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terça-feira, 31 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23317: A nossa guerra em números (17): chuva de granadas sobre Guileje (18-21 mai 1973) e Gadamael Porto (31 mai-11 jun 1973)


English: Finnish Army 130 mm Gun M-46 during a direct fire mission in a live fire exercise 
[Peça de artilharia 130 mm, M-46. Exército finlandês, durante uma missão de fogo direto, em exercícios de fogos reais]

Suomi: 130 K 54 suora-ammunnassa

Date 6 March 2010 | 
Source Own work | Author Levvuori

Source: Wikimedia Commons | Public domain  (Com a devida vénia...)


1. Foi há 49 anos que a "fúria" do PAIGC, com o apoio dos seus aliados externos (Senegal, Guiné-Conacri, ex-URSS, Cuba...) se virou para os aquartelamentos de fronteira, a Norte (Guidaje, Bigene) e a Sul (Guileje, Gadamael Porto), com a intenção de os varrer do mapa, e aumentar a pressão político-militar para melhor se posicionar à mesa de eventuais futuras negociações,  e sobretudo a pressão diplomática,  tendo em vista a declaração unilateral da independência do território, o que viria a acontecer em 24 de setembro de 1973.

Citando o nosso vade-mécum (Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 1974-175) (*):

(i) "Durante o ano de 1973, o mais simbólico na história da Guerra Colonial, o PAIGC realizou 640 ataques a aquartelamentos portugueses ", o que representa 61% do total das suas acções  ofensivas (1042), "especialmente junto às fronteiras Norte e Sul: Bigene, no Norte, foi atacada 21 vezes, Guileje, no Sul,foi atacada 36 vezes, Guidage (Norte), 43 vezes, e  Gadamael Porto (Sul) , 70 vezes" (pág, 194).

(ii) foram implantadas 750 minas (AP e A/C), das quais 416 (55,5%) no 1º semestre;

(iii) globalmente, as baixas provocadas à tropa portuguesa e à população civil foram significativas:  181 militares mortos e 1133 feridos; do lado da população civil, 120 mortos e 554 feridos;

(iv) as baixas (mortos e feridos)  no 1º semestre (1248)  representaram 62,8%  do total do ano de 1973 (1988).

Estes resultados poderiam ter sido mais gravosos se, no 2º semestre de 1973, o PAIGC não estivesse empenhado na preparação e  realização do Congresso e da Assembleia Nacional, em território da Guiné-Conacri,  que estiveram na origem da proclamação unilateral da indepêndência em 24 de setembro de 1972.

Na sequência da Operação Amílcar Cabral, planeada já antes mas desencaeada depois da morte do líder (20 de janeiro de 1973), o PAIGC, nas flagelações e ataques a aquartelamentos portugueses, privilegiou o uso de armas pesadas da guerra clássica, com destaque para:
  • morteiros 82 mm e 120 mm;
  • canhão sem recuo 82 B-10;
  • foguetes 122 mm;
  • peças de artilharia 130 mm M-46, de grande alcance (cerca de 27 km).
A artilharia 130 mm foi usada pela primeira vez contra Guileje em maio de 1973 (**). E com crescente precisão. De origem soviética, com quase  todo o  armamento do PAIGC, operava a partir do território da Guiné-Conacri e tinha sido cedida pelo regime de Sékou Touré.

Entre 18 e 21 de maio de 1973 por exemplo, foram lançadas sobre Guileje cerca de sete centenas de granadas, de vários tipos (incluindo RPG 7).  Média diária (4 dias): 171,25 granadas.

Entre 31 de maio e 11 de junho, Gadamael Porto  foi flagelada com 1468  granadas: média diária (em 12 dias), 122,3 granadas;  máximo 620 granadas (em 1 de junho), mínimo 4 granadas (em 10 de junho) (op cit., pág. 175).
__________


(**) Vd. poste de 18 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1672: Guileje: a artilharia do PAIGC (Nuno Rubim)

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20100: Dossiê Guileje / Gadamael (32): O texto, inédito, de Osvaldo Lopes da Silva, um dos principais cérebros da Op Amílcar Cabral; mesa-redonda em Coimbra, 23/5/2013: " O ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio."




Cartaz da mesa-redonda,Guiledje, Guiledje,Gadamael: 40 anos dos 3 G's da Guerra da Guiné, Coimbra, 23 de maio de 2013, 14h00



1. Mensagem de  Alexandre Coutinho e Lima,  cor art  reff (ex-cap art,  cmdt CART 494, Gadamael, 1963/65; adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970; e ex-maj art, cmdt COP 5, Guileje, 1972/73), membro da nossa Tabanca Grande, com cerca de 90 referêcias no nosso blogue (*)


Data: segunda, 12/08(2019, 18:42

Assunto: Mesa Redonda em Coimbra (2013) - Intervenção de Osvaldo Lopes da Silva


Caro Amigo Luís

Há muito tempo que não contactamos. Estou na minha casa de Vila Fria, Concelho de Viana do Castelo; espero regressar a Lisboa no fim do mês.Nessa altura temos que nos encontrar, por exemplo no Restaurante Os Cunhados, para almoçar.

Entretanto junto envio em anexo, a intervenção do Comandante do PAIGC, Osvaldo Lopes da Silva (OLS), que penso que merece ser divulgado no nosso blogue. OLS foi encarregado por Amílcar Cabral, para preparar um ataque em força sobre Guileje.

O texto agora enviado, vai ser incluído no novo livro que estou a escrever.É minha opinião que se trata e um documento inédito, por ser da autoria de um conceituado Comandante do PAIGC.

Um Abraço Amigo

Coutinho e Lima


__________________



TEXTO QUE REPRODUZ A INTERVENÇÃO DO COMANDANTE OSVALDO LOPES DA SILVA NA MESA REDONDA REALIZADA, EM COIMBRA, NO DIA 23.05.2013. (**)



Osvaldo Lopes da Silva.
 Cortesia da RTC.CV  (2018)
Esta Mesa Redonda, realizada sob o prestigioso patrocínio do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, vem na sequência do Simpósio Internacional de Guileje, que teve lugar na Guiné, em 2008. 

Ambos os eventos foram orientados no sentido de um debate desinibido entre representantes das Forças Armadas de Portugal e do PAIGC que se confrontaram em Maio de 1973 e que tiveram uma participação directa nas operações de Guidage, Guileje ou Gadamael.

Se, por razões de ordem pessoal, não me fora possível responder positivamente ao convite para participar do Simpósio de 2008, desta vez seria deselegante declinar o convite que me foi feito pelo Dr. Julião Sousa para dar, nesta Mesa Redonda, o meu testemunho, na medida do meu envolvimento nas operações de Guileje e de Gadamael.

Ao Dr. Julião Sousa quero manifestar quanto me sinto honrado pelo convite, aproveitando a ocasião para o felicitar pela boa organização da Mesa Redonda e pelo ambiente de amizade e de respeito mútuo que foi possível criar entre homens que estiveram, em dado momento das suas vidas, em lados opostos da barricada.

Seja-me permitido dirigir uma saudação muito particular ao Sr. Coronel Coutinho e Lima que, numa situação dramática, teve a coragem de tomar a decisão de abandonar o quartel de Guileje, ultrapassando ponderações sobre o futuro da sua carreira militar. No momento, o que importava era salvar vidas - dos soldados sob o seu comando, mas também das populações que se encontravam sob sua protecção - face à esmagadora desproporção de forças então em presença.

Amantes da paz, estamos aqui reunidos para falar da guerra, essa eterna companheira da humanidade, que Clausewitz definiu como a continuação da política por outros meios, ou ainda, como um conjunto de acções violentas entre dois beligerantes ou grupos de beligerantes, cada um deles visando impor ao outro a sua vontade política.

Maio de 1973, com o desfecho das grandes operações de Guidage, Guileje e Gadamael, marcou o ponto de ruptura do equilíbrio de forças em presença no teatro de operações da Guiné. Num quadro geral de grande supremacia das Forças Armadas Portuguesas no que se refere ao somatório dos efectivos e do armamento, o facto é que o desenrolar dessas operações evidenciou que as forças do PAIGC, dispondo de iniciativa, de grande mobilidade, de armamento moderno e de enquadramento qualificado, estavam aptas a concentrar contra qualquer quartel da Guiné uma supremacia esmagadora. 

Isto face a um inimigo cujas reservas se encontravam exauridas, e que se encontrava diminuído na sua mobilidade em consequência da eficácia dos mísseis antiaéreos "Strela" utilizados pelas forças nacionalistas. Chegara o momento a partir do qual, nas palavras de Clausewitz, a continuação da guerra deixa de fazer sentido e deve intervir uma solução política: quando fica demonstrado que a continuação da guerra só pode conduzir ao esmagamento de uma das partes pela outra.

A luta dirigida por Cabral combinava acções em distintas frentes, sendo a militar apenas uma delas, e não a mais importante. Essa acção multiforme devia conduzir ao enfraquecimento do inimigo (no aspecto militar, moral da retaguarda, isolamento diplomático, agravamento das despesas com a guerra), a ponto de o levar à situação de ter de acatar a solução política que só podia ser a independência da Guiné e de Cabo Verde. 


Estava longe dos propósitos de Cabral uma vitória militar, não apenas por considera-la incoerente com a doutrina da guerra, mas ainda pelo receio do protagonismo excessivo que tal desfecho conferiria à classe castrense guineense. Por alguma razão, Cabral sempre optou por falar de militantes armados do PAIGC e não de militares.

Na sequência dos graves reveses sofridos em Maio de 1973, o general Spínola encontrou-se em Lisboa com o Presidente do Conselho Marcelo Caetano. Sem rodeios, o general pôs a nu a gravidade da situação operacional na Guiné e apresentou duas alternativas como forma de conjurar a ameaça iminente de colapso militar: ou a atribuição de reforços substanciais ou a procura de uma solução política. 


Caetano negou ao general Spínola uma coisa e a outra. Quanto a reforços, os poucos disponíveis estavam destinados a garantir a segurança das obras da gigantesca barragem de Cabora Bassa e à implantação, no norte de Moçambique, de um milhão de colonos. Perante essa realidade, a Guiné, que nunca fora colónia de implantação branca, nem apresentava os atractivos económicos de Moçambique, ficava a perder, no jogo delicado de atribuição das minguadas reservas disponíveis, que tinha que obedecer às prioridades económico-financeiras do momento. 

