Mostrar mensagens com a etiqueta Nino Vieira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Nino Vieira. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 14 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25270: Memórias cruzadas: Referência ao António Lobato (1938-2024) em mensagem de 'Nino' Vieira para Aristides Pereira, em 1963 (voltariam a encontrar-se 36 anos depois, em Bissau)



António Lobato (1938-2024), maj pil av ref: no cativeiro (maio de 1963 / novembro de 1970) sempre recusou a liberdade em troca da denúncia, aos microfones da rádio, da guerra colonial. Mas em carta  à  mulher, datada de Kindia, 22/5/65, escreveu: (...) "Houve momentos de fraqueza em que quse me arrependi de ter recusado essa liberdade, hoje porém agradeço a  Deus o ter-me dado a força necessária para resistir" (pág. 125).


1. Releia-se a notável descrição do encontro do António Lobato com o já então  mítico  'Nino' Vieira, escassos dias a seguir à sua captura: vd. páginas de "Liberdade ou evasão:  o mais longo cativeiro de guerra", 1ª ed.  Amadora, Erasmos Editora, 1995, pp. 62/64).

(...) " Diz então, como quem se gaba dos poderes absolutos que detém, que poderia reenviar-me para Bissau ou que poderia até matar-me, mas que não irá fazê-lo pelo facto de há quinze dias atrás, ter recebido ordens de Amílcar Cabral, para fazer prisioneiros e dirigi-los a Conacri" (...) (pág. 63). (vd. no ponto 2 um excerto mais completo.)

'Nino' Vieira em mensagem posterior a Aristides Pereira, que a seguir se transcreve, faz referència a este encontro (no seu "quartel-general" em Darsalame):

(...) "Recebi a vossa carta com o  n/ camarada Seni, no qual tomei conhecimento de que o tal piloto  [António Lobato]  mudou da ideia que tinha quando  [se]  encontrava em n/ poder cá  dentro."... 

Segundo o tratamento arquivístico desta correspondència, pela Fundaçáo Mário Soares, isto queria dizer: "Recusa do piloto [António Lobato] de prestar uma declaração contra a guerra colonial"... 

É a única referència ao António Lobato que encontrámos até agora no Arquivo Amílcar Cabral. (*)

 Lemos no "Observador", num trabalho da jornalista Tânia Pereirinha,   que o Lobato e o 'Nino' voltariam a encontrar-se mais tarde, em Bissau, em 1999, trinta e seis depois:

(...) "Foi por isso mesmo que, em 1999, quando o então Presidente guineense Nino Vieira o convidou para almoçar, António Lobato não pensou duas vezes. Ao longo de um par de horas, conversaram e recordaram os tempos em que um tinha estado à guarda do outro. Dias depois, quando fez check-out do Hotel 24 de Setembro, a funcionar no local onde décadas antes tinha sido a messe dos oficiais portugueses em Bissau, o piloto descobriu que a sua estadia já tinha sido paga — nada menos do que pelo primeiro Presidente da República da Guiné Bissau.

“Depois, quando perdeu o mandato, fugiu da Guiné e veio para Portugal, os jornalistas perguntaram-lhe se tinha cá alguém conhecido e ele respondeu: ‘Tenho um amigo, o Lobato!’”, continua a recordar. “Isto não cabe na cabeça de ninguém, mas para ele eu era um amigo, um conhecido.” (...)



Camarada Aristides: 
Recebi a vossa carta com o  n/ cama-
rada Seni, no qual tomei conheci-
mento de que o tal piloto  [António Lobato] 
mudou da ideia que tinha
quando  [se]  encontrava em n/ poder cá 
dentro.

Junto segue com o Djaló
a camarada Ernestina [Titina]   Silá e
mais dois empregados, um da Casa
Gouveia e o outro da S.C. U.  [Sociedade Comercial Ultramarina].

Seguem mais três rapazes, que
devem apresentar os seus nomes,  [os] dos



seus pais, e mais 
 [h]abilitações que 
têm,  Todos eles têm [-se] dedicado muito 
bem no Partido. Um deles estva já
 [h] á 9 meses no mato juntamente 
connosco.

Como sabes,aqui encontra-
-se também nalús e sossos, mas
 [na sua maior] parte não têm instru-
ções necerssárias. 

Junto segue nomes de camaradas Jugaré Natchuta,
Quecife Nina, Sebastião Monteiro, 
Silvina Vaz da Costa, António
Araújo ou Insemba Juboté, Jaime
Nandia, filho da Jubana.



Agradeço fazer voltar Djaló ou o
seu companheiro [o]  mais depressa 
possível porque estamos com falta
de munições.

