazer para este homem que se atirou ao trabalho mais humilde durante 15 anos, que foi explorado por falsos empresários que não entregaram o que ele descontou na Segurança Social. E mais não se diz, toda a pessoa tem direito à privacidade. Esta mulher olha-me com firmeza, já tínhamos conversado sobre a saúde do Abudu, um ser humano não é de ferro, expressa o sofrimento, lacrimeja. Pois a fotografia que me estás a tirar, branco, irmão do meu marido, pode espelhar mágoa e tristeza, mas só o quanto basta. O resto é dignidade africana. Para que conste.


A Ponta do Inglês provoca ao visitante (por sinal, antigo combatente) sentimentos contraditórios. Ele sabe que esta estrada enorme está regada de sangue e sofrimento. Ele sabe que quem aqui viveu, na segunda metade dos anos 60, viveu em extrema inquietação. E, no entanto, há sempre este cenário idílico, por aqui passa o Corubal estuante, é uma foz ampla, com a Península de Quinara ao fundo e em frente. À esquerda, era o Corubal de todos os perigos, os barcos da Armada penavam e eram frequentemente flagelados, ali o PAIGC tinha o domínio do solo, em ambas as margens. O viajante teve sorte com a altura do sol e os reflexos de prata. Naquela lama, na berma, disseram-lhe, houve uma instalação portuária, tudo desapareceu, pode-se percorrer a Ponta do Inglês e até supor que nunca ali houve metralha, sentinelas angustiados, soldados expectantes naquele ermo, injustificável em termos militares. Para que se saiba, quem vê paisagens não vê emoções. Aqui o passado morreu, ele só existe na memória de quem não o esqueceu.


Foi a primeira fotografia que se tirou, na concelebração de 28 de Novembro. Não gostei, há aqui muita tristeza estampada, imprópria para o evento. Tínhamos estado todos ruidosos, de línguas soltas, à volta do passado. Há aqui poses formais, de quem receia ficar descomposto para a posteridade. Nas fotografias subsequentes, deu-se o degelo, transparece a alegria africana. O único dissidente dos formalismos é o Príncipe Samba, exibe o livro que lhe foi oferecido, terá as suas razões, pode mesmo estar a pensar: “Quando voltares a ver esta fotografia lembra-te que este livro é meu, por direito próprio, durante a manhã falámos da mina anticarro em que fiquei sinistrado, contei-te as provações por que passei nos últimos anos da guerra, ao menos que nestas páginas alguém me tire do anonimato e me exalte pelo meu bem servir”. Estes, parte dos meus bravos que vieram de candonga, a pé e de bicicleta, aqui se confraternizou, neste local alguém se despediu dizendo: “Não acredito que seja a última viagem, nós merecemos mais amizade, volta”.


Parece bailado contemporâneo mas é um acto religioso. Não podendo participar, orei à distância, jaculatórias para todos aqueles que se finaram ou não puderam vir. Enquanto decorre a oração, lembrei fidelidades, comportamentos exemplares, actos de heroísmo, primores de carácter. Nada me custou olhar para um acto religioso indecifrável. Esta postura curvada, parece-me, é de fácil compreensão: Deus misericordioso, prostro-me e peço-te perdão, dá-me alento para continuar e cumprir os teus ensinamentos. Estes homens purificaram-se antes da oração. E mesmo antes da purificação pela água tinham-se purificado pela estima que me devotam. É a minha de me prostrar diante de Deus.


Vim à procura deste amigo, não encontrei, ele vive em Farim, não é fácil chegar a Bambadinca. Felizmente, goza de saúde. Aqui muito perto, onde concelebramos, Quebá Sissé, conhecido pelo Doutor, meteu o dedo ao gatilho quando subia para o Unimog, desfechou uma curta rajada, mortal, sobre Uam Sambu, que me caiu nos braços. Foi testemunha de Quebá Sissé no seu julgamento, a punição foi mínima, para bem de todos nós. Esta imagem tem pelo menos 42 anos. O Doutor tinha uma verticalidade estranha, parece que o tronco lhe pesava, ajoujava a carga para diante e para trás, balançava os braços e as pernas, no seu jeito peculiar. Temo-lo aqui à porta da cozinha, cercado dos seus ajudantes, os meninos que cobiçavam as sobras do rancho. Ao fundo, o indescritível balneário de Missirá, meses depois substituído por uma estrutura mais apropriada. Honra seja feita ao Doutor, e nesta memória dirijo um olhar terno para todos os ausentes da nossa concelebração.


Afinal, eles são o futuro. A imagem vem do Bairro Joli, Mio e os seus dois filhos. Mio procura pôr de pé a granja que esteve muito tempo abandonada, mudou profissionalmente de rumo para se dedicar a esta empreitada. Os meninos, é a minha esperança, colherão o fruto, dilatarão os sonhos do Bairro Joli. Porque o que parece impossível em muitos casos torna-se viável, praticável. O que está em ruinas levanta-se, o que desfalece anima-se. Haja confiança neste futuro. Com gente determinada no presente.


Estamos prestes a terminar por onde se começou. Quando desembarquei em 29 de Julho de 1968, na noite escura, fui conduzido para o QG, o tal quartel general de onde parti, do cais do Pidjiquiti, para Missirá. Quando aqui regressei, mais de 42 anos depois, pretendi captar a imagem desse QG, hoje fantasmagoria. É um edifício que explodiu à bomba, nele morreu um chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. Impedido de fotografar o escombro, coisa surrealista, vinguei-me fotografando um vestígio do passado, hoje completamente inócuo, sem qualquer préstimo, a não ser proteger pessoas em dia de temporal: uma guarita. Mas do que gosto verdadeiramente é da terra afogueada, parece que passou por aqui um cometa incandescente e esquentou o solo, para todo o sempre. O contraste é o verde, só falta um rio da Guiné, o resto é o que chancela esta paisagem: o verde ambiente e a laterite que pisamos.


De todas as imagens em arquivo que possuo, é desta a que mais gosto, foi-me oferecida pelo João Crisóstomo, da Companhia 1439, do Enxalé, foi tirada quando iam a caminho do Xime, quase em frente. É o símbolo de todas as viagens, está ali o Geba, soldados como nós, viaja-se de uma berma para outra. É a metáfora da Operação Tangomau. Provisoriamente, interrompe-se aqui a viagem. Muito obrigado pela vossa atenção.
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Notas de CV:

Vd. postes da série de:

5 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7384: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (1): Dias 18 e 19 de Novembro de 2010

9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7410: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (2): Dia 20 de Novembro de 2010

12 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7425: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (3): Dia 21 de Novembro de 2010

16 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7445: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (4): Dia 22 de Novembro de 2010

20 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7479: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (5): Dia 23 de Novembro de 2010

28 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010

1 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7541: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (7): Dia 25 de Novembro de 2010
e
4 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7552: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (8): Dia 26 de Novembro de 2010

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7682: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (17): Algumas conversas para melhor perceber o PAIGC

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,


Já estamos na despedida.
Quero agradecer a todos aqueles que contribuíram para clarificar impressões de viagem que deixaram o Tangomau intrigado. Não há nada como descobrir que a viagem ficou incompleta, havendo necessidade de regressar, um dia. Em nome das amizades inigualáveis, em nome do lugar que se habitou e que se grudou ao coração.


Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (17)

Beja Santos

Algumas conversas para melhor perceber o Outro, o PAIGC

Despedidas e promessas

1. É uma reunião muito estimulante com mulheres e homens predominantemente entre os 50 e 70 anos. Já se percebeu que não há nenhuma historiografia oficial, formal ou informal, tanto na posse do PAIGC ou dos seus dirigentes históricos. Há arquivos incompletos, há os trabalhos de Luís Cabral, Aristides Pereira, Mário Pinto de Andrade, as prosas laudatórias da propaganda, de um modo geral inúteis para se obter a panorâmica de como o PAIGC se inseriu junto das populações e delas obteve apoios incondicionais ou as abrigou a colaborar na luta; há muita documentação na Fundação Mário Soares, serve para esclarecer alguns ângulos, mas não todos; desapareceram documentos secretos, correio entre dirigentes, ordens de batalha, até comunicados políticos.

Continua a ser tabu o relacionamento entre os dirigentes cabo-verdianos e os quadros militares guineenses. Ninguém usa como referência o Livro Branco do PAIGC, ninguém tem ilusões que é uma historiografia oficial datada, a história não é feita de declarações incontestáveis. É por todos admitido que foi no Congresso de Cassacá (1964) que o poder político se sobrepôs ao poder militar, orientando-o durante e após a independência, até 1980. Eram os comissários políticos que superintendiam as operações militares, os comandantes prestavam permanentemente contas.

A partir de 1980, com a era de Nino, deu-se uma demarcação, com o agravamento da situação económica e financeira, os militares sentiram-se livres de contestar e de se orientar nos negócios. Quando se sentiram ameaçados, como Ansumane Mané, reagiram. Até hoje. Os altos comandos vivem permanentemente à espreita de serem liquidados, desde a época do conflito político-militar de 1998.




