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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8696: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (6): O desembarque


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



VI - O DESEMBARQUE

Dia 2
Vinte e duas horas e quinze minutos... Lisboa à vista... Ao longe, quase no limiar do horizonte, vislumbram-se já as luzes da cidade, talvez as da zona mais alta. Vista de longe e do mar, a cidade mais parece uma cascata enorme, suspensa no horizonte distante. Hoje, ao longe, a bela cascata aparece diluída por entre uma ténue neblina que transmite às luzes uma beleza especial.

O jantar foi melhorado e houve discursos na sala. Discursos! Esta gente gosta muito de discursos... De abrir a boca... Falar... Falar... E não dizer, em rigor, praticamente nada... Mas isto faz parte da praxe. Uma viagem destas não pode terminar sem que os maiorais botem faladura.

O desembarque será pelas oito horas de amanhã.

Está previsto haver desfile às dez horas. A farda a usar durante o desfile já determinaram que será a seguinte:
- Camisa com manga arregaçada, desabotoada no pescoço, calça verde e botas pretas.

Estes parvos esqueceram-se que estamos no Inverno e que vai fazer muito frio. O tórrido calor da Guiné faz já parte de outro mundo e de outra realidade e o ar condicionado do barco não se pode levar para as margens do Tejo... Mas esta tropa pensa apenas na cerimónia que, se não se fizesse, ninguém se lembraria dela. Eles querem por certo mostrar aos jornalistas o regresso dos heróis... Mas os heróis preferiam que os deixassem em paz, poupando-os pelo menos ao incómodo de os exporem ao frio e à humidade de uma manhã de Fevereiro, aqui nas margens sagradas do Tejo. Continuam a ser burros até ao fim... Isto é incrível!

Vista nocturna da Ponte 25 de Abril, à época, Ponte Salazar
Foto: © Jaime Machado (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

Dia 3
A alvorada está perto. O barco desliza lentamente Tejo acima... Passou já sob a ponte e prepara-se para atracar.

Os marinheiros efectuaram já as últimas manobras... O barco já se encostou ao cais.

Em terra, uma grande multidão de pessoas aguarda a nossa chegada. Há emoção dentro e fora do barco. É um momento grande e indizível... Todo este ambiente, que aquece um pouco esta manhã fria, tem qualquer coisa de épico! São uns minutos longos estes que antecedem a ordem para desembarcar. Mas são também momentos feitos de grandeza... De tudo isto ninguém se poderá jamais esquecer. Os heróis vão ter uma recepção à altura dos feitos que praticaram...

No edifício da Alfândega agitam-se muitas bandeiras coloridas. Há, também, levantados no ar, cartazes, bastantes cartazes, com o nome das pessoas que estão para desembarcar. Há, também, uma multidão de pessoas que agitam no ar muitos lenços brancos. Dentro e fora do barco, há uma onda de alegria, uma onda enorme, que varre toda a margem do rio. Há uma grande multidão à nossa espera. Somos os heróis que muita gente quer ver chegar. Finalmente somos alguém... Alguém que merece aplausos... Palmas, muitas palmas...

No barco, a tropa está toda nos tombadilhos, do lado do cais. O Quanza está mesmo inclinado para o lado da margem do rio. A rapaziada dá gritos de alegria, de entusiasmo e de paz. Por entre esta neblina matinal, húmida e leve, vai crescendo uma onda de delírio e de festa. O ambiente é mesmo impressionante... Grande... Indizível... É um ambiente festivo, de alegria a transbordar dos corações de toda esta gente, quer dentro, quer fora do barco. Uma grande algazarra ecoa por toda esta zona, não deixando ninguém indiferente.

Já é dia. Nenhuma distância nos separa da muralha do cais.

Porto de Lisboa > Estação Marítima de Alcântara > Momento da atracação do navio

Porto de Lisboa > Placa da Estação Marítima de Alcântara > Multidão aguardando a chegada de Militares, em fundo a Ponte Salazar (hoje 25 de Abril)

Porto de Lisboa > Placa da Estação Marítima de Alcântara > Multidão aguardando a chegada de Militares.
Fotos: © Américo Estorninho (2010). Direitos reservados

Chegou a ordem para abandonar o barco. As bagagens também estão a ser descarregadas.

Finalmente estamos todos em terra.

Em mangas de camisa o pessoal formou para o desfile. Todos tremem de frio... Esta primeira manhã de contacto com o céu do meu país, é uma manhã gélida, repassada de humidade. Mas, que importa? É o último dia do martírio a que fomos submetidos. O último sacrifício que bem podia ser evitado... Para que uns militares de alta patente, dos que enxameiam o Estado Maior, ou os quartéis de Lisboa, ou talvez algum ministro mais madrugador, possam assistir a um desfile, corremos nós o risco de apanhar uma gripe, para a qual a tropa já se está lixando. Mas, para esta gente de cá, o desfile deve ser uma coisa muito importante.

Estes políticos adoram estas cerimónias, o barulho destas fanfarras, todo este aparato, que tem, queira-se ou não, um sabor a nobreza, algo de grande e impressionante. E esta população de Lisboa habituou-se já a estes passa tempos, sem os quais já se não habitua a viver.
Foi sempre assim aqui em Lisboa. São barcos que partem para longe... E são barcos que chegam, também de longe... E é uma população de curiosos para ver quem chega... E de “Velhos do Restelo,” para ver quem parte...

Este frio que estamos a suportar é para eles motivo de prazer... Talvez mesmo de êxtase...
O último sacrifício dos heróis enche-lhes a alma. Quanto maior é o sacrifício de uns, maior é o prazer de outros. Eles olham este desfile quase com delírio.

E tudo acabou...

O pessoal entrou nas viaturas militares e está a caminho da Amadora, onde vai ser desmobilizado. Já passa do meio da tarde... O espólio está feito. Todos entregaram os reles farrapos que já eram as fardas que lhes tinham sido distribuídas, faz já muito tempo, e que o muito uso há muito inutilizou. Mas na tropa ainda se controlam farrapos que não servem para mais nada.

...E cada um para a sua terra, os soldados lá foram partindo... Uns, no meio do afã da entrega do material, nem tiveram tempo para despedidas... Outros, até viajaram no mesmo comboio, para o mesmo destino...

E tudo terminou...

