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domingo, 7 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17325: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXI Parte: Cap XII - Op Tesoura, Cadique, dezembro de 1965: "Meu furriel, eu sou um criminoso, um assassino! Numa das casas, quando lancei a granada, estava um bebé a chorar lá dentro!" (1º cabo Cigarra)


Guiné > Região de Tombali >  Cufar >  CCAÇ 763 (1965/67) > "Tomada de assalto a tabanca [, Cadique,] que se encontrava deserta, obviamente procede-se à sua destruição. Os Vagabundos, comandados por Mamadu, terão essa tarefa como determinado. Simples: porta aberta, granada incendiária descavilhada para dentro, porta fechada e fugir para se abrigar. Em segundos o que era uma morança, é uma cópia do inferno de Dante."

Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.


Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]

Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVIII Parte > Cap  XII - Guerra 3 (pp. 70-76)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965,  tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças  são depois destruídas com granadas incendiárias.


Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXI Parte: Cap XII:  Guerra 3 (pp. 70-76)



XII Guerra 3


Dezembro de 1965. Quinze horas do vigésimo primeiro dia. O bulício na messe de sargentos era grande, pois tinha havi­do correio e toda a gente comentava as notícias. As mais ínti­mas guardavam-se para a décima vez de leitura, mesmo depois de decoradas, por terem um sabor especial. De repente tudo se alterou. Bastaram estas simples palavras do Amadeu, cabo da secretaria:
- O nosso capitão chama ao comando os nossos sar­gentos e furriéis.

Torcásio teve uma cólica de tal maneira que correu ime­diatamente direito à latrina. Alguns dar-lhes-ia, mais tarde, a revolta aos intestinos, enquanto outros, pensando para onde seria, iam sentindo o estômago apertando-se… apertando-se, de forma que só nele caberia um trago de whisky, já que ajudava um pouco a controlar o nervoso miudinho que sempre aparecia nes­tas ocasiões. Interessante a reacção dos homens a estas situa­ções. A ansiedade, a incerteza do momento de contacto, princi­palmente quando se progredia na mata, punha os nervos em franja. Era medo? Sim! Mas esse controlava-se. A dúvida de onde, como e quando o IN se manifestava, é que tornava a guer­ra difícil e asfixiante. Após o contacto se efectuar, parecia to­mar-se um tónico,  aí, então, a cabeça raciocinava logicamente e a máquina de guerra começava a funcionar. 


Mamadu, apesar de menino dos Rangers de Lamego, teve bastantes dificuldades de adaptação nos primeiros tempos de Guiné pois, quando começava o tiroteio, não conseguia deitar-se. O seu corpo saltava impelido por um "mola", uma  estranha força a uma altura de meio metro. Tinha de estar de pé para tudo observar. Teve sorte porque se tornava num alvo facílimo. Com o tempo foi-se adaptando, e pôde por fim utilizar as teorias e práticas de contra-guerrilha insufladas nas serras do Marão, Meadas e rios Douro e Balsemão.

Verificando as presenças, Paolo informou Carlos de estarem todos os (des)interessados na excursão.

Carlos, com a sua fluidez e síntese, explanou então aos alferes e sargentos, a excursão a efectuar. Coisa simples, ir ao outro lado do Cumbijã onde, como já sabíamos, punha e dispunha o nosso amigo João Bernardo Vieira, ('Nino'). Objectivo: varrer a região de Cadique e destruir as instalações dos nossos amigos na região. Esta simpática visita seria intitulada operação Tesoura e teria a colaboração de mais uma companhia do batalhão, bem como a habitual ajuda de duas secções, do João Bacar Jaló, comandadas pelo Quêba. O embarque seria no cais de Impungueda e a LDM desembarcar-nos-ia no tarrafo junto à bolanha, próximo de Cadique Iála.

Vinte horas do mesmo dia. Os três grupos de combate estão formados em frente ao comando. Cinco minutos depois, é dada ordem de progressão até ao local de embarque. Em coluna, "fila de pirilau" pela ordem determinada, segue à cabeça, uma secção da milícia comandada por Gibi, seguida pela secção dos Vagabundos do furriel Mamadu; depois as secções de Chico Zé e Tambinha do 2°. grupo de combate; seguidamente viria o comando com uma secção de milícia e o 3°. grupo; fe­chando a coluna o 1°. grupo de combate.

O embarque efectua-se pelas 02h30 no máximo silêncio. O desembarque no local determinado também sem problemas, a lancha regres­sa e a companhia começa a progressão para o objectivo. Pelas 3hOO somos flagelados pelo IN. Nada de resposta, nada de denunciar posições, mas em certa parte o alerta estava dado. Tinha-se perdido a surpresa.

