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domingo, 21 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24330: Tugas, pocos pero locos: algumas das nossas operações temerárias (1): Op Tigre Vadio, 30 de março a 1 de abril de 1970, sector L1, Península de Madina / Belel, zona leste, sector L1 (Bambadinca)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bambadinca, Fá Mandinga e Missirá donde partiram as forças envolvidas na Op Tigre Vadio. No princípio da década de 1970, para Norte (Cuor) e Oeste (Enxalé) não havia mais tropa (a não ser o destacamento do Enxalé, frente ao Xime, do outro lado do rio Geba). 

O PAIGC tinha aqui uma "base" (ou "barraca", melhor dizendo), a "base do Enxalé" (sic), e este era um corredor fundamental para as colunas logísticas que vinham do sul... na altura em que o Senegal do Senghor não permitia ainda o trânsito de armas e munições no seu território. (Em linha reta devem ser mais de 25  km, de Bambadinca até à península de Madina / Bele, já na carta de Mamboncó.)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


Março de 1970: Op Tigre Vadio, 300 homens na península de Madina/Belel, limite do regulado do Cuor

Esta foi seguramente a mais dramática (e talvez a mais temerária) operação conjunta que a CCAÇ 12 efectuou enquanto esteve de intervenção ao Sector L1, às ordens do Comando do BCAÇ 2852. Podia ter dado para o torto... Envolveu 250 combatenets, três destacamentos,  e mais um número, indeterminado, de carregadores civis.

A missão confiada às NT era bater a  chamada península de Madina/Belel, no limite do regulado do Cuor e início do regulado do Oio, a fim de aniquilar as posições IN referenciadas do antecedente e eventualmente capturar a população que nela vivesse (espalhada por locais como Madina, Quebá Jilã, Belel e Banir, esta localização já no Oio) e, como corolário, destruir todos os seus  meios de vida. 

Em Madina, localizada em  Mamboncó 8G-1, havia uma população sob controlo do IN, estimada em 1500 habitantes. Mais 400, em Banir, cuja localização era em Mamboncó 8H-9.

Segundo as informações de que se dispunha, existiria 1 bigrupo nesta região, pertencente à "base do Enxalé" e dispondo de 2 Morteiros 60, 1 Metralhadora Pesada Goryonov, além de armas ligeiras (Metr Degtyarev, Esp Kalashnikov, Pist Metr PPSH, etc).

Admitia-se também que este bigrupo estivesse reforçado com 1 grupo de Mort 82, pertencente ao Grupo de Artilharia de Sara-Sarauol [a noroeste de Madina/Belel, vd. carta de Mambonco].

As NT iam a este objetivo, anualmente, no final da época seca,  com maior  ou menor sucesso,  mas sempre com casos de esgotamento,  insolação,  desidratação (*)... 

A última operação com forças terrestres realizara-se em fevereiro de 1969, não tendo as NT atingido o objectivo devido à fuga do prisioneiro-guia e ao accionamento dum engenho explosivo que alertou o IN. Verificaram-se ainda vários casos de insolação (Op Anda Cá) (**)

Veja-se este diálogo saboroso, mas algo surreal, entre o ten cor Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852, e o seu subordinado (e amigo), alf mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52:

"- Meu Comandante, há duas noites que não durmo a pensar nesta operação que dentro de dias vem para o Cuor. O que me foi dito pelo Major Pires da Silva é que há dois destacamentos que deviam partir juntos e teme-se que não haja condições para tal. Gostava que revêssemos outras possibilidades para não deslocarmos mais de 300 militares em bicha, com todas as desvantagens. Por favor, peço-lhe como seu amigo que converse comigo em particular nas próximas horas. (...)

"O Pimbas cofiava o bigode, aclarou a voz, olhou-me com estima e não escondeu as suas dificuldades:

- Ouve lá, tu até és capaz de ter razão mas o Pires da Silva tem desenhado esta operação com minúcia e está muito determinado. Faz-me o favor de não o causticares, actua como se ele tivesse razão" (...).


Releia-se outro escrito do Mário, aqui publicado no blogue (em 29 de junho de 2006):

(...) "Soube da Tigre Vadio em finais de fevereiro de 1970, quando o major de operações de Bambadinca [Sampaio,] me convidou para um passeio numa Dornier sobre os céus do Cuor. Foi uma viagem que permitiu medir o crescimento militar e populacional de Madina/Belel e a sua ligação a Sara/Sarauol, uma enorme base do PAIGC com um hospital de campanha.

"No regresso desse prolongado voo de reconhecimento, o oficial informou-me discretamente que lá para os finais de março eu iria revisitar Madina. Era o que menos me interessava a 15 dias do meu casamento, que se veio a realizar na Sé Catedral de Bissau [com a Cristina Allen]. 

"O ano tinha-se iniciado da pior maneira. Desde que, em novembro anterior, passara a prestar serviço em Bambadinca, não havia um dia de descanso: colunas ao Xitole, correio a Bafatá, noites na ponte de Udunduma, patrulhamentos alucinantes à volta da pista, toda ela bem iluminada, operações no Xime, emboscadas, segurança nas obras do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca" ...

Mais recentemente, em 5 de março de 1970, forças helitransportadas tinham destruído vários acampamentos na área de Mamboncó, reagindo o IN com mort 60 na região de Belel durante a Op Prato Verde. Os RVIS apontavam para a existência de uma razoável, e já mal dissimulada, rede de comunicações (trilhos bem batidos) que, do Oio, permitiam fazer infiltrações de homens e material, na zona leste, através do Sector L1.

Participaram na Op Tigre Vadio as seguintes forças (num total de 300 homens, incluindo carregadores civis que transportaram 2 morteiros 81, granadas de morteiro 81 e de bazuca,... mas alguém se esqueceu dos jericãs com o precioso líquido chamado... água!):

(i) Destacamento A: CCAÇ 2636 (2 Gr Comb) + Pel Caç Nat 52

(ii) Destacamento B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb reforçados

(iii) Destacamento C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106  


Guiné-Bissau > Região Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > 1970 > Pel Caç Nat 54 >  Uma unidade constituída por nharros, tugas e até turras (sic)!... A legenda é do açoriano Mário Armas de Sousa: 

(i) 1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro sou eu, furriel miliciano Mário Armas; o terceiro é o 1º cabo Capitão; 

(ii) 2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba; 

(iii) 3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era guerrilheiro do PAIGC, foi capturado e ficou no nosso exército)"...

Foto (e legenda): © Mário Armas de Sousa (2005) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O verdadeiro comandante das NT, envolvidas na Op Tigre Vadio, foi na prática o alf mil  Beja Santos, nosso querido tabanqueiro e colaborador permanente. profundo conhecedor da região, na qualidade de comandante do Pel Caç Nat 52, primeiro em Missirá e agora colocado em Bambadinca. 

Depois do desastre da Op Anda Cá (**), repetiu-se a cena, com o comando do BCAÇ 2852 a querer "fazer ronco", à conta dos pretos  (de 1a.  e 2a. classe) e dos açorianos... (Estava-se no término da comissão, não se quis sacrificar nenhumas das subunidades de quadrícula do batalhão, o BCAÇ  2852, espelhadas pelo Sector L1: Xime, Mansambo, Xitole)...