Tenho a participar do ataque 
feito a Calaque [na]  área de Cacine,
sob o comando do camarada 
Corona.  Um grupo dos nossos 
militantes teve um recontro 
com as forças portuguesas onde 
conseguiram  [a]bater 17 soldados e
um ferido. Esse recontro foi
no dia 13 às 19h30. Caíram





do nosso lado os camaradas Iembaná  [?] 
Fuam de Cassumba en Nhina;
Tunqué Nhaberama
e Tunga Naquedama que fica-
ram feridos.

Agradeço aumentarmos  [sic] mais materiais
para poder manter a nossa posição
defensiva em toda a área.

O que precisamos mais é de metra-
lhadoras ligeiras e pesadas. Mesmo
que mais 20, temos homens suficientes
para pegarem nelas. Do camarada
Marga  [nome de guerra de 'Nino' Vieira] .



 [Nomes propostos por 'Nino' Vieira, para;] 

Estado (sic) de segurança: Ingaré Natchuta,
Sebastião Monteiro,
Quecife Naina,

Bolsas de estudo:

Orlando Paulo Trindade,
António Tambó Nhanque,
Jaime Nandaim, filho de Iembaná  [?],
Ernestina [Titina]   Silá,
Gilda Silá,
Silvina Vaz da Costa,
Celestina Marques Vieira, minha irmã"] 

Cooperativas:

António Araújo ou Insemba Juboté,
Mamadu Camará,
Cristiano Vieira.




Agradeço mandar-nos oferecer 
capas e relógios e películas.

Marga

(Seleção, revisão / fixação de texto / negritos / parènteses retos: LG)

Fonte: Casa Comum | Instituição:Fundação Mário Soares | Pasta: 04613.065.057 | Assunto: Recusa do piloto [António Lobato] de prestar uma declaração contra a guerra colonial na Guiné. Participa que seguem com o camarada Djalo e Ernestina Silá, dois empregados da Casa Gouveia, um empregado da Sociedade Comercial Ultramarina e três rapazes. Nalús. Falta de munições. Comunica o ataque em Calaque (Cacine) sob o comando de Corona (Ansumane Sanha II). Segurança. Bolsas de estudo. | Remetente: Marga (Nino Vieira) | Destinatário: Aristides Pereira | Data: s.d. | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste) | .Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Correspondencia |

Citação (s.d.), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39139 (2024-3-14)



Guiné > s//l> s/d c. José Araújo e Nino Vieira, membros do Conselho Superior da Luta [José Araújo estava encarregue de acompanhar a delegação da UIE  c- dezembro de 1970 / janeiro de 1971].

Citação: Mikko Pyhälä (1970-1971), "José Araújo e Nino Vieira", Fundação Mário Soares / Mikko Pyhälä, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11025.008.026 (2024-3-14) (com a devidfa vénia...)
   


2. Vale a pena reproduzir a descrição mais completa o Lobato faz deste encontro como 0 'Nino' (excertos das pp.  62/64, da 1ª edição,  com a devida vénia):

(...) Uma vez do  outro lado [do rio Cumbijã ?]  encetamos uma marcha de cerca de duas horas,  através de uma zona pantanosa, enterrados na lama até meia perna. Paramos numa área a que chamam Dar-es-Salam  [Darsalame] , onde se encontra o acampamento do comandante da guerrilha da zona Sul, Nino Vieira.

Sentado no tronco seco de uma árvore, o jovem chefe guerrilheiro, vestido de caqui verde escuro, pés nus e espartilhados por sandálias de plástico, braços ornamentados com grossos anéis de madeira e couro, um pedaço de couro pendurado ao pescoço com uma tira de cabedal, mais parece a estátua inerte de um deus negro expulso do Olimpo, do que o temível turra a quem todos obedecem, porque é “imune às balas do tuga”.

À minha chegada, o chefe levanta-se e olha-me de frente durante alguns instantes, sem pestanejar e  sente-se de novo. Só então a sua voz quase feminina se faz ouvir: “senta”, diz ele.

Embora esteja farto de saber o motivo por que ali me encontro, convidam a fazer o meu próprio relato dos acontecimentos. Quando termino pergunta-me o que pretendo ao que eu respondo, voltar para casa

Diz então, como quem se gaba dos poderes absolutos que detém, que poderia reenviar-me para Bissau ou que poderia até matar-me, mas que não irá fazê-lo pelo facto de há quinze dias atrás, ter recebido ordens de Amílcar Cabral, para fazer prisioneiros e dirigi-los a Conacri,

A seguir, questiona-me sobre a minha família e fica a saber que sou casado há seis meses e que a minha mulher está em Bissau. Tira, então, do bolso da camisa um pedaço de papel e uma esferográfica. Estende-mos e diz que se quiser posso escrever uma carta à minha mulher que ele garanta sua entrega.