4hOO, aguarda-se um pouco mais o clarear do dia para se começar o assalto e a destruição das instalações inimigas. Próximo das 5hOO, tomam-se as posições de assalto. Quêba e seus homens, que passam a noite a mascar cola, formam a primeira linha; o 2° grupo de combate faz a cobertura; o 3° e o 1 ° . grupos fazem o envolvimento lateral.

5h10. Carlos dá ordem de assalto. Por momentos, vivemos um verdadeiro holocausto. Mamadu ordena:
- Olindo, já!

Sai a primeira dose da bazuca, depois grita para o homem da MG42:
- Ferreira, varre os poilões à direita.

O matraquear das G3 é ensurdecedor, a penumbra e neblina matinal não definem correctamente ainda a forma das coisas. Com o fumegar e saída dos projécteis das espingardas, parece que a terra se abriu para dar saída a um enxame de pirilampos.

Parecem cobras deslizan­do por entre o capim, Mamadu, já na operação Saturno, tinha tido oportunidade de acompanhar estas máquinas de guerra: cor­rida em zigue-zague, quinze a vinte metros, paragem imediata, joelho em terra, olhos de águia rompendo a frente, três segundos para perscrutar o horizonte, rajada varrendo a frente, nova corrida e assim sucessivamente, até se consumar o assalto.

Sabe-se que a guerra é um meio de destruição do próprio homem, mas quando o sangue ferve e temos de matar para não morrer, tudo se transforma nesse momento.

Tomada de assalto a tabanca que se encontrava deserta, obviamente procede-se à sua destruição. Os Vagabundos, comandados por Mamadu, terão essa tarefa como determinado. Simples: porta aberta, granada incendiária descavilhada para dentro, porta fechada e fugir para se abrigar. Em segundos o que era uma morança, é uma cópia do inferno de Dante.

E se está alguém lá dentro? Não seria a primeira nem a última!

Após a destruição efectuada, Mamadu reagrupa a secção, mas algo estranho acontecia, o cabo Cigarra chorava. Preocu­pado.  o furriel pergunta:
- O que é que foi, pá? Estás ferido?

Há sempre um estilhaço que nos pode apanhar. Mas o cabo diz não ser nada, talvez do fumo possivelmente.

Sem problemas esta fase da operação. Pior a batida à mata de Cadique Iála onde as coisas se baralharam um pouco com forte resistência do IN. Com o apoio aéreo resolveu-se a questão e, milagrosamente, desta vez sem um ferido sequer. Há horas felizes!

Batida que foi a mata, a companhia deslocou-se para a estrada de Cadique, onde se garantiria a protecção a um grupo de combate dos páras que iria entrar em acção.

Concluída a operação, havia que reembarcar, no cais de Cadique Nalu. Embarque um pouco atribulado pois, para além do cais estar destruído, a maré ainda a encher, a lancha tinha problemas para encostar, houve que entrar no lodo até aos joelhos. Coisa da guerra que,  como já se viu,  a preparação era feita como no jogo do pau. Aprendia-se a levar pancada. 

Finalmente lá se embarcou, descurando um pouco a segurança, é verdade, mas hoje é o nosso dia e a sorte também conta nesta vida de antiguerrilha. Não se pode levar sempre porrada,  carago, como costumava dizer, na sua típica linguagem tripeira, esse grande amigo que é António Pedro. Tivemos bas­tante sucesso na operação, conforme informações posteriores que confirmaram termos causado baixas significativas ao IN, já por nós calculadas dados os rastos de sangue que verificáramos na mata.

Camuflados cheios de lama e todos molhados, já na lancha, ainda alguém se lembrava de ter envolvido cigarros e isqueiro (nessa altura já não era obrigatória a licença) em saquinho milagroso de plástico. Geralmente almas caridosas, pelo que Mamadu come­çou a deliciar-se com umas gostosas fumaças, enquanto a lancha fazia marcha à ré até alinhar pelo meio do rio. Hora de sabor e de sonho. Mas o cabo Cigarra, continuava estranho! Mamadu estava preocupado.

Aproveitando a maré enchente, a LDM desliza suave­mente rio Cumbijã acima rumo a Cufar, num ronronar silencioso.

Em sentido contrário, o meu pensamento aproveita a deslizante maré para se transformar, e desgovernado rodopia e avança em louca navegação sem instrumentos de bordo, num abandono fantasmagórico de barco sem timoneiro.

Qual o ganho desta revolta sem ânimo, se o desalento que me assalta não leva a lado nenhum, nesta trama trágico-marítima? Fora do tempo e do modo, galopante,  a tua lembrança de mulher aparece! Descubro-te agora figura não apagada nos teus olhos negros vivos e cintilantes.