Depois do nosso desembarque vai ter lugar a descarga de tudo quanto é transportado nos porões do navio. Muitas coisas, por certo. E entre tudo o que é transportado como mercadoria devem chegar, ao que se diz, muitas urnas com os restos mortais de soldados mortos, que depois são enviadas para as localidades donde eram naturais, e onde se devem realizar as cerimónias fúnebres. Tudo deve decorrer sem dar nas vistas, como acontece com a generalidade das mercadorias transportadas. Para esses não vai haver a euforia, nem a consagração, nem as ovações a que os vivos tiveram direito. Eles vão fazer a última caminhada em direcção ao esquecimento final. É que para os mortos nada mais pode haver do que o esquecimento... Sim... porque os vivos raras vezes temos memória... E às vezes é mesmo conveniente que a memória não exista...
Quantos não desejarão, enfim, que a memória se apague! (1)

São muitos, pelas aldeias do país, os funerais quase incógnitos e despercebidos, que se vão realizando, em cerimónias simples, com o único ruído causado pelos tiros de pólvora seca, as salvas de tiros que precedem o repouso eterno dos seu restos mortais.
Soldados desconhecidos, heróis de um império agonizante, quem será capaz, amanhã, de os recordar?

Aos mortos da Companhia de Caçadores n.º 1546, que tombaram em condições diversas, por terras da Guiné, fica em homenagem ao seu sacrifício, esta modesta página de um livro, que eles também ajudaram a escrever.
Que tenha Deus em sua glória as suas almas!

E, a partir do Quartel da Amadora, a tribo muito unida que fomos espalhou-se rapidamente, em todas as direcções, num adeus de saudade.
Que não seja uma separação para sempre. De qualquer forma estes momentos foram o fim de uma longa e difícil caminhada que ninguém estará interessado em repetir, mas que também, por certo, ninguém jamais irá esquecer.

E guerra nunca mais. E que reste em nós apenas a memória de tudo quanto foi bom e de tudo quanto foi mau, porque tudo foi vida.

Que fique apenas a amizade construída na alegria e na dor de tantos longos dias que a tornam profunda e inesquecível.
Que ninguém mais esqueça o camarada que caiu a seu lado!
Que ninguém mais esqueça o amigo de todos os dias, junto de quem sofreu e lutou!
Que ninguém mais se esqueça, apesar de terrível, pelas suas lembranças, de uma terra chamada Guiné.

Sim... Porque foi por causa da Guiné que existiu um dia um grupo de homens, a que deram o nome de Companhia de Caçadores n.º 1546!

Se não fosse a Guiné, e a guerra, enquanto conjunto de homens, nunca chegaríamos a existir...
... E sem nós... Sim... Sem nós, Portugal e a própria humanidade, teriam menos história e seriam muito mais pobres! E até as nossas vidas teriam sido outras... Quem sabe... Até mais curtas e penosas...

(1) - Joaquim Vieira, na obra, “Portugal Século XXl,” Crónica Em Imagens, 1960-1970, Ed. Círculo dos Leitores, Pag. 52 e seguintes, num pequeno texto ilustrado com uma série de imagens, refere-se, de forma elucidativa, a este tema.

(FIM)


E não admito haja qualquer musa,
Feita mesmo de Whisky ou de bagaço,
Venha com sua voz de intrusa,
Cantar feitos de quem só foi palhaço.
É isto que em Guidage, agora, se usa,
Pois mais ninguém, aqui, já foi “bibaço.”
Fuzilarei as musas engenhosas,
Que apregoem feitos de outrem, mentirosas.
E vós, bebidas finas, desejadas,
Do meu verso fiéis inspiradoras;
Vós, bebidas santas, abençoadas,
Do patacão desta gente roubadoras,
Hoje, infelizmente, quase esgotadas,
E por quem choramos, belas senhoras.
As mãos possantes daqueles que vos bebem
Na guerra de medo nunca tremem.
E vós, ó bem firmada confiança, (2)
De Guidage perfeita liberdade,
Destruição do turra e sua esperança,
Etérea protecção desta cidade,
E do meu reino feliz segurança,
Grande maravilha desta idade,
Rogai a Deus que nos deixe cá ficar,
Até de todo o Whisky se esgotar.
E vós, ó capitão indesejado,
Das tropas lá de Binta comandante,
Muito temido, sim, mas não amado,
Que desejamos ver sempre distante
Do reino de Guidage tão sagrado.
Ficai por aí, alegre e radiante,
De tantas azelhices praticadas,
E deixai deste reino sossegadas
As tropas e as gentes generosas.
Se não vierdes cá nos chatear,
Com artimanhas tolas e maldosas,
Que sois tão hábil, sempre, a inventar,
As tropas de Guidage, volorosas,
Sempre de vós, senhor, se vão lembrar.
Ficai, senhor, em Binta sossegado,
P’ra serdes neste reino bem lembrado.


(2) Os Pernas D’aço, 3.º Pelotão da Companhia de Caçadores N.º 1546.

Guidage, em Agosto de 1966
____________

Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

Vd. postes da série de:

8 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois

10 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968

13 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8666: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (3): O último susto

16 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8679: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (4): O último azar
e
20 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8688: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (5): A viagem

sábado, 20 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8688: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (5): A viagem


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



V - A VIAGEM

Olhei o cais e senti saudades. Saudades desta Guiné que para mim conta apenas como dia de ontem, da pequena cidade de Bissau, a quem o exército empresta vida e movimento, das bolanhas, dos pântanos e dos rios de águas turvas e insalubres.

Senti saudades dos amigos que, no cais, pensativos e tristonhos, ficaram a olhar o barco que se vai afastando no horizonte. E muitos deles bem que já mereciam o prémio do regresso.

Lembrei-me dos que tombaram em combate, vitimados por uma guerra cruel que lhes roubou o sangue e a vida. Uma guerra para onde os empurraram e que sem fé e convicção tiveram de fazer. Eles pagaram um tributo elevado à pátria e ao destino. Pagaram dando a vida... Pagaram dando o sangue.

E recordei-me dos que caíram vitimados por enfermidades contraídas nesta terra que já vou a perder de vista, por falta de uma assistência médica aceitável, ou de uma alimentação que lhes permitisse manter ou criar as forças suficientes para resistir às agruras da vida e às inúmeras doenças tropicais.

E lembrei-me dos que, doentes ou feridos em combate, regressaram antecipadamente à metrópole, em busca de repouso e tratamento.

E lembrei-me, também, com muita mágoa, da malvadez humana que vi e senti um pouco por todo o lado, em grande parte responsável por muito do sofrimento destes homens agora embarcados, e pelo desaparecimento, até, dos que a morte ceifou ingloriamente.

E lembrei-me, também, de um povo rude e generoso, junto de quem vivemos, a quem a tropa ajudou a minorar os efeitos da miséria e do atraso em que vive, mas povo que nos ajudou, também, às vezes com enorme sacrifício, a viver os nossos tristes dias.

Lembrei-me! É que todos nós, menos a população, fizemos, mas em sentido inverso, esta mesma viagem... E naqueles dias todos sonhávamos neste regresso a que alguns, a sorte determinou que não chegassem... Mas, o critério a que obedeceu essa escolha é algo que permanece inacessível ao alcance do nosso pensamento ridículo e limitado...