A alternativa de solução política, vista por Caetano como sendo equivalente a negociar com terroristas, foi liminarmente rejeitada. Caetano declarou ao general Spínola que preferia uma derrota militar a negociar, pensando assim defender o sagrado princípio da intangibilidade das fronteiras imperiais, de Minho a Timor. 

Os territórios de Goa, Damão e Diu, que, desde 1961, se encontravam sob jurisdição da União Indiana, continuavam a ser considerados, na propaganda salazarista, como constituindo uma província ultramarina sob ocupação estrangeira. Na lógica de Caetano, uma derrota militar na Guiné podia ser transfigurada em ocupação de uma província ultramarina por forças do comunismo internacional. Deixando intangível o princípio de não cedência de qualquer parcela do Ultramar, a classe dirigente portuguesa pensava poder continuar a usufruir das riquezas de Angola e de Moçambique, onde o equilíbrio das forças em presença parecia pender a seu favor.

Perguntar-se-á como foi possível que, no conjunto das três frentes de guerra de libertação nacional contra o exército colonial português, o primeiro sinal de ruptura do equilíbrio operacional tenha ocorrido na Guiné, a menor e menos populosa das três colónias em guerra (Guiné, Angola e Moçambique)?

Comparemos os dois casos extremos de Angola e da Guiné. Em Angola, o início da guerra foi determinado pela sucessão de acontecimentos desencadeados pelo desvio do "Santa Maria" por Henrique Galvão, e que, de erro de apreciação em erro de apreciação, conduziu ao assalto às cadeias de Luanda, no dia 4 de Fevereiro de 1961, e a tudo o que se lhe seguiu. 


Os "média" que se tinham concentrado em Luanda para darem cobertura condigna à anunciada proclamação por Henrique Galvão de um governo de oposição a Salazar são surpreendidos por acontecimentos que marcaram o início da luta armada em Angola. Isso de forma atabalhoada, numa altura em que nem a UPA, e muito menos o MPLA, estava em condições de assumir a liderança de uma acção coerente contra o exército colonial. Na verdade, o MPLA, quase desmantelado na sequência das numerosas detenções efectuadas pela PIDE em 1959 e 1960, encontrava-se, na altura, decapitado, com Agostinho Neto deportado em Cabo Verde e os demais membros da Direcção (Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Viriato da Cruz, Dr. Eduardo Macedo dos Santos) precariamente instalados em Conakry e sem contactos com Angola.

Quanto a Holden Roberto, por insistência de Franz Fanon, renunciara ao objectivo inicial de restauração do reino do Congo, compreendendo o norte de Angola e partes dos dois Congos e até do Gabão, estampado na sigla UPNA (União dos Povos do Norte de Angola). A passagem a UPA (União dos Povo de Angola) nada alterou do carácter tribal da organização, e Holden nada mais tinha a apresentar senão o terrorismo racista, não transpondo a sua acção os limites da sua tribo bacongo.

No caso da Guiné, a acção armada só teve início em 1963, quando o PAIGC já dispunha de um enquadramento assegurado por um primeiro grupo de jovens formados na China e das primeiras armas fornecidas pelo rei Hassan II de Marrocos. 


Embora os primeiros chefes da guerrilha do PAIGC tenham sido formados na China, Cabral soube rejeitar rigorosamente todo o envolvimento no conflito ideológico sino-soviético. O facto de a União Soviética privilegiar a análise fria das capacidades das organizações nacionalistas, com abstracção das declarações desnecessariamente marxisantes das suas direcções políticas, criou condições para um bom entendimento e a um reforço qualitativo da ajuda soviética, à medida que, no terreno, os combatentes demonstravam capacidade para dar boa utilização às armas fornecidas. 

As primeiras ajudas soviéticas só foram concedidas quando o PAIGC mostrou que estava no terreno, embora mal equipado. As primeiras armas soviéticas, saídas dos paióis da II Guerra Mundial, foram PPCh, morteiros 60 e 82, canhões B10, pistolas “Macarov”.

Isto bastou para que a guerrilha pudesse mostrar presença em toda a extensão do território, embora fugindo ao contacto com as forças inimigas, ainda mais fortes. Estava-se na fase primária de dispersão das forças inimigas, que correspondeu, do nosso lado, à interrupção das vias de comunicação, das redes de electricidade e de telefones, à mobilização da população para recusar o pagamento do imposto indígena, ao que o inimigo respondeu com a criação de uma densa rede de quartéis, ainda no consulado do general Schulz. Para nós, tornava-se evidente que quanto mais densa fosse a rede de quartéis, mais fraco ficava o inimigo em cada quartel, considerado isoladamente. Chegado a esse ponto, o inimigo podia ser atacado, em emboscadas, para o isolar nos quartéis.

Quando, em 1968, o general Spínola é nomeado governador da Guiné e comandante-chefe, vastas áreas do território e as populações que as habitavam tinham passado para o controlo directo do PAIGC, onde iam sendo lançadas as bases de um estado funcionando autonomamente em relação ao poder colonial. De tal modo que Cabral já podia anunciar, junto das chancelarias e das instâncias internacionais, que a Guiné se apresentava como um país dotado de uma administração autónoma, capaz de suprir as necessidades básicas da população, e onde eram exercidos os poderes de um estado soberano, com uma parte do seu território ainda ocupado por forças coloniais.

A nova política de “Guiné Melhor” do general Spínola, embora tenha causado alguma perturbação momentânea, não tinha fôlego para travar o ritmo acelerado da luta, tanto mais que o general Spínola não podia dispor dos muito avultados recursos que a sua política requeria.

Chega-se aos princípios de 1969 com um equilíbrio de forças que, na mesma medida, se tinham reforçado de um lado e do outro. Por essa altura, vem reforçar as hostes do PAIGC o grupo de cabo-verdianos, de nível académico elevado, que estivera em formação militar em Cuba e prosseguira a formação na União Soviética, em particular no ramo da artilharia. Foi significativo o salto qualitativo que a luta conheceu quando esse grupo assumiu o comando da artilharia. 


Além do mais, a presença desse grupo no terreno convenceu as autoridades soviéticas a elevar o nível qualitativo da ajuda que vinha concedendo ao PAIGC. É quando fornecem o “GRAD”, morteiro reactivo de 122 mm, com um alcance de um pouco mais de 10 km. Trata-se da adaptação da “CATIUCHA” da II Guerra Mundial às condições de guerrilha, ou seja, um lança mísseis de um só tubo, montado num tripé facilmente desmontável e transportável por um só homem. O próprio míssil divide-se em duas partes, a propulsora e a explosiva, cada uma delas facilmente transportável por um homem. 

A vasta campanha contra os quartéis da frente sul, ao longo do segundo semestre de 1969, evidenciando uma significativa evolução das forças do PAIGC em qualidade de armamento e de utilização da artilharia, perturbou seriamente os planos do general Spínola de reconquistar todo o sul.

Em finais de 1969, a artilharia, que estivera concentrada na frente sul, é repartida pelas três frentes. Coube-me então o comando da artilharia da frente leste, com a missão de atacar todos os quartéis dessa vasta área: Buruntuma, Piche, Canquelifa, Pirada, Badjacunda, Gabu, Cabuca. 


Tratando-se de uma área pouco habitada, com fraco valor estratégico do ponto de vista da política do general Spínola, e onde durante longo tempo as nossas forças tinham estado inactivas, havia a suspeita da intenção do inimigo de se retirar de alguns desses quartéis para encurtar o seu dispositivo e reforçar outras áreas mais ameaçadas. Para obstar tal intenção, não havia como mostrar que a ameaça estava no terreno. A exiguidade dos nossos efectivos de infantaria foi suprida pela acção da artilharia de longo alcance. 

Não dispondo de mapas, socorria-me do ardil de provocar o inimigo com alguns disparos inócuos de morteiro 82, em noites de lua nova, quando o clarão da artilharia inimiga se podia distinguir a maior distância. Podíamos assim determinar não apenas a direcção, mas ainda a diferença de tempo entre o clarão e o som do disparo. Multiplicando esses segundos pela velocidade de propagação do som (360 m/s) tinha-se um valor muito aproximado da distância ao quartel.

Depois de uma ausência de quase dois anos, ocupados numa formação de marinha na União Soviética, cheguei, em Agosto de 1972, a Conakry, onde encontrei uma situação de grande tensão, criada pelos conspiradores que vieram a estar envolvidos no assassinato de Cabral, a 20 de Janeiro de 1973. Foi neste clima tenso que Cabral me lançou o desafio de preparar o ataque a Guileje, considerado o mais bem fortificado quartel da Guiné. 


Ao desafio de Cabral respondi, sem hesitação, que podia destruir qualquer quartel da Guiné que ele determinasse, desde que dispusesse de meios e de tempo suficiente para a preparação de dados para a artilharia. Poucos dias depois, partia com destino a Kandiafara, onde me esperavam os 24 combatentes, cabo-verdianos e guineenses, que iam constituir o meu grupo de reconhecimento. Levava comigo fardas, mochilas, cantis, marmitas, abastecimento reforçado e tudo o mais necessário a equipar o meu grupo. 

Para as necessidades da artilharia, levava várias bússolas artilheiras, bússolas de bolso, cronómetros, e até um sextante, as efemérides náuticas, bem como um frasco com mercúrio que me serviria para criar horizonte artificial para a determinação da altura do sol. O recurso à astronomia permitiu-me a determinação, com muita precisão, da declinação magnética e da longitude do lugar, por observação do sol no ponto de culminação. Menos precisa era a determinação da latitude, o que me levou a recorrer a métodos menos complicados para a preparação de dados para a artilharia.

A transposição para Guileje da experiência da frente leste não deu os resultados que eu esperava. O regime de fogo do inimigo (mais que uma peça a disparar em simultâneo) não permitia ligar o estampido ao clarão do disparo. Tive que me contentar com a determinação da direcção do fogo inimigo a partir de distâncias de 4 a 12 km, de acordo com o alcance das armas de que podia dispor: morteiros 120, GRAD e canhões 130. 