No 2º volume do seu livro de memórias (Diário da Guiné: 1969-1970: o Tigre Vadio), o próprio Mário Beja Santis dá a entender que esta missão terá sido uma espécie de prenda de casamento, mas envenenada… 

Antes de o deixarem ir a Bissau para casar, embora com baixa psiquiátrica (!) (por ter levado uma porrada, não podia ir de férias...), o comandante do BCAÇ 2852, ten cor Pamplona Corte Real (que substituiu o famoso Pimbas), e o major Sampaio (que foi para o lugar do Pires da Silva), preparam-no para "o banho de sangue no corredor do Oio" (sic) (p. 271).

Quem são as forças que o comando de Bambadinca quer meter na boca do lobo, para vingar o desaire da Op Anda Cá? Como se disse atrás, mais uma vez  "os pretos e os açorianos"...


A CCAÇ 2636, mobilizada pelo BII 18, tinha partido para o CTIG em 22/10/1969, ainda era portanto periquita (menos de seis meses de Guiné). Era comandada pelo Cap Mil Inf Manuel Medina e Matos. Passou por Có, Bafatá e Sare Bacar. Regressaria a casa em 6/9/1971. Em Março de 1970, a açoriana CCAÇ 2636 estava aquartelada em Bafatá. 

[Imagem à esquerda: Guião da CCAÇ 2636 a companhia açoriana a que pertenceu o nosso camarada João Varanda (Có/Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/70; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1970/71)].

A africana CCAÇ 12, por sua vez, era comandada pelo Cap Inf Carlos Brito, a escassos meses de ser promovido a major. Deste o fim da época das chuvas, que não tínhamos tempo para nos coçarmos... 

Desenrolar da acção:

Em 30 de Março de 1970, as forças empenhadas na Op Tigre Vadio concentrar-se-iam em Missirá (destacamento agora guarnecido pelo Pel Caç Nat 54, por troca com o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, então conhecido pelo nome de guerra Tigre de Missirá, e que fora colocado desde novembro de 1969 em Bambadinca).

A marcha em direcção ao objectivo (Madina / Belel) iniciou-se às 23h00.  Anteriormente, para despistar e confundir os olhos e os ouvidos do PAIGC em Bambadinca, as NT seguiram não para Finete (como seria normal), mas para Fá. Atravessaram o Rio Geba de sintex (uma cambança morosa...), e dali seguiram para Missirá.

Por falta de trilhos e por dificuldade do terreno, muito arborizado, não foi possível fazer a progressão por itinerários paralelos, como estava inicialmente previsto, pelo que o Dest B (CCAÇ 12) teve de seguir na rectaguarda do Dest C (Pel Caç Nat 52 + Esq Mort 81 /Pel Mort 2106).

Sancorlá só foi atingida três horas e meia depois, pelas 2h45 do dia 31 de março, por dificuldades de orientação dos guias e pelas frequentes paragens no decorrer da acção.

Quase seis horas depois da partida, por volta das 4h40, fez-se uma paragem de meia hora para descanso do pessoal.

Atingir-se-ia Salá às 7h e Queba Jilã às 8h, não se tendo detectado até aqui quaisquer sinais da presença ou passagem do IN e utilizando-se sempre um antigo trilho, muito arborizado dos lados, o que impossibilitava a progressão por colunas paralelas.

Depois de um novo alto em que se entrou em contacto com o PCV [Poso de Comando Volante], as NT atingiram o início da península onde depararam, pelas 9h, com uma extensa cortina de fogo, em frente a Madina. Pediu-se então ao PCV novas indicações e orientação, uma vez que já não se podia cumprir o plano estabelecido para a batida a desenvolver em linha conjuntamente pelos Dest A e B.

Dada ordem pelo PCV para seguirem na direcção W, torneando a queimada linear feita pelo IN, as NT encontrariam um trilho muito batido no sentido N/S e na direcção de Belel.

Seguindo o trilho, iriam detectar por volta das 14h, no píncaro do calor, um acampamento IN do lado direito, composto por oito moranças de colmo e sete de adobo. 

O Dest A (Pel Caç Nat 52 + açorianos) tomou imediatamente posição para o assalto enquanto 1 Gr Comb do Dest B (CCAÇ 12) se dispunha de maneira a cortar a retirada ou o eventual afluxo de reforços vindos de Madina e os outros montavam à rectaguarda e à direita a fim de interceptar quaisquer fugas para Norte.

Desencadeado o assalto com bazuca, foi abatida imediatamente a sentinela e incendiadas as barracas de colmo. Como o IN reagisse com RPSH (costureirinhas) e RPG-2 enquanto iniciava a fuga para NW, foi aberto fogo de armas automáticas, dilagrama e morteiro 60.

O Dest C (Pel Caç Nat 54 + Esq Mort 81 / Pel Mort 2106), instalado na rectaguarda dos grupos de assalto,  fez fogo com os dois Mort 81, batendo a mata para onde os elementos IN se refugiaram. 
  

Os Gr Comb que montavam segurança à direita (CCAÇ 12), viram aparecer na orla da mata vários grupos fugindo para norte, pelo que imediatamente abriram fogo, tendo uma das granadas caído no meio dum grupo de 3 elementos que não mais foram vistos (sic). Numa rápida batida à orla da mata, encontraram-se muitos rastos de sangue que conduziam à mata onde o IN se internou.

Depois do assalto foram referenciados mais onze elementos abatidos e nove rastos nítidos de sangue na direcção NW, além de ouvidos gritos de dor nas imediações (segundo o relatório da Op Tigre Vadio). 

Na busca realizada ao acampamento, verificou-se haver numa das barracas a arder seis armas carbonizadas que pareciam ser Pist Metr PPSH. Também foi vista uma bicicleta no meio do incêndio, o que vinha comprovar a utilização por parte do IN daquele meio de transporte e comunicação no corredor do Oio.

As oito casas de colmo arderam completamente, tendo-se depois completado a destruição das sete casas de adobe, assim como de todos os meios de vida existentes. 

Foi impossível recolher ou capturar armamento ou munições pois o fogo ateado desenvolveu-se rapidamente, começando também a mata a arder devido ao vento que soprava.

No assalto ficou ferido o soldado Mauro Balbé (3° Gr Comb da CCAÇ 12), com um tiro no antebraço, além dum outro soldado do Pel Caç Nat 52 com um estilhaço de granada de RPG-2 no peito.

Devido ao violento ataque de abelhas que se seguiu, muito material e munições (principalmente o que era transportado pelos carregadores civis) ficaram abandonados, não tendo sido possível a sua recuperação total.

Entretanto, não se conseguiu pedir mais evacuações devida à avaria dos micros do único AN/PRC-10 que nessa altura ainda funcionava (!), nem aliás a DO-27 e o helicóptero com o reabastecimento de água chegariam já a localizar as NT naquele dia. 


O que aconteceu nessa tarde? Eis mais um excerto do testemunho Beja Santos, de 29 de Junho de 2009 (reproduzido, de resto, no seu livro de 2008):

(...) "Foi nessa altura que pedi um helicóptero para ir buscar água a Bambadinca. Negociámos uma clareira com o oficial aviador e, ao levantar, uma rajada estilhaçou o vidro. Ainda hoje me interrogo sobre a proveniência do fogo, e longe de mim insinuar que foi gente menos calma entre os nossos. 

O que interessa é que quando cheguei a Bambadinca, o Comandante [do BCAÇ 2852] perguntou-me porque é que eu deixara o teatro de operações. Olhei-o a direito e perguntei-lhe se ele sabia o que era um estado de desidratação total, desafiando-o a vir comigo...