Não acredito nas suas palavras, mas como não tenho nada a perder, escrevo meia dúzia de linhas e de devolvo lhe o papel que ele repõe cuidadosamente no bolso (sete  anos e meio mais tarde, venho a saber que a carta foi entregue à minha mulher em Bissau, por um guerrilheiro que aí se deslocou durante a noite).

Passo três dias no acampamento de Nino Vieira, sem que alguém se atreve a molestar-me ou mesmo dirigir-me palavras insultuosas, como aconteceu nos dias anteriores.

O próprio Chefe. apesar da sua frieza no trato, esforça-se por demonstrar uma certa amabilidade, embora a carapaça endurecida por um embrear diário com a morte,  frustre as suas intenções de cordialidade. Ambos reconhecemos que existe entre  uma espécie de comunicação primária que denuncia a existência de um respeito mútuo.

(…) Neste quartel-general (um acampamento idêntico ao da ilha do Como) há uma movimentação constante de grupos de guerrilheiros que vão e vêm. É impossível determinar os efetivos reais desta força, sempre em movimento.

Ao contrário das noites silenciosas dos outros acampamentos, por onde passei,  aqui, a atividade noturna parece ser mais intensa que a diurna. Dorme-se pouco, fala-se também a voz, não se veem fogueiras. O pouco que há para comer, aparece quente. (…)

(Seleção, revisão / fixação de texto / negritos e itálicos: LG)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25147: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - XLIV (e última): Um "pária" na sua terra, humilhado e ofendido pelos novos senhores da guerra: "O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso" (pp. 280/286)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >  A terra de Amílcar Cabral. Foto tirada ainda antes da independência. O edifício da antiga Casa Gouveia, mais tarde  Tribunal Regional de Bafatá; o centro do parque infantil onde estava a estátua do antigo governador Oliveira Muzanty, o 1º ten da marinha (1906-1909), e onde passou a estar depois o busto de Amílcar Cabral; à esquerda do edifício, o célebre e fotogénico pombal, que muito provavelmente pertencia aos armazéns da Casa Gouveia; à direita (não visível na foto, ficava o antigo mercado e a piscina (edifícios coloniais que entraram rapidamente em ruína, tal como a cidadezinha de Bafatá, a "princesa do Geba")... Não sabemos, ainda, com rigor de quem é o autor desta foto nem a data... Mas tudo parece que ainda é da época colonial, a tal ainda se comia arroz em vez de milho para burro (como diz o Amadu)... A viatura automóvel que se vê à frente do edifício da Casa Gouveia não nos parece ser um camião russo GAZ mas uma carrinha de caixa aberta, Mercedes,  da CG (Casa Gouveia). No livro do Amadu Djaló, a foto é atribuída ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e é a última imagem (a petro e branco) do livro (pág. 283).


1.  Últimas páginas (pp. 280/286) das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), reproduzidas a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.,  edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra ,  facultou-nos uma cópia digital. (O Virgínio, com a sua santa paciência e a sua grande generosidade, gastou mais de um ano a ajudar o Amadua a pòr as suas memórias direitinhas em formato word, a pedido da Associação dos Comandos...). 

O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de 120 referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar. As folhas manuscritaas foram entregues ao  Virgínio Briote com a autorização  para as transcrever (e eventualmente publicar no nosso blogue). Desconhecemos o seu conteúdo, mas já incitivámos o nosso coeditor jubilado a fazer um derradeiro esforço para  transcrever, em word, o manuscrito do II volume (que ficou incompleto). E ele prometei-nos que ia começar a fazê-lo, "para a semana"...


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné-Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra);

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas "saídas" extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, ao serviço do COE (Comando de Operações Especiais), que era então comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado;

(xxiv) antes de ir para CCAÇ 21, como sede em Bambadinca, como alferes 'graduado" (e sob o comando do tenente graduado Abdulai Jamanca, ainda irá participar na dramática Op Ametista Real, contra a base do PAIGC, Cumbamori, no Senegal, em 19 de maio de 1973;  esta parte do seu  livro de memórias  (pp. 248-260) já aqui foi transcrita no poste P23625;

(xxv) no leste, começa por atuar no subsetor do Xime, em meados de 1973;

(xxvi) em setembro de 1973, quando estava em Piche, já na CCAÇ 21, recebe a terrível notícia da morte do seu querido irmão mais novo, Braima Djaló, da 3ª CCmds;

(xxvii)  embora amargurado com a morte do seu irmão mais novo, e cansado, ao fim de 12 anos de tropa e de  guerra, o Amadu Djaló mantem-se na CCAÇ 21, como alferes graduado; vemo-lo agora no início de 1974 em Canquelifá, em reforço da CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74);