Empreendi em seguida a operação delicada de ligar os pontos que me garantiam a direcção de fogo por levantamento topográfico. Com os dados das observações e do levantamento topográfico, e trabalhando sempre com referência ao norte magnético, só restava resolver um problema simples de geometria plana para ter dados precisos não apenas de direcção, mas a distância. Encontrava-me em posição de me oferecer o requinte de, com recurso a mais uma poligonal, situar a posição de fogo no meio da mata densa, fugindo das “lalas” que tinham servido para a observação do fogo inimigo.

A parte mais perigosa do reconhecimento consistiu na observação do quartel a partir do arame farpado, para termos a localização das suas instalações e as distâncias relativas às peças de artilharia. Neste trabalho, foi notável a contribuição de especialistas de reconhecimento cubanos. Foi nessas movimentações próximas do quartel que a Operação Amílcar Cabral registou as suas únicas baixas, vítimas de minas: dois mortos e um ferido, todos da infantaria que garantia a escola do grupo de reconhecimento.

Em finais de 1972, já dispunha de dados de artilharia suficientes para desencadear a operação contra Guileje, mas estavam por resolver os complicados problemas logísticos de movimentação dos efectivos que deviam vir das outras frentes, com o cuidado para que estas não ficassem demasiado desguarnecidas, transporte de armas, munições, alimentação, e até água, que foi transportada em camiões a partir de Kandiafara. Num grande raio à volta do quartel toda a água é salobra.

Depois de ter elaborado um croqui onde situava as posições de fogo, as “lalas” que podiam ser utilizadas pelos mísseis terra-ar STRELA, e para ocupar o tempo disponível, fiz o mesmo trabalho em Quebo (Aldeia Formosa).

Em Março de 1973, fez-se um teste ao comportamento dos nossos combatentes numa operação com ocupação do terreno em pleno dia, sob a protecção dos mísseis antiaéreos STRELA, que pela primeira vez entravam em cena. Foram disparados contra Guileje vários mísseis GRAD, o que deu lugar à vinda de aviões, dos quais um foi abatido e dois, atingidos, conseguiram regressar à base.

Sendo satisfatórios os resultados do teste, acelerou-se a preparação da Operação Amílcar Cabral, que teve início na manhã do dia 18 de Maio, quando o inimigo caiu num campo de minas na estrada Guileje-Gadamael. 


À tarde, de uma posição a cerca de 4 km foram disparados 180 granadas de morteiro 120 (6 morteiros com 30 granadas cada), com vista a destruir os abrigos. Mais tarde, entrou em acção um canhão de 130 mm, a 12 km de distância, com um disparo de meia em meia hora, de modo a tornar impossível a vida no quartel. 

Tínhamos mobilizado meios para uma operação prevista para durar um mês, mas, ao fim de dois dias, o grau de destruição causada pela artilharia era impressionante. De tal modo que a tropa e a população tiveram que passar a compartilhar em permanência a exiguidade dos abrigos, privadas de comida, água, e até de comunicações, depois que as antenas também foram destruídas. 

Continuar no quartel, nessas condições, sem a menor capacidade de resposta, tornara-se inútil do ponto de vista militar. Uma nova salva de morteiros 120 por certo causaria um massacre. Por felicidade, o Sr. Coronel Coutinho e Lima, que conhecia muito bem o terreno, conseguiu encontrar uma vereda que escapara ao controlo da nossa infantaria para fazer passar, com destino a Gadamael, a tropa sob o seu comando e a população. 

Por minha parte, à notícia da queda de Guileje, retirei-me, isolei-me, para descansar e reflectir. Nunca mais me aproximei de Guileje.

Passado um ou dois dias, fui informado de que devia seguir para Gadamael para a mesma missão de preparação de dados para a artilharia. Com o meu grupo de reconhecimento, fomos ver o que podíamos fazer no pouco tempo que nos era dado. Ainda conseguimos pôr em acção uma posição e GRAD, a 6 km de distância, e determinámos os dados para canhão 130, a uns 10 km. Mas não tive a oportunidade de observar de perto o quartel e a distribuição das suas instalações. 


Entretanto, fui convocado a Conakry, para uma missão à Líbia. Pouco depois, a operação contra Gadamael foi interrompida. É que o Congresso do PAIGC, que devia analisar toda a situação que envolveu a morte de Cabral e designar o seu sucessor, estava a ser preparado dentro do maior secretismo. As forças empenhadas em Gadamael tinham que ser retiradas pois iam constituir o dispositivo de segurança do Congresso.

Na minha opinião, o ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio.
 

Praia, 13 de Junho de 2013
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 25 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18675: Dossiê Guileje / Gadamael (31): A Retirada de Guileje foi há 45 anos (22MAI73). Poderia não ter acontecido? (Coutinho e Lima, ex-CMDT do COP 5)

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8178: Controvérsias (120): Spínola, Amílcar Cabral, o Tarrafal, o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, os guineenses e os caboverdianos, nós e o blogue (Torcato Mendonça / Pepito)





Fotograma do documentário, produzido e realizado por Diana Andringa, em 2009, Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta, que foi exibido pela primeira vez em televisão, ontem, na RTP1, às 23h00. Um dos ex-presos, caboverdiano, entrevistado (em 2009), comentando a notícia do assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de Janeiro de 1973. Qual o eventual papel dos tarrafalistas, guineenses, libertados no  tempo do Gen Spíonla, na organização e execução do assassinato de Amílcar Cabral ? O documentário de Diana Andringa, baseado em entrevistas com antigos presos do Tarrafal (1 português, e cerca de 30 guineenses, angolanos e caboverdianos),  não aborda  explicitamente esta melindrosa questão. (LG)





1. Texto organizado com base num comentário de Torcato Mendonça ao Poste P8165, originando por sua vez um comentário do seu autor, o nosso amigo Pepito:



(i) Torcato Mendonça [, foto
a esquerda, tirada no Fundão em 27 de Janeiro de 2007] 
, em comentário de 25 do corrente, ao poste P8165:



Caro Carlos Schwarz:


Actualmente tenho dificuldades de comunicação. Consegui ler o P8165. De facto, este Blogue do Luís Graça [& Camaradas da Guiné] tem contribuído muito para se falar e debater a "guerra da Guiné". Com um senão: quem aqui escreve, na quase totalidade, são ex-combatentes portugueses (incluo os guineenses que combateram com a farda de meu País). 


O PAIGC pouco ou nada diz. O Simpósio foi importante. Uma ilha a pender para um lado...?? Não cabe aqui debatê-lo nem a questão da  "guerra  perdida" e isso o Marechal Spínola sabia, disse-o e tentou inverter o curso normal da história das ditas potências coloniais.


O assassinato de A. Cabral deve ser procurado dentro do PAIGC,não ? Como o esclarecimento das divergências entre guineenses e caboverdianos.


A Op Mar Verde é um caso a estudar, como outros,  e daria excelente debates.


Boa Sorte para a AD. Abraço Torcato



2. Resposta, não publicada, do Pepito [, foto à direita],no mesmo dia:


Caro Torcato:


Concordo consigo quando diz que o assassinato de Amilcar Cabral deve ser procurado (acrescento eu, também) dentro do PAIGC. Estou à vontade para o dizer, pois defendi sempre que o golpe de 14 de Novembro [de 1980]  foi o golpe conseguido que falhou no assassinato de Cabral.


Talvez por minha ignorância militar, mas não conheço nenhuma vitória militar de Spínola. A única vitória, que não lhe nego, é política: ter apostado forte e conseguido maximizar o ponto mais forte e mais fraco do PAIGC, a unidade entre guineenses e caboverdianos. Foi aí, nessa luta,  que ele ganhou, que ele minou o PAIGC, infiltrou os seus agentes, dividiu,  organizou o assassinato de Amílcar Cabral.


Sou o primeiro a reconhecer que foram "militantes" do PAIGC que mataram Cabral, mas quem o mandou matar e organizou a sua entrada,  a partir do Tarrafal, isso poderia ter sido esclarecido se os dossiers da PIDE referentes ao Spínola não tivessem sido mandados retirar da António Maria Cardoso [, sede da polícia política até ao 25 de Abril]. 



Mais. Muito do que ainda hoje estamos a viver na Guiné-Bissau tem as suas raízes profundas no assassinato de Amilcar Cabral. O que me espanta é ouvir dizer que o Spínola nada tem a ver com o assassinato de Cabral, tanto assim é que "ele sempre o elogiou". Caro amigo, já ouvi a alguns dos implicados guineenses dizer o mesmo... Hoje em dia, até o Alpoím Calvão que bombardeou a casa de Cabral em Conakry na operação Mar Verde, nega que o tenha querido matar. Pois....



abraço

pepito




PS - Quanto à ilha a pender para um lado...que lhe respondam os militares e historiadores portugueses que estiveram no Simpósio [Interncaional de Guiledje].  


(iii) Novo comentário de Torcato Mendonça, de 27 do corrente:


Luís Graça


Faz chegar, por favor, a minha breve resposta, a possivel para quem está limitado com a Rede TMN. O computador é da Ana e noutro sistema. Em breve escreverei. Melhor em e-mail.


Spínola sabia que tinha que actuar assim. O assassinato de Cabral é assunto a ser tratado de outro modo. Nada me mete medo sobre tal ou outros assuntos. Assumo ter admirado o Marechal enquanto Com-Chefe na Guiné. Sabes isso. Da parte restante falaremos. Aquela guerra nunca seria ganha militarmente... Houve grandes combatentes de ambos os lados. Nem sempre utilizando os meios suaves... nem sei como se definia isso ou que importância terá para esta conversa entre nós.


Só dois pontos:

- Portugal vivia sob uma ditadura feroz. Os ultras e certos interesses económicos nunca suportariam uma negociação política. Marcelo era um Chefe de um Governo de fachada.

- Li e ouvi os vídeos do Simpósio. Conheço pela leitura e não só o trabalho da AD. Vai, logicamente além do que aqui tem aparecido no Blogue. É natural em quem se interessa por estes assuntos.

A "ilha estava inclinada" foi um modo de dizer como certos dirigentes actuavam...ou actuam.