O Tangomau já esgotou praticamente o seu stock de imagens. Nas reuniões por onde anda, nem lhe passa pela cabeça tirar fotografias. Socorre-se de fotografias não publicadas. Neste caso, uma panorâmica do cemitério de Bissau, o talhão dos combatentes da guerra da pacificação, rodeado do talhão dos combatentes da guerra que perdurou até 1974. Estava tudo relativamente bem arranjado, a Liga dos Combatentes determinara uma boa limpeza. Estava um dia luminoso, o Tangomau sentiu-se impelido a estranhas orações, quase conversas, entre o céu e a terra, era uma evocação errática e difusa em nome de todos os mortos.


2. O Tangomau muda de registo e pergunta à assistência como é que os quadros do PAIGC sentiam o crescimento do pensamento nacional, houve comentários variegados, alguns deles mereciam aprofundamento e até registo para um qualquer historiador procurar direcções de análise desse PAIGC aparentemente coeso e militarmente indómito. Um dos comentários lembrou ao perguntador a singularidade do desencadear da guerrilha: primeiro, a formação dos agitadores, quadros que foram lançados na subversão, quer nas barbas das autoridades, quer aproveitando a insignificância da sua presença, como foi o caso do Sul; esses agitadores conduziram à mobilização de populações, mesmo à custa do terror e da separação das famílias, em escassos meses, em 1963, o Sul foi transformado em parcelas atomizadas que reduziram a capacidade de manobra das tropas portuguesas.

Cabral era um ideólogo incontestado, nos primeiros anos; os choques virão mais tarde, se bem que permanecessem discretos, entre cabo-verdianos e guineenses, estes últimos frequentaram escolas de formação e foram confrontados com outras formas de racismo. Uma guerrilha que se expande tão rapidamente entre 1963 e 1964, populações a viver sempre em risco e, de um modo geral, a aceitar esses riscos e os sacrifícios no transporte de munições, armamento, comida e medicamentos, tudo acaba por se saldar numa combatividade de âmbito nacional, basta pensar no hino e na bandeira.

Alguém da assistência pede para fazer um comentário: é verdade que hoje o pensamento nacional é difuso, mas no conflito político-militar a população insurgiu-se contra a presença estrangeira, contingentes senegaleses e de Conacri foram severamente reprimidos por exércitos ad hoc, compostos por gente de todas as etnias. E foi lembrado ao perguntador se era possível não haver uma consubstanciada crença no PAIGC quando, em 27 de Abril de 1974, andavam grupos nas ruas de Bissau a gritar vivas ao MFA e ao PAIGC. O Tangomau a todos agradece, amanhã terá um encontro com Filinto Barros e Chico Bá para falar sobre a evolução da guerra de 1973 para 1974, ouvi-los sobre o que devíamos fazer conjuntamente para se estudar melhor o Outro, antes e depois da guerra que findou em 1974.

É a última fotografia que resta de Ponta Varela. Permite verificar a natureza do Geba estreito, que aqui começa ou aqui finda. Neste exactíssimo ponto, dentro da vegetação, os guerrilheiros do PAIGC flagelavam batelões e até lanchas da Armada. O Tangomau sentiu-se compensado da passeata em companhia de gente moçoila, intrigada com o velhote que caminhava despachado aqueles quilómetros ida e volta, encantado com hortas, cabaceiras, poilões e o marulhar da corrente desse Geba, que é o rio da sua vida.


3. Anoitece, o Tangomau despede-se das pessoas que amavelmente cederam a conversar com ele. Regressa à Pensão Central, vem com muita precisão de tomar um banho de caneco, pôr o corpo na horizontal, sentir o fresco de uma ventoinha trepidante. Encontra Patrício Ribeiro, combinam ir jantar num restaurante de comida portuguesa. Antes, conversa com a Avó Berta, conta-lhe o que andou a fazer pela região de Bambadinca. A Avó Berta aproveita para lhe falar de como, com o marido, num oceano de dificuldades, montaram a Pensão Central, como ela sobreviveu a todas as carestias, ali se recebeu professores, ali se manteve a sede viva da cooperação portuguesa e internacional. O Tangomau embevece-se com o fulgor desta senhora exemplar que se recusa a abandonar a grande obra da sua vida.

Refrescado e com o corpo menos moído, vai prestar contas e dar graças ali ao pé, na catedral. Dar graças por o coronel Jales Moreira ter pedido ao Daniel Nunes para encontrar uma solução de acolhimento na região de Bambadinca, foi ele quem apresentou o Tangomau ao embaixador Inácio Semedo, depois este pôs o irmão em acção; dar graças ao Fodé à família, dar graças a quem o reconheceu e o quis rever, com a alegria estampada no rosto, dar graças pela imensidade destas relações indestrutíveis, até ao último alento da sua vida.



Era assim a Pensão Central em 1997, fora retocada, pintada de branco imaculado, agora está de azul e há muita ferrugem à mostra. Ainda é possível andar num destes táxis azuis, com um ou até quatro passageiros. Importa não esquecer o bem que aqui se fez a quem chegou com fome e à procura de abrigo, de todas as partidas do mundo (foto retirada do site: www.guinee-bissau.net, com os devidos agradecimentos).


4. Vão jantar, o Patrício Ribeiro e o Tangomau, num restaurante decorado à portuguesa, até ali há enchidos, cebolas e alhos decorativos. Para surpresa do empregado, o Tangomau pede dois ovos estrelados, umas batatinhas fritas e uma boa salada, tudo a regar com uma cerveja gelada. A assistência grita frenética, o Barcelona esmaga o Real Madrid, há claques furiosas pró e anti-Cristiano Ronaldo. O Real Madrid sai dali desfeiteado, o Tangomau despede-se de Patrício Ribeiro, cai de sono, já está informado que aí pelas 23 horas se apaga a luz com o corte de energia, quer fazer as últimas leituras, preparar-se para os últimos encontros de amanhã, vai entregar cartas a Tumlo Soncó, que dentro em breve parte para o Cuor.

Na cama, folheia os elementos que compilou sobre o MFA da Guiné, o golpe militar que ele desencadeou em Bissau logo a seguir ao 25 de Abril, até o plano de ali fazer uma sublevação caso falhasse o 25 de Abril em Lisboa. Nunca entendeu porque é que os protagonistas não documentaram claramente estes factos, os movimentos, as tensões ideológicas e depois o entabulamento de relações, mais ou menos informais, com o PAIGC e como, logo em 1 de Julho de 1974 centenas de militares exigiram ao Governo de Lisboa o reconhecimento da República da Guiné-Bissau, no fundo se a Guiné o berço do MFA e este conspirou e descolonizou por conta própria no território, que diálogo se estabeleceu com os quadros do PAIGC. E assim adormeceu, mesmo sentindo a pressão do calor e depois de olhar, assombrado, o volteio dos carros na Avenida Amílcar Cabral, a fugir dos buracões do alcatrão, na noite escura.



Este é o Zé Pereira que viajou de Bissorã para me abraçar. Era o 1.º cabo mais culto e desempenado do Pel Caç Nat 52. Foi um exemplo de coragem quando, com Missirá em chamas, foi salvar uma criança esquecida numa morança. O que o Tangomau lhe deve não cabe num possível título de dívida e quando lhe disse: “Zé, deixa-me tirar-te uma fotografia, quer que todos saibam quanto te admiro!” ele logo respondeu: “Sim, mas com o teu livro na mão, este é meu e vou levá-lo para Portugal, quando for visitar o meu filho”. Um pai orgulhoso por ter conseguido dar estudos médios a todos os seus filhos, o Aillton é avançado no Atlético Clube Oriental e está a acabar a licenciatura.


5. De manhã, não há tempo para o devaneio de leituras, é importante escrever ao régulo Carambá, ao Príncipe Samba e ao Fodé. O ambiente escolhido é o do Centro Cultural Francês, é fresco e silencioso, o Tangomau escolhe uma mesa na zona da banda desenhada, bem fornecida e tentadora, sem perda de tempo escrevem-se saudações e promessas.

Que o régulo Carambá veja o Cuor desenvolver-se, do Geba estreito até Madina de Gambiel. Que o régulo esteja descansado, o Tangomau sente impulso para voltar, a velha estrada abandonada de Gambaná atrai-o, percorreu-a vezes sem conta, corta-lhe o coração vê-la reduzida a um caminho alcantilado de pouco préstimo, quer voltar à Aldeia do Cuor que ele encara como uma civilização perdida, nunca decifrou aqueles muros tão altos, houve quem lhe dissesse que ali se pensou criar a povoação mais importante, desistiu-se, sabe Deus porquê, foi assim que nasceu Bambadinca, era por Aldeia do Cuor que se pensava escoar as madeiras exóticas e os produtos agrícolas do Gambiel.

Ao Príncipe Samba desejou-se as maiores felicidades, agradeceu-se o encontro comovente, aquela tradução para crioulo, cheia de intenção e sentimento, aqueles pedidos de ajuda a que ele gostaria de corresponder e lamentavelmente não pode, o Tangomau recorda e acentua a gratidão pela dedicação recebida. Ao Fodé, o muito obrigado por ter convocado tanta gente, ele foi o anjo de S. Gabriel que anunciou a vinda do Tangomau.