"Lá regressei à mata cheio de garrafões, o helicóptero dançava com os vidros partidos, a ligação ar/terra não se fez e o oficial convidou-me a desembarcar com os garrafões num sítio qualquer. Perguntei-lhe se ele tinha consciência que não estávamos num filme de aventuras na selva e então levou-me até ao Xime, dizendo que regressava a Bissau e que, depois da reparação, me viria buscar. Até hoje. Dormi no Xime, sem nenhum êxito na tentativa de comunicar com as forças do Tigre Vadio" (...).


O helicóptero trouxe também o médico do batalhão, o alf mil med Joaquim Vidal Saraiva (1936-2015)... que acabaria por perder a boleia, de regresso a Bambadinca. Andou todo o resto da tarde, de 31, e toda a noite, do dia 1 de Abril, com a destroçada e desmoralizada tropa...

Os Destacamentos continuaram a progressão a corta-mato em direcção a Enxalé, transportando os feridos em macas (improvisadas) e amparando os elementos mais debilitados.

Devido à escuridão e à vegetação densa, os Destacamentos acabaram inevitavelmente a fraccionar-se, perdendo-se completamente a unidade de comando, enquanto o Pel Caç Nat 52 caminhava na vanguarda orientando-se pela bússola, uma vez que os guias, da inteira confiança do Alf Mil Beja Santos,  davam provas de não conhecer a zona. 


A progressão tornou-se, de resto, cada vez mais penosa devido aos crescentes casos de esgotamento físico e psicológico provocado pela marcha quase ininterrupta durante uma noite e um dia (31 de Março), e sobretudo pela terrível desidratação e pelo brutal ataque de abelhas.

Pelas 22h, as várias fracções dos Destacamentos que, embora seguissem trilho feito pelo Gr Comb que ia na frente, não tinham ligação visual ou contacto-rádio entre si, estacionaram para pernoitar a uns 8 quilómetros do Enxalé.

Reiniciou-se a marcha, ao amanhecer, a 1 de Abril, depois dos 3 Destacamentos se reorganizarem, tendo o grupo da frente atingido o Enxalé por volta das 10h da manhã, com o auxílio do PCV que orientou o deslocamento. 

A maior parte do pessoal, porém foi transportado de viatura a partir do cruzamento de São Belchior, depois de se ter sofregamente dessedentado com água trazida em bidões. (Assisti a cenas que julgava nunca poder ver em vida, e que são reveladoras do mais básico instinto de sobrevivência do ser humano; essas cenas inspirara-me o texto poético, já aqui publicado, O Relim Não é um Poema).

Em resultado da acção das NT, o IN sofreu quinze mortos (entre referenciados e confirmados), dez feridos confirmados e baixas prováveis, não sendo possível discriminar os elementos combatentes dos elementos pop. (Cito o relatório da operação).

Desta operação o Comando colheu os seguintes ensinamentos, conforme também consta no dito documento:

(i) a surpresa conseguida deve-se ao facto de se ter atingido o objectivo pelas 14h, hora que o IN abranda a vigilância por que sabe que as NT fazem habitualmente um alto entre as 11h e as 16h;

(ii)  outra razão foi ter-se convencido que as NT retiravam devido à cortina de fogo que havia lançado ao capim;

(iii) um ataque de abelhas tem pior consequências que uma flagelação, pois que naquele caso as NT entram em estado de pânico, abandonando armamento e equipamento num instinto de defesa e tornando impossível a manobra de comando. (...)

Fontes consultadas:

(i) Diário de um Tuga, de Luís Graça. Manuscrito.

(ii) História da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71. Bambadinca: CCAÇ 12. 1971. Cap. II. pp. 28-29.Policopiado (***)

(iii) História do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Policopiado

(iv) Santos, Mário Beja - Diário da Guiné: 1969-1970: o Tigre Vadio. Lisboa: Círculo de Leitores / Temas & Debates. 2008. 




Anexo: O relim não é um poema

por Luís Graça


Relim:


Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento. (...) 

Transcrição da mensagem 1404/C do Com-Chefe (Rep Oper):

COM-CHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO."

Extractos de : História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.




Participaste nesta operação, a Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.
Um passeio a Madina/Belel,
a sudeste de Sara / Sarauol, já no mítico Oio,
um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
a sombra aprazível dos bissilões,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia aos homens do mato,
ali tão longe e ali tão perto,
que a Guiné era do tamanho do Alentejo,
pouco menos que os Países Baixos
de Sua Majestade a Rainha Juliana,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles, os homens do mato, faziam à nossa malta,
aos destacamentos de Missirá e de Finete, Porto Gole e Enxalé,
e à navegação no Geba Estreito, no Mato Cão.
Afinal, o que eram 25 quilómetros
entre Bambadinca e Madina, em linha reta?!

Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado e bar aberto!...
E a orquestra de Berlim a tocar a Sinfonia do Novo Mundo,
a Sinfonia n.º 9 em mi menor, do Antonín Dvořák.

Mas era só tropa-macaca, tudo a penantes, como convinha,
sempre era mais seguro e barato,
que o heli custava quinze contos à hora:
"pretos de primeira" da tua CCAÇ 12
e dos Pel Caç Nat 52 e 54,
mais alguns "brancos de segunda",
os açorianos da CCAÇ Vinte e Seis Trinta e Seis
e um esquadrão da morte,
de morteiros 81 do Pel Mort 2106.

Levavam dois cantis de água por combatente, imagina!
E um arsenal de granadas, à cabeça de carregadores,
arrebanhados pelo chefe de posto de Bambadinca
e pelo régulo de Badora, 
pagos por uns míseros patacões ao dia.

O que é um gajo pensa, diz-me lá ?!
O que é que um gajo pensa, aos vinte três anos,
de Missirá a Sancorlá, e dali a Salá,
em bicha-de-pirilau, escuro como breu,
a alma tensa, o corpo lasso, o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra, lá na cabeça do império,
a fustigar-te as trombas ?!

Bendita chuva, ou chuvinha, a primeira do ano,
que é um santo refrigério;
maldita, essa, sim, a trovada, ligada ao automático,
a disparar de rajada,
que te desperta os terrores mais antigos
de qualquer primata, hominídeo, social, territorial, predador.

Caminhas toda a noite, por terras do Cuor.
Um gajo não pensa nada, camarada,
"ligado ao automático",
colado ao gajo da frente, para não se perder
um gajo não tem tusa para pensar,
apenas para serrar os dentes 
e tentar sobreviver a mais uma operação,
no final do tempo seco, 
com dez meses de (co)missão,
que a Pátria é quem mais ordena...
Era final de março, marçagão, mas na tua terra não,
que em abril, sim, é que são águas mil.

Era pressuposto haver um reabastecimento no dia seguinte,
como mandava o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado: 
60 graus ao sol e 100% de humidade do ar,
às duas da tarde, em que bichos e homens dormem a sesta!
(Avisavam-te, os velhinhos, da Operação Lança Afiada
em que um em cada seis dos bravos combatentes fora evacuado,
por desidratação, insolação, exaustão, fome, sede, ataque de abelhas...)

Caminhaste, caminhou a tropa-macaca,
penosamente, toda noite.
Era pressuposto a guerra parar às dez horas da manhã,
às dez em ponto, para fazer o piquenique;
sardinhas com pão e molho de piripiri,
e conservas de ananás da África do Sul!..
Porque o clima é quem mais ordena, ou ordenava,
e não o relógio do senhor comandante.

Cortaram-te as voltas, os gajos do PAIGC
(não te apetece dizer IN, já não sabes quem é aqui o teu inimigo),
cercaram-te pelo fogo.
E, quanto a Deus, Alá e os irãs,
mais as formigas e as abelhas selvagens da Cuor,
e até o macaco-cão,
a gente nunca sabia exatamente de que lado é que estavam.