Agradeço que encaminhes isto, caro Luís, para o Carlos Schwarz. Não  tenho endereços e o resto falha. Só o gosto por vocês, pelo blogue, pela Guiné e pelo o meu País me levam a tentar, quando posso e o sistema funciona, a escrever assim e a vir aqui,  religiosamente.
Abraço os dois. Através de um todos os camaradas do blogue; do outro o Povo daquela Terra vermelha e ardente que a mim ficou colada.


Abraço do Torcato (a verdade tem sempre muitas inverdades... a verdade pura é utopia).



2. Comentário do editor:  


Tanto o nosso amigo Pepito como o nosso camarigo Torcato autorizaram a publicação destes comentários feitos em registo off.


Mais concretamente o Pepito acaba de me mandar a seguinte mensagem:


Luis: Se considerares que tem interesse para os nossos bloguistas, publica.
abraço
pepito


PS - Gostei muito de conhecer os filhos do Zé Teixeira [que acaba de regressar da sua viagem à Guiné, onde foi recebido com grande alegria, reconhecimento,  gratidão, esperança e entusiasmo pelas gentes do Cantanhez] . Há uma nova geração (com os teus filhos) fora de série....

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Nota do editor:



Último poste da série > 18 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8128: Controvérsias (119): 10 de Junho: Ainda, o Dia dos Combatentes (Joaquim Mexia Alves)

domingo, 30 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4883: Notas de Leitura (19): Sobre o legado teórico de Amílcar Cabral (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 27 de Agosto de 2009:

Camaradas,

Aqui vai uma recensão sobre uma obra que apareceu em 1974. Em correio separado, vou novamente enviar-vos, também com o pedido de publicação de um texto e imagem sobre uma edição igualmente histórica da obra política de Amílcar Cabral publicada em França, em 1970.
A seguir remeto-me ao silêncio, tereis notícias das minhas leituras em Setembro. Recebei a minha estima e elevada consideração.


Sobre o legado teórico de Amílcar Cabral

Imediatamente após o 25 de Abril de 1974, as Edições Afrontamento deram à estampa várias publicações alusivas à história dos movimentos de libertação operantes nas colónias portuguesas. No conjunto dessas iniciativas é de ressaltar uma antologia organizada pelo Luís Moita e Maria do Rosário Moita relativa ao pensamento de Amílcar Cabral: “Textos Políticos”, assim se intitula esta antologia abreviada que permitiu ao leitor português conhecer o pensamento do antigo secretário-geral do PAIGC.

É sobre essa raridade histórica que iremos à frente falar. A antologia aparece organizada em torno de três temas fundamentais: a história do movimento de libertação; a teoria que fundamentava a acção no movimento de libertação; e a natureza da política anti-colonial, na perspectiva das relações internacionais. No final, são transcritas longas passagens daquele que foi considerado o testamento político de Amílcar Cabral – o seu último discurso, a sua mensagem de ano novo em 1 de Janeiro de 1973.

Cabral foi reconhecidamente um dos maiores teóricos na luta anti-colonial, deixou um pensamento que pode ser ainda hoje explorado para múltiplas leituras nas dimensões política, social e cultural. Agrónomo especializado na erosão dos solos, aparece na Guiné nos anos 50, onde irá proceder a um recenseamento que lhe irá permitir um contacto profundo com todos os grupos étnicos guineenses, avaliar as potencialidades económicas da região e conhecer minuciosamente todas as suas infra-estruturas e equipamentos. Dirá mais tarde que não foi em vão que optou por vir trabalhar para a Guiné, ele que fora convidado para assistente no Instituto Superior de Agronomia.

De formação marxista, crente nas teses que então vigoravam sobre a integração económica na emancipação do continente africano, estava atento às questões tribais, à natureza específica de um proletariado rural que se devia aliar a uma minúscula burguesia, confinada aos pequenos centros urbanos.

Tentou na Guiné criar uma associação cívica, as autoridades de Bissau não autorizaram a constituição dessa associação, alegando que a maioria dos proponentes não pertencia à classe dos “civilizados”. Mais tarde, em 1956, será um dos fundadores na clandestinidade do PAIGC. Nos anos subsequentes, a Guiné Conacri e o Senegal tornam-se independentes, ateia-se o rastilho que vai possibilitar o apoio ao PAIGC, sobretudo a partir de Conacri.

Cabral, um político de visão, toma nota que a luta armada em que se vai envolver é num território que precisa de ter uma língua de coesão e uma atitude eminentemente libertadora e identitária, já que os líderes de Conacri não escondem o desejo da anexar o território da Guiné portuguesa para criar “a grande Guiné” e Senghor também não dissimula que pretende ter um papel director no novo país de língua portuguesa.

O PAIGC torna-se uma realidade no espectro político africano em 1961, ano em que se inicia a Guerra Colonial e se dá uma vaga de prisões de quadros do PAIGC. Cabral tudo estrutura, tudo organiza, tudo escreve, torna-se na figura emblemática do PAIGC, é o mais prestigiado líder dos movimentos de libertação. No final de 1962, apresenta-se numa comissão das Nações Unidas e apela para que acabe urgentemente a presença colonial portuguesa na Guiné e em Cabo Verde.

Em 1963, depois de ter rejeitado quaisquer alianças com outros movimentos libertadores da Guiné, inicia-se a luta armada, criou-se a cisão da influência territorial entre a potência colonialista e o movimento de libertação, em pouco mais de dois anos alterou-se radicalmente a forma de ocupação do território guineense, falando-se, em termos de propaganda do PAIGC, em zonas libertadas, zonas temporariamente ocupadas pelas tropas portuguesas e zonas em discussão. A aprendizagem da luta armada faz-se em tempo acelerado, entrou-se a sério numa guerra de guerrilhas, militar e socialmente muito violenta.

O líder do PAIGC não tem ilusões sobre o carácter da mobilização de massas para a luta da independência. Diz sempre que o colonialista português não se apropriou das terras da Guiné, não criou concentrações de colonos, não deslocou grandes massas de africanos para pôr no seu lugar colonos europeus, como aconteceu em Angola.

Na Guiné manteve-se a propriedade colectiva da aldeia, o que dificultou a sensibilização dos camponeses, demonstrando-lhes como eles eram explorados na própria terra. Influenciado por outros teóricos africanos, Cabral considerava que a África do tempo não era tribal, seria a luta para ter pão e viver com dignidade que iria rapidamente influenciar a coesão de todos os guineenses (como se sabe, não só esta base teórica era falsa como veio a propiciar equívocos tremendos de que a Guiné ainda não se libertou).

Onde o seu pensamento se revelou inegavelmente heterodoxo foi na sua leitura de classes, na natureza das alianças em tempo revolucionário, na ênfase dada ao papel da cultura e na argumentação utilizada para demarcar a luta anti-colonial da estima fraterna sentida pela população portuguesa.

Esta antologia, convém insistir, está marcada pela data em que apareceu no mercado português e pelo tempo da euforia da independência, logo em 1974. É um livro que fala mais do pensamento do lutador do que do visionário da construção da nação guineense.
Na época, ainda ninguém tinha coragem em desmascarar a inviabilidade de forçar a Guiné e Cabo Verde a coabitarem no mesmo Estado, sabendo-se, como já se sabia, que eram duas realidades completamente distintas, tanto na história do colonialismo, como na economia, educação, valores, religião, etc.

A antologia também por isso não acolhe a visão de Cabral sobre o modo de transformar a Guiné como país subdesenvolvido numa nação na senda do progresso. Vários estudiosos do pensamento de Cabral observam que a sua experiência sob o desenvolvimento estava condicionada pela organização das zonas libertadas, não deixou reflexão teórica sobre um estádio superior de desenvolvimento pós-colonial.

Esta é a antologia de 1974, nela palpita o pensamento e a visão de um lutador optimista, prestigiado e dotado de uma enorme capacidade de comunicação e humanismo. Lêem-se estes textos políticos à luz de um grande sopro libertador, pois para Cabral o mais importante era libertar o povo e confiar no homem.

Como ele escreveu “O homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas”.

Com um grande abraço de camaradagem,
Beja Santos
Alf Mil Cmdt do Pel Caç Nat 52
Imagem: © Beja Santos (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

terça-feira, 14 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4185: Nino: Vídeos (4): Guidaje, Guileje, Gadamael: A Op Amílcar Cabral



Guiné-Bissau > Bissau > Palácio Presidencial > 6 de Março de 2008 > Excerto da audiência que o Presidente João Bernardo 'Nino' Vieira (1939-2009) deu, por volta das 12h, a cerca de duas dezenas de participantes estrangeiros do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008). O grupo incluía 3 cubanos, Oscar Oramas (antigo embaixador de Cuba na Guiné-Conacri, ao tempo da morte de Amílcar Cabral, um homem culto, hoje doutorado e biógrafo do líder histórico do PAIGC), Ulises Estrada (antigo 'combatente internacionalista', companheiro de 'Che' Guevara na Bolívia) e o actual embaixador de Cuba na Guiné-Bissau, e ainda três ou quatro guineenses. Mas a maioria dos presentes era portugueses, ex-combatentes da guerra colonial, incluindo, entre outros, o antigo comandante do COP 5, o ex-major Coutinho e Lima, e três Gringos de Guileje (O Abílio, o Sérgo e o Zé Carioca), sem esquecer o Zé Rocha, outro homem de Guileje.

Estiveram também presentes o Dr. Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares, a Diana Andringa (a co-ealizadora do filme As Duas Faces da Guerra), e o José Carlos Marques, jornalista do Correio da Manhã. Também o francês Prof Doutor Patrick Chabal, o melhor biógrafo de Amílcar Cabral, esteve presente. Ao todo, na sala, estariam cerca de duas dezenas de pessoas.

A audiência foi decidida à última hora, por vontade expressa do 'Nino' Vieira, na qualidade de histórico comandante da guerrilha do PAIGC e um dos seus mais destacados militantes (o último dos 'dez magníficos' mandados por Cabral para a China antes do início da guerra).

A audiência não estava prevista no programa do Simpósio. Uma hora antes, o grupo fora também recebidos pelo então 1º Ministro, Martinho N'Dafa Cabi. Não estava prevista, de resto, qualquer intervenção no Simpósio, por parte do Presidente da República - presumo que por razões de segurança - embora ele fizesse parte da comissão de honra.