Corrói-me a inexistente coragem - forte motivação - para existir para ti e contigo. Sinto-me possuído e consumido por febrão de paludismo incurável, na existência da tua imagem. Num décimo de segundo tenho de abandonar-te, figura presente. O matraquear das PPSH, as 'costureirinhas', e o sibilante assobiar das metralhadoras Degtyarev passam uns metros acima da blindagem. O cabo marinheiro põe o motor da lancha numa po­tência louca, os dois fuzos agarram-se à metralhadora cobertos pela blindagem, ordem imediata para ninguém levantar cabe­ça. Apesar de mais de cem homens a bordo, a lancha levanta a proa e o doce deslizar transforma-se em louca hidroplanagem rio acima.

Não resisto. É mais forte do que eu. Pé sobre a rampa da lancha, espreito. O rio neste local alarga um pouco, mas é nítido o fumegar das Preciosas no tarrafo. A experiência do marujo é importante. Aproxima-se mais da margem contrária. Ouvi neste momento nitidamente o estampido cavo, da saída de granadas das RPG2. A coisa está preta. O motor continua no seu louco ronco forçado.

Mais uma vez volto a ti. Sinto-te perto de mim. Rodopiamos ao som da banda, junto ao Pelourinho. A minha mão esquerda aperta com sensibilidade extrema a tua mão direita, enquanto o meu braço, com enlevo, envolve o teu frágil corpo. Um balanço mais forte, um estrondo fortíssimo e escorrego pela blindagem da LDM. Aperto contra o peito a minha companheira G3, imagem há pouco transformada em ti. Um braço amigo segura-me. Uma granada de RPG tinha rebentado por cima da blindagem do abrigo da metralhadora. Cigarra, meu cabo amigo continuava para além da sua defesa, junto a mim. Espero, meu amigo, que a sorte nos sorria, assim como tu não me abandonas. 

Um ferido ligeiro, não é nada mau. Um pequeno esti­lhaço no ombro do fuzo impecavelmente tratado pelo Juvelino que tinha tanto de bom enfermeiro, como de tarado sexual. A zona de emboscada passou. A LDM voltou ao suave deslizar sobre as águas do Cumbijã. No cais de Impungueda, as viaturas esperavam o desembarque dos grupos de combate. O fuzo seguia na lancha até ao navio patrulha, o qual já entrara no rio para fazer a cobertura.

No cais, o furriel Mamadu, comandante dos Vagabundos, saltou para o unimog e sentou-se na capota por cima do moto­rista, como era habitual. Cara encovada, cheia apenas por uma barba mal arranjada, olhos fundos, ar de poucos amigos, gritou para o cabo Cigarra:
- Esta merda está pronta?
- Sim, meu furriel!

Respondeu o cabo no seu modo sereno e simples. Mamadu fez sinal ao alferes do grupo de combate, levantando o polegar da mão direita, que por sua vez informou Carlos. Após dez minu­tos de espera por causa das Amélias se acomodarem, que em to­dos os lados as há, a coluna arrancou direito, ao aquartelamento.

À chegada, como de costume, o pessoal que tinha ficado em Cufar aproximava-se e queria saber como tinha decorrido a Operação. Os valentes do arame farpado queriam saber se havia algum prisioneiro, para molharem a sopa. Necessidade psíquica para estes heróis ultrapassarem a cobardia fora do arame, e assim limpar o cu, borrado ainda da última saída ou flagelação às instalações!

Mandados destroçar os grupos de combate, cada qual foi tomar o seu magnífico duche, sob os bidões de gasolina ou petróleo, não importava, desde que tivessem água. Quem não tivesse bidões que a puxasse a pulso com baldes do poço. 

Nesta época já Mamadu, Francisco José e António Pedro dividiam entre si o quarto de adobe, reconstrução de armazém da antiga quinta do sr. Camacho. Mamadu pediu a Amadu, soldado nativo impedido dos três furriéis, para lhe limpar a G3 e os carregadores, bem como o cinturão e cartucheiras, e dirigiu-se para os chuveiros. Jata cantarolava debaixo da água.
-Amadu! Quero roupa lavada, calças e camisa civil - gri­tou Mamadu.

Depois de atirar com o camuflado cheio de lama para um canto, meteu-se debaixo do chuveiro e sentiu a água morna como que saída do esquentador. Que merda de terra esta, até a água fria é quente!... Se os americanos tivessem estas condições, não paravam um dia no Vietname! Só mesmo o portuguesinho aguenta esta porra, cogitou enquanto se ensa­boava.
-Amadu! - voltou a gritar-Diz ao Lopêz que quero o copo de bambu cheio e gelado!
-Furiel, bó cá cume nada? Bó cá tem cabeça,  furiel!
-Amadu, cala a boca e faz o que furriel manda, meu saco de carvão!
-Chi, minino, lassa picou mesmo furiel Mamadu! Mim bai chama Miriam, mim cá entende furiel, hoje!
-Bó suma burro de Bafatá!- gritou Mamadu enfure­cido.
-Vem buscar o camuflado que está cheio de lama e faz tu conversa giro com Miriam. Gosse gosse, tira esta merda daqui.