Aproveita-se o agradecimento para fazer tábua rasa das diferentes tensões entre ambos, aguarda-se agora reencontro em Lisboa. Escritas as missivas, faz-se a sua entrega no Bairro Missirá, Tumlo lembra ao Tangomau que tem um filho com muito jeito para a bola, pede-lhe encarecidamente ajuda, o Tangomau volta a chorar, de impotência, não pode corresponder a tanto pedido.

Tumlo Soncó sentado, parece que está à espera calmamente que o futuro seja pródigo, lhe traga algumas benesses. É nestas coisas que o Tangomau revela a incipiência própria dos fotógrafos amadores, deixa sombra da Maria Fausta, a mulher de Abudu Soncó, e do Sr. Sabino, o motorista da Embaixada de Portugal.


6. Entregues as cartas, o Tangomau parte para um café onde se vai encontrar com Filinto Barros e Chico Bá, ou Francisco Silva, que foi comissário geral das frentes Norte e Sul. Ambos autorizam que o Tangomau tome notas. A primeira pergunta incidiu sobre o modo como se radicalizou a luta, exigindo, logo após o 25 de Abril uma independência total e irrestrita. Os interlocutores responderam que se temia também com o futuro de Angola e Moçambique: se a independência da Guiné empanasse, haveria consequências para as outras colónias. Era preciso que tudo começasse claramente na Guiné.

Ao contrário do que se tem dito, os negociadores guineenses pediram às autoridades portuguesas para ficarem transitoriamente na Guiné, cedo se aperceberam que não havia condições nem militares nem políticas. Os quadros do PAIGC sabiam não dispor de uma estrutura administrativa capaz para as novas realidades da independência. Os gestores que se prepararam vieram de escolas muito rígidas, como a RDA, uma outra realidade. Filinto Barros lembrou que a confraternização em Bissau teve muito poucas arestas, logo a seguir à chegada do PAIGC, por pura coincidência, encontrou do lado português um oficial da Armada que estudara com ele no Colégio Nuno Álvares. O erro não esteve em exigir a independência, esteve em não partilhar por mais alguns anos com os portugueses a aprendizagem da administração.

Falando dos acontecimentos de 1973 e 1974, estes dois importantes quadros políticos foram consensuais: não havia pressa quanto ao fim da guerra, sentia-se e sabia-se da erosão que a guerra estava a provocar e que a perda de supremacia aérea trouxera uma profunda desmotivação. Mesmo que, por absurdo, os aleados da NATO dessem provisoriamente um equilíbrio militar, a capacidade do PAIGC estava imparável, agora não era só o facto das tropas mal saírem do arame farpado, já se combatia com carros de combate e escolhiam-se alvos como Canquelifá que, tudo previa, iria ser cercada em Maio, em termos semelhantes ao de Guidage, como no ano anterior.

Os informadores do PAIGC em Bissau também sabiam que ia haver abandono de vários quartéis junto da fronteira e com graves consequências para o moral das tropas, essas populações ao abandonarem as suas tabancas iriam concentrar-se à volta de Bissau, agravando todos os problemas. Outra informação digna de nota: quando se proclamou o Estado em 24 de Setembro, a partir dessa data deu-se uma sangria de estudantes já adolescentes que se foram oferecer para a guerrilha. Era uma quantidade impressionante. A direcção do PAIGC ao comentar o facto concluiu que a juventude guineense irreversivelmente se pusera do lado do PAIGC. A relação de forças entrara em desequilíbrio, estes jovens marcavam a diferença. Discutiram-se ainda projectos sobre as relações com o Outro, de ambos os lados. Todos prometeram manter-se em contacto.



O Tangomau voltou à Madina do Gambiel à procura do paraíso, das palmeiras de Samatra. Tudo mudou, mantém-se luxuriante mas aquela beleza esmagadora desapareceu. Foi um dos momentos de decepção. Felizmente que o Tangomau fora reconhecido por Ieró Baldé, não há paisagem que substitua um momento de tanta beleza nos corações.


7. Amanhã haverá despedidas, algumas delas comoventes. E depois terminará este diário composto a trouxe-mouxe. O Tangomau vai às compras, para si e à procura de lembranças para os outros. Será a circunstância para mostrar as últimas fotos e convidar todos os confrades a voltar à Guiné.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7676: Ninte Kamatchol: a história da capa de um livro (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 21 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7650: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (16): Até Bissau num toca-toca e conversas sobre a história do PAIGC

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7650: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (16): Até Bissau num toca-toca e conversas sobre a história do PAIGC

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Estejam descansados, já estamos nos últimos dias.
Aquele Tangomau partiu para a capital lamuriento, embirrando consigo próprio, devia ter feito mais para cumprir o seu propósito de ver quase tudo onde vivera e onde combatera. As coisas não correram de feição, agora pretende-se ouvir um dos destinatários dessa medonha guerra, o outro, o PAIGC.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (16)

Beja Santos

Até Bissau num toca-toca e conversas sobre a história do PAIGC

1. Na véspera, já no quarto e pronto para dormir, o Tangomau ainda escreve no seu caderninho viajante: “O tocador de korá que vem na fotografia tirada no Bambadincazinho chama-se Seco Galissá e é parente do Braima Galissá; não se falou da visita de Demba Seidi, ele até aparece numa das fotografias em casa do Fodé, compareceu ao almoço de confraternização, foi sempre um soldado estimável e colaborante, não merece o anonimato; tenho de me encher de coragem e pedir ao Fodé para amanhã, no regresso, fazermos uma curta paragem em Finete, perdeu-se todo o material fotográfico, é um desgosto não mostrar a ladeira alcantilada que subimos e descemos centenas de vezes, tirar uma imagem à capela católica, construída nos anos 80 e que ameaça ruina iminente; e novamente captar a imagem da casa onde viveu Bacari Soncó e que me cedeu ali um quarto, sempre que pernoitei no quartel; afinal a fotografia que atribuo ao filho de Mankaman Biai é de Lamine Suane, o filho de Cherno. Tudo isto é resultado de não escrever imediatamente o que se está a fotografar, em cima das situações, não há memória que resista a tanto nome, depois vem esta caldeirada de nomes”.
O Tangomau desperta mal-humorado, sabe muito bem que quer ficar mais tempo, mas não pode espadeirar contra factos consumados. Tem a bagagem em ordem, já recebeu os presentes para entregar ao embaixador Inácio Semedo, também foi presenteado com erva-cidreira e doce de papaia, é nisto que começa a troar o carro de combate onde Calilo e Fodé Dahaba me vão depor na Pensão Central, em Bissau, a Avó Berta avisou-me que me espera para o almoço.



2. O Tangomau despede-se com um pesar sincero dos anfitriões, agradece e redobra cumprimentos, sente-se feliz pelo calor do acolhimento, aquela família deu o que podia dar, até tinham falta de transporte, disponibilizaram cordialidade, interessaram-se por todos os itinerários, ao longo de 10 dias. É um casal com dois filhos, como já se referiu, o Toinho e o Thierry, este bem pequenino. Vamos mostrá-los todos, menos a Dada que cismou não estar aprontada e só por isso não cabe no rectângulo da fotografia. Primeiro o Toinho, aprimorado e nada rabugento, às vezes dá noites difíceis, dá gosto ver estes olhos vivos, em pose para a fotografia.



3. Temos agora o pai e os filhos, Fernando Semedo (o Mio), Toinho e Thierry, o Tangomau gosta muito do ângulo, está ali a mesa onde leu e escrevinhou, onde, amanheceres e entardeceres a fio, se deslumbrou com Bambadinca ao longe, à esquerda, as bolanhas de Ponta Nova e Finete e Mato de Cão, ao centro, à direita e ao fundo. Até o cão, que deu companhia ao Tangomau, se fez fotogénico e se juntou à recordação.



4. Alguém alvitrou que o anfitrião se devia mostrar ao lado do hóspede, ou vice-versa. O hóspede está encolhido, já choramingou, anda há dez dias em efusões e infusões, tem o ânimo abalado, o balanço é altamente positivo, em nenhum momento se arrependeu desta empreitada, e tantos foram aqueles que o advertiram: “Não vás, é um sofrimento desmesurado, aquele mundo que conheceste vive convulsionado, serás interpelado por gente de mão estendida, haverá equívocos e grandes espectativas, juízos infundados, não vás!”. O Tangomau foi bem acolhido no Bairro Joli, tirando um bêbado na Ponta do Inglês toda a gente veio à fala, foi cordial, deu informação, mesmo sabendo-se como são ínvios, por portas e travessas, os silêncios africanos. Tira fotografia, dá cá um abraço e garanto-te que me despeço sinceramente com um “adeus, até ao meu regresso”. Alberto Djata, o cozinheiro, colocou-se a jeito para apreciar a cena.