Temerariamente,
alguém decidiu brincar ao gato e ao rato.
às catorze horas da tarde, no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal e os cantis vazios...
Havia ali uma dúzia de casas de colmo e de adobe, 
desalinhadas, não reordenadas, 
que não pagavam imposto de palhota,
mesmo a jeito, a calhar,  ou por azar,
para a malta despejar as granadas de bazuca e de morteiro oitenta e um.
Pois que saia, e forte, a bazucada e a morteirada, com o código da morte!

A malta, nós, quem ?
O patrão da Dornier, do PCV, da tropa-macaca,
a quem as moranças estragavam a vista
nos seus passeios matinais pelo corredor do Oio,
com ciclovia e tudo,
uma autêntica autoestrada
para as "bikes" dos homens do mato,
oferta da loura Suécia com amor livre
e muitas coroas de flores no cabelo,
Make War, Not Love!

Não, ainda não havia os Strelas,
a temível arma dos arsenais soviéticos,
que haveriam de pôr o "tuga" em sentido, em terra,
ou a pau, quando voava contra os ventos da História,
mau grado a valentia e a perícia
dos nossos Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras.

Alguém puxou dos galões dourados
e decidiu fazer um golpe de mão,
ou melhor: mandar fazer,
que tu nunca viste nenhum "cão grande", de capitão para cima,
andar cá em baixo, com a tropa-macaca,
com a p... da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a (co)missão ao serviço da Pátria,
p'ra ficar bem no álbum de fotografia do batalhão,
e impressionar o Caco Baldé,
o homem grande de Bissau...
Um pequeno senhor da guerra qualquer,
do batalhão de Bambadinca,
que gostava de andar de Dornier, de cu tremido,
e que queria chegar a tenente-coronel,
e a coronel e quiçá a general,
o que era perfeitamente normal
para quem escolhera a carreira das armas,
e portanto a honra e a glória de servir a Pátria.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda, ó oinca,
tu que lavras a tua bolanha,
e que talhas com a tua catana a piroga onde te afogas,
metralhada pelo helicanhão ?
Quem é que comanda esta tropa-macaca,
ó mandinga, ó biafada, ó fula, ó minha gente ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
qual rolo compressor, calcando o capim à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo nem a cabeça.

Entretanto, já alguém, o "tigre de Missirá" em pessoa,
tinha ido buscar, de heli,
o reabastecimento de água a Bambadinca.
Alguém da malta (não interessa a cor) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
e estilhaçou um dos vidros laterais.
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o "tigre", que é vadio mas não voa, ficou retido no Xime.
 
A verdade é esta, camaradas:
o PCV falhou,
o plano de operações saiu furado,
o heli desandou, estilhaçado, 
a cadeia de comando quebrou-se,
e alguém quis matar o "tigre de Missirá",
afinal o elo mais fraco da cadeia de comando.
O fogo no capim e o ataque de abelhas fizeram o resto,
enquanto o senhor comandante do PCV
foi dormir, nessa noite, na sua cama fofa em Bambadinca.

No regresso ao Enxalé,
depois de uma segunda noite no mato,
tropa-macaca sofreu brutalmente,
tu sofreste, que a dor não dá para colectivizar nem partilhar,
sofreste brutalmente a desidratação,
o veneno das abelhas,
o esgotamento físico,
a fome,
a sede,
a insolação,
a exaustão,
as miragens,
o absurdo,
o desespero,
a desumanidade.
Tiveste miragens, o deserto do Saara ali tão perto,
em passando o Senegal, logo ao virar da esquina!
Nunca tinhas tido miragens,
foi mais uma experiência enriquecedora,
tudo por mor da Pátria e dos seus desígnios insondáveis!

Tiveste miragens, como no deserto do Saara,
lambeste a última gota do teu frasco de uísque,
bebeste o teu próprio mijo, esgotado o soro,
mastigaste as ervas do orvalho, esgotada a água,
desesperaste, perdida a esperança,
bebeste sofregamente a água choca dos charcos,
amparaste os mais desgraçados do que tu,
transportaste os feridos.
consolaste os mais sofridos,
fizeste as tuas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus
que aprendeste quando eras cristão e crente e menino e moço
e temente a Deus
e tinhas um grande amor à Pátria, à Fátria e à Mátria,
mesmo que a sagrada tríade nunca te tivesse dado sinais
de que correspondia ao teu grande amor de filho e irmão!

Não deste nenhum tiro de misericórdia, mesmo cristãmente,
aos moribundos que não chegaram a haver, felizmente,
mas odiaste o PCV,
odiaste o Cuor,
odiaste Bambadinca,
as fardas,
os galões,
a tropa,
a guerra,
odiaste tudo naquele dia de mentira,
1 de abril de 1970,
Herr Spínola, a Guiné,
o Amílcar Cabral e os seus libertadores,
os senhores da guerra e os seus títeres...
Odiaste tudo,
até... o dia em que nasceste!

Um homem, mesmo o cristão que tu és,
tem que odiar,
tem que aprender a odiar,
tem que saber odiar,
para sobreviver, em qualquer guerra,
tem que odiar o inimigo para o poder matar,
tem que arranjar um inimigo, qualquer que ele seja,
e tem que saber odiar o seu general
para poder saber matar quem te quer matar.

Camarada, tu que fizeste a Op Tigre Vadio,
depois de tantos anos,
releste o relim
e há qualquer coisa que mexe em ti:
o relim não é um poema,
um poema épico ou dramático,
é sim, tão apenas,
um esquema telegráfico da guerra
para os senhores que estão em terra,
e que não têm tempo para ler relambórios.

O relim (vocábulo que não vem sequer grafado no dicionário).
o relim, abreviatuta de relatório imediato,
faz economia dos pontos e vírgulas,
dos pontos de interrogação e das reticências,
enfim, de quase tudo,
que não fica para a História com H grande,
da escassa água choca que ainda existia nas lalas e bolanhas,
ou do próprio mijo que ainda levavas na bexija,
dos quilos de merda que destilaste,
das miríades de abelhas kamikazes
que arrancaste do cachaço,
que arrancaste do couro cabeludo,
dos gritos de dor que ecoaram pelas matas de Madina/Belel,
dos teus gritos e dos gritos dos desgraçados dos elementos pop
que morreram à hora da sua sesta, carbonizados, nas suas moranças,
o relim faz economia de tudo que é acessório,
o relim despreza os detalhes,
o relim ignora as paredes do estômago,
coladas uma à outra pela fome e a sede,
o relim não conhece as hormonas do stress,
o cortisol, a adrenalina e a noradrenalina,
o relim escamotoeia a lassidão do corpo, a tensão da alma,

e nem sequer te dá  um colchão para te estirares, à noite,
ou um ombro amigo para chorares, de raiva e de impotência.

Não, nunca mais irás esquecer Madina/Belel
onde nem chegaste a ir, diz-te  o guia que perdeu a bússola,
tu, e mais 250 homens, combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados como carregadores
(para transporte à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto, o "capitão diabo",
de granadas de morteiro e  de bazuca.
E que largaram tudo, ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China ou em Cuba.)

Ah, esqueceste-te de mencionar o médico do batalhão,
o Joaquim Vidal Saraiva (tinhas esquecido o teu nome),
o valente alferes miliciano médico,
que o "tigre de Missirá" deve ter conseguido aliciar à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação, intoxicação e ferimentos em combate...