Jata tinha saído do chuveiro, calçou as sabrinas e enrolou a toalha à cintura, sem se limpar. Olhando para Vagabundo que tirava a espuma do corpo, deu um assobio de piropo e disse:
-Manga de ronco. Conforme estás hoje, há festa da grossa!
-Não me chateis, também tu! Zarpa! Fora! Vai levar onde levam as galinhas.

De facto não se encontrava bem... Sentia-se neurótico. Queria estar só, não queria ver, ouvir, sen­tir, ninguém por perto. O ego exige-nos muitas vezes o isolamen­to. Há momentos que são só nossos. Deixem-no só, por favor!...

Vagabundo estava mesmo no fundo. Vestiu-se lentamente, da mesma forma, descalço aproximou-se do bar e sen­tou-se num canto sozinho. O Lopêz conhecia já as tempestades e os tornados perfeitamente, pelo que, com a sua sensibilidade, evitava-os. Devagar, mais parecendo deslizar sobre gelo, levou o velho copo com dose dupla, colocou-o sobre a mesa, e mais uma vez adivinhando tudo, junto colocou um maço de Português Suave e uma caixa de fósforos. De idêntica forma deslizou para detrás do balcão, e a sua boca continuou um túmulo. Tão bem que nos conhecias, Lopêz, e quão mal nós te tratávamos!

Ao primeiro gole, o velho copo ficou meio. Um pouco nervoso, Vagabundo abriu o maço de cigarros, acendeu um e também este ficou pelo meio na primeira passa. Ao lado, mas silencioso, Chico Zé observava e adivinhava que Mamadu esta­va voando em direcção ao Alentejo. Verdade! Mas já não voava, tinha aterrado numa praça onde existia um pelourinho.

Conheci-te menina e moça. És um ano mais velha que eu. Eu ainda adolescente, com borbulhas na cara a despontar uma rara barba, sorrindo introvertido, envergonhado, olhos no chão. Por vezes, num arranque de dignidade, tentava procurar os teus olhos, com o rubor na face de te querer namo­rar.

Ninguém nos ajudou, ninguém nos desculpou, antes pelo contrário, tentaram conspurcar. As nossas mãos límpidas e cora­ção puro para uma simples paixão jovem. Hoje, tão longe tão per­to desse tempo, recordo com angústia que ninguém quis deixar­-nos provar a límpida água da ébria nascente dos nossos sonhos.

Espreitámo-nos por entre janelas de cortinados arren­dados, tendo o pelourinho como sentinela, arvorado em cúmplice guardião, em dias cálidos de verão, ou sorrir de sol em tardes de festa do Santo Mártir. Na sombra das acácias, teceram-se teias de segredos e ternura contida.

Nos meus olhos, a doce tentação do emanar da mensa­gem possível. A vastidão do forte sentir, a envolvente aventura da alma, na ânsia da emoção mal disfarçada. O encoberto e silenciado crime do meu (nosso?) amor, era a certeza de coisa sofrida no amplificar dos sentidos, tentando perscrutar o inaudível me­lódico som de guitarra chorando.

Uma mão tocou-lhe o ombro, e acordou. O Chico Zé tinha-se aproximado, a mão fez mais pressão e falou baixinho:
- Que é isso,  pá? Escreve pelo menos!
- Nunca! Dói-me muito.

Gargalhada.

-Nunca digas nunca. A malta não pode ficar assim. Vamos comer qualquer coisa, depois vão uns fadinhos de Coimbra, O.K.? Anda lá. Espera, vamos primeiro provocar o Jata.

Mamadu reagiu, limpou a garganta com o resto do Dim­ple e, conjuntamente com o Zé, atacaram:

"Diziam que era a mais bela de Andaluzia
Mais bela quando cantava à luz do luar,
Manuela .... Manuela ... "



Jata deu um salto no outro lado da sala e gritou:

- Cabrões! Lopêz dá-me uma 'bazuca'! (A 'bazuca' era um acerveja de 6,6 dcl.)

Não podia ouvir esta canção, tinha de recorrer à cerveja para apagar, ou pelo menos diluir, a lembrança sentida da mulher amada. Quase enlouquecia. Por vezes a dor era tão forte que as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto em pérolas de saudade.

Carlos Manuel e António Pedro aproximavam-se, depois outros. Estava o coro formado. Olhos nos olhos, a guerra pre­sente morria naqueles momentos.

"Ao longe sulcando o espaço
Vai um bando de andorinhas”


O pensamento daqueles jovens, tornados homens de guerra, voava também com as andorinhas. Uma, de certeza, pousaria docemente no campanário da Matriz de N. S. do Paço, e chilreante, tentaria transmitir uma mensagem ao pelourinho.

Era nestas alturas que Lopêz se tornava Chefe man­dante, como ele o sabia fazer tão bem.