5. É a vez de fixar Fodé Dahaba para o mísero álbum das glórias do Tangomau. Este é o amigo a quem se chama irmão, é uma amizade que arde e resiste a todo o sopro. Dá que pensar como se supera, entre ele e o Tangomau, a tensão cultural, o Fodé é mandão, presumiu que na sua terra tudo quanto determinasse seria irrefragável, deu chispa, aqui e acolá gritavam, com mais ou menos sinceridade. Ainda bem, o que importa foi o desvelo, a gratidão, a recepção de braços abertos. O Tangomau caminha para estes olhos vazios dentro de um rosto atento, pois os outros sentidos cresceram à custa da visão que se perdeu. Mais de 40 anos de uma grande amizade. É o momento propício para se agradecer todas as gentilezas com que se foi cumulado. Mesmo quando o Fodé perdeu o volante da condução das viagens, manteve-se vigilante, pairando, graças ao telemóvel, por aquelas viagens de motocicleta pelos pontos ermos. O Tangomau esteve mesmo à beira de o surpreender e embaraçar, dizendo: “Não me vou embora, sigo para Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, amanhã desço até ao Corubal, vou inteirar-me dos santuários do PAIGC, faz boa viagem, logo que possa regresso a Bissau de canoa”. Mas o Tangomau resignou-se às vontades do calendário, meteu-se no toca-toca, num banco corrido que em tempos teve um assento confortável e agora é uma simples chapa de ferro. Será uma viagem atribulada mas inesquecível. Nem o Tangomau terá coragem de pedir para se fazer uma pausa em Finete. Para quem desconhece uma viagem a toca-toca é qualquer coisa como um autocarro de carreira, com a diferença de que em muitos casos são os passageiros que fazem a paragem, tal o volume de sacos de carvão, de malas com peixe, cachos de bananas, volumes de todas as dimensões, alguns deles nos colos ou junto aos pés dos passageiros; aquela senhora anafada que se atirou para cima do Tangomau e o espalmou junto do banco do motorista, a ponto de o obrigar a levar as mãos no ar, como se fosse a rezar, é uma viagem com gritos constantes a mandar parar e seguir, passando pela Bantanjã Mandinga, Finete, Gambaná, Mato de Cão, Gã Mamadu, ao longe avista-se o Geba, já se passou o Enxalé, duas horas e meia depois de peripécias entra-se na estrada que une Safim a Bissau, dá agora para compreender como os subúrbios da capital crescem descontrolados, agravando os problemas e a miséria geral, não há recursos para este saneamento básico, para ter adequados cuidados de saúde, escolas, captação de actividades económicas. Esfomeado, o Tangomau é depositado na Pensão Central.



6. Esclareça-se o leitor que quer por motivos de cansaço quer pelo compromisso de não tirar fotografias a determinados interlocutores, a partir de agora as imagens vão rarear até ao fim da viagem. Aproveita-se a prata da casa, imagens ainda não publicadas ou aquelas, por serem sugestivas, mereçam ser colocadas a propósito. É assim que o Tangomau aparece de novo ao lado da Avó Berta, a proprietária da Pensão Central, e que conhece vão passados 40 anos. Estão ambos comovidos pelo encontro, era então a manhã de 18 de Novembro. O que importa é que o Tangomau encontrou um quarto à sua espera, já comeu uma sopinha bem apurada e com gosto a batata e cenoura, comeu peixe de caldeirada e até sobremesa doce. Vai descansar uma hora a ouvir o ruído monótono da ventoinha, seguirá para a embaixada, para certificar os compatriotas de que está vivo, e daí partirá para uma reunião que o Delfim Silva organizou, há gente de várias precedências e talentos que se prontificou a dar esclarecimentos sobre certos pontos que o Tangomau ainda os acolhe em claro-escuro, mas também com zonas prolongadas de cinzento e tons desmaiados.



7. Tranquilizou-se na embaixada de Portugal quem andava desassossegado pela falta de notícias, Tangomau é mesmo Tangomau quando se abalança a ir para o mato não dá sinal de vida. Fazem-se telefonemas para derradeiros encontros nos dois últimos dias, há abraços a dar aos Soncó, principalmente será importante reencontrar Mamadu Soare Soncó, a quem há dias morreu o seu irmão Quecuta. Parte-se para uma prolongada reunião, é-se acolhido numa moradia, apresentam-se os quadros políticos e militares de um passado menos próximo. O primeiro ponto que o Tangomau solicitara para a discussão era o da documentação histórica do PAIGC, até 1974, parece assunto menor mas não é. Está-se a falar de fontes primárias ou da mais genuína matéria-prima. O que se vai apurar, durante esta conversa informal e muito amiga é que tudo quanto está na Fundação Mário Soares é um soberbo arquivo mas incompleto. Desapareceu integralmente o recheio do que veio de Conacri, à data da independência, correspondência dos dirigentes entre si e com os aliados, só por aí se ficaria a saber, com mais conhecimento de causa, a evolução do armamento, os apoios internacionais, o aprovisionamento tanto a partir da Guiné Conacri como do Senegal; os arquivos pessoais de Amílcar Cabral estão na posse de duas herdeiras; os ficheiros do PAIGC em Bissau foram devastados, tanto por decisões arbitrárias de quem mandou eliminar ou desviar documentos como pelo próprio conflito político-militar de 1998/1999; há várias biografias de Cabral, há as publicações propagandísticas, há indícios sobre a existência de alguns diários, como o de Chico Té, fala-se na importância das investigações de Leopoldo Amado (o Tangomau há muito que se propõe ir lê-la à Faculdade de Letras), afinal Vasco Cabral, de quem se esperava inúmeras revelações, nada deixou escrito, e por aí adiante. Há inúmeras peças soltas e se escândalo maior se quisesse evidenciar bastava referir que tudo o que foi o processo do julgamento sobre o assassinato de Amílcar Cabral, absolutamente tudo, desapareceu. Ponto final, no futuro os historiadores que descalcem a bota para fixar as peças do puzzle, qualquer lógica para o retrato.
Seguem-se outros temas, de acordo com os interesses manifestados pelo Tangomau: como se deu a supremacia dos militares sobre os políticos; porque se radicalizaram as posições durante a independência, quando era certo e seguro que o PAIGC até tinha proposto por mais tempo a presença portuguesa.
Com entusiasmo, os diferentes participantes foram expondo as suas razões. Despedimo-nos até à próxima com uma outra versão daquele poilão da Ponta do Inglês que fala inequivocamente da guerra e da presença humana, como se testemunhasse que há memórias que não se querem apagadas, em vez de lançarem uma garrafa ao mar, ao lado das marcas das balas, os soldados tatuaram a árvore, como se dissessem: até sempre, não nos esqueçam.


Continua
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de Guiné 63/74 - P7645: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (15): Uma ida aos Nhabijões, com o coração cheio de lembranças da CCaç 12

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7645: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (15): Uma ida aos Nhabijões, com o coração cheio de lembranças da CCaç 12

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,


Prestes a findar a Operação Tangomau, abraço os camaradas da CCaç 12 com quem tive o privilégio de conviver.


Fui aos Nhabijões, informo quem lá habitou ou calcorreou aqueles lugares e viu nascer o reordenamento que há grandes mudanças, felizmente sente-se ali um viver com mais qualidade que no Bambadincazinho, por exemplo.


Peço desculpa pelo material dos Nhabijões não ser o mais elucidativo, já eram 5 horas, lutava contra o tempo e queria assistir ao pôr-do-sol no Bairro Joli. Mas às vezes a intenção é tudo.


Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (15)

Beja Santos

Destes Nhabijões de sangue, suor e lágrimas

1. As instruções que o Tangomau dá a Lânsana Sori são muito simples: lá em baixo no Bambadincazinho viramos à esquerda como se fôssemos para Amedalai, muito antes inflectimos para os Nhabijões, vamos só visitar o Nhabijão Mandinga. Irei recordar gente que sofreu, inopinadamente. A motocicleta lança-se no chão alcatroado, alguns quilómetros à frente avistam-se os ciclistas da região com quem se esteve a confraternizar, concretamente Sadjo Seidi, Califo Djau e Zé Finete. Novos abraços, responde-se às perguntas sobre esta presença inusitada, para eles é insólito que o Tangomau visite os Nhabijões, mesmo sendo certo e sabido que toda este território foi calcorreado até às bolanhas de Samba Silate. Como abreviadamente se conta.

Desde Missirá que se sabia que os guerrilheiros de Madina e Belel também utilizavam a cambança do Geba nestes pontos, não era só a região de Mero, em frente a Finete. Por duas vezes se tinham destruído canoas na orla do Cuor, uma vez na orla dos Nhabijões. Aqui também chegavam civis e militares afectos ao PAIGC, vindos do Buruntoni e locais afins. Os povos guineenses estavam divididos mas não se denunciavam, sobretudo quando vinham desarmados e disfarçados percorriam o quartel de Bambadinca, iam às compras e obtinham informações.

Depois veio o reordenamento dos Nhabijões, por ali o Tangomau andou com o pelotão ou deixava secções para a chamada protecção das populações, a partir de Novembro de 1969. Foi um reordenamento de vulto, dos maiores que se fizeram na Guiné: seis grandes tabancas foram construídas de raiz, com saneamento básico, escola, mesquita. À margem desse reordenamento, impunha-se policiar Samba Silate, era provavelmente a grande tabanca antes da guerra, depois deu-se a diáspora, uma parte importante foi para a guerrilha, outra derramou-se por territórios beafadas, Bambadinca e Bambadincazinho, Badora e Cossé.