Pobre doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo, longe do Vietname),
ficaste em terra
(nunca te tratámos por tu, a não ser hoje),
perdeste a boleia do heli e conheceste o inferno do Cuor,
com os teus trinta e três anos feitos.

Agora, que morreste,
lá no Olimpo, ao lado do velho Hipócrates, teu mestre,
deves estar a sorrir,
com um sorriso bonacheirão, benevolente,
ou com uma gargalhada desbragada, insolente,
o humor ácido típico do cirurgião, 
destas tuas peripécias cá na terra...
Será que as constaste, ainda em vida, aos teus netos ?
Oxalá, Enxalé, Insh'Allah!

Meus senhores, o Relim não é um poema,
é um exercício de pura economia,
um tratado de finíssima estética,
um compêndio de sumária gramática,
um fait-divers com que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de bridge ou de king
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o velho RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso, tem mais papel, vê lá tu,
é coisa que se apalpa, outrossim,
e que em último caso serve,
bem melhor do que o capim,
para enxugar o suor da pele,
e mais prosaicamente para limpar... o cu!

Luís Graça

Bambadinca, 2 abril de 1970. 
Última revisão: Lourinhã, 21/5/2023
_______________

Notas do editor:


(*) Vd. 18 de maio de 2023> Guiné 61/74 - P24325: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (5): Op Triângulo Vermelho, a três agrupamentos (CART 2715, CCAÇ 12 e CCP 123 / BCP 12), em 4 e 5 de maio de 1971: a captura de população civil que depois é levada para Bambadinca e cujo tratamento causa a piedade e provoca a indignação do alf grad capelão Arsénio Puim

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24325: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (5): Op Triângulo Vermelho, a três agrupamentos (CART 2715, CCAÇ 12 e CCP 123 / BCP 12), em 4 e 5 de maio de 1971: a captura de população civil que depois é levada para Bambadinca e cujo tratamento causa a piedade e provoca a indignação do alf grad capelão Arsénio Puim


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) / Escala 1/50 mil  > Posição relativa de Bambadinca  bem como do complexo de tabancas de Nhabijões, maioritariamente balantas, na margem esquerda do rio Geba, bem como o temivel Mato Cão (na margem direita) e, mais a norte, no regulado do Cuor, o destacamento de Missirá.... No princípio da década de 1970, para Norte Cuor) e Oeste (Enxalé)  não havia mais tropa (a não ser o destacamento do Enxalé, frente ao Xime, do outro lado do rio Geba). O PAIGC tinha aqui uma "base" (ou "barraca"), a "base do Enxalé", e este era um corredor fundamental para as colunas logísticas que vinham do sul... na altura em que o Senegal não permitia o trânsito de armas e munições no seu território. (Em linha reta devem ser mais de 25 km, de Bambadinca até à península de Madina / Belel.)


Guiné > Carta geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Excerto: posição relativa de Bambadinca e Xime (na margem esquerda do rio Geba), Enxalé (na margem direita do rio Geba) e Madina, Belel e Sará, a norte do Enxalé (que era território  dos regulados do Enxalé, Cuor e Oio, onde não havia tropa e que o PAIGC considerava "área libertada", controlando na península de Madina /Belel, a sudeste da base de  Sará (onde havia cubanos), uma população dispersa de cerca de duas mil almas, segundo estimativa do comando do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)


Guiné > Região do Oio > Carta de Mamboncó (1954) / Escala 1/50 mil > "Terra de ninguém"... Ou melhor: tradicionalmente o PAIGC andava por aqui com relativa à vontade, duarnte a guerra... Posição relativa do destacamennto de Cutia, na estrada Mansoa-Mansabá, tabancas (abandonadas) de Mambono, Belel e Sarauol.. E ainda o rio Malafo.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


Sector L1 / Região de Bafatá > BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) > CART 2715, CCAÇ 12, Pel Caç Nat 54, e CCP 123 / BCP > 4 e 5 de Maio de 1971 > Operação "Triângulo Vermelho": a captura de população civil que depois é levada para Bambadinca e cujo tratamento causa a piedade cristã e provoca a indignação humana do alf grad capelão Arsénio Puim (*).

1. Vale a pena transcrever este excerto da História da Unidade, o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), para se perceber melhor a situação dos prisioneiros que foram levados da península de Madina / Belel, para Bambadinca, e  ali permaneceram uns dias, em condições indignas e desumanas (recorde-se que estamos já em pleno consulado spinolista,     está em vigor a política "Por uma Guiné Melhor" que nem toda a hierarquia militar, no CTIG,  compreendia e sobretudo apreciava e  aceitava, continuando a praticar a politica da "terra queimada",.  "aniquilar o IN e destruir todos os seus meios de vida"):

Desenrolar da ação:

- Em 04.Maio, pelas 17,00 horas e durante cerca de 50 minutos o “Agrupamento  Verde ” [CART 2715] cambou o Rio Geba no Xime, utilizando um sintex que, em diversas viagens transportou o material e o pessoal, continuando em seguida em marcha apeada para o Enxalé onde chegou pelas 18,45 horas.

- Às 22,30 horas o 
“Agrupamento  Verde ” iniciou a progressão para Bissilão de onde seguiu para a estrada Enxalé - Porto Gole, seguindo por esta atingiu a margem direita da bolanha do Rio Malafo pela 1,30 horas do dia 05 de Maio.

- Pelas 2,00 horas foi atingida pelo 
“Agrupamento  Verde " o ponto de coordenadas (Mamboncó 7E6-21) de onde seguiu para Norte em direcção ao ponto de coordenadas (Mamboncó 7E3-66) que atingiu pelas 4,30 horas, montando em seguida uma linha de emboscadas no trilho que de Sinchã Madina se dirige para o ponto de coordenadas (Mamboncó 7G1-56), a fim de recolher o “Agrupamento Laranja" [CCP 123 / BCP 12].

- Entretanto o
“Agrupamento  Negro” [CCAÇ 12] que saiu de Bambadinca pelas 18,00 horas cambou o Rio Geba junto ao porto de Bambadinca por haver apenas um sintex no Xime, prosseguiu por Finete – Malandin  Mato Cão  Saliquinhé tendo atingido o ponto de coordenadas (Bambadinca 1F3-43) pelas 22,30 horas onde fez um pequeno alto para descanso do pessoal.

- Pelas 24,00 horas este Agrupamento continuou a progressão para o ponto de coordenadas (Bambadibnca 1E4-35) que foi atingido pelas 0,30 horas do dia 05 de onde prosseguiu para Norte ao longo do trilho que contorna a margem direita da bolanha do Rio Ganturandim, passando por Iaricunda.

- Pelas 04,30 horas foi atingido Madina (Bambadinca 1B2-87) de onde continuou para Norte até ao ponto de coordenadas (Bambadinca 1A9-93) alcançada pelas 5,00 horas onde foram montadas emboscadas em vários trilhos, que se reuniam num só que se dirigia para a zona onde iria decorrer a operação.

- Foi verificado nesta altura que este trilho era a única via, relativamente fácil, de passar a linha de água, pois a tentativa de o fazer noutro local seria infrutífera dado que toda a linha de água é rodeada de espessa vegetação e grandes canaviais.

- Entretanto o “Agrupamento Laranja” [CCP 123 / BCP 12], pelas 14,00 horas do dia 04, deslocou-se em meios auto de Nova Lamego para Bafatá onde chegou cerca das 15,30 horas sendo em seguida heli-transportada para Missirá.