Ao entardecer o Sol pôs-se por entre nuvens e vapores, num ambiente pesado e quente, sem brilho e beleza que mereçam uma referência especial.

Guiné > Bissau > s/d > Ponte-cais, Bissau. Em primeiro, vê-se o monumento a Diogo Cão. Bilhete Postal, colecção "Guiné Portuguesa, 110". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).


Dia 26
Vi o Sol nascer, com um brilho maravilhoso a pratear as águas do oceano em toda a dimensão do horizonte.
O navio prossegue, mar além, muito lentamente, embalado em ondas de águas serenas, a sua viagem, que é também a nossa viagem. A bordo reina a boa disposição. Vamos todos a caminho do destino mais desejado de sempre. Há, no entanto, pessoal enjoado. Mas a esperança de chegar faz esquecer todos os pequenos sofrimentos e contratempos.

O que interessa é mesmo que o barco viaje muito depressa e ultrapasse este mar sem fim que nos separa de um destino cada vez mais próximo. É que agora todos acreditam mesmo que o tempo dos problemas e dos azares imprevistos chegou mesmo ao fim.


Dia 27
Pouco depois do meio-dia avistámos ao longe um barco a navegar na nossa direcção. Quando se aproximou verificámos que se tratava de um barco de guerra português.

Pelas treze horas, muito ao longe, começou a ver-se uma neblina bastante densa. Pouco depois, de entre essa névoa, começou a surgir a ilha do Sal, do arquipélago de Cabo Verde.
Era esta neblina que no tempo das descobertas indicava aos mareantes a proximidade das terras que descobriam.

Pelas três horas da tarde o barco fundeou em frente da ilha do Sal. Seguidamente, desembarcou um pequeno contingente de tropas, destinadas à guarnição local, e embarcou outro com destino à metrópole. O embarque e o desembarque decorreram em péssimas condições e com um mar bastante agitado. Aliás, quer o embarque quer o desembarque tiveram lugar em pleno oceano, já que o barco não tem condições de acostagem.

Pelas vinte e duas horas o Quanza levantou ferro e navegou para Norte, rumo ao mar português, ainda mar distante.

Ilha do Sal - Cabo Verde
Foto retirada do site Panoramio, com a devida vénia.
Editada por Carlos Vinhal

Dia 28
O mar por estas paragens anda bastante agitado. Sopra continuamente um vento bastante frio que se dirige para sudeste. Pela manhã o sol prateou de novo tudo quanto é mar. Apesar do vento e da ondulação bastante forte, o barco baloiça relativamente pouco. Tem bastante estabilidade. À noite houve cinema. Exibiram alguns documentários sem interesse e depois passaram o filme “ Marinheiros em Terra.” Ao fim da primeira parte fui dormir. É uma doença antiga que tenho. Sempre que vou ao cinema dá-me sono e acabo por perder grande parte do espectáculo.


Dia 29
O mar parece estar bastante mais calmo. As vagas são menos alterosas e o vento mais suave. De manhã realizou-se um exercício de salvamento e abandono do barco em caso de necessidade. À noite houve de novo cinema.


Dia 30
De manhã o sol não apareceu. Densas e escuras nuvens cobriam tudo à nossa volta. Parece que vamos ter chuva durante a viagem. O mar, esse, continua calmo e o vento brando.

De tarde teve lugar um novo exercício de salvamento. Estes exercícios devem ter por finalidade manter a tropa ocupada.

Já vamos a mais de meio da viagem. Estamos a passar pela zona das ilhas Canárias. Pelas dez horas da noite o barco passou em frente de Santa Cruz de Tenerife. Viam-se perfeitamente ao longe as luzes da cidade.
Passaram o filme os “Jardins do Diabo”


Dia 31
Durante o dia vários barcos de passageiros, e também de carga, cruzaram-se com o nosso. Hoje tivemos um mar mesmo muito calmo. No horizonte quase se não descobre qualquer vestígio de espuma.

O oceano assemelha-se a um grande lago, grande até não ter fim, onde todos vamos, serenamente e alegremente navegando. É impressionante, magnífico, sempre grandioso, este quadro que a natureza nos deixa contemplar diariamente.

Comove-me, até ao mais íntimo de mim mesmo, esta grandeza que não termina, este mundo de luz e mistério perante o qual sinto mais presente a minha pequenez que também não tem fim.


MÊS DE FEVEREIRO

Dia 1
O barco baloiça mais alguma coisa e o vento e o ambiente são bastante mais frescos, mesmo frios. É Portugal que fica mais perto. É o frio do Inverno que já nos espera.

Cada barco que se cruza com o nosso é para nós motivo de distracção, mesmo uma novidade. Os nossos olhos perseguem no horizonte todos esses navios que se avistam, até que se percam na linha do horizonte. E são bastantes os barcos que durante o dia se cruzam com o nosso.

Ao mesmo tempo que é bela, a vida no mar é também cheia de isolamento e de abandono.

De qualquer modo, se a viagem, que está quase no fim, se prolongasse por mais uns dias, não seria grande o sacrifício que teríamos que suportar. É efectivamente maravilhoso viajar por este oceano, por este mar sem fim, quando isso tem lugar com algum conforto e em segurança. E quando há um tão grande grupo de pessoas que se conhecem a viajar, mal se pode falar de isolamento, ou mesmo de abandono.

Mas esta nossa viagem está mesmo a chegar ao fim. Mais umas horas, bem poucas, e já estaremos a navegar Tejo acima. Pelo mesmo Tejo que, já lá vão muitos meses, num soalheiro dia de Maio, nos viu partir, pesarosos, rumo a um futuro incerto e desconhecido, mas que foi, afinal, a estrada que, embora sinuosa, nos conduziu a este hoje, radiante e desde sempre tão desejado, que na altura era futuro incerto e hoje um presente bem palpável, que força nenhuma, por certo, irá arrastar das nossas mãos, ou do nosso destino.

A esperança de ontem, vaga e imprecisa, transformou-se em certeza, numa realidade que já ninguém admite perder.
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

Vd. último poste da série de 16 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8679: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (4): O último azar

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8679: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (4): O último azar


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



IV - O ÚLTIMO AZAR

Dia 14
Ao alvorecer o Alfange encostou ao cais de Binta e todo o pessoal foi autorizado a desembarcar. Depois de uma noite sem dormir, passada no rio, sair do barco foi um grande alívio. Ao sentirmos sob os nossos pés terra firme todos sentimos um grande alívio, um alívio enorme, que só as pessoas que algum dia tiveram a sensação de insegurança que nós tivemos durante a noite, poderão calcular.