Policiava-se a partir dos Nhabijões à procura de canoas e subia-se até a Amedalai. Esta era a lembrança que o Tangomau retivera, depois de regressado, em 1970. Refizera a vida e adestrara as emoções para ficar longe desse passado recente. Mas em [13 de Janeiro de] 1971 alguém lhe trouxe uma notícia infausta: houve uma mina nos Nhabijões, matou o soldado condutor Soares e feriu alguns mais, até com gravidade. Ora o soldado Soares, por força das actividades de recoveiro exercidas pelo Tangomau e sua tropa, levava-o e trazia-o por itinerários como Madina Bonco, Galomaro, Bafatá, Ponte de Udunduma, Madina Xaquili, coisas assim. Dava para conversar, cedo se apurou que o Soares era temperado, curioso e de trato irrepreensível.

Quando foi derrubado pela notícia da sua morte, o Tangomau fixou-se para todo o sempre nas leituras do condutor Soares, eram obras simples como A Peregrinação contada às crianças, romances de Júlio Dinis, sínteses da Eneida e da Odisseia. Sobre este formidável sinistro está tudo dito e redito no blogue, não se levam flores, leva-se a memória até esse caminho que mudou a vida de pessoas.



2. No passado, saia-se de Bambadinca e por caminhos sinuosos, qualquer coisa como 3 quilómetros entrava no Nhabijão Mandinga, daí passava-se para o Nhabijão Mancanha, inflectia-se à esquerda para Nhibajão Bulobate, daqui para o Imbume, depois o Bedinca e finalmente o Cau, curiosamente quem olha para o mapa, serpenteiam a rica bolanha de Samba Silate até à orla do Geba estreito.

Agora a viagem é diferente, ampliou-se o velho trilho antes de Amedalai, perto do rio Udunduma, é uma linha recta flanqueada por cajus e cabaceiras. Não é bonito nem feio, o que importa é a hora do dia, o sombreado cor de ouro, as pessoas que vão e vêm, sempre a acenar e sorridentes. E súbito, o Tangomau volta 40 anos atrás, ali está uma casa do seu tempo, muito provavelmente são as chapas ali colocadas no tempo em que o governador assistiu à inauguração. Percorrem-se vielas e travessas, sim, confirma-se que há metamorfoses mas há muitos sinais do passado. É nisto que se juntam populares, o Tangomau dá explicações, um ajuntamento ruidoso persegue-o entre o mundo de ontem e o que se construiu depois.



3. Em 1969, vimos plantar este arvoredo, estas são as casas desse tempo e quando não são guardam a lógica do reordenamento. O fundamental é que os guias perceberam que a visita incide sobre a memória do lugar, primeiro, e já se questionou onde fica a velha estrada, é importante ir ao local exacto onde se deu a deflagração e onde gente companheira experimentou um grande sofrimento.

Vão-se fazendo perguntas, há ali construções novas, cooperativas, unidades de saúde, infra-estruturas suportadas por ONG e até por missões. É o caso desta imagem, ali há muita actividade, ensina-se empreendedorismo, desenvolvimento rural,  ensina-se artesanato e algo mais. Que bom apontar-se para o futuro, para o trabalho e para o desenvolvimento humano. Tira fotografia!



4. Deste local, junto à estrada, vamos a pé, em comitiva, vamos mudar de rumo, à procura da velha estrada, onde tudo aconteceu. Sim, há boas diferenças, Lânsana Sori no regresso percorrerá esta estrada até chegarmos, por portas e travessas, ao antigo quartel.

Os Nhabijões cresceram, são o subúrbio do Bambadincazinho, mas aqui há agricultura florescente e já foi dito que a pesca traz bons alimentos. E dois quilómetros à frente, alguém exclama em voz alta: “Aqui foi mina, rebentou aqui e rebentou quando veio atrás!”. Alguém se acocora e aponta, o Tangomau, como é uso e costume, brada: “Não te mexas, o pessoal da CCaç 12 vai recordar esses momentos de aflição”. Terá sido este o local onde deixou de viver um jovem que sonhava com a família e que lia adaptações de João de Barros e António Sérgio. E o Tangomau curvou-se respeitosamente perante essa memória.




5. Aqui, segundo a descrição de quem guia o Tangomau, o Unimog terá recuado, alguém mostra a pedra chamuscada, fez-se clareira com a nova explosão, não interessa exactamente o que aconteceu, está tudo registado e é até muito provável que não tenha sido exactamente assim. O que comove o Tangomau é o afã dos seus acompanhantes, a sua expressão, imitam sons das explosões, é genuína aquela procura de reproduzir os pontos exactos onde o drama aconteceu. Alguém aponta para esse local onde a viatura voltou a explodir.

Nova imagem, se não foi exactamente assim o Luís Graça que reponha a verdade, pode ser que se esteja a descrever tudo ao contrário, não sei veio aqui com intuitos de cronista, é tudo lembrança, o Tangomau até ultimamente se tem encontrado com o Marques, que tanto penou com este acidente. Coisa estranha, o Tangomau lembra os camaradas de quarto, um tal Francisco Magalhães Moreira, que vive em Santo Tirso, um tal Abel Rodrigues, que vive em Miranda do Douro, lembra operações, colunas, fainas um pouco mais banais, perigos em comum. E capta imagem, lembrando todos, como se dessa explosão tivesse resultado mais estima.




6. Olha, diz um dos guias, aqui ficou tudo chamuscado, um meu pai contou-me que havia uma grande cratera, tapou-se, agora o mato esconde tudo. Alguém mais repara que aqui já o Unimog era um destroço, corpos à deriva, gritos de espanto e de pavor.

É nisto que o Tangomau se lembrou de um poema de Sebastião da Gama intitulado Cristo, e de forma avulsa, ajuntou alguns versos para recordar o soldado condutor Soares: “Ó meu Jesus heróico, / meu Capitão, afasta / com Tua mão direita, / afasta a Morte, afasta-a, / que ainda não a mereço (…) Era de tarde. O Vento / dava nas ervas, punha-as / de rastros, humilhadas. / Jesus passou. / -: Ergui-me.”.

Desculpa lá, ó Soares, desculpe lá ó Marques, foi o que me veio à cabeça, talvez não tenha jeito nenhum, mas é o que eu queria dar em preito à malta da CCaç 12. [Sobre uma segunda mina, duas horas depois da que matou o Soares, leia-se o poema de L.G. > Blogpoesia > À uma e meia da tarde, na estrada de Nhabijões-Bambadinca]



7.  A visita está concluída, depois desta homenagem singela. Caminha-se para o lusco-fusco, Lânsana promete um passeio de regresso com algumas surpresas. Tira-se a última fotografia dentro do Nhabijão Mandinga, pena foi não ter havido oportunidade para andar dentro da bolanha e fazer de Samba Silate o árduo caminho até Amedalai.

Felizmente que as viagens se recomeçam, para tanto basta que a curiosidade coexista com a vontade de regressar a esta terra bem-amada. Aí o José Saramago tem toda a razão: o que se vê de dia, com chuva, não é o que se vê noutro dia, ensolarado; e o que se vê em Março não é o que se vê em Setembro, e por aí adiante. Acresce que o Tangomau teve o privilégio de conhecer esta natureza em todos os segundos do dia, com chuva torrencial, com o pó a esquentar os pulmões, com o céu de chumbo dos tornados, as noites esbraseadas no auge da época seca. E à saída do Nhabijão, ele diz para si, sem que ninguém oiça: até breve, prometo voltar.



8. Sabe-se lá quando voltará o Tangomau ao Bairro Joli. A motocicleta vai à desfilada e é nisto que se apanha a última luz do dia. É que grande dia este 28 de Novembro de 2010! Primeiro a confraternização, aquela beleza, aquela ternura do Tangomau poder abraçar os seus bravos. E depois os Nhabijões.

Durante décadas, ninguém quis, nas artes plásticas, registar as nossas condições de guerra. Foi nesse contexto de indiferença que um dia um grande pintor, Manuel Botelho, se atirou à captação das guerras. Recorreu e recorre frequentemente às coisas do blogue. Hoje é o último dia em Bambadinca. Saudemos em primeiro lugar o pôr-do-sol, aquele momento derradeiro que o Tangomau nunca esqueceu. E depois mostre-se a imagem que o Manuel Botelho gravou da grande tragédia dos Nhabijões.

Entretanto, hoje é jantar de despedida, a visita bem importunou esta família do Bairro Joli, amanhã, está prometido, Fodé e Calilo Dahaba aparecerão pelas 8 da manhã. Iremos no carro de combate para a última jornada do Tangomau, em Bissau.