-Como é que é, hoje não se come? Vá.  meninos, para a mesa! Depois dizem que a comida não presta.

Abeirava-se mais junto do grupo e sussurrava baixinho, na sua voz gaguejante:

- Olhem que o G3 (, alcunha do primeiro sargento da companhia, ) já está a resmungar.

Aceitavam-se, por vezes, as ordens do Lopêz e o pessoal lá se ia sentando para a opípara refeição, tendo ainda o trabalhão de consultar a lista para escolher o menu:

Esparguete guisada com carne de vaca,

Carne de vaca guisada com esparguete,

Carne de vaca acompanhada de esparguete,

Esparguete para acompanhamento de carne de vaca. 

Difícil!

- Quem me escolhe a ementa hoje que eu estou indeciso? - pedia Tambinha, solícito.
- Come e cala, senão vais pró rancho geral comer baca­lhau amarelo com ciclistas ou batatas podres.

Era verdade. Por vezes não havia facilidades de abaste­cimento, várias vezes se tinha recorrido ao arroz pilado nas tabancas. E que mais queria a malta?

Não havia de vez em quando perdiz, pato, pombo verde e outras aves caçadas pelos doentes da caça?! E gazela com feijão frade?!...


Cada mês havia um gerente de messe. Quando calhava o Mamadu ou o Chico Zé, o G3 entrava em pânico pois não sobra­va um peso, e se as contas davam alguma coisa a favor, havia. bebidas de borla para toda a malta.

Vacas, isso não havia problemas. Quando o stock estava a acabar, fazia-se a operação Vacas. Só de voluntários, pois não se queria muita gente. Poucos, mas dos bons. Parecendo fácil, era muito difícil e extremamente perigosa. Vamos a uma:

Zona: Bolanha da tabanca de Boche Mende entre a mata de Cufar e Cabolol, só a pronúncia deste último nome, dava logo para fazer uma selecção.

Armamento: G3, um lança granadas foguete, uma MG42, granadas de mão ofensivas e defensivas.

Munições: à descrição.

Operação: o grupo de combate não poderia ter menos de trinta homens nem mais de trinta e cinco. O grupo seria dividido em três subgrupos: dois de segurança e um de "campinos".

O grupo saía direito ao cais de Cufar e seguia pelo tarrafo acima até junto à mata de Cufar Nalu. Assim que encon­trasse local apropriado, cambava o rio Manterunga, para o lado da bolanha de Boche Mende. Nesta zona de ninguém, tabancas que se encontravam abandonadas, existiam várias manadas de vacas. Localizada a manada que estaria em melhores condições de manobrar, era montado o dispositivo de segurança pelos dois grupos para esse efeito. Depois seria o trabalho dos "campinos" que tentariam reunir e conduzir o maior número possível de ca­beças para o local onde se cambaria o rio. Não era fácil, pelo contrário, exigia perícia, sangue frio e valentia. A primeira dificuldade, consistia em separar o touro dominante, chefe da manada, dos restantes animais.

Havia duas opções que só no terreno, e no momento se podiam determinar, resultando daí o sucesso ou insucesso da operação. Ou se abatia o touro e corríamos o risco de sermos detectados por algum grupo do PAIGC que andasse próximo, ou até espantar a manada. Tentava-se ir calmamente isolando o macho, de forma a manada ser conduzida facilmente. Tudo muito bem no papel, mas no terreno, só com gente com sangue mais frio do que rãs.

Nem sempre sucedeu bem e uma vez tivemos de pedir o auxilio da artilharia e dos morteiros 81. Com o rabinho entre as pernas e sem vacas, voltámos ao aquartelamento. Outros dias de sucesso compensavam generosamente esse desaire.

Após o jantar, o furriel, como de costume, passou pelo abrigo da secção para verificar o moral da malta. O pessoal estava contente, as coisas tinham corrido bem, havia uma mesa de lerpa, que terminou imediatamente à entrada do chefe dos Vagabundos. Alguns escreviam à luz do candeeiro, feito das garrafas de cerveja com mechas e petróleo lá dentro. O cabo não estava. Há problema!, pensou Mamadu. Perguntou então onde é que ele se encontrava ao que o Ferreira, o homem da MG42, respondeu, dizendo tê-lo visto jun­to ao cajueiro, em frente ao abrigo. Dirigindo-se para lá, dá com o mesmo quadro, o cabo a chorar.
-Que se passa pá, há problemas com a família?!. .. São saudades?!. ..

O cabo engasgou, um soluço abafado e triste saiu-lhe da garganta, virou a cara e disse, soluçando:
-Meu furriel, eu sou um criminoso, um assassino! Numa das casas, quando lancei a granada, estava um bebé a chorar lá dentro!

Mamadu apertou-lhe o braço com força, olhou para o céu e blasfemou, gritando!