Vídeo (5' 57''): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Alojado em You Tube > Nhabijoes

Continuação da conversa de Nino com a sua audiência (*):

Nino conta aqui como é que, em Conacri, na embaixada de Cuba, na presença do embaixador Oscar Oramas, após a morte de Amílcar Cabral, a cúpula político-militar do PAIGC, reunida em 'conselho de guerra' (sic) (ele próprio, Xico Tê, Pedro Pires, Luís Cabral, e mais alguns comandantes da guerrilha que estavam por ali perto...), decidiu avançar com a Op Amílcar Cabral, uma acção conjunta contra Guidaje, no norte, e Guileje, no sul...

Tratava-se sobretudo de reforçar a 'força anímica' (Pedro Pires) dos guerrilheiros, seriamente abalada com a notícia brutal do desaparecimento do líder... Era preciso mostrar, interna e externamenete, que o PAIGC conseguia sobreviver ao desaparecimento (físico) de Cabral...

'Nino' explica, a seguir, por que é que as operações sobre Guidaje não puderam ser devidamente coordenadas com as de Guileje, conforme o planeado. Quando a guerrilha concentrava forças na região, apareceu a aviação e faz bombardeamentos. Os combatentes do PAIGC ripostaram e a operação começou... Precipitadamente.

Esta e outras fahas de informação e coordenação não reconhecidas e comentadas por 'Nino' que evoca aqui também o derrube por um Strela, em 25 de Março de 1973, do Fiat G-91, pilotado pelo então Ten Pilav Miguel Pessoa, sob os céus de Guileje...

Segundo ele (e essa versão é também corroborada por Pedro Pires, no seu depoimento, na II Parte do filme de Diana Andrnga e Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra), a "operação de Guileje" começou com uma espécie de armadilha, montada à nossa Força Aérea. Os guerrilheiros sabiam que, após um ataque a Guileje, era pedido apoio de fogo a Bissalanca. Dez minutos depois, eram sobrevoados e bombardeados pelos Fiat. Daquela vez, havia o Strela, um moderno míssil terra-ar, disponibiliado pelos soviéticos, tendo em vista a escalada da guerra... O artilheiro do PAIGG, encarregue de disparar o Strela (Caba Fati, hoje major,se bem percebi o nome) daquela vez não falhou... A euforia foi tão grande, entre as hostes do PAIGC, que eles nem se deram o trabalho de procurar o piloto e de aprisioná-lo, no caso de ainda estar vivo... (Vd., a este respeito, o testemunho do antigo guerrilheiro Féfé Gomes Cofre, na II Parte do filme da Diana Andringa e do Flora Gomes)

Enfim, explica ainda sumariamente como foram desencadeadas no terreno as operações contra Guileje, entre 18 e 25 de Maio de 1973... Não esconde, pelo contrário, que o PAIGC sabia muito pouco ou nada sobre as posições das NT, os seus hábitos, as suas rotinas de abastecimento...Providencial foi a captura de um milícia local que lhes deu informações preciosas... A "operação Guileje" começaria, na madrugada de 18 de Maio de 1973, com uma grande emboscada, com uma frente de 100 metros, planeada por 'Nino', às forças (milícias) que saíam para se abastecer na fonte que ficava nas imediações do quartel... Essa operação,como se sabe, durou até 25 de Maio de 1973, com a entrada do PAIGC em Guileje, no dia em que se comemorava o 10º aniversário da criação da OUA - Organização da Unidade Africana... Depois de Guileje, 'Nino' virou-se para Gadamael... (LG)

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

17 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4045: Nino: Vídeos (3): Em Portugal, um vizinho meu, antigo combatente, reconheceu-me e tratou-me por 'comandante Nino'...

9 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4002: Nino: Vídeos (2): O amigo de Cuba... e de Portugal, que em Março de 2008 pedia mais professores de português (Luís Graça)

8 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3996: Nino: Vídeos (1): Ouvindo a versão do Coutinho e Lima sobre a retirada de Guileje (Luís Graça)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname


Guiné > Região de Tombali > Posição relativa de Cacine, Gadamael e Guileje, na bacia hidrográfica do Rio Cacine, junto à fronteira sul com a Guiné-Concacri (pormenor). Topónimos assinalados a verde.


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Cacine > Simpósio Internacional de Guileje > Visita dos participantes ao Cantanhez > 2 de Março de 2008 > Cais de Cacine, ao fim da tarde... Cacine é hoje uma povoação decadente... Por aqui passaram importantes contingentes das tropas portugueses, e nomeadamente tropas especiais, como os fuzileiros e os pára-quedistas, nomedamente em Maio, Junho e Julho de 1973, quando o PAIGC lançou uma grande ofensiva contra as nossas posições no sul, em especial no corredor de Guileje: Iemberém, Guileje, Gadamael...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


Capa do livro de Carmo Vicente - Gadamael: memórias da guerra colonial. 2ª ed. Lisboa: Caso. 1985. 110 pp. Prefácio de Manuel Geraldo (*).

Foto: © Jorge Santos (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Leopoldo Amado, datada de 7 de Abril de 2008:

Lendo hoje algo sobre Gadamael, apressei-me a reencaminhar-vos o texto de Vicente Carmo que em tempos enviei ao Pepito e que penso que deve ser publicado, pelo menos rcialmente, no nosso blogue, pois dá uma ideia do que foi Gadamael, depois de Guiledje. Leopoldo Amado



2. Mensagem de Leopoldo Amado, de 17 de Outubro de 2007, enviado ao Pepito:


Assunto: Gadamael, de Carmo Vicente

Caro Pepito,

Segue em anexo o prometido texto de Carmo Vicente,  inquestionavelmente, dos autores mais ousados da grande gama de literatura de guerra existente sobre a Guiné. Ainda há dias, li uma outra coisa dele sobre os crimes de guerra e fiquei estarrecido.

O texto dele traz-nos inclusivamente alguns nomes que nos são familiares como o do nosso compatriota D... (provavelmente parente do jovem sportinguista e Director da Escola de Formação Profissional da AD, esqueço-me do nome) e ainda do nosso Coutinho e Lima [ex-comandante do COP3, à data do abandono de Guiledje, em 22 de Maio de 1973].

Lamento não o conhecer pessoalmente o Carmo Vicente, pois seria uma presença necessária no Simpósio [Internacional de Guiledje], até pela sua frontalidade e sensatez.

Tentei em vão pôr-me em contacto com ele e descobri, através de uma pequena pesquisa na NET, que o homem é agora empresário do sector da construção civil, possuindo, inclusivamente, uma ou várias empresas que laboram no sector do fornecimento de pedras diversas.

Para além de ser extremamente factual, o texto que agora envio é de tal acutilância que também dá uma ideia aproximada da determinação com que o PAIGC, no Sul, teria conduzido o processo que visava desalojar o Exército português de todo o corredor fronteiriço com a República da Guiné.

Não seria provavelmente má ideia colocar este no blogue [Luís Graça & Camaradas da Guiné] e ficar a espera de reacções que certamente enriqueceriam ainda mais os testemunhos sobre o Sul em geral e sobre Guiledje, Balana e Balana Cinho, em particular.

Talvez devêssemos e pudéssemos criar no site do Simpósio uma secção com textos afins, à semelhança, por exemplo, de alguns outros de Idálio Reis, e a transcrição da entrevista de um ou outro ex-combatente do PAIGC (Umaro Djalo, por exemplo), os quais poderiam ir ajudando a balizar as intervenções, tornando-as mais ricas, na medida em que, a partir daí, certamente os intervenientes teriam de fazer um maior esforço para se distanciarem das evidências e dos lugares-comuns.

Abraço,
Leopoldo Amado



3.  1. Extracto de VICENTE, Carmo - Gadamael. Cacém: Edições Ró. 1982, 1ª ed.,  pp. 97-105. .

Excerto enviado pelo historiador Leopoldo Amado. De acordo com a nossa orientação editorial, optámos por não publicar as passagens em que o autor faz críticas ao comportamento humano, disciplinar ou operacional de camaradas seus, incluindo superiores hierárquicos. As passagens omitidas (incluindo aquelas em que o autor indentifica pelo apelido camaradas que têm direito à reserva de privacidade e ao anonimato] vêm assinaladas com parênteses rectos: [...].


Com devida vénia ao autor e à editora. Revisão e fixação do texto, comentários e subtítulos: LG.


Aviso à navegação:

Chega-nos às mãos, graças ao nosso historiador e amigo Leopoldo Amado, mais uma peça para o dossiê Gadamael... Temos aqui falado muito de Guileje e até de Guidaje, mas pouco de
Gadamael

É sabido que estes três G estão associados à escalada da guerra, que se seguiu ao assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de Janeiro de 1973 e precedeu a declaração (unilateral) de independência da Guiné-Bissau em 24 de Setembro de 1973. 

Maio, Junho e Julho de 1973 foram três meses terríveis para as NT, cercadas em Guidaje, Guileje e Gadamael (**).

Este testemunho sobre os acontecimentos de Gadamael são de um 1º sargento paraquedista, Vicente Carmo, da CCP 122/BCP 12 (Guiné, Bissalanca, 1972/74). 

O Vicente Carmo era(é) amigo do Manuel Rebocho, sargento pára-quedista da CCP 123. E é conhecido do Victor Tavares, ex-1º Cabo da CCP 121, que também esteve em Gadamael, entre Junho e Julho de 1973. O Manuel Rebocho (CCP 123) e Victor Tavares (CCP 121) são membros da nossa tertúlia e já aqui nos deixaram testemunhos dramáticos da sua actividade operacional. Parte dos seus depoimentos, relativamente a Gadamael, podem ser cotejados com os do Carmo Vicente (CCP 122). Todo o batalhão, o BCP 12, esteve envolvido na batalha de Gadamael (entre 2 de junho e 17 de julho de 1973).

Ainda não tive acesso ao livro do Vicente Carmo, Gadamael - Memórias da guerra colonial. A última edição, a 2ª, é de 1985 (Editora Caso, Lisboa). Não faço, por isso, uma recensão do livro que não li, limito-me apenas a rever e a fixar o texto que me chegou, e a torná-la mais legível, através da inserção de subtítulos.