Pelas doze horas, um Cabo da Companhia de Caçadores N.º 1546, o Cabiço, pegou numa granada de “rocket”, que estava abandonada, sem quaisquer condições de segurança, para a mostrar a um colega da Companhia de Comando e Serviços. Depois, atirou-a ao chão, ou ela caiu-lhe, e a granada explodiu com toda a violência. O Primeiro Cabo sofreu ferimentos mortais, tendo sucumbido ao fim de poucos minutos, enquanto que os dois outros colegas sofreram ferimentos menos graves e foram evacuados para Bissau de helicóptero. Chama-se a isto o azar do último dia... A morte a chegar quando já ninguém espera por ela...
Impressionante fatalidade... Iniciámos a viagem cheios de esperança, e o destino obrigou-nos, inesperadamente, a regressar ao ponto de partida... Era a morte que ficava faminta, desdentada e emagrecida, se não tivéssemos vindo outra vez ao seu encontro, para desta forma lhe saciarmos o apetite. E quantas vidas ela ceifará ainda, assim rudemente, de entre aqueles que vieram agora ocupar o espaço que deixámos livre!

Esta morte é apenas o resultado da imprudência e do desleixo do nosso chefe. Quantas vezes lhe foi dito:
- Capitão... Mande retirar dali aqueles explosivos... Qualquer dia assiste-se aqui a um acidente... Até o seu cachorro pode causar ali uma explosão...

Mas foram inúteis todas as palavras... Todos os avisos.
E agora que o pior aconteceu, não se pede responsabilidade a ninguém... Perdeu-se mais uma vida assim tão estupidamente, e ninguém vai incomodar-se com isso! Como tem pouco valor para estes comandos a vida de um soldado!

Pelas três horas da tarde todo o pessoal regressou para bordo do Alfange, e escoltados por outro barco de Guerra, que entretanto chegara a Binta, e por uma esquadrilha de aviões T6, que foram sobrevoando e observando as margens do rio, iniciámos de novo a viagem para Bissau, desta vez sem qualquer incidente.
A viagem foi longa e penosa. Este tipo de passeios pelo rio não deixam de ser martirizantes, mesmo quando se leva na alma a alegria que sentem os fugitivos do inferno.


Dia 15
Pelas nove horas da manhã o Alfange atracava ao cais de Bissau. Apesar de muito cansados havia no rosto de todos nós uma sensação de alívio. Depois de tantas horas de ansiedade e sofrimento, era a sensação de entrar no paraíso.

As viaturas militares levaram-nos para Brá, Companhia de Adidos, onde ficámos a aguardar transporte para a Metrópole. Somos quase pessoas livres... Este mundo de escravatura e de senhores de comportamentos loucos não passará, dentro de breves dias, de uma longínqua recordação. Agora, durante breves dias, vamos gozar as últimas delícias de Bissau, nas explanadas simples, bebendo cerveja fresca e saboreando mariscos. Serão estas as melhores lembranças que vamos guardar desta terra onde nunca entendemos o que nos mandaram para cá fazer. E agora já é tarde... Nunca devidamente o entenderemos...


Dia 16
Vamos passando o nosso tempo nesta cidade que, sem nós, seria uma terra sem vida e sem movimento... É uma folia... Cada um, na medida das suas possibilidades, vai comprando algumas recordações...

É o dinheiro da tropa que dá vida a este comércio, a estes bares e restaurantes, a toda esta miserável capital da Guiné...
O que há de bom aqui são os mariscos... E os bons petiscos dos pequenos restaurantes! Como há dificuldades em trocar os escudos que circulam aqui na Guiné pelos que circulam na Metrópole, e quando tal se consegue é com razoável prejuízo, gastam-se aqui as parcas economias constituídas com a parte do pré que nos pagaram aqui. É que nas localidades do interior, por onde andámos, nem condições havia para se gastar dinheiro. Se exceptuarmos as mal abastecidas cantinas militares, onde para além de bebidas, conservas e alguns artigos de higiene nada mais havia para comprar, essas localidades, regra geral, não tinham casas comerciais, nem cafés, nem restaurantes, nem cinemas. Por onde andámos apenas havia fome miséria e pobreza, que a presença da tropa às vezes ajudava a minorar. E talvez seja esse o único factor positivo que levará, amanhã, estas populações a lembrarem-se de nós.


Dia 17
Foi igual ao dia 16.

Dia 18
Foi igual ao dia 17


Dia 19
Acompanhei 20 soldados a exame de 4ª classe. Fizeram as provas escritas. A sabedoria deles não era muita, mas eu lá fui fazendo de espírito santo de orelha. Devem passar todos.

Dia 20
Voltei com os soldados a exame. Hoje fizeram as provas orais. Passaram todos. Este diploma é a única coisa importante que levam desta terra... Que lhes seja muito útil, é tudo quanto lhes desejo.


Dia 21
Nada de especial aconteceu...


Dia 22
Imposição das insígnias das campanhas da Guiné a todo o pessoal do Batalhão de Caçadores 1887. Houve desfile com fanfarra. Além do Batalhão, desfilou um Esquadrão de Cavalaria, uma Companhia Independente e um Pelotão de outra Arma qualquer, que não cheguei a identificar.

O Batalhão N.º 1887 recebeu um louvor colectivo do Comandante Militar da Guiné. É uma riquezinha que nos vai servir para muita coisa! Se estes soldados fossem viver dos louvores colectivos, ou individuais, que a tropa dá, quando muito bem se lembra, estavam todos mais do que tramados. Se ao menos estes louvores servissem para limpar das cadernetas militares os castigos que sem justificação razoável em muitas delas constam averbados, e que vão impedir que muitos destes homens possam aceder a empregos públicos, enfim, que se desfizessem por aí em louvores! Mas, com aquilo que não vai servir de nada para ninguém, porque nos continuam a chatear!

Seria bem melhor que estes homens quando chegassem às suas terras pudessem contar com estruturas de apoio que os ajudassem a conseguir trabalho, a ter condições de acesso a cuidados de saúde, de que tanto vão carecer, e a uma boa integração no meio social e familiar. Sem isso, para que vão servir as condecorações e os louvores? Todos nós, em maior ou menor grau, precisaremos de ajuda... Mas de louvores, presumo, ninguém precisa... Muito menos tratando-se destes louvores colectivos...
As sequelas desta vida de sofrimento, de um “stress” quase permanente, vão fazer-se sentir ainda por muito tempo, ou talvez para sempre. E não serão estes louvores a amenizar, minimamente, as suas consequências.


Dia 23
Aproxima-se o dia do embarque. O “Quanza”, velho navio de passageiros que nos vai levar para Lisboa, está quase a chegar a Bissau. Em breve partiremos... O Comandante da Companhia N.º 1548, do nosso batalhão, reuniu num jantar, no Solar dos 10, os Oficiais e Sargentos da Companhia. Não reuniu nesse jantar os soldados, pois seria um grupo muito numeroso e não tinha condições para o fazer. Ofereceu, no entanto, uma recordação a cada um dos seus homens. Teve, efectivamente, uma ideia feliz. Só os mártires da Companhia de Caçadores nº 1546 não têm direito a nada! Nem ao calor de uma palavra de gratidão e de amizade!