-Oh, Deus! Oh, Tu que em tudo mandas, acaba depressa com esta merda de guerra suja, ou então Tu próprio tens de nos perdoar.

Grandes problemas existem nesta guerra, mas aparecem como acto natural, em natureza perversa e suja. Não há impos­síveis. Tudo hoje nos aparece como normal, nesta sujeira envol­vente de lama.

Na parte nova do aquartelamento, ainda no abrigo da secção, estava Vagabundo uma noite a dormir a sono solto, quando pelas vinte e quatro horas, mais ou menos, foi acordado pelo Orlando que estava de sentinela.
- Meu furriel! Meu furriel!
- O que foi?

Perguntou Vagabundo levantando-se e pegando imediatamente na G3.
- Não é nada, não faça barulho, deixe a arma venha ver, por aqui!

Saíram contornando as bananeiras, junto ao cajueiro, Orlando disse baixinho:
- Olhe ali para o curral das vacas, junto ao poilão!

Mamadu ficou pasmado, embora o luar não fosse o natural de África, pois a noite apresentava-se um pouco escura. A cena não era só visível, mas perfeitamente audível. O Fumaça, empoleirado nas raízes do poilão, calções em baixo, possuía a vaca preta, a Pretinha,  como se lhe chamava derivado da sua man­suetude. A mão direita afagava o bicho, enquanto se ouvia uma voz rouca e trémula de excitação:
-Está quieta, pretinha ... está quieta ...

Vagabundo
ia dar um berro. Dominou-se, pegou no braço de Orlando e sussurrou:
-Anda, vamos embora, os outros não utilizam a cabra? Deixa os animais,  coitados,pois é deles a noite como dos lobiso­mens. É o que esta maldita guerra faz de todos nós! Não somos animais, rapaz, somos bestas.

Fumaça ficou satisfazendo os seus instintos animalescos, e Vagabundo, num turbilhão mental de dor, de revolta, de dó e de confusão, pensou num ser Superior. Pensou, pensou, até entrar no escuro, e não conseguiu resposta nenhuma. Mas sentiu uma certeza: Deus deve estar completamente desfeito e desi­ludido, ao verificar a merda em que se transformou o homem que criou.

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Nota do editor:

19 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17258: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XX Parte: Cap XI - Como se Constrói uma Capela... ou o insólito encontro com o carismático capelão Monteiro Gama, do BCAV 490 (Binta e Farim, 1963/65)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16920: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XV Parte: Cap VII: Guerra 2: aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno, em Cabolol


Lisboa > 1970 > O cap comando graduado, cmdt da 1ª CCmds Africanos João Bacar Jaló como o nosso veteraníssimo João Sacôto (ex-alf mil,  CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), hoje comandante da TAP reformado, membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011.

Foto: © João Sacôto (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto  abaixo à esquerda, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]





Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XV Parte > Cap VII - Guerra 2 (pp. 48-51)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandandante  militar, pelo "ronco" da Op Saturno.





Guiné >  Região de Tombali > Mapa de Bedanda (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa da mata de Cobolol, a norted e Cufar e a oeste de Bedanda.  

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XV Parte > Cap VIII - Guerra 2: aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandasmte militar,. pelo "ronco" da Op Saturno.
(pp.48-51)


Continua-se a patrulhar Cufar Nalu e agora Boche Mende também. Faz-se nomadização e temos informações que o IN está a obrigar as populações a dirigirem-se para a região de Cabolol, mais a norte. Solicita-se uma equipa administrativa de Catió para proceder ao recenseamento das tabancas controla­das. Este recenseamento é útil pois, através dele, conseguimos a identificação de alguns cooperantes e guerrilheiros pertencentes ao ex-bando de Cufar Nalu. É imperioso não largarmos este controlo, já que sabemos haver gente infiltrada na população. Em Iusse, o chefe de tabanca desaparece, fuga ou rapto? Na mesma tabanca Suza na Mone, dado como desertor do PAIGC, é abatido ao fugir à aproximação de um grupo de combate que fazia a tentativa da sua recuperação. Num golpe de mão a Fantone, é feita prisioneira Dite na Baque, a mulher chefe do Partido. O PAIGC sabe que não facilitamos e isso é muito importante.

Nesta altura o moral é de tal ordem que nos deslocamos às tabancas controladas de jeep com apenas dois ou três ele­mentos e vamos a Catió sem descer das viaturas e sem seguran­ça. É necessário todavia, não entrar em euforia, a guerrilha não é para brincar e deve ter-se mais cuidado para não haver surpre­sas.