- Pelas 17,30 horas do dia 04, já com todo o pessoal em Missirá iniciou-se a progressão apeada em direcção a Sancorlã de onde, seguindo o rumo 260 graus e a corta mato, continuou a progressão.

- Pelas 5,50 horas do dia 05 foi atingido o ponto de coordenadas (Bambadinca 2A2-30) onde o Agrupamento emboscou aguardando os bombardeamentos da FAP.

- Pelas 6,30 horas o “Agrupamento Laranja” progrediu para a margem direita da bolanha do Rio Malafo seguindo depois para Sul em direcção ao ponto de coordenadas (Mambo0mcó 7G1-56) onde o “Agrupamento Verde” emboscado, o havia de recolher.

- Durante este trajecto destruiu 12 tabancas, de 2 a 8 moranças cada, uma escola, um celeiro e outros meios de vida. Capturou um elemento armado de Mauser, 7 mulheres, 6 crianças e documentos diversos.

- Pelas 11,30 horas atingiu o ponto de coordenadas Mamboncó 7G1-56) onde foi recolhido pelo “Agrupamenmto Verde”, continuando a progressão, protegido por este o Agrupamento, para sul em direcção a estrada de Porto Gole - Enxalé.

- Entretanto o “Agrupamento Negro”, após o bombardeamento da FAP, continuou a progressão para (Bambadinca 1A4-94).

- Logo após os bombardeamentos foram ouvidos gritos humanos e ruídos de animais domésticos, assustados e em fuga.

- Pelas 6,20 horas, após passagem da linha de água, foram detectados 4 elementos IN desarmados, vestindo de calções e blusa azuis progredindo na mesma direcção mas em sentido contrário. Eram seguidos a cerca de 50 metros por mais 2 elementos IN, vestindo do mesmo modo e armados de PPSH. Estes elementos IN imediatamente retiraram para Norte fazendo fogo, tendo as NT abatido 2 elementos desarmados mais próximos.

- Continuou-se a progressão para Oeste seguindo depois par Sul, tendo-se encontrado várias moranças, bem construídas, com cerca de 3 e 4 divisões, cobertas a colmo e a ripado de bambu, muito bem camuflado sob grandes maciços de vegetação e com trilhos de acesso às mesmas.

- Foram destruídas 20 moranças, 2 celeiros com um total de 500 kg de arroz e outros meios de vida.

- Não foram detectados nem elementos da população nem elementos armados.

- Às 7,20 horas foi atingido o ponto de coordenadas de (Mamboncó 7I8-73), onde o Comandante do “Agrupamento Negro” [CCAÇ 12] decidiu atravessar a bolanha para (Bambadinca 1A2-68) e não regressar pela passagem utilizada à entrada, pois aquela era a única na linha de água, facilmente referenciável e difícil de utilizar nessa altura sem segurança.

- Pelas 7,30 horas quando os últimos elementos se encontravam a cerca de 30 / 40 metros da orla da mata, um pequeno grupo IN estimado em cerca de 10 elementos desencadeou uma pequena e rápida flagelação,  utilizando armas automáticas e LGFog, ao mesmo tempo a área de (Mamboncó 7I7-78) era batida com 3 tiros de Mort 82.

- A reacção das NT pelo fogo e movimento obrigou o grupo IN a retirar da área, fortemente batida pelas NT com armas automáticas, LGFog e, principalmente dilagramas, sofrendo 2 mortos confirmados e feridos prováveis.

- Como consequência desta flagelação as NT sofreram 11 feridos, dos quais 2 morreram antes de serem evacuados e um morreu a caminho do Hospital Militar 2
41.

[Nota do editor LG: Um dos militares que morreu, nesse dia, 5 de maio de 1971, no decurso desta operação, foi o sold at inf, da CCAÇ 12, Ussumane Sissé, nº mec. 82107669; os outros dois eram do Pel Caç Nat 54, sold at  inf Suntum Camará, nº mec. 82047766, e Adi Jop, nº mec. 821 30863; os três foram sepultados em Bambadinca.]

- Foi pedido apoio aéreo, tendo comparecido rapidamente o PCV e cerca de 5 minutos depois compareceu o Helicanhão, mas o IN já havia retirado.

- Como havia feridos no meio da bolanha, o PCV e o Helicanhão, alternando-se, fizeram a segurança das NT até final das evacuações.

- Pelas 11,00 horas terminadas as evacuações, continuou-se a progressão para Sul em direcção à estrada Porto Gole – Enxalé.

- Pelas 13,00 horas foi atingido o ponto de coordenadas (Mamboncó 7I7-31) onde o “Agrupamento Negro” [CCAÇ 12] emboscou,  a fim de fazer a segurança da travessia da bolanha do Rio Malafo, pelo “Agrupamento Verde” [CART 2715] e “Agrupamento Laranja” [CCP 123].

- Entretanto os Agrupamentos Verde  e Laranja, progredindo ao longo da margem direita do Rio Malafo, atingiram a estrada Porto Gole - Enxalé pelas 13,30 horas, de onde continuando por esta, atravessaram a bolanha do Rio Malafo, protegidos pelo PCV e recolhidas pelo “Agrupamento Negro” emboscado na margem oposta (Mamboncó 7I7-31, continuando a progressão para o Enxalé, atingido pelas 15,30 horas, seguidos pelo “Agrupamento Negro”.

- Às 18,00 horas os Agrupamentos cambaram o Rio Geba para o Xime onde ficou “Agrupamento Verde” continuando os outros dois, em meio auto, para Bambadinca onde chegaram pelas 19,30 horas.

- O “Agrupamento Laranja” imediatamente continuou para Nova Lamego, atingida pelas 21,30 horas.

Fonte: Excertos de: História do Batalhão de Artilharia nº 2917  - De 15 de novembro de 1969 a 27 de março de 1972: Capítulo II - Atividade no Terreno Operacional da Guiné (...): Atividade do Inimigo (IN) em 1971: 04 e 05.Maio.71: Operação "Triângulo Vermelho", pp. 73/74.

(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)

(Dispomos de uma versão, em pdf,  policopiada, gentilmente cedida ao nosso blogue pelo ex-fur mil trms inf  José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande; o excerto que hoje se publica consta da versão, em suporte digital, corrigida, aumentada e melhorada pelo Benjamim Durães, igualmente membro da nossa Tabanca Grande.(***)

Provavelmente é da responsabilidade do Benjamim Durães a seguinte informação relativa ao "alferes Mil  Capelão Arsénio Chaves Puim, nº mec. 48092867" : (...) "Apresentação compulsiva no Quartel-General em Bissau em 13/05/71 para ser interrogado pela PIDE/DGS."...

Temos dúvidas sobre a data... o que próprio vai averiguar melhor no seus "papéis"... Ao telefone, o Puim disse-me que o assunto dos prisioneiros, capturados numa quarta-feira, dia 5 de maio de 1971, foi tema da sua homilia de domingo, dia 9... Desmentiu, por outro lado, que tenha sido interrogado pela PIDE (rebatizada DGS, a partir de 24/11/1969), tanto em Bissau, como depois em Lisboa e nos Açores (para onde voltou como padre). (LG)

2. Eu fui lá em 30 de março / 1 de abril de 1970 (Op Tigre Vadio)... No sector L1,  as NT iam uma vez por ano à península de Madina/ Belel,... Já agora transcreve-se alguns excertos do poste P8388 (***):

(9) Março de 1970: Op Tigre Vadio, 300 homens na península de Madina/Belel, no regulado do Cuor

(...) Esta foi seguramente a mais dramática (e talvez a mais temerária) operação conjunta que a CCAÇ 12 efectuou enquanto esteve de intervenção ao Sector L1, às ordens do Comando do BCAÇ 2852. Podia ter dado para o torto...