Navio Misto Quanza. Ano de registo, 1929; ano de abate, 1968
Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses


Dia 24
À noite, pelas nove horas, fui reconhecer as instalações do Quanza, destinadas aos nossos homens. O barco é bastante velho mas, o que interessa, é que nos leve em segurança até Lisboa. O nosso capitão fica em Bissau a resolver, ainda, alguns problemas relacionados com a entrega de material. A notícia agradou a toda a gente. Ficamos com a certeza de que ninguém nos vai incomodar durante a viagem. E todos dizem:
- Deus seja louvado!

Os heróis têm finalmente direito a que os deixem viajar em paz. E quem não foi herói deve mesmo ficar para trás e fazer a viagem longe da companhia destes homens que merecem que a história os não esqueça. Só os grandes em dignidade têm efectivamente direito a fazer em conjunto esta viagem tão desejada.


Dia 25
Pelas nove horas a Companhia disse adeus ao aquartelamento de Brá, na periferia de Bissau, o mais sujo e detestável de quantos até hoje conheci.

Pelas nove horas e meia os homens da Companhia começaram a subir para o barco, com as respectivas bagagens. O almoço teve lugar já dentro do Quanza.

Pelas duas horas, o Comandante Militar da Guiné subiu a bordo, fez um breve discurso e despediu-se de nós.

Pelas três da tarde o pessoal estranho, aquele que não ia seguir viagem, saiu do barco.

Às quinze horas e dez minutos locais o barco começou a efectuar as manobras para sair do cais de acostagem.

Às quinze horas e vinte minutos, serenamente, o Quanza já descia a barra do Geba, em direcção ao mar Atlântico.

Adeus, Guiné!

(Continua)
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Notas de CV:

 (*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

Vd. último poste da série de 13 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8666: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (3): O último susto

sábado, 13 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8666: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (3): O último susto


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



III - O ÚLTIMO SUSTO

Dia 13
Pelas doze horas o Alfange atracou em Binta. De imediato, desembarcou a Companhia de “Periquitos” e as respectivas bagagens. Depois, a minha Companhia embarcou. Pouco depois das duas horas, acenando um adeus às terras de Binta, subíamos o Cacheu até Farim. Nunca percebi muito bem esta programação da viagem. Com efeito, a lógica que na tropa não tem lugar, apontaria para que embarcássemos apenas quando o barco descesse o rio. Mas, como gostam muito de nós e estão satisfeitos com o nosso trabalho e com a guerra que fizemos ao longo de todos estes meses, os que mandam em nós quiseram que fizéssemos turismo, durante mais umas horas, viajando por este rio maravilhoso, em condições de excepcional conforto.

 LDG Alfange - Foto de autor desconhecido. Com a devida vénia

Em Farim entraram no Barco a Companhia N.º 1548 e a Companhia de Comando e Serviços e, já de noite, iniciou-se a viagem para Bissau, com uma ligeira paragem de novo em Binta, donde se partiu quando a noite já ia bastante alta.

A partir de Binta, a barcaça que nos transportava seguiu viagem, escoltada por um barco de Guerra, que navegava à nossa frente escassas dezenas de metros.

Pouco passava das 21 horas. Rio abaixo tudo parecia normal. Na penumbra da noite apenas se escutava o ligeiro ruído provocado pelo deslizar sereno do barco sobre as águas do Cacheu, e o barulho surdo dos motores da embarcação que nos transportava.

A escuridão da noite, o céu sem estrelas e um horizonte que morria ali muito perto, na penumbra das margens, emprestavam à viagem um ambiente sinistro feito de mistério e receio. Fora da barcaça, que navegava com as luzes apagadas, apenas se vislumbrava a sombra da floresta que, nas margens, se casa com o rio, e um pouco à frente, embora pouco perceptível, a sombra do barco que nos escoltava. Aquele era um ambiente de mistério, sinistro e tristonho, a que, aliás, durante outras viagens pelo rio já nos tínhamos habituado.

Não muito longe de Binta, a escassas centenas de metros, numa curva do rio, começámos a ser alvejados por tiros de bazooka, ou de canhão sem recuo. E um calafrio enorme apossou-se de mim, e também, por certo, de todos os que viajavam a meu lado. Eram eles, os turras, que nos estavam a atacar ali, no meio do rio, quando pensávamos que a guerra para nós já não existia, e já nem tínhamos uma reles G3 para varrer com algumas rajadas as margens do rio. Era efectivamente a guerra que continuava a perseguir-nos!

E o barco de guerra que seguia à nossa frente, e nos escoltava, foi atingido lateralmente por algumas granadas, que lhe causaram bastantes estragos, tendo a tripulação sofrido um morto e alguns feridos. Viveram-se momentos de pavor, mas não houve pânico.**

Guiné > Bissau > A LFG Lira, já atracada em Bissau, ao lado da Orion, sendo bem visíveis, na ponte, os estragos provocados pelo rebentamento da granada de RPG, em chapa balística de 0.25.

Guiné > Bissau > A LGF Lira > Os danos no convés, no rufo da casa das máquinas e nos botes de borracha dos FZ .
Fotos: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.

Entretanto, um grupo de fuzileiros que seguia na nossa barcaça, em missão de segurança, abriu fogo sobre as margens do rio, para a zona donde teria partido o ataque. Ao mesmo tempo, o barco de guerra que nos escoltava seguia, a grande velocidade, para Bissau. E a barcaça que nos transportava recebeu ordens para regressar a Binta, onde chegou pelas vinte e duas horas.

E todos nós, cerca de 500 homens, passámos a noite em frente a Binta, a bordo da embarcação.

Foi uma noite difícil de passar. A barcaça não tinha espaço para transportar, com o mínimo de condições, uma centena de pessoas, e estávamos lá dento três Companhias com as respectivas bagagens.
Os soldados quase não tinham espaço para se mexer.

Mais uma vez, tivemos muita sorte. Se os gajos em vez de acertar no barco de guerra que nos dava escolta, tivessem disparado e acertado no nosso, com tanta gente dentro, poderia ter acontecido mais um grande desastre. Bastaria apenas a confusão gerada por uma granada que acertasse em cheio no barco, aliada à escuridão da noite, para que houvesse uma tragédia de consequências imprevisíveis.

Apesar de tudo, o azar quase que não o foi. Os nossos homens, para além do incómodo do atraso da viagem e da noite passada no meio do rio, sem um agasalho que os protegesse da humidade, nada mais sofreram.