 Agradeço ao Leopoldo Amado a sugestão bibliográfica. Devo apenas corrigir uma informação (errónea) que ele nos transmite: a empresa Carmo Vicente Lda, com sede no concelho de Santarém, não tem naada a ver com o nosso camarada paraquedista, cujo paradeiro desconheço. Sei que é DFA. Conforme confirmei pessoalmente, o fundador e sócio-gerente desta firma é um homem muito mais novo (na casa dos 40), que nunca esteve na Guiné e muito menos nos paraquedistas.

O testemunho do Carmo Vicente deve ser lido como mais um contributo, em primeira mão, para o conhecimento de um dos momentos cruciais da Guerra na Guiné, a ofensiva do PAIGC contra o corredor de Guileje, e que começou com a Op Amílcar Cabral, levando à retirada de Guileje pelas NT em 22 de maio de 1973.

Gadamael (bem como Guidaje, a norte) vergaram, mas não caíram. É nosso dever lembrar aqui os combatentes, de um lado e de outro, que morreram nestes ferozes combates... A defesa de Gadamael terá custado cerca de meia centena de mortos, para além de dezenas feridos.

Recorde-se o que na badana do livro, acima citado, se pode ler (*):

"Carmo Vicente é [era em 1985] 1º sargento pára-quedista, tem 38 anos, e participou em 3 comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique. Gadamael é uma narrativa apaixonada, mas profundamente crítica, dessa experiência, constituindo mais uma achega importante para a construção histórica do itinerário colonial de parte significativa da juventude portuguesa, entre 1961 e 1975.

"Sobre Carmo Vicente escreve em prefácio Manuel Geraldo: Ao contrário de vários autores que até agora se debruçaram sobre o mesmo tema, Carmo Vicente possui a vantagem de ter sido mobilizado pela 1ª vez como soldado, acabando por chegar a 1973 na situação de 1º sargento, no comando de um pelotão, precisamente em Gadamael. Logo, viveu o conflito em toda a sua plenitude, como 'actor' em escalões progressivos e com graus de sensibilidade diversa. Embarcado para a Guiné em 1966, com a mentalidade de 'cruzado', Carmo Vicente acabaria por descobrir a verdadeira face dos interesses em jogo e do papel que lhe tinham reservado no palco das operações".
.



Na página não oficial do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº 12 – Unidade e Luta (que ironia: era uma expressão muito querida a Amílcar Cabral...), pode entretanto ler-se o seguinte excerto relativamente à actividade operacional das três CCP, no sul da Guiné, no período em referência:


(...) "Apesar dos esforços a situação na Guiné continua a degradar-se. A pressão que os guerrilheiros vinham exercendo sobre os aquartelamentos no Sul do território começou a dar resultados. Em Maio de 1973 os guerrilheiros desencadeiam fortes ataques a Guileje, obrigando mesmo ao abandono do aquartelamento dos militares do Exército. Nas proximidades, Gadamael Porto fica em posição delicada com flagelações frequentes de armas pesadas.

"A 2 de Junho as CCP 122 e CCP 123 são enviadas para Gadamael, seguindo-se no dia 13 a CCP 121. O próprio comandante do BCP 12, Tenente-Coronel Araújo e Sá, tinha assumido o comando das forças que com a guarnição do Exército constituiram o COP 5.

"A posição de Gadamael Porto é organizada defensivamente com abrigos, trincheiras e espaldões, simultaneamente são desencadeadas acções ofensivas sobre os guerrilheiros. A resistência e a determinação das Tropas Pára-quedistas acabaram por surtir efeito e o ímpeto inimigo foi quebrado - Gadamael Porto não caiu.

"A 7 de Julho as CCP 121 e 122 regressam a Bissau e a 17 é a vez da CCP 123, a operação DINOSSAURO PRETO tinha terminado" (...).


Neste excerto sobre Gadamael, da autoria de Carmo Vicente, fala-se também das misérias e grandezas dos nossos paraquedistas... que não eram deuses nem super-homens, eram apenas homens com o resto das NT (os arre-machos, a tropa-macaca...) e os guerrilheiros do PAIGC. Noutro poste publicaremos algumas mensagens, sobre o livro e o seu autor, que nos mandaram alguns dos nossos camaradas da Tabanca Grande (a começar pelos ex-paraquedistas do BCP 12, o Victor Tavares e o Manuel Rebocho), a quem pedi conselho nestes termos:


"Junto vos envio um excerto do livro do Vicente Carmo sobre Gadamael. É já antigo, esse livro. Chegou-me às mãos, ou melhor, foi-me enviado por e-mail pelo Leopoldo Amado, com a sugestão de ser publicado, no todo ou em parte, no nosso blogue... Acontece que tenho reservas, devido à críticas, muito pessoais, que o autor faz ao comandante do seu batalhão (BCP 12) e a alguns dos seus camaradas... Não sei se são justas ou não... Mas vão contra o espírito do nosso blogue.

"Não conheço o livro nem o autor (de quem já publicámos em 11 de Fevereiro de 2007 uma versão sobre os distúrbios ocorridos em Bissau, em Janeiro de 1968). Gostava de ouvir a opinião dos nossos páras, o Victor e o Rebocho, nossos camaradas do BCP 12 (o Vicente era sargento da CCP 122), mas também daqueles que conheceram, de perto, Gadamael, na época em causa (Maio/Julho de 1973): caso do Casimiro Carvalho, do Jorge Canhão, do Hugo Guerra, do Coutinho e Lima... Mas também do Pedro Lauret... Enfim, também solicito o parecer do A. Marques Lopes e do Nuno Rubim, nossos assessores, bem como do Leopoldo, e dos meus queridos co-editores.

"Interessa-me sobretudo o relato (objectivo, isento ?...) sobre os acontecimentos de Gadamael, e não propriamente os juízos de valor sobre os homens... Podem-me dar-me uma ajuda ?"

Acabei por decidir publicar este excerto, em duas partes, omitindo apenas os nomes dos camaradas (do BCP 12) que são alvo de crítica do autor. Segui, no essencial, os preciosos conselhos dos camaradas a quem pedi opinião (incluindo o Victor Tavares e o Manuel Rebocho, que pertenceram a essa unidade e foram dois valorosos combatentes e orgulhosos pára-quedistas).

O depoimento de Carmo Vicente, em livro sob a forma memorialística, é demasiado precioso e importante para ficar por aí, perdido, nas prateleiras de algumas bibliotecas públicas ou nos armazéns dos alfarrabistas. Divulgando este pequeno excerto, homenagemos o autor, os paraquedistas e os demais combatentes, de um lado e de outro, que estiveram na batalha de Gadamael. E sobretudo os mortos, todos os militares e civis que lá perderam a vida, portugueses e guineenses...

Espero que o autor e o editor sejam condescentes connosco e que aceitem a nossa sugestão de uma nova edição. A 2ª edição remonta a 1985. Sugere-se uma 3ª edição, revista e melhorada. A 1º edição tinha diversos erros e gralhas, por falta de um bom revisor de texto. Gralhas, erros ortográficos e pontuação foram agora corrigidos, nesta versão bloguística (mais uma vez, com a devida vénia...). Uma 3ª edição teria seguramente o apoio do nosso blogue.

Segundo o Victor Tavares, o Carmo Vicente terá sido ferido em Gadamael. Ele leu o livro, mas não conheceu operacionalmente o seu camarada, que pertencia a outra companhia do batalhão (a CCP 122). Não estiveram juntos em Gadamael na mesma altura [a CCP 122 e a CCP 123 foram a 2 de Junho de 1973, partindo de Cacine; a CCP 121 foi mais tarde, a 13; e possivelmente cada companhia do BCP 12 ia com missões distintas]. 

Por seu turno, o Hugo Guerra (que também passou por Guileje e Gadaamel) diz que só conheceu o Carmo Vicente, em Lisboa, na ADFA. "Acho que partiu as duas pernas ao saltar dum heli e é DFA". 

O Manuel Rebocho, por sua vez, diz que é amigo do Carmo Vicente, não leu o livro e está em desacordo com ele em relação a críticas que faz aos seus comandantes.

Se alguém souber do paradeiro do Carmo Vicente, que nos contacte.


GADAMAEL PORTO -Parte I, por Carmo Vicente 

(Com a devida vénia ao autor e à editora)
Ficha do livro:

Titulo do livro: Gadamael
Autor: Carmo Vicente
Editora: Edições Ró
Ano de Publicação: 1982
Local de publicação: Cacém
Páginas referentes ao extracto (I e II Partes), enviado pelo Leopoldo Amado.: pp. 97 à 105.



Gadamael (**) era uma pequena aldeia, situada ao sul da Guiné-Bissau, entre Cacine e Guileje, a escassos três quilómetros da fronteira com a Guiné Conacri. Todo o aldeamento era fortificado. Fora construído pelas forças ocupantes, com a finalidade de controlar a população que, assim, ficava a fazer parte do quartel e sujeita a um regulamento rigoroso, quase militar.

À noite, ninguém podia sair ou entrar no aldeamento. O recolher obrigatório era permanente e começava ao anoitecer, para só acabar com a manhã. Nesse espaço de tempo, quem se aproximasse, podia ser morto, por ser considerado inimigo.

Era, por assim dizer, uma população resignada à sua sorte. Permanecia ali, porque sabia por experiência própria que a vida lhes era mais fácil apesar de tudo, ali do que no mato, onde toda a gente era considerada inimigo, sujeitando-se a ver destruídos os seus haveres, ou ser queimada pelo napalm, que os aviões despejavam todos os dias, sobre a terra mártir da Guiné.

Para além disso, se caíssem prisioneiros, iam sem dúvida parar as mãos da PIDE, coisa nada agradável, pois o tratamento dado por aquela polícia aos prisioneiros era simplesmente brutal.

O facto de se sujeitarem à protecção da tropa, não os transformava contudo em gente dócil e de maneira nenhuma conivente com ela. E muitas vezes era através da população civil que o PAIGC tomava conhecimento de todos os nossos movimentos: saídas para patrulhamentos, efectivos existentes, armamento usado, nomes dos militares mais graduados e por vezes, até, a sua situação familiar.