A missão confiada às NT era bater a  chamada península de Madina/Belel, no limite do regulado do Cuor / princípio do regulado. do Oio, a fim de aniquilar as posições IN referenciadas do antecedente e eventualmente capturar a população que nela vivesse (espalhada por locais como Madina, Quebá Jilã, Belel e Banir, esta localização já no Oio).

Em Madina, localizada em MAMBONCÓ 8G-1, havia uma população sob controlo do IN, estimada em 1500 habitantes. Mais 400, em Banir, cuja localização era em MAMBONCÓ 8H-9 (...).

Segundo as informações de que se dispunha, existiria 1 bigrupo nesta região, pertencente à base do Enxalé e dispondo de 2 Morteiros 60, 1 Metralhadora Pesada Goryonov, além de armas ligeiras (Metr Degtyarev, Esp Kalashnikov, Pist Metr PPSH, etc).

Admitia-se também que este bigrupo estivesse reforçado com 1 grupo de Mort 82, pertencente ao Grupo de Artilharia de Sara-Sarauol [a noroeste de Madina/Belel, vd. carta de Mamboncó].

A última operação com forças terrestres realizara-se em Fevereiro de 1969, não tendo as NT atingido o objectivo devido à fuga do prisioneiro-guia e ao accionamento dum engenho explosivo que alertou o IN. Verificaram-se ainda vários casos de insolação (Op Anda Cá) [Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel ]. (...)
___________

Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 15 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24317: Recortes de imprensa (126): O caso do capelão militar Arsénio Puim, expulso do CTIG em 1971 (tal como o Mário de Oliveira em 1968) não foi excecional: o jornalista António Marujo descobriu mais 11 padres "contestatários" (10 da diocese do Porto e 1 de Viseu)... Destaque para o trabalho de investigação publicado na Revista do Expresso, de 12/5/2023

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22190: 17º aniversário do nosso blogue (8): O relim não é um poema... A (des)propósito da Op Tigre Vadio, 30-mar / 1 abr 1970 (Luís Graça)


Extractos de : História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.

Op Tigre Vadio

Iniciada em 30 [de Março de 1970], às 7h00, com a duração de 2 dias, para fazer um patrulhamento conjugado com emboscadas e batida na região do Cuor/Madina.

Tomaram parte na operação os seguintes destacamentos:

Dest A: CCAÇ 2636 a 2 Gr Com, reforçada pelo Pel Caç Nat 52
Dest B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb
Dest C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106

Relim:

Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento.

Transcrição MSG 1404/C Com-Chefe (Oper): COMCHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO.



O relim não é um poema (*)

por Luís Graça



Participaste nesta operação, a Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.
Um passeio a Madina/Belel,
a sudeste de Sara / Sarauol, já no mítico Oio,
um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
a sombra aprazível dos bissilões,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia aos homens do mato,
ali tão longe e ali tão perto,
que a Guiné era do tamanho do Alentejo,
pouco menos que os Países Baixos
de Sua Majestade a Rainha Juliana,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles, os homens do mato, faziam à nossa malta,
aos destacamentos de Missirá e de Finete, Porto Gole e Enxalé,
e à navegação no Geba Estreito, no Mato Cão.
Afinal, o que eram 30/35 quilómetros
entre Bambadinca e Madina, em linha reta ?!

Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado e bar aberto!...
E a orquestra de Berlim a tocar a Sinfonia do Novo Mundo,
a Sinfonia nº. 9 em mi menor, do Antonín Dvořák.

Mas era só tropa-macaca, tudo a penantes, como convinha,
sempre era mais seguro e barato,
que o heli custa quinze contos à hora:
"pretos de primeira" da tua CCAÇ 12
e dos Pel Caç Nat 52 e 54,
mais alguns "brancos de segunda",
os açorianos da CCAÇ Vinte e Seis Trinta e Seis
e um esquadrão da morte,
de morteiros 81 do Pel Mort 2106.

Levavam dois cantis de água por cabeça.
E um arsenal de granadas, à cabeça de carregadores,
arrebanhados pelo chefe de posto de Bambadinca
e pelo régulo de Badora,
pagos por uns míseros patacões ao dia.

O que é um gajo pensa, diz-me lá ?!
O que é que um gajo pensa, aos vinte três anos,
de Missirá a Salá e dali até Sancorlá,
em bicha-de-pirilau, escuro como breu,
a alma tensa, o corpo lasso, o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra, lá na cabeça do império,
a fustigar-te as trombas ?!

Bendita chuva, ou chuvinha, a primeira do ano,
que é um santo refrigério;
maldita, essa, sim, a trovada, ligada ao automático,
a disparar de rajada,
que te desperta os terrores mais antigos
de qualquer primata, hominídeo, social, territorial, predador.

Caminhas toda a noite, a partir de Missirá.
Um gajo não pensa nada, camarada,
enquanto caminha toda a noite,
colado ao gajo da frente, para não se perder
um gajo não tem tusa para pensar,
apenas para serrar os dentes 
e tentar sobreviver a mais uma operação,
no final do tempo seco, 
com dez meses de (co)missão,
que a Pátria é quem mais ordena...
Era final de março, marçagão, mas na tua terra não,
que em abril, sim, é que as águas mil são.

Era pressuposto haver um reabastecimento no dia seguinte,
como mandava o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado.
(Falavam-te, os velhinhos, da Operação Lança Afiada
em que um em cada seis dos bravos combatentes fora evacuado,
por desidratação, insolação, exaustão, fome, sede, ataque de abelhas...)

Caminhaste, caminhou a tropa-macaca,
penosamente, toda noite.
Era pressuposto a guerra parar às dez horas da manhã,
às dez em ponto, para fazer o piquenique;
sardinhas com pão e molho de piripiri,
e conservas de ananás da África do Sul!..
Porque o clima é quem mais ordena, ou ordenava,
e não o relógio do senhor comandante.

Cortaram-te as voltas, os gajos do PAIGC
(não te apetece dizer IN, já não sabes quem é aqui o teu inimigo),
cercaram-te pelo fogo.
E, quanto a Deus, Alá e os irãs,
mais as formigas e as abelhas selvagens da Cuor,
e até o macaco-cão,
a gente nunca sabia exatamente de que lado é que estavam.

Temerariamente,
alguém decidiu brincar ao gato e ao rato.
às catorze horas da tarde, no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal e os cantis vazios...
Havia ali uma dúzia de casas de colmo e de adobe, 
desalinhadas, não reordenadas, 
que não pagavam imposto de palhota,
mesmo a jeito, ou por azar,
para a malta despejar as granadas de bazuca e de morteiro oitenta e um.
Pois que saia, e forte, a bazucada, a morteirada, com o código da morte!

A malta, nós, quem ?
O patrão da Dornier, do PCV, da tropa-macaca,
a quem as moranças estragavam a vista
nos seus passeios matinais pelo corredor do Oio,
com ciclovia e tudo,
uma autêntica autoestrada
para as "bikes" dos homens do mato,
oferta da loura Suécia com amor livre
e muitas coroas de flores no cabelo,
Make War, Not Love!

Não, ainda não havia os Strelas,
a temível arma dos arsenais soviéticos,
que haveriam de pôr o "tuga" em sentido, em terra,
ou a pau, quando voava contra os ventos da História,
mau grado a valentia e a perícia
dos nossos Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras.