Mas não deixou de ser para todos nós mais um grande susto com o qual já ninguém estava a contar. E ali tão perto de Binta não havia memória de que os barcos de guerra tivessem sido alguma vez atacados.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

(**) Vd. poste de 16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1665: Operação Larga Agora, Tancroal, Cacheu, local maldito para a Marinha (Parte I) (Lema Santos)

Em 13 de Janeiro de 1968, a LFG Lira que escoltava a LDG Alfange, depois de ter transportado 3 companhias de FT de S. Vicente para Binta, foi violentamente atacada no Tancroal com RPG, sendo atindida na ponte e no rufo (cobertura) da casa das máquinas. O resultado, além dos estragos materiais, foi dramático: 1 morto e 8 feridos, alguns deles em estado grave, sendo 2 evacuados de helicóptero e 3 de Dornier.

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves**
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



II - GUINÉ, 1968

Dia 1
Novo ano começa. Embora a Guiné e os seus fantasmas se continuem insurgindo à minha frente, o ano de 1968 não se apresenta sinistro. A Guiné será muito em breve para mim e para todos estes heróis que me acompanham, como que um sonho acontecido ontem, do qual raras vezes visionaremos imagens precisas. Este novo ano será para mim um ano de libertação, um ano de paz. Como alguém me escreveu, este ano poderá ser para mim um ano maravilhoso. Quando os meus olhos se deleitarem de novo a olhar o belo panorama dos montes da minha terra, cobertos do verde dos pinheiros e do cinzento das oliveiras, serei de novo feliz. E, como eu, todos estes homens da Companhia de Caçadores 1546, quando pisarem o chão de Lisboa serão homens diferentes.

Será uma nova vida que todos teremos pela frente. Será um novo futuro a sorrir às nossas vidas.
Que esse dia e essa hora não demorem a chegar!..

A convicção de que este ano não será para nós mais um ano de guerra, é já uma razão muito forte a descongestionar as nossas mentes, todo o nosso espírito, até aqui impregnado de medos e sombras.
Hoje, em rigor, não fiz nada. Foi por isso um dia de tédio... Mesmo um dia inútil...
Ao fim da tarde cacei algumas rolas... Apaga-se o tédio matando alguma coisa!.. E matar, mesmo que seja uma simples rola, causa-nos sempre um estranho prazer... Não passamos de uns reles sádicos...


Dia 2
Pelas dez horas começou a grande reza dos Mandingas. Fui assistir, a convite do régulo e dos chefes da tabanca. Realizada ao ar livre, a cerimónia, desprovida de aparato externo e de barulho, é cheio de simplicidade. Quando vejo estes homens rezar, com tanto fervor e convicção, fica-me até pena de não ser Mandinga ou Fula como eles. Na vida quotidiana destes muçulmanos a religião, com toda a sua singeleza, é fundamental.

Chegou de Farim a secção de quartéis da Companhia que nos virá render. É mais uma esperança... É o dia do regresso cada vez mais próximo...

Guidaje
Foto: Ex-1.º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (2009). Direitos reservados


 Dia 3

De tarde saí para os lados de Guidage, a queimar o capim que se estende ao lado da estrada e que já está a ficar seco. Com estas queimadas pretende-se aumentar a visibilidade ao longo da estrada, anulando assim a possibilidade de emboscadas muito perto do itinerário que temos que percorrer.
O alferes que veio com a secção de quartéis é um doente mental muito chato. Se assim continua, antes de terminar a comissão vai maluco para a metrópole.

Se os que vieram para cá normais, no gozo perfeito das suas faculdades, acabam por ficar malucos, que destino poderá estar reservado aos que chegam aqui já contaminados, e muito, com o vírus da maluquice?


Dia 4
De tarde fui a Guidage.
A Companhia está a entregar o material à tropa que nos vem substituir. É a rendição à vista. A hora do regresso a chegar...


Dia 5
O capitão anda absolutamente maluco. Já não tem remédio. Vive só para os caprichos de que se vai alimentando, e mais nada. Cada homem para ele não passa de um simples boneco, com quem ele se farta de brincar... É um louco... Agora deu-lhe para martirizar o pessoal da secretaria com trabalho nocturno. Como de costume, levanta-se perto do meio-dia. De tarde vai de jeep para a tabanca fazer ninguém sabe o quê... Ou até se sabe! À noite dá-lhe para chatear toda a gente. Passa o tempo a berrar e a gritar. As pessoas convenceram-se de que ele é doido e, talvez por isso, vão tendo paciência para o aturar... É um homem desorganizado e sem regras...
Mas não é tarefa simples aturar um doido desta natureza, principalmente quando esse doido é chefe...
Durante quanto tempo teremos ainda que o aturar!

Binta
Foto: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.

Dia 6

Chegaram as barcaças com o abastecimento. O 2.º Tenente que comanda a escolta ficou connosco todo o dia.
O inimigo terá sofrido 3 mortos e alguns feridos no rebentamento de uma armadilha que montei em Tenanto.


Dia 7
Ao alvorecer parti para Farim ao encontro do pelotão que ficará em Guidage no interregno da rendição. Ainda antes do almoço parti com a coluna de viaturas para o referido destacamento. Só piquei a estrada a partir de Genicó. Regressei a Binta ao entardecer. Deixei em Guidage a secção de quartéis e um alferes do Batalhão de Engenharia.

A nossa guarnição que estava em Guidage, o 4.º pelotão, também veio comigo para Binta. Aquilo já não é um pelotão de tropa, mas um grupo de homens esfarrapados. A miséria desta tropa chegou a tal ponto que já nem dão aos soldados uma farda em condições. Aparentemente somos uma tropa esfarrapada. De facto, somos todos um grupo de heróis mal vestidos e mal tratados... Dificilmente haverá no mundo um exército que trate desta maneira os seus heróis!

Agora por aqui anda tudo louco...

Estou com medo de um ataque dos turras... O grau de abandalhamento e de desmotivação é tal que, se os gajos se dignam atacar isto a sério, pode acontecer um grande desastre. Todos se comportam como se a guerra já tivesse terminado ou fosse qualquer coisa que acontece noutro mundo, muito longe de todos nós. Mas não é assim... Ainda estamos na guerra... À nossa volta, e talvez a poucas centenas de metros, para além do rio, o inimigo existe. Às vezes até me espanta o facto de ele não nos atacar com mais frequência.


Dia 8
O ambiente geral é de que iremos embora dentro de pouco tempo... Por isso, agora os dias parecem mais longos e são mais difíceis de passar... Mas lá se vão passando. O que interessa é sair o mais depressa possível deste Vietname em miniatura, fugir a esta guerra que parece não ter fim, desta guerra que apenas serve para destruir vidas, muitas vidas, mutilar pessoas, criar ódios... E enriquecer, por certo, alguns homens, que nem serão muitos.