(i) CCP 122/BCP 12: Os pára-quedistas na segurança da nova estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém


Quando em abril  de 1973
 [lapso de memória do autor, deve ser junho de 1973]   cheguei a Gadamael, integrado na Companhia de Caçadores Paraquedistas n.º 122, toda a população tinha fugido para o mato ou talvez, e isso é o mais plausível, para a vizinha Guiné, abandonando o aldeamento-quartel, devido aos bombardeamentos constantes do PAIGC. No quartel haviam ficado apenas os militares que constituíam o batalhão ali destacado: uns duzentos homens, entre combatentes e pessoal dos serviços.

Era assim Gadamael Porto. Um local nada agradável, onde eu e mais algumas centenas de camaradas passámos os quarenta mais longos dias, das nossas vidas. Onde muitos caíram para nunca mais se levantarem e outros se estropiaram física e moralmente para o resto dos seus dias.

A minha companhia tinha regressado de uma missão de combate que durara três meses. Em Cabochanque e Cadique tínhamos sofrido alguns mortos e feridos enquanto fazíamos a protecção dos trabalhadores que construíam a nova estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém. Uma distância de pouco mais de treze quilómetros que nos ficou à razão de um morto por quilómetro. Ali, vários bons camaradas pagaram, com a vida, aquela obra de fachada estratégica mais que duvidosa, de Spínola.

Entre os mortos, contava-se o meu amigo Teixeira, de Carrazedo de Montenegro [ Valpaços, Vila Real] [...] (***).


(ii) Ordem para partir para Gadamael

Encontrávamo-nos terrivelmente cansados, depois daqueles três meses de mato e como seria lógico iríamos descansar. Era o que nós pensávamos. Porém, não era o que pensava o nosso comandante de Batalhão [...].

 Quando chegamos a Bissau, encontramos o comandante à nossa espera. Disse-nos sem grandes rodeios, que nos preparássemos para ir imediatamente para Gadamael Porto. A tropa ali estacionada precisava de nós e não podíamos, nem devíamos, regatear essa ajuda.


(iii) Sabíamos que Guileje tinha caído


Sabíamos o que se estava a passar em Gadamael Porto. Depois da queda da nossa posição fortificada de Guileje, o PAIGC, explorava agora aquele ponto, tentando varrer-nos progressivamente daquela zona que considerava libertada.

Sabíamos que Guileje tinha caído. Nem um só dos nossos homens o ignorava, apesar das informações nesse sentido serem o mais camufladas possível. Sabíamos que o major [ Coutinho e Lima,] que comandava a força ali estacionada, depois de várias apelos a Spínola para lhe mandar ajuda e ter recebido deste, apenas negativas e porque verificou que se ficasse mais um dia que fosse, naquele local, seria massacrado inutilmente, resolveu por sua conta e risco poupar a vida dos seus homens e a sua, abandonando aquela zona, transportando consigo apenas o material de guerra que uma tropa arrasada física e moralmente podia humanamente transportar, através de uma mata rasteira e extremamente cerrada.

Todos os militares que na Guiné davam o corpo ao manifesto apoiaram moralmente a atitude corajosa do comandante do aquartelamento do Guileje. No entanto, Spínola parece não ter sido da mesma opinião, ao mandar prender aquele militar que mais não fez do que livrar de morte certa ou do aprisionamento os militares que comandava, não os deixando morrer pela pátria, nem entrar na galeria dos heróis mortos e esquecidos.


Guiné >Região de Tombali > Gadamael - Porto > s/d [anterior ou posterior a Maio/Junho/Julho de 1973 ? ] > Tabanca, reordenada pelas NT.

Foto: Autores desconhecido. Álbum fotográfico Guiledje Virtual. Gentileza de: ©
AD -Acção para o Desenvolvimento (2007).


(iv) Bico calado: tínhamos mais medo da prisão do que dos guerrilheiros do PAIGC


Era realmente necessário, ajudar de qualquer maneira, os nossos camaradas de Gadamael. Tinham sofrido já vários mortos e feridos que era preciso evacuar o mais rápido possível. Nós sabíamos tudo isso e não podíamos, como militares e combatentes que éramos, negar-lhes essa ajuda. [...]

 Ninguém de entre nós, estava esclarecido politicamente, o estritamente necessário, para esboçar sequer o mais leve indício de recusa. Todos os camaradas tinham mais medo da prisão do que dos guerrilheiros do PAIGC. Apesar de com estes terem mais probabilidades de morrer, havia sempre a possibilidade de escapar e com a PIDE, nunca se sabia, o que poderia acontecer. Era deste medo colectivo, de desobedecer a uma hierarquia retrógrada, que os grandes senhores se iam governando. Aumentando louvores e galões de mistura com cruzes de guerra e torres espadas, que ultimamente eram distribuídas a indivíduos que nunca tinham posto uma mochila às costas e nunca saíram do ar condicionado dos quartéis-generais.


Guiné > Bissau > A LGF Lira > Os danos no convés, no rufo da casa das máquinas e nos botes de borracha (zebros) dos Fuzileiros... "Em 13 de Janeiro de 1968, a LFG Lira que escoltava a LDG Alfange, depois de ter transportado 3 companhias de FT de S. Vicente para Binta, foi violentamente atacada no Tancroal com RPG, sendo atingida na ponte e no rufo (cobertura) da casa das máquinas. O resultado, além dos estragos materiais, foi dramático: 1 morto e 8 feridos, alguns deles em estado grave, sendo 2 evacuados de helicóptero e 3 de Dornier" (MLS).

Foto e legendas: ©
Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.


(v) De noite, de LDG, de Bissau a Cacine com 30 salgadeiras a bordo…


Saímos de Bissau, numa lancha de desembarque grande (LDG) com rumo a Cacine. Levámos connosco apenas o equipamento necessário para quatro dias. Tempo previsto para a operação que, segundo nos informaram à partida, se destinava a evacuação de toda a tropa e equipamento existente em Gadamael Porto. Tínhamos, segundo a voz do comando, que aguentar a segurança do aquartelamento até a completa retirada do último soldado do Exército. Findo esse trabalho, regressaríamos a Bissau e poderíamos então descansar.

Poucos de nós, acreditavam ainda, nas lindas promessas que nos vinham de cima e na parte que me toca, confesso, que não acreditava mesmo nada.  [...] Por isso também daquela vez, não acreditei que a estadia em Gadamael iria ser tão curta como nos queriam fazer crer.

O trajecto entre Bissau e Cacine, foi feito de noite, com todas as luzes apagadas para maior segurança. Os ânimos iam bastante exaltados. Talvez contribuísse para isso a proximidade de três dúzias de salgadeiras (urnas funerárias) que, sem nenhuma preocupação para ocultar a sua presença, viajavam, silenciosamente macabras, no mesmo transporte e apenas a alguns passos de nós. As urnas, ali naquele local e em tão grande quantidade, constituíam a prova irrefutável que as coisas em Gadamael Porto, estavam mesmo feias, levando alguns de nós, se não todos, a pensar que dentro de poucos dias ou até horas poderiam ir ocupar tão sinistras habitações.


(vi) Perdida a ilusão da superioridade de se ser pára-quedista


Ainda durante a viagem, começaram os protestos dos soldados, por não lhes ter sido dado tempo de descanso prometido. Na sua esmagadora maioria, estavam-se absolutamente nas tintas para a vitória ou a derrota de uma guerra onde tinham sido integrados contra a sua vontade e não lhes interessava mais do que safar a pele, o mais inteira possível. Estavam-se nas tintas para as condecorações e louvores. Foram voluntários para os pára-quedistas, porque lá na aldeia onde sempre viveram lhes tinham dito que lá é que era bom. Que havia boa comida e que teriam uma farda muito bonita e uma boina verde. Que saltariam de paraquedas e que as raparigas se pelavam pelos páras. 

Agora, porém, perdida a ilusão da superioridade (alimentada por vezes, até ao ridículo, pela hierarquia) em relação aos seus camaradas das outras armas a quem chamavam arre-machos, arrependiam-se de não ter optado pela farda verde azeitona e pela boina castanha dos homens do Exército. Se ainda lutavam, era simplesmente animado pelo afã de não morrer. Borrifavam-se nos amores pátrios e para uma guerra que não sentiam como sua, feita numa terra estranha que não tinha nada a ver com a sua verdadeira Pátria.

Nos últimos anos de guerra, deram-se condecorações e louvores, a combatentes e não combatentes e forjaram-se, criaram-se inventaram-se heróis. A Ditadura estava aflita e as medalhas eram o material mais barato para comprar o sangue e as consciências. E houve tantos que venderam a consciência e o sangue dos outros por um miserável pedaço de metal ou mais uma estrela, ou mais um risquinho amarelo nos ombros...


(vii) De Cacine para Gadamael, em LDM e zebros, e de capacete!


Depois de várias horas de LDG, chegamos a Cacine e ai começámos a aperceber-nos do perigo real que nos esperava no local para onde inexoravelmente nos estavam a empurrar. Ouvia-se nitidamente, o bombardeamento a que Gadamael estava a ser sujeito, provocado pelas armas pesadas que o PAIGC possuía em abundância. Ao ouvir aqueles rebentamentos, que nos soavam aos ouvidos de forma quase ininterrupta, os soldados vinham perguntar-me:
- Meu sargento, acha que este fogo é nosso, ou dos turras?

À esta pergunta eu dava invariavelmente a mesma resposta, dizendo que não, que aqueles rebentamentos, não eram provocados pelos turras, mas por nós, que eram os nossos obuses 14 em acção. Eu sabia que estava a mentir. Mas que podia eu responder àqueles homens assustados, se lhes dissesse o que pensava daquela situação? Ficariam de certo ainda mais aterrorizados.

Eram aproximadamente dez horas da manha quando saímos de Cacine com rumo a Gadamael. Desta vez o transporte foi feito em LDM (lancha de desembarque médio), que por serem mais pequenas eram mais facilmente manobráveis no rio que ia estreitando à medida que penetrava em terra. Conforme nos aproximávamos ia-se também acentuando o nosso nervosismo que, em alguns de nós, era já perfeitamente visível. Levaríamos connosco, o equipamento necessário para dois dias. Tudo o resto ficou nas LDM.