Alguém puxou dos galões dourados
e decidiu fazer um golpe de mão,
ou melhor: mandar fazer,
que tu nunca viste nenhum "cão grande", de capitão para cima,
andar cá em baixo, com a tropa-macaca,
com a p... da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a (co)missão ao serviço da Pátria,
p'ra ficar bem no álbum de fotografia do batalhão,
e impressionar o Caco Baldé,
o homem grande de Bissau...
Um pequeno senhor da guerra qualquer,
do batalhão de Bambadinca,
que gostava de andar de Dornier, de cu tremido,
e que queria chegar a tenente-coronel,
e a coronel e quiçá a general,
o que era perfeitamente normal
para quem escolhera a carreira das armas,
e portanto a honra e a glória de servir a Pátria.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda, ó oinca,
tu que lavras a tua bolanha,
e que talhas com a tua catana a piroga onde te afogas,
metralhada pelo helicanhão ?
Quem é que comanda esta tropa-macaca,
ó mandinga, ó biafada, ó fula, ó minha gente ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
qual rolo compressor, calcando o capim à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo nem a cabeça.

Entretanto, já alguém, o "tigre de Missirá" em pessoa,
tinha ido buscar, de heli,
o reabastecimento de água a Bambadinca.
Alguém da malta (, não interessa a cor,) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
e estilhaçou um dos vidros laterais.
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o "tigre", que é vadio mas não voa, ficou retido no Xime.
 
A verdade é esta, camaradas:
o PCV falhou,
o plano de operações saiu furado,
o heli desandou, estilhaçado, 
a cadeia de comando quebrou-se,
e alguém quis matar o "tigre de Missirá",
afinal o elo mais fraco da cadeia de comando.
O fogo no capim e o ataque de abelhas fizeram o resto,
enquanto o senhor comandante do PCV
foi dormir, nessa noite, na sua cama em Bambadinca.

No regresso ao Enxalé,
depois de uma segunda noite no mato,
a tropa-macaca sofreu brutalmente,
tu sofreste, que a dor não dá para colectivizar nem partilhar,
sofreste brutalmente a desidratação,
o veneno das abelhas,
o esgotamento físico,
a fome,
a sede,
a insolação,
a exaustão,
as miragens,
o absurdo,
o desespero,
a desumanidade.
Tiveste miragens, o deserto do Saara ali tão perto,
em passando o Senegal, logo ao virar da esquina!
Nunca tinhas tido miragens,
foi mais uma experiência enriquecedora,
tudo por mor da Pátria e dos seus desígnios insondáveis!

Tiveste miragens, como no deserto do Saara,
lambeste a última gota do teu frasco de uísque,
bebeste o teu próprio mijo, esgotado o soro,
mastigaste as ervas do orvalho, esgotada a água,
desesperaste, perdida a esperança,
bebeste sofregamente a água choca dos charcos,
amparaste os mais desgraçados do que tu,
transportaste os feridos.
consolaste os mais sofridos,
fizeste as tuas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus
que aprendeste quando eras cristão e crente e menino e moço
e temente a Deus
e tinhas um grande amor à Pátria, à Fátria e à Mátria,
mesmo que a sagrada tríade nunca te tivesse dado sinais
de que correspondia ao teu grande amor de filho e irmão!

Não deste nenhum tiro de misericórdia, mesmo cristãmente,
aos moribundos que não chegaram a haver, felizmente,
mas odiaste o PCV,
odiaste o Cuor,
odiaste Bambadinca,
as fardas,
os galões,
a tropa,
a guerra,
odiaste tudo naquele dia de mentira,
1 de abril de 1970,
Herr Spínola, a Guiné,
o Amílcar Cabral e os seus libertadores,
os senhores da guerra e os seus títeres...
Odiaste tudo,
até... o dia em que nasceste!

Um homem, mesmo o cristão que tu és,
tem que odiar,
tem que aprender a odiar,
tem que saber odiar,
para sobreviver, em qualquer guerra,
tem que odiar o inimigo para o poder matar,
tem que arranjar um inimigo, qualquer que ele seja,
e tem que saber odiar o seu general
para poder saber matar quem te quer matar.

Camarada, tu que fizeste a Op Tigre Vadio,
depois de tantos anos,
releste o relim
e há qualquer coisa que mexe em ti:
o relim não é um poema,
um poema épico ou dramático,
é sim, tão apenas,
um esquema telegráfico da guerra
para os senhores que estão em terra,
e que não têm tempo para ler relambórios.

O relim (, vocábulo que não vem sequer no dicionário)
faz economia dos pontos e vírgulas,
dos pontos de interrogação e das reticências,
enfim, de quase tudo,
que não fica para a História com H grande,
dos quilos de merda que destilaste,
das miríades de abelhas kamikazes
que arrancaste do cachaço,
que arrancaste do couro cabeludo,
dos gritos de dor que ecoaram pelas matas de Madina/Belel,
dos teus gritos e dos gritos dos desgraçados dos elementos pop
que morreram à hora da sua sesta, carbonizados, nas suas moranças,
o relim faz economia de tudo que é acessório,
o relim despreza os detalhes,
o relim ignora as paredes do estômago,
coladas uma à outra pela fome e a sede,
o relim não conhece as hormonas do stress,
o cortisol, a adrenalina e a noradrenalina,
o relim escamotoeia a lassidão do corpo, a tensão da alma,

e nem sequer te dá  um colchão para te estirares, à noite,
ou um ombro amigo para chorares, de raiva e de impotência.

Não, nunca mais irás esquecer Madina/Belel
onde nem chegaste a ir, diz-te  o guia que perdeu a bússola,
tu, e mais 250 homens, combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados como carregadores
(para transporte à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto, o "capitão diabo",
de granadas de morteiro, de bazuca, de jericãs de água.
E que largaram tudo, ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China ou em Cuba.)

Ah, esqueceste-te de mencionar o médico do batalhão,
o Vidal Saraiva (tinhas esquecido o teu nome),
o valente alferes miliciano médico,
que o "tigre de Missirá" deve ter conseguido aliciar à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação,
intoxicação
e ferimentos em combate...

Pobre doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo, longe do Vietname),
ficaste em terra
(nunca te tratámos por tu, a não ser hoje),
perdeste a boleia do heli e conheceste o inferno do Cuor,
com os teus trinta e três anos feitos.

Agora, que morreste,
lá no Olimpo, ao lado do velho Hipócrates, teu mestre,
deves estar a sorrir,
com um sorriso bonacheirão, benevolente,
ou com uma gargalhada desbragada, insolente,
o humor ácido típico do cirurgião, 
destas tuas peripécias cá na terra...
Será que as constaste, ainda em vida, aos teus netos ?
Oxalá, Enxalé, Insh'Allah!

Meus senhores, o Relim não é um poema,
é um exercício de pura economia,
um tratado de finíssima estética,
um compêndio de sumária gramática,
um fait-divers com que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de bridge ou de king
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o velho RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso, tem mais papel, vê lá tu,
é coisa que se apalpa, outrossim,
e que em último caso serve,
bem melhor do que o capim,
para enxugar o suor da pele,
e mais prosaicamente para limpar... o cu!

Luís Graça

Bambadinca, 2 abril de 1970. 
Revisto, aumentado e melhorado, meio século depois, 
por ocasião do 17º aniversário do nosso blogue,
e no decurso da pandemia de Covid-19 
que segue os seus trâmites (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

2 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16259: Manuscritos(s) (Luís Graça) (86): O Relim Não é um Poema (à memoria do médico Joaquim Vidal Saraiva 1936-2015)