No princípio de Junho, consegue-se um guia que diz levar-nos ao acampamento de Cabolol. Vamos lá! A 10 de Junho, os Lassas a três grupos de combate com o João Bacar Djaló e a sua milícia, vão a Cabolol. Saímos direitos a Camaiu­pa e daí à estrada de Bedanda. Aqui divergimos e começamos a entrar na mata de Cabolol. A floresta em termos de natureza não difere das restantes matas, umas vezes um pouco aberta mas, na generalidade cerrada. Quem a cruzou é que lhe conhece a dife­rença. Não tem pontos de referência, apenas o cheiro a morte emanado em cada carreiro e os mosquitos tentando entrar por tudo quanto é buraco: boca, nariz, olhos, ouvidos. As formigas gigantes, cujo ferrão é tão doloroso como uma picada de vespa e que se agarram à carne e à roupa como carraças. A formiga cadáver exalando o seu horrível cheiro pestilento. Tudo isto faz da mata uma armadilha constante. Sente-se o companheiro de trás, o da frente e o dos lados, conforme a progressão se faz. Sente-se a angústia do pensamento que voa neste silêncio de morte. Sofre-se o stress de não se saber qual o momento em que as Kalashnikov ou as PPSH começam a crepitar. Sentimo-nos vigiados por olhos invisíveis que esprei­tam o melhor momento para nos tentarem abater e estudam como predadores, qual será a primeira vítima. Este indício obri­gou Vagabundo a largar a sua boina preta em operações, quando um dia, lhe caiu sobre o nariz um ramo da árvore depois de ouvir uma detonação. Verificação efectuada, dois palmos acima da sua cabeça estava o buraco de um projéctil. Nunca mais a boina galega saiu para a festa. Porra, porra!...

Mais tarde aqui, nesta mata e próximo dela, saldaremos todas as contas. Quando se fizer o encontro dessas contas, saberemos que a guerrilha nunca perdoou os nossos Roncos. O saldo será sempre a favor da CCAÇ. mas, daqui sairão sete Lassas de sobretudo de madeira e mais cinquenta e três sentirão o ferro em brasa queimar-lhe a carne. Centena e meia ficarão com este nome inscrito no subconsciente e só quando a esclerosada memória se apagar, eles se esquecerão desta mata de Cabolol.

Voltemos à operação, Saturno de seu nome. O guia foi de facto impecável. Levou-nos precisamente à sentinela avançada do acampamento IN. Dali para a frente o problema a resolver era por nossa conta. Como em Cufar Nalu, os Lassas entraram no zig-zag, indício que a progressão deveria ser extremamente cuidadosa e que o contacto estava eminente. O carreiro tomou-se estreito e escorregadio. O pessoal lá da frente caminhava com todos os cuidados. Vagabundo e o seu pessoal, desta vez no meio da coluna, não despreocupavam a progressão. A madrugada clareava, quando surgiu o cantar da primeira costureira. Cá estava a primeira sentinela e a sua PPSH a dar o alarme. Daqui ao acampamento seriam uns quatrocentos metros em linha recta. Carlos manda desfazer a "fila em pirilau" e põe a Companhia em linha ligeiramente em cunha para afrontar o acampa­mento. O 2º. grupo de combate fica junto à milícia do João Bacar e uns metros à frente do grupo de comando. Progride-se e começa o contacto intermitente. Passada uma hora tínhamos andado à volta de duzentos metros. Não é mau em contacto, e numa mata daquelas, o foguetório é agora mais intenso, mas a mata é tão densa que é só gastar munições de um lado e do outro. Há que ter cuidado com os atiradores de tocaia isolados no cimo das árvores. Um milícia do João faz uma rajada e um monte de carne cai duma árvore e fica desfeito no chão. Cuida­dos redobrados, pois não deve ser o único, mas aquele já não vai fazer mal a ninguém. Temos de lhe apanhar a arma. Continua­mos a progredir. É bastante difícil mas, passo a passo, poilão a poilão, baga-baga a baga-baga, vamos andando devagar.

Carlos ria perdidamente, sabendo o significado, quando Vagabundo dizia que, enquanto houvesse baga-bagas, era tudo nosso. O sol começa a ficar alto, e sufoca-se dentro da mata com o calor e uma humidade terrível. Respiramos apenas vapor de água, pois o oxigénio é pouco. Como já estamos muito próxi­mo do acampamento, alternamos agora: quando eles fazem fogo amochamos, e quando se calam, fazemos nós fogo. Entra-se em contacto com a própria voz. Uma fase nova da guerra, que é a provocação pelas palavras. Bem colocados e entrincheirados, os guerrilheiros oferecem uma resistência fortíssima, e os militares da 763 começam a ser massacrados, com provocações em perfeito português:
–- Salazaristas de merda, vão-se embora, isto não é vosso!

Vagabundo ouviu e não o afectou nada, podia até aplaudir, pois ele também não gostava do Salazar e ir embora era o que mais desejava. Mas a provocação continuava:
–- Filho da puta, vai para a tua terra!”