A quatro ou cinco quilómetros de Gadamael Porto, passamos ordenadamente das LDM para os Zebros (botes de borracha com motor fora de borda) dos fuzileiros. A partir dali, era extremamente perigoso continuar nas lanchas. Os Zebros, muito mais pequenos e de fácil manobra, permitiam-nos um desembarque rápido debaixo de fogo.

Pela primeira vez, desde há muitos anos, foi ordenado o uso do capacete, que apenas tinha sido usado nos primeiros meses da guerra em Angola. Fiquei irritado com esta ordem. O capacete é, neste estilo de luta, um apêndice que não se justifica de modo nenhum e que não compensa o esforço que o combatente despende para o aguentar. Pensei, com uma certa dose de humor negro, que a ordem para usar capacete mais não servia senão para nos dar um aspecto mais viril e mais guerreiro, frente aos militares que em Gadamael, perfeitamente desorganizados, corriam em todas as direcções e tentavam meter-se à força nos barcos que nos levavam a nós.


(viii) Gadamael parecia um filme do Vietname, com o aquartelamento e a tabanca praticamente destruídos


Chegámos ao cais uns atrás dos outros, e desembarcámos debaixo de uma saraivada de morteirada de cento e vinte milímetros, correndo sempre em direcção às valas que circundavam o quartel que, apesar de mal feitas e pouco profundas, sempre ofereciam mais abrigo do que o terreno plano junto ao cais.

De relance analisei a situação: todo o quartel e aldeamento circundante estavam praticamente destruídos. As granadas de morteiro de cento e vinte milímetros, os foguetões de cento e vinte e dois, que continuavam a explodir por todo o lado tinham dado ao quartel um aspecto quase lunar com crateras por todos os lados. Das instalações do quartel, apenas um ou dois edifícios ainda se mantinha teimosamente de pé, apesar de muito danificados. O que vi nos primeiros minutos deixou-me impressionado. Nunca até aí eu vira nada semelhante, nem sonhara sequer que aquilo fosse possível, naquele tipo de guerra. Parecia um filme rodado no Vietname.

Entretanto, os bombardeamentos continuavam sempre com redobrada intensidade, obrigando-nos a permanecer na vala, quase sem hipótese de pôr a cabeça de fora sem correr o risco de a perder. A experiência que já tinha de situações anteriores dava-me a certeza de que tínhamos ali uma bota difícil senão impossível de descalçar.

Os soldados estavam aterrorizados e só poucos ainda mantinham um certo sangue-frio, frente a situação. A contestação era geral. Não contra os guerrilheiros que nos combatiam, mas sim contra quem nos tinha metido naquela embrulhada. Contra os que tinham ficado em Bissau na sombra agradável dos gabinetes, indiferentes à nossa sorte. Contra os que diziam que uma guerra não pode ser feita sem baixas esquecendo-se que se na realidade nas guerras tem que morrer soldados, sargentos e capitães, também logicamente terão de morrer coronéis e generais. Naquela, infelizmente isso não acontecia e só por essa razão durava já havia doze longos anos.

Os soldados perguntavam o que faziam ali, numa guerra estúpida, lutando contra um inimigo que nunca viam e nem sequer odiavam. Não obtinham resposta. Aqueles que lhe podiam responder, tinham ficado na retaguarda como abutres a espera de poder saborear os louros da vitória ou enjeitar a derrota. Culpando-nos, se a última acontecesse, de falta de combatividade, de coragem, ou eu sei lá que mais para assim poderem fugir aos fracassos de operações mal planeadas.

Que poderiam perceber de contra-guerrilha, homens que nunca tinham posto os pés no mato e cuja teoria e táctica da mesma não ia além da aprendida num casarão da Gomes Freire ou da Amadora ou ainda em alguns manuais feitos pelos generais da brigada do reumático, agarrados possivelmente a normas antigas de fazer a guerra que pouco tinham evoluído desde a batalha do Buçaco. É que muito possivelmente nem saberiam distinguir muito bem, entre o efeito destruidor de uma bomba de foguete desses utilizados nas romarias e uma granada de morteiro de cento e vinte milímetros? E para que haviam os nossos generais-guerrilheiros-improvisados responder a um simples soldado que, apesar de contestatário, lá ia combatendo, dando a vida para que eles pudessem comprar mais um automóvel de luxo e as mulheres e amantes pudessem continuar nas canastradas com as mulheres e amantes dos ministros e outros quejandos?


(Continua > Gadamael - Parte II >
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)

(...) "1º Sargento Paraquedista Carmo Vicente (...) participou em três comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique.

"O testemunho do Sargento Carmo Vicente [sobre os tristes acontecimentos de Bissau, em Janeiro de 1968,] consta na obra Gadamael de sua autoria, das Edições Caso (2ª edição), de Julho de 1985 (páginas 25 a 30).

"Para além da referida obra, Carmo Vicente é também autor de Grades de Novembro, Gritos de Guerra, A Sentença, Era uma vez... 3 guerras em África, entre outras.


(**) Sobre Gadamael, vd. os seguintes postes:

2 de Julho de 2005 >
Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)

2 de Dezembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) (Magalhães Ribeiro)

15 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

(...) Trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso (Público, 26 de Junho de 2005) (...)

(...) A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As suas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael. (...)

...) "Seriam uma oito da manhã de 2 de Junho [de 1973] quando a Orion chegou ao largo de Cacine. Foi a essa hora que também chegaram as notícias dos acontecimentos que tinham estado na origem daquela missão.

(...) "O major Pessoa, do batalhão de pára-quedistas [BCP 12] que se encontrava em Cacine, subiu a bordo da Orion e explicou o que se estava a passar: a guarnição de Guileje, um quartel situado numa zona próxima da fronteira com a Guiné-Conakri, tinha sido alvo de ataques fortíssimos e o comandante da unidade, [major] Coutinho e Lima, sem reforços, sem apoio de tropas especiais, sem meios de evacuação de feridos e mortos, decidira retirar do quartel e evacuar todo o pessoal para Gadamael. Foi imediatamente preso e enviado para Bissau às ordens de Spínola. Gadamael estava agora debaixo de fogo intenso e de alta precisão.

"O retrato da situação em Gadamael feita pelo major Pessoa era caótico. 'As últimas indicações indicavam que de um conjunto de efectivos de quase três companhias, só se encontravam no quartel a defender aquela posição cerca de 30 homens. Os restantes e a população encontravam-se em fuga pelas margens do rio', recorda Pedro Lauret.

"A reacção de Spínola à deserção anunciava-se tremenda. O major Pessoa informou então os comandantes do Orion que tinha estado de manhã em Cacine e Gadamael por brevíssimos instantes e tinha proibido o socorro a quaisquer militares em fuga, considerando-os 'uns cobardes'.

(...) "Apesar das ordens de Spínola, a disposição do major Pessoa era outra. 'Informou-nos da urgência de ir socorrer esse pessoal devido ao elevadíssimo risco em que se encontravam. Frisou-nos que se não estivéssemos dispostos a ir contra a determinação do general ele próprio tentaria recuperar os militares, nem que fosse em canoas', afirma Lauret.

"A determinação do major Pessoa, que volvidos trinta e dois anos não quer falar sobre os acontecimentos de Gadamael, percorreu todo o navio. O Orion partiu de imediato em auxílio das tropas fugitivas e nada comunicou ao Comando da Defesa Marítima " (...).

15 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte).

(...) Um momento alto do encontro do nosso 1º encontro na Ameira [em 2006] foi a evocação da LFG Orion por parte do ranger Casimiro Carvalho: foi através do nosso blogue que ele soube, trinta e três anos depois, que, além dos pára-quedistas [do BCP 12], houve outros anjos da guarda no princípio do mês de Junho de 1973, a guarnição da LFG Orion, representada na nossa tertúlia e no encontro da Ameira pelo comandante Pedro Lauret, na altura oficial imediato do navio (...).

(...) "Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1º cabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.

"A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho, porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca, se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine" (...).


5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

19 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)

(...) "Depois de regressada do inferno de Guidaje, a CCP 121 encontrava-se estacionada em Bissalanca, gozando um curto período de descanso, após a desgastante acção que tivera no norte da província.

"Daí o Comando Chefe entender que os 4 a 5 dias de descanso concedidos já eram demais e ser necessário o reforço das nossas tropas aquarteladas em Gadamael por se encontrarem em grandes dificuldades. Acaba, por isso, por dar ordens para rumarmos a Gadamael, para onde partimos a 12 de Junho de 1973.

"Partindo de Bissau em LDG [Lancha de Desembarque Grande] com destino a Cacine, lá chegámos a meio da tarde deste mesmo dia. Como a lancha que nos transportava, não conseguia atracar ao cais por falta de fundo, fomos fazendo o transbordo por várias vezes em LDM [Lanchas de Desembarque Médias] para aquela localidade.

(...) "No dia 13 de Junho, de manhã cedo, preparámo-nos para rumar a Gadamael, sendo transportados em Zebros do Destacamento de Fuzileiros Especiais Africanos nº 21, dois grupos de combate sendo colocados nas margens do rio nas proximidades de Gadamael para onde seguimos em patrulhamento depois de serem desembarcados os outros dois grupos de combate da 121 que foram deslocados em LDM. No regresso, as embarcações seguiram para Cacine com os pára-quedistas da CCP122, aonde iriam recuperar durante um curto período" (...).

25 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

18 de Junho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

25 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2481: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (11): Malan Camará... e a maldição dos 3 G + 1 J (Manuel Rebocho)

27 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

7 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

30 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2801: Fotos e relatos de Gadamael, Maio / Julho de 1973, precisam-se (Nuno Rubim)

(...) "Como estou, como é vulgo dizer com a mão na massa, também penso realizar algumas pequenas pesquisas sobre outra saga, desta vez Gadamael.

"Já tenho o levantamento de todas as unidades que por lá passaram, mas naturalmente o que mais me vai ocupar é o período de Maio a Julho de 1973.

"Também seria muito interessante tentar fazer um esboço do que teria sido o aquartelamento nessa altura, sem abrigos blindados como os que houve em Guileje e Gadembel ...Só valas e trincheiras a céu aberto !" (...)

(***) David Ferreira Teixeira, Sold Pára-quedista, da CCP 123/BCP 12, morto em 14 de Abril de 1973.