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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7640: Notas de leitura (191): Intervenção Rural Integrada, a experiência do norte da Guiné-Bissau, de Mamadu Jao (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 15 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7618: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (14): Aquele domingo de festa no Bambadincazinho

sábado, 15 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7618: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (14): Aquele domingo de festa no Bambadincazinho

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Sei muito bem que partilham comigo a alegria daquele domingo de festa.
Segue-se a homenagem àqueles camaradas da Guiné que em Bambadinca partilharam angústias, mágoas e esperanças nos dias melhores.
Agora vou de viagem numa romagem de saudade.
Fiquem atentos.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (14)

Beja Santos

Aquele domingo de festa no Bambadincazinho

1. Na véspera, depois da visita à Ponta do Inglês, faz-se um alto em Amedalai, há sempre saudades de Mamadu Djau, há sempre nostalgia em virar à direita e visitar de surpresa Taibatá, Demba Taco e Moricanhe, há vínculos que nunca morrem. Eis senão quando, enquanto se espera a chegada de Mamadu Djau e família, chega com placidez mas com gestos determinados José Carlos Suleimane Baldé, 1.º Cabo da CCaç 12, já aqui apresentado, e a quem o Tangomau pedira uma lista dos soldados ali residentes para divulgar junto dos camaradas portugueses. José Carlos entrega ao Tangomau uma folha e este lê: “Os soldados africanos ainda com vida, para além de mim próprio, que vivo em Amedalai são Sori Modjo Baldé, Suleiman Baldé, Cherno Baldé e Bobo Gomó de Taibatá; de Amedalai temos Djambalo Baldé e Totala Baldé; de Demba Taco o Mamadu Sori Baldé; há um Califo Baldé do Cossé e outro Califo Baldé de Galomaro; e Dembra Djau de Bambadinca. Estes, tenho a certeza que estão vivos, mas a maioria já morreu”. E terminava com um apelo: “Furriel Reis, não te esqueças de mim, tu sabes que a crise aqui é permanente”.

O Tangomau lê e guarda a missiva destinada a quem em Portugal fez parte da CCaç 12. O cansaço é quase extremo, sente ânsias em percorrer com os olhos as bolanhas a partir do Bairro Joli, é para ali que Lânsana Sori o conduz. Irá presenciar um prodigioso lusco-fusco, tem na mão uma leitura falsamente ligeira “Maigret e o Cliente do Sábado”, desta feita o mais famoso comissário da polícia judiciária francesa é visitado aos sábados por alguém que chega e parte discretamente, um dia segue o comissário até casa e faz-lhe confissões dolorosas sobre a vontade que tem em matar a mulher. Léonard Planchon, tímido, titubeante, pesaroso, derrotado, pequeno industrial, foi escorraçado pela mulher, sujeita-se em viver na sua própria casa com o amante dela, seu colaborador. Se dúvidas houvesse quanto ao talento inconfundível, a arquitectura magistral dos diálogos, a descrição dos ambientes, a carga de ódio vivida em silêncio dos executores do crime, este livro de Georges Simenon dissipa as últimas reticências. Anoiteceu, o Tangomau vai descrever ao jantar, à Dada e ao Mio, enquanto bebe sumo de papaia, o que viu na estrada para a Ponta do Inglês e como gostaria de ter calcorreado pelos seus próprios meios a extensa bolanha do Poidom, entre Ponta Varela até à Ponta Luís Dias. Daquele fim de tarde ressuscita-se uma imagem em Amedalai, José Carlos está sentado entre Samba Gebo e Madiu Colubali. Repare-se na firmeza do olhar, a pose séria, importa não esquecer que ele quer dar um sinal de vida aos camaradas da CCaç 12 que ele não esqueceu, até porque ele sabe que os seus SOS têm chegado a bom porto. E continuarão a chegar.



2. O Tangomau já prevê, antegoza, as alegrias da festa deste domingo, 28 de Novembro. De manhã à tarde, sem subterfúgios, ele pertence a quem viaja de longe ou de perto, é um dia para matar saudades, para estar sentado e recordar vivos e mortos, pedir ao Deus misericordioso que lhes dê mais esperança, a começar pela esperança de vida, pois mesmo com artroses, os corpos esquálidos, os olhos doentes, não há nada de mais lindo do que ir ao encontro de quem nos estima e não nos esqueceu – o Tangomau aprendeu com esta voz silenciosa que os sinais da esperança são como os do amor, intempestivos, imprevisíveis e que impactam uma extrema doçura, dá mesmo vontade que se repitam pela vontade desse mesmo Deus misericordioso. Chegou Calilo Dahaba, primeiro as vitualhas para o Bairro Joli, a seguir as azafama do foleré, a saber a carne de vaca que já se encomendou àquele energúmeno Rachide, o mesmo que teve audácia em mandar carne pode para o Bairro Joli, desta vez faz-se a encomenda na presença de vários latagões de olhar frio, avisa-se mesmo que se a carne tiver vício oculto ele a comerá toda, incluindo os ossos; segue-se a ida à praça, à procura de batata inglesa, batata-doce, candja, orégãos e djacatu; o resto é comprado nas lojas dos mauritanos e dá pelo nome de alho, calda de tomate, óleo, sal e cebola. Parecem detalhes insignificantes, não é? Pois não são, comprar é uma epopeia, parece um rally paper, de uns sítios somos atirados para outros, há faltas aparentes que acabam por ser supridas graças a uma informação benfazeja. Faltam as bebidas frescas, álcool é impensável, seria tomado como gesto afrontoso, estamos entre fulas, mandinga e beafadas, aqui prevalece o Corão. É nisto, de comprar e levar os carregamentos até Aidjá, a sacerdotisa da cozinha que surge M’Fon Na Bra, comandante de bi-grupo em Ponta Varela, também já referenciado. Vem por dois motivos: tirar fotografia, pois agora somos amigos, nada de bazucadas nas embarcações do Geba, como há 40 anos atrás; e vem mortinho de curiosidade, nunca acreditou naquela festa, confessa-se surpreendido com gente que chega de vários regulados. “Tira fotografia, branco!”. E branco tira fotografia, pois.



3. Não vale a pena esconder as afinidades afectivas, Mamadu Djau merece sempre um retrato à parte. De manhã ao entardecer, o Tangomau não se cansará de recordar o que lhe deve, no fundo o que todos lhe devem, o que ele não esqueceu e até já registou em dois livros, e sempre comovido. O que ele gostava mesmo era que o Mamadu tivesse um telemóvel, para haver uma conectividade permanente, nos dias bons e nos dias maus, nos dois sentidos. O pretexto hoje para a conversa foi a Ponta do Inglês, o que ali se sofreu. Mal sabe o Mamadu que alguém vai estar atento ao apelo do Tangomau lá no blogue. Trata-se do camarada Manuel Bastos, que viu nascer o destacamento da Ponta do Inglês e quer prestar declarações pormenorizadas. Como vai acontecer. Mamadu olha a câmara, está pimpão, sente-se bem, vai falar pelos cotovelos com aquela discrição habitual dos valorosos genuínos.



4. Depois das efusões chegam as petições, inexoravelmente. Quem vive à míngua, tem sempre coisas a pedir: dinheiro, um visto, um bem de consumo, por exemplo. O Tangomau bem se esforça por considerar estes pedidos dentro da esfera da lógica, não é fácil. Estes camaradas vêm à espera de um milagre, foi dito uma vez, mil vezes se escrevesse e tudo continuaria incompreensível: se ele veio é porque recebeu mandato do presidente da República ou do primeiro-ministro para nos dar uma pensão; se não pode dar uma pensão, compete-lhe dar-nos um jeito à vida, não se viaja de um Eldorado até este vulcão de precisões só para dar abraços e falar na dignidade e na admiração, coisas assim, o que nós precisamos é de comer, ter uma bicicleta, ir ao médico ou fazer operação, confiarmos no futuro, não vivermos entre a vida e a morte sem lhe conhecer a fronteira. O Tangomau enquanto ouve estas petições lembra-se do dia em que lhe apareceu Abudu Cassamá, que era um menino com as costas retalhadas devido à deflagração de uma granada incendiária, eventos vividos em Finete, corria o ano de 1967. Pois voltou a vê-lo em 1991, apareceu-lhe bem crescido e com uma cabeleira de juba de leão. Abraçou-o mas Abudu vinha exigente na petição: um rádio, um relógio e um saco de arroz. O Tangomau sentiu-se amargado, demorou a digerir o que considerou um encontro interesseiro, esquecido que há diferenças substanciais nas relações entre as pessoas que têm acesso aos bens e as que tudo lhes é negado. É esta a realidade, mas dói muito todos estes encontros com petições possíveis e impossíveis. Por isso o Tangomau chora, rendido, vergado pela força do destino. E assim começou a festa, com toda aquela gente a cirandar, aproveitando as sombras dos alpendres. O Tangomau está esfuziante com a alegria de todos.