Vagabundo até gostava de estar na sua terra, mas essa do "filho da puta" não é bem assim, isso já é ofensivo. O tempo passa e estamos num impasse. Carlos chama João Bacar, Almeida, Cerqueira e António Pedro que comandavam os grupos de combate. Há que dar volta à situação. Não podemos ficar assim. Daqui a pouco temos o pessoal extenuado e sem munições. Al­meida regressa e fala com Chico Zé, Tambinha e Vagabundo:
–-Vamos tentar dar volta a isto, vamos correr o risco do assalto mesmo em pleno dia, vamos acompanhar o João Bacar e dar-lhe apoio. Conforme a situação do acampamento, assim se fará a rotação. Vagabundo, tu com a bazuca e a MG42, cola ao João com a tua gente e procura ângulos bons para a bazuca que vai ser a safa disto. Quem puder ou quiser acompanhar o João, deixem-nos ir! O.K.?
–-Entendido!

Entretanto, do outro lado, continuavam as provocações:
–- Filhos da puta; andam aqui a dar com os cornos e as vossas mulheres a foder lá com os outros. 

Era demais!. ..Vagabundo ficou com cara de leão enraivecido. Ele não era ca­sado, mas fazia mossa nos outros e a cabeça começou a ferver­-lhe. Sentiu como que urticária em todo o corpo. Gritou:
–-Nãããão!

Urro de leão na selva, na mata., ao lado João Bacar olhou para os seus homens e gritou:
–- Caralha! Parece a mim qui bó tem medo!?                                                   

Ó homens ou o diabo! Levantam-se todos instantaneamente. Vagabundo ficará com este quadro gravado eternamente. G3 na mão direita fazendo rajadas de quatro, cinco tiros, com a mão esquerda, sacavam do bolso ou do bornal granadas ofensivas que eram descavilhadas com os dentes e atiradas para a frente. De pé, sempre andando, máquinas de guerra autênticas a funcionar!... Vagabundo gritou para o cabo Cigarra e para o Ferreira:
–- Acompanhem o João com a MG42 e façam um quarto de fila de cada vez.

Chama Lindo e Sesimbra:
–- Vamos bazucar os pontos livres à frente que dêem para meter ameixas lá dentro. Pessoal que tem granadas de bazuca, todas já para aqui.
–-  Ninguém pára, vamos todos a eles!

Os  Lassas saltaram em cima da provocação, a adrena­lina atingiu o pico, toda gente gritava, até quem medo tinha. Ao entrarem no acampamento a resistência era nu­la. Organização imediata de autodefesa, não fosse haver contra ataque, e começa a vistoria ao acampamento, destruição não, porque estava tudo completamente arrasado. As bazucas tinham feito grandes estragos. No primeiro abrigo, completamente des­feito, estavam quatro corpos carbonizados. Mais à frente, num espaldar, dois corpos também desfeitos, tinham o bipé do mor­teiro 82 e uma pistola. Já à saída do acampamento, mais um corpo com uma pistola metralhadora ainda na mão, devia ter sido o desgraçado que ficou a fazer a cobertura enquanto os restantes fugiam.

Os Lassas tiveram quatro feridos sendo um grave, o que levou a fazer a sua evacuação o mais rápido possível, pelo que houve de procurar sair da mata e encontrar um local para o heli poder aterrar. Safou-se, mesmo assim, e não era brinca­deira, pois tinha uma bala alojada mesmo junto ao coração.

Cufar Nalu, agora Cabolol, e a cotação vai subindo mas o ódio que nos nutrem não deve ter classificação. Quando pode­rem e nós menos esperarmos, vão-nos fazer a vida negra. É as­sim que funciona a guerrilha.

O pessoal transfere-se, finalmente, para a parte nova do aquartelamento, praticamente pronta, ficando cada secção com o seu abrigo. Rescaldo da operação Saturno: estamos a voar alto, mas, é necessário precaver, quando não maior será o tombo.

Transcrição:


“Louvo a CCaç 763 porque, encontrando-se em sector há cerca de quatro meses, tem vindo a manifestar extraordinário espírito ofensivo nomeadamente nas operações Razia e Rolo e recentemente na operação Saturno em que obteve óptimos resultados.



De elevado moral e aguerrida, apesar da forte resistência oposta na operação Saturno, assaltou à viva força o acampamento IN com tal ímpeto que, na precipitação da fuga, o adversário abandonou os mortos, armas, munições peças de equipamento e diverso outro material.


O êxito alcançado ficou a dever-se a todos os que, intervenientes, cônscios dos seus deveres de cidadão não hesitaram, sequer, por momentos, no cego cumprimento das obrigações que assumiram perante a Nação, não apenas na qualidade de militares mas de Portugueses de boa fibra e da melhor ética.

O Brigadeiro Comandante Militar".

C
omeçaram a ser norma os louvores colectivos e individuais, as menções honrosas e as condecorações, algumas das quais, como veremos, serão a título póstumo.


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