Há na companhia, ao que parece, propostas para algumas condecorações e louvores. Se os boatos se confirmarem, e se tiverem lugar os louvores ou as condecorações de que se fala, tudo não passará de uma farsa, e de um verdadeiro ultraje à dignidade de todos estes homens. Nestas condições, para mim, pessoalmente, um louvor, ou uma condecoração, seria algo que me negaria a aceitar... Vindo da pessoa que poderia vir, isso constituiria para mim uma vergonha, ou um ultraje, e não algo de que me pudesse orgulhar...

Comenta-se por aí, e com razão, que a tribuna dos heróis está a ser ocupada por fantoches, que o sacrifício foi suplantado pela fanfarronice, que a justiça deu lugar à desvergonha, à ingratidão, às cenas de pancadaria e a um novo tipo de escravatura.
E as virtudes militares deram lugar aos relatórios majestosos, repassados de cinismo e de mentiras, onde a guerra se apresenta como vencida e o inimigo como inexistente, ou esmagado. E é este o mundo dos nossos heróis. Os que de facto o são, se é que alguns há por aí, são heróis desconhecidos... Mas, para além do mais, o que estes homens precisam, e todos nós precisamos, é, quando formos desmobilizados, de condições de emprego, de trabalho e de integração social. Com as condecorações e com os louvores de que se fala, ninguém irá resolver problema nenhum.
 A concretizarem-se os boatos que se ouvem por aí, o mundo dos nossos heróis fica muito de rastos... Será que a cobardia algum dia poderá vir a ser condecorada?


Dia 9
Acredito que a política nem sempre segue o rumo que os seus criadores desejam incutir-lhe. As ordens e as ideias que partem dos que governam chegam aos seus destinatários sempre muito deturpadas. É, talvez, o problema dos intermediários... Dos realizadores...

Hoje eu pergunto-me:
- Será que o governo, em Lisboa, está devidamente informado sobre o evoluir dos acontecimentos, de tudo o que se passa com esta guerra? Tenho muitas dúvidas. Como o que está em causa é o prestígio do exército, e o dos seus chefes, pressagiar o abandono desta guerra e o arrumar das malas, seria um golpe demasiado duro para essa gente que apenas se deleita a olhar para o ouro dos galões que traz sobre os ombros... Para muita gente não convém que a guerra termine... É talvez por isso que ela ainda irá continuar por muito mais tempo. Os generais não têm interesse em que isto termine. Com o fim da guerra eles iriam perder importância e influência, o que não lhes interessa nada. E perderiam também muito dinheiro! E todos nós sabemos que é o dinheiro, e tudo quanto com ele se consegue, quem alimenta todos estes conflitos.

Invoca-se o interesse da população... Do povo... Mas é só para atirar areia aos olhos da sociedade que se deixa cegar com muita facilidade.

O destino tem destas ironias:
- Faz-se tudo em nome do povo... Justifica-se tudo com o interesse do povo... E ele, em nome de quem tudo é feito, não beneficia, em rigor, mesmo de nada. Ele é mesmo sacrificado dia a dia, hora a hora, nesse altar iníquo que é, no nosso caso, uma torpe ideia de Império, com algum sentido em séculos passados, ou até nas primeiras décadas deste século vinte, mas que hoje, face à evolução cultural e política que pelo mundo todo vemos, não faz mais sentido. Mas, infelizmente, é em nome dessa ideia ultrapassada e torpe, que por aqui se combate, se sofre, se definha e se morre! Só não se adivinha até quando tudo continuará assim.


Dia 10
Coluna a Guidage. Foram os rebeldes. No regresso trouxeram a secção de quartéis. O alferes de Engenharia ficou em Binta por falta de transporte.


Dia 11
Antes de partirmos para a Metrópole o capitão já começou a sementeira do joio. Quer deixar aqui a erva daninha da intriga e da discórdia. Em conversa com o novo Comandante das tropas de Binta, e referindo-se ao Brayma Sonco, que o ano passado fugiu de Guidage para o Senegal, disse-lhe que o homem regressará, embora seja contribuinte do PAIGC. Estará apenas a aguardar que a nossa Companhia se vá embora. Entende que, se regressar, deve ser preso.
Nunca quis admitir que, se o homem fugiu, foi apenas por medo do que lhe poderia fazer, ou mandar fazer... Ele, capitão, foi o único causador dessa fuga.

O Brayma Sonco, até no momento em que desertou foi um homem leal... Se, como se quis insinuar, ele fosse efectivamente simpatizante do PAIGC, na altura em que desertou teria tomado outra atitude bem mais prejudicial para as nossas tropas. O homem fugiu para o Senegal, mas ocupou o seu lugar até ao último minuto... Foi-se embora mas não levou a arma nem a farda... Levou com ele apenas o seu orgulho e a sua dignidade. Roubaram-lhe a oportunidade de ser herói! Roubaram-lhe aquele momento grande em que poderia “fazer ronco,” ser espectacular! E ele não aguentou a frustração e foi-se embora...


Dia 12
O Alfange, a barcaça da Marinha de Guerra que nos levará para Bissau, é esperado com ansiedade geral. Os preparativos da partida estão concluídos. Agora é mesmo só esperar a hora do embarque... Embarcar e… partir...
Agora já ninguém pensa em mais nada. Já ninguém apaga a esperança...
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

(**)Vd. primeiro poste da série de 8 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois



O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves**
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



I - MUITOS ANOS DEPOIS

Agora já só resta o sonho.
A aldeia acorda, cada manhã, envolta num lençol de paz, e eu deixo-me penetrar da calma que domina as coisas que, tranquilamente, descansam à minha volta.

Pelo dia além, muito leve, a aragem sopra do pinhal e traz para junto de mim um cheiro agradável, cheio de serenidade e de saúde.
De quando em quando os pardais esvoaçam em frente da minha janela, muito alegres e pequenos, curiosos, talvez, de saber em que estou a pensar. E o Sol ilumina-lhes a penugem escura, enquanto se movem no espaço.
Todavia, este ambiente tranquilo que num passado cada vez mais distante tanto desejei, ainda me não parece verdadeiro. O meu sono é perturbado ainda muitas vezes por sinistras recordações de um passado não de todo esquecido, imagens quase vivas de tantas situações macabras em que me encontrei.

Depois, quando acordo, não posso deixar de sorrir das imagens balofas do meu sonho. E porque compreendo as causas mais profundas desse sonhar, continuo sossegado... Consigo mesmo adormecer de novo tranquilamente...
Eu sei muito bem que, agora, já só resta mesmo o sonho.
Eu sei que essa realidade passou por mim, qual sombra fugidia, se deteve à minha frente durante breves momentos, só para que eu a contemplasse, e foi depois, despedaçar-se, ingloriamente, nos abismos pedregosos do passado, desse passado amargo e doloroso, mas, apesar de tudo, feito de muita saudade.