5. O foleré parece bem apetitoso, é uma da tarde, as bajudas trazem cântaros de água refrescada, mais tarde virão os gelados, depois a fruta. O Tangomau não pára, vagabundeia, pede opiniões, faz perguntas insólitas a Djiné Baldé, a Sadjo Seidi, ao Príncipe Samba, dá-se ao cúmulo de misturar o passado com o presente, de exigir que todos fiquem com trabalho de casa, uns haverão de encontrar Quebá Sissé, Adulai Djaló, Jobo Baldé, Tomani Sanhá, Sadibi Camará, entre outros. Hoje não aceita que lhe revelem mais mortos, os vivos serão procurados e em tal convocatória referir-se-á, assim pede a todos os mensageiros, que se deixam abraços sem fim, votos de felicidade e longa vida.



6. Os estômagos estão saciados, todos recusam estar mais tempo vergados sobre as caçarolas da bianda. O Príncipe Samba informa que vai fazer um discurso, tem coisas importantes a dizer. Mas é Fodé quem abre as hostilidades, como se estivesse a gritar para que toda a vizinhança ouvisse até ao porto de Bambadinca, esclarece que recebera uma carta do Tangomau a pedir-lhe suporte para uma viagem/romagem, ele fez o que pôde, justifica-se, pôs os carros de combate ao serviço da missão, telefonou e enviou mensagens. Queria que todos soubessem que este encontro nada tinha a ver com a guerra do passado, eram saudades entre camaradas. É nesta vociferação que Fodé se comove, embarga-se-lhe o discurso, chora corajosamente, lembra o acidente que o vitimou, lembra o Cuor, diz que lamenta estar cego e não poder ver todos aqueles com quem esteve na picada. O Príncipe Samba toma a palavra, o Tangomau sente a pele de galinha, Albino Amadu Baldé parece um profeta, inicia a sua oração dizendo: “Em nome do Deus misericordioso a quem devemos a existência, aqui estamos a prestar contas desta amizade imorredoira, pedi vezes sem conta para rever este inesquecível amigo, é bom rever quem já tinha esquecido, quer que todos saibam que vou guardar lealdade a este amigo até Deus me subtrair a existência. Aqui estou a responder à chamada. Daqui não partirei sem orar a Deus por todos nós, que tenhamos paz e que se cumpra a justiça”. Como se tivesse passado ali um trovão, mal se calou cavou-se um silêncio profundo. Foi então que o Tangomau se levantou, pediu a todos que se formasse um círculo, como em Missirá ou em Finete, pois ia falar e pedia ao Príncipe Samba para traduzir em crioulo. Estava tão exaltado, sentia uma tal beatitude que quando mais tarde alinhavou as notas do evento esqueceu o essencial da prosódia. Terá dito coisas como isto: estou a viver um dos mais belos momentos da minha vida, sim, Deus é misericordioso ao dar-me esta oportunidade, chegar a Madina de Gambiel e ser reconhecido sem me apresentar, ter batido à porta desta casa Manco Cotou, aquela mulher que ficou ferida na explosão da granada incendiária que também feriu o Abudu Cassamá, com um sorriso nos lábios disse nunca me ter esquecido, olho para todos vós e recordo as atribulações vividas, agradeço-vos terem vindo, amo-vos muito e quero exprimir a gratidão que sinto por tudo quanto me deram em dedicação. E sentou-se prostrado pelo peso da declaração. É nisto que vê Zeca Braima Sama que tudo grava e fotografa e que também pede a palavra para dizer que é uma das mais lindas cerimónias de toda a sua vida. Os que vão para mais longe anunciam que chegou a hora da partida, vão fazer oração e de bicicleta ou toca-toca regressarão a suas tabancas. Dispara-se uma fotografia e é neste entremês que o Tangomau começa a soluçar, temeroso pela despedida. Atenda-se à solenidade dos rostos, ninguém acredita que é um encontro de antigos combatentes, parece uma reunião de antigos alunos, um grupo excursionista, coisa que o valha. Mas não, estes são alguns dos homens que acompanharam o Tangomau até à quinta dos infernos. Que esta imagem consagre essa lealdade e essa dedicação.



7. Agora reina a confusão, os que partem querem tirar fotografia com os que ficam, o Tangomau deixa seguir, que se misturem, que se divirtam, que acamaradem. Siga a festa!



8. O Príncipe Samba anuncia a oração. O Tangomau pede licença para captar o momento, está autorizado. É a oração da tarde, Deus seja mil vezes louvado por tudo quanto criou e que os homens o louvem com o coração brando, imaculado. O Tangomau não sabe se é exactamente isto que se está a passar, Albino avisou que ia rezar por todos. Então, que haja louvor por todos estes homens que até durante a guerra foram sinceramente louvados.



9. A glorificação está praticamente no fim. Quem vai para o Corubal ou para os fundos dos Cuor, até mesmo para o Enxalé, abraça quem fica. Há muitos olhos líquidos, vozes embargadas, compreende-se. Faz parte das leis da vida que não se pode brincar ou apoucar o irrepetível. E partem. Ainda há mais conversa, naquela cálida tarde. É nisto que se ouve o ribombar da motocicleta do Lânsana Sori, está marcada para agora a última viagem desta peregrinação nos arrabaldes de Bambadinca. É uma homenagem ao Luís Graça e à CCaç 12, vamos a locais inesquecíveis, que a todos marcou. O motociclo arranca, pela estrada diz-se adeus a quem prossegue até casa. Adeus e até ao meu regresso. É no meio destes acenos que o Tangomau indica o último destino deste último dia deste local onde viveu e combateu qualquer coisa como dois anos.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7590: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (13): Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7590: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (13): Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
Peço encarecidamente a quem esteve na Ponta do Inglês que ajude a descodificar as imagens que se recolheram e que contribuam para se reconstituir as localizações dos quartéis da Ponta do Inglês.
Muito pouco resta, convinha zelar pelos últimos vestígios desta memória.
Permito-me recordar que pedi ajuda a quem no Xitole viveu (e não foram poucos) para explicar o que o Tangomau viu sem compreender, o Xitole que ainda está a tempo de uma intervenção para as gerações vindouras, ninguém acrescentou uma sílaba, incompreensivelmente.
O passeio foi paradisíaco, é uma beleza conflituante, contraditória: tanto deslumbramento numa autêntica estrada da morte.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (13)

Beja Santos

Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês

1. Toda a região do Xime exerceu e exerce fascínio no Tangomau. E por razões facilmente explicáveis: em Setembro de 1968, foi ali que fez a sua primeira operação, o objectivo era chegar a uma base bem pouco acessível denominada Buruntoni, tudo correu mal desde guia que se desorientou até um pesado bombardeamento sobre Mansambo, isto quando era o efectivo que ali se encontrava na operação; Ponta Varela, como já foi dito, soava, em questão de flagelações com RPG2 e RPG7 em Mato de Cão, e por diversas vezes; depois, a partir de Março, e com alguma regularidade, o Tangomau e os seus homens ali palmilharam a zona em várias direcções; e, por último, a última operação foi um patrulhamento que começou na região de Moricanhe, passou por Chicamiel, Gidamo e culminou numa emboscada entre Madina Colhido e Gundaguê Beafada, com resultados, uma mulher gravemente ferida e a plena convicção de que a população afecta ao PAIGC se abastecia no próprio Xime tabanca. Foi ali, de 1962 para 1963, que se abriu a segunda frente, Domingos Ramos vivia em Tubacutà, dentro da mata do Fiofioli; chegaram ao arrojo de colocar em Gundaguê Beafada um dístico “Aqui começa o território livre da República da Guiné, isto em 1963. A despeito do que era propalado pela propaganda, o controlo do Xime e Bissari, até ao Corubal, era exercido pelas forças comandadas por Domingos Ramos e pelos líderes que lhe sucederam. O Xime era um eixo estratégico e daí a tentativa, que se prolongou por alguns anos, de ter aberta a via até à Ponta do Inglês, na desembocadura do Corubal, em frente a Quinara. Esta estrada irá ser um calvário, entre minas e emboscadas, ali se verteu sangue e o destacamento da Ponta do Inglês tornou-se um inferno. O que o Tangomau conhecia era a região de Ponta Varela, o Poindom, até à Ponta do Inglês e respectivos acessos. A população cultivava as bolanhas, fundamentais para o aprovisionamento, era terras úberes; a navegação no Corubal fora tornada impraticável, de modo que qualquer saída do Xime e qualquer detecção significava confronto a prazo. O Tangomau, sempre que lhe coube decidir, resolveu as questões com protecção dos obuses e aproximações e retiradas em ziguezague, tudo dava trabalho mas tinha a compensação de não se chegar com mortos e feridos. É nesta estrada, junto ao porto, que Lânsana Sori inflecte para a esquerda, passa junto da tabanca, há acenos e depois o romrom dispara em direcção a Madina, a antiga Madina colhido, um pouco à direita começa a estrada que vai para Ponta Varela, segue-se em frente, é uma estrada enorme, descurada, com belas sombras, Lânsana vai concentrado nas lamas, nos riscos de se atascar nos lodos das poças, nas bermas irregulares.