Hoje eu posso dizer que todo o sofrimento humano é passageiro. Posso, até, afirmar que me dá uma certa alegria o facto de poder recordar alguns desses momentos passados no meio da ansiedade e do perigo.
Ainda bem que tudo assim aconteceu... Amanhã talvez consiga sonhar tranquilamente.
Foram tortuosos e difíceis, é certo, os caminhos então trilhados.

Eu, e aqueles que lutaram a meu lado, fazemos parte de uma geração sacrificada no altar da guerra colonial, para uns, profano e iníquo, para outros, algo de sagrado, quase divino e transcendente.

O sangue dos que morreram, ou o sacrifício dos que tiveram a sorte de regressar, em qualquer dos casos, nada mais representam do que a inutilidade. Sim, porque a guerra foi uma realidade inútil. Ela não serviu os interesses de ninguém, muito menos os de uma população que sofreu, e contínua ainda a sofrer, embora de formas distintas, as suas tenebrosas consequências.
Mas, apesar de tudo, os que a viveram, acabam por recordá-la com saudade. Os humanos somos assim... Até do sofrimento, quando ultrapassado sem traumas e sem mágoas, acabamos por ter saudade... Tudo o que passa nos deixa sempre pena... Às vezes mesmo muita pena.


E hoje, a Guiné permanece muito longe de nós, lá na distância do esquecimento, entregue ao seu atraso e à sua pobreza, lembrando talvez uma guerra que não lhe deu nada, e uma paz que lhe roubou quase tudo.
Mas a Guiné permanece, também, muito perto de nós, no mais íntimo de nós mesmos, porque representa um pouco das nossas vidas e do nosso sofrimento. E o mais sagrado que nós temos são as nossas vidas, feitas da lembrança do ontem e do hoje, e da esperança no amanhã.

Todos nós, os que fizemos a guerra, assim como não esqueceremos as nossas vidas, também não esqueceremos, por fazer parte delas, a Guiné.
E essa lembrança vai continuar, para além de nós próprios, no imaginário colectivo das gerações que nos sucederem.

Hoje, mergulhada na suave neblina do atraso social, no esquecimento a que os pobres, sejam eles pessoas ou países são votados, a Guiné, onde tanto se lutou e sofreu, é uma nação de que ninguém fala, e de que nenhum país, pelo menos dos mais ricos, cobiça seja o que for.
É que ninguém faz nada, muito menos uma guerra durante tão longos anos, por causa de uma terra pobre. Nós, portugueses, fomos a excepção.

Hoje, por incrível que pareça, o país quase se envergonha dos seus mortos, dos mortos que tombaram numa guerra quase sem fim, que ele, país, numa fase menos iluminada da sua história recente, quis fazer.
Existe mesmo uma certa vergonha em assumir um passado onde, por uma causa que, naquele espaço temporal, já não tinha razão de ser, foram sacrificadas muitas vidas em honra de um deus em que já ninguém acreditava. Mas, toda essa percepção deturpada, todo esse aparente esquecimento, que não passa de uma quase cobardia colectiva, será um sentimento transitório, que o tempo se encarregará de corrigir.

Todo esse passado, na crueza da sua realidade e na força que o sofrimento humano empresta à vida, permanece indelével no inconsciente do país real, que não se compadece com hiatos na sua história, que sempre soube assumir, e ressurgirá com naturalidade e sem traumas, quando a história se fizer, a da nação que lutou, e a da nação que, envergonhada, finge esquecer o sangue dos mortos e o sofrimento de muitos vivos.
E então, tudo será reposto no respectivo lugar.

É que, o sangue dos tantos mortos, ou o sofrimento dos muitos que ainda estão vivos, nada teve a ver, na sua quase totalidade, com o erro dos políticos que, ignorando ostensivamente as mudanças sociais e políticas que o mundo da época atravessava, não souberam tomar as decisões mais acertadas que a evolução do país, e das colónias, aconselhavam que se tomassem.
Mas nada disso justifica esta vergonha, que parece haver, desse passado recente, como que se estivéssemos perante algo que teve a ver com outro povo e se viveu num outro mundo.
O nosso passado teve a cor que teve. Serão, por isso, infrutíferas, todas as tentativas de o pintar de qualquer outra cor.

Os gestos que se façam para lhe mudar a tonalidade, para além de inúteis, serão quixotescos e ridículos. O passado foi o que foi. Ninguém o pode mudar, ou alterar.
Mas o passado é nosso. Pertence-nos. Não o podemos dar, ou alienar, seja a que pretexto, ou a que preço for.
Resta-nos, pois, e apenas, assumi-lo com toda a dignidade.

“O esquecimento é o fim da capacidade de sonhar e o reverso da vida.” Por isso, mesmo que às vezes ele seja escuro, não devemos deixar que se apague o nosso passado. O passado das pessoas apaga-se quando elas se apagam. O passado de um país só se apaga quando ele se apagar.

Este pequeno livro pretende ser uma promoção da memória, um pequeno contributo na luta contra o esquecimento intencional, ou não, de uma pequena parte do nosso passado de país e de povo.

O passado das pessoas é, quase sempre, construído de luzes e de sombras. Tem coisas boas e coisas más.
Com o passado dos países e das nações acontece algo de semelhante.
Mas, assim como as pessoas não se podem desfazer das sombras que lhes enfeitam o passado, também os países, por mais que o tentem fazer, não conseguirão apagar as tonalidades mais escuras, ou mais claras, que serviram para dar cor ao seu passado, seja ele recente ou distante.

Um dia virá em que o país, finalmente, se reconciliará com o seu passado e com a sua história, com dignidade e sem complexos de culpa. Sim, porque hoje, existe ainda um certo inconsciente colectivo, doentio e com laivos de frustração, onde predomina uma cultura de intolerância, incapaz de ao menos admitir que se entenda a história, muito embora reprovando alguns dos que foram seus actores. Mesmo sendo construídas com o sacrifício de milhares de escravos, as grandes obras da humanidade não deixaram de ter a beleza que todos hoje admiramos. E a história é, de longe e no seu todo, a mais bela de todas as obras que a humanidade construiu.

Hoje, as pessoas de bom senso todas reconhecem que a guerra foi um erro. Mas esse erro só foi possível porque a existência do regime político então vigente foi um erro muito maior. Mas, que se olhe, enfim, para o passado, mesmo que ainda bastante próximo, sem complexos e sem traumas.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor, que hoje começamos a publicar no nosso Blogue por sua gentileza.

(**) Vd. poste de 3 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8633: Tabanca Grande (295): Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)