2. Curiosamente, a região não é muito povoada, o que interessa é que os palmeirais são frondosos, amistosas as sombras dos cajueiros, entrelaçados pelo caminho, daí os viajantes usufruírem uma sombra temporária. E depois de muito viajar chega-se a Gã Garneis, ou coisa que o valha, terá vivido ali um ponteiro de nome Ernesto, daí a corruptela. Há bifurcações, cumprimenta-se o chefe de tabanca, promete-se no regresso apresentar cumprimentos. A partir daqui a paisagem desafoga-se, sente-se a bolanha enorme e depois avista-se o mercúrio líquido do Corubal. Fazem-se perguntas, os viajantes são encaminhados para o termo da estrada. Agora não há que enganar, avista-se uma casa em ruínas e construções recentes, desfruta-se a magia da Península de Quinara, uma mancha de verde azeitona, desta orla do rio. O Tangomau emudeceu, é tudo muito belo, quem vê imagens não pode percepcionar os horrores que aqui se viveram, o sangue derramado, o trabalho sem esperança.



3. Pouco resta da casa de Inglês Lopes, ao que parece era este o dono da Ponta. Convirá que aqui se esclareça, entre os interessados (combatentes que aqui moraram) qual era exactamente a localização deste quartel cuja existência se poderá situar entre 1964 e 1966. Aqui esteve um pelotão destacado da companhia do Xime, mais um pelotão de milícias. Aqui iniciaram a vida militar amigos como Fodé Dahaba e Mamadu Djau, eram quase crianças. Manda a curiosidade que se vá primeiro junto da casa que precedeu o quartel, como é o caso em apreço. O descalabro salta à vista, não precisa de legendas. Ali perto celebra-se uma cerimónia, o Tangomau aproxima-se e apresenta-se, um ébrio declarado pretende insultá-lo, mostrando mesmo o seu cartão de alferes. Outras pessoas fazem sinais, pedem condescendência, e alguém vem mesmo propor os seus serviços, vai guiar os viajantes e mostrar-lhes o primitivo quartel, ali à beira rio.



4. O destacamento vinha até junto à água, havia um pontão para receber as embarcações, tudo desapareceu. Para quem já viu as magras estacas dos portos do Xime e Bambadinca, deplora-se e até se acredita que é verdade. A vista é extasiante, o que mais perturba o Tangomau é imaginar que se viveu naquele inferno e com aquele panorama edénico, pelo menos o que se avista em direcção a Quinara, a escassos quilómetros.



5. Os guias não se cansam de reafirmar que desapareceram abrigos, há ainda ali umas estacas à frente e que são visíveis no pontão que existiu do outro lado do quartel, já com vista para o Geba, lá ao longe. O quartel teve de ser abandonado e transferido para o que é hoje Gã Garneis, ir-se-á mais tarde visitar uma árvore de copa frondosa, ali mesmo ao pé havia um abrigo. Mamadu Djau irá confirmar as flagelações sistemáticas, o abandono da estrada depois do calvário das colunas, a quase operação que era ir buscar os abastecimentos ao rio, com protecção das lanchas da armada. O passeio prossegue, aceita-se que estejam ali alguns restos do antigo pontão, o mais importante é o esplendor do que aqui se avista, pois, algumas centenas de metros mais abaixo o Corubal enfia-se no Geba. Só para ter esta panorâmica, pisando o solo onde tanta gente sofreu anos a fio, valeu a pena confirmar o que se vira em marcha acelerada, durante as operações.



6. É por estas e por outras que se tem tudo a perder quando não se domina completamente o crioulo. Os guias chamavam a atenção para dois poilões que pareciam tatuados, ao princípio o Tangomau até pensou que os antigos militares deixaram inscrições, uma memória perpetuada. É nisto que se faz a aproximação e se vêem as marcas das balas, sabe-se lá se de rajadas ou de tiro-a-tiro. O que interessa é que ficaram lá, entre esculturas. É impressionante, os próprios guias dizem que a população aqui vem regularmente relembrar o que faz uma guerra, ver as marcas que a natureza não pode absorver, as árvores não gritam, tornam-se esculturas vivas, memoriais de sofrimentos ignorados. Se os habitantes de cá respeitam estes pavores da guerra, o que é que nos falta para iludirmos que devemos alguma homenagem a quem tanto aqui penou, mesmo por escassos anos?



7. Do primitivo quartel da Ponta do Inglês nada mais há a ver, aqui se tem construído depois da independência com alguma profusão, há escola e instalações que dão suporte às fainas agrícolas. Não se vêem sinais de embarcações. E não fossem já mais de 4 horas e o Tangomau ali ficaria à conversa, a apurar a culturas e as condições de vida. Fazem-se alguns escassos quilómetros de regresso até Gã Garneis, fixa-se a legenda, estamos no centro de um antigo quartel, apresentam-se pessoas, o Tangomau conversa com Jubalo Jau, que fora prisioneiro na luta, capturado numa operação entre o Buruntoni e a Ponta do Inglês. Não há rancores no que se declara e como se declara. É verdade que há muitos silêncios e medos, há temores de parte a parte mas é bom conversar com alguém que soube perdoar e continuar.



8. Quis-se saber mais sobre Gã Garneis, indicaram o professor, ao que parece ele até tem um livro com todo o historial anotado. Infelizmente não estava, indicaram Bambadinca e até deram morada. No regresso, houve a preocupação de o procurar. Mas não se conseguiu desencantar esse explicador da história de Gã Garneis, antes e depois da guerra. Conversou-se, explicou-se ao que se vinha, aqui o acolhimento foi mais do que amistoso. E foi exactamente aqui que ficou um travo amargo com as informações prestadas: de motocicleta pode-se ir até ao Baio e ao Buruntoni, ou, na direcção oposta, até Tubacutá ou o Fiofioli. Tudo questão para se vaguear entre 4 a 6 horas. Que pena, é irremediavelmente tarde. Ainda há uma tentação, de ficar mais um dia, mas é uma aritmética tão enovelada que o Tangomau liminarmente abandona tais devaneios. Conversa um pouco mais, capta a imagem de Gã Garneis, ala morena que se faz tarde, ao menos que se percorra aquela estrada que tantas vidas custaram sentindo a luz dourada, o Poindom sempre tão prazenteiro do lado esquerdo e o temível arvoredo quase sem capim na berma direita. Coisa estranha, o Tangomau até sentiu calafrios, tudo tão belo e tão ameno nessa antiga estrada da morte.



9. Regressados ao Xime, Lânsana Sori reivindica uma pausa. Do acervo fotográfico desta viagem, sem dúvida alguma que este instantâneo enche de satisfação quem o captou, parece inventado ou forjado, parece que se pediu a Lânsana Sori que fizesse um número de circo, isto é, é totalmente inimaginável dormitar, fazer uma soneca esticado ao comprido em cima de duas rodas. Acreditem ou não, foi o que aconteceu. Mais uma razão para se guardar admiração por um motociclista prodigioso e equilibrista.



10. Ninguém ignora que há elefantes brancos na Guiné, construções grandiosas e sem préstimo, projectos faraónicos que serviram para sacar financiamentos e que não trouxeram um grama de desenvolvimento. O que se está a ver, e segundo informaram o Tangomau, é um majestoso silo da mancarra que seria descascada no Cumeré onde o Tangomau em 1991 viu uma construção gigantesca que depois terá sido vendida para a Índia, a preço de saldo. São muitos os autores que se interrogam sobre os projectos que não levam a ponto nenhum. Em Bissau, o Tangomau comprou no INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa um livro sobre a intervenção rural onde uma autoridade, Flavien Fafali Koudawo, escreve coisas como esta: “Ao tomarem as rédeas da Guiné-Bissau independente, as novas autoridades assumiram-se portadoras de um modelo de desenvolvimento. Na ausência de uma visão clara deste modelo, e dado a inexistência de um quadro de articulação coerente das vias e meios para alcançar metas bem planeadas, o referido modelo ficou apenas um objectivo vislumbrado. Nem as orientações do terceiro congresso do PAIGC que pretenderam traçar em 1977 o quadro da reconstrução nacional, nem o primeiro plano quadrienal de desenvolvimento económico e social (1983 – 1986) conseguiram consubstanciar um verdadeiro projecto nacional, no sentido de uma projecção num futuro desejado, conscientemente escolhido e claramente delineado. Na ausência deste projecto, o modelo afogou-se na ineficaz heterogeneidade duma miríade de projectos que ilustraram sobejamente que de boas intenções o inferno está cheio”. Não é nada agradável terminar assim o dia depois de percorrer este território onde os guerrilheiros do PAIGC se impuseram do princípio ao fim, como se estivesses absolutamente conscientes do vigor da sua causa. Aqui, no Xime, avista-se esta construção faraónica que nunca foi usada, à sua volta há trabalhadores a cultivarem como há milhares de anos, no delta do Nilo. É uma visão da ficção científica ou de como em África há que repensar o desenvolvimento e o bem comum. E fiquemo-nos por aqui, foi um dia a valer, já nem haverá tempo de ver o pôr-do-sol no Bairro Joli. E, no regresso, ainda há uma paragem comovente em Amedalai que se contará no relato de domingo de manhã, antes do Tangomau ir às compras para a grande festa, o grande reencontro com todos quantos puderam vir.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7584: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (12): De Maná até Madina de Gambiel, depois Ponta do Inglês