(xxviii) a CCAÇ 21 está no leste, na região de Gabu, ao serviço do CAOP2, e mais exatamente em Canjufa, quando sabe da notícia do golpe de estado do 25 de Abril em Lisboa; só no dia 27, de manhã, regressa a Bambadinca, onde estava sediada;

(xxix)  ainda antes da extinção da CCAÇ 21 e do  Batalhão de Comandos da Guiné, o Amadu Djaló encontra-se com alguns responsáveis do PAIGC, logpo am maio/junho de 1974: o cabo-verdiano Antero Alfama, em Bambadinca e Xima, e depois na fronteira com o Senergal, com o João da Silva e com o Pedro Nazi...

(xxx) em meia dúzia de páginas pungentes, mas ao mesmo de uma grande serenidade e dignidade, relata o calvário da sua vida de 'pária' (por ter servido no exército dos 'tygas') após a extinção da CCAÇ 21, em agosto de 1974, até ao golpe de estado do 'Nino' Vieira, em 14 de novembro de 1980; publicaremos ainda, posteriormente,  os anexos do livro (pp. 287-299), organizados com a ajuda do Virgínio Briote.


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLIV:


Um "pária" na sua terra, humilhado e ofendido pelos novos senhores da guerra: " O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso" (pp. 280/286)


Agora, 25 de Abril, nova era. Logo nos dias a seguir, ainda em Abril, havia um homem, que sempre que me via vinha falar comigo. Um outro homem tinha-lhe dito para me avisar que tinha ouvido dizer que eu ia ser morto pelo PAIGC. E que,  se eu quisesse fugir para o Senegal, ele tinha francos para me dar. E insistiu que várias pessoas lhe tinham dito que eu ia ser morto. Todos os Comandos vão ser mortos, mesmo os antigos, dizia esse tal homem.

Um dia ouvi chamar pelo meu nome.

 −  Amadu, passa ali na minha casa.

Fui a casa dele. Quando entrei, a primeira coisa que o homem fez foi fechar a porta da rua. Era perigoso falar connosco.

 −  Olha, eu sou fulano, não tenho nada com política da Guiné, mas tu, Amadu,  és meu amigo há muito tempo. Se precisares de sair da Guiné, conta comigo.

Respondi-lhe que ia pensar, que se fugisse quem ia ficar a tomar conta da família, a minha mãe estava muito velha, as minhas mulheres podiam ir para qualquer lado, ir para casa dos seus pais ou voltar a casar, agora os meus filhos, o que ia ser deles? 

E disse que preferia ficar aqui, na Guiné, até ao dia em que me prendessem e me matassem. Nessa altura a minha família ficava a saber. Se eu fugisse, ninguém sabia o que me tinha acontecido.

Eu não queria morrer, como veio a acontecer a companheiros meus, sem a minha família saber onde estava, se tinha fugido ou sido morto.

− Eu não vou fugir, mas muito obrigado, foi a minha resposta.

Antes, as pessoas procuravam-nos para nos conhecerem melhor, para serem nossos amigos.

Depois de 25 de Abril e até 20 de Agosto de 1974, quando entregámos as armas, o comportamento das pessoas mudou, passou a ser diferente. Ninguém queria ser nosso amigo, nem acompanhar os comandos. Agora, a maioria eram nossos inimigos, e outros, a quem antes tínhamos feito favores, começaram a prender as pessoas, Comandos ou não.

Antes de 11 de Março de 1975, foram mortos o tenente Bacar Djassi, o tenente Jamanca, o alferes João Uloma e o 1º sargento Lalo Baio[1], todos Comandos.

Foi uma era muito difícil para todos os que estiveram com os brancos. Poucos falavam connosco, éramos marginalizados completamente pela gente que, antes, estava à nossa protecção e que, depois, passaram a ser os nossos maiores inimigos.

Foi também uma grande experiência, que ajudou quem sobreviveu a viver tranquilo para o resto da vida.

O povo era falso, não podíamos ter confiança em ninguém. O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso.

Durante esses onze anos, de 1974 a 1985, eu não podia falar do que passei, em nenhum lado da terra onde nasci e cresci. Passei a ser insultado nas reuniões e obrigado a bater palmas aos insultos que me faziam.

Diziam na minha cara que, no dia 22 de Novembro de 1970, na ida a Conacri, os portugueses saltaram os seus cães com dois pés, isto é, nós. 

Chamavam-me "cão" e eu tinha que aplaudir. Suportei tudo, bati-lhes palmas até, aceitei tudo o que me disseram. Nada era mal, tudo parecia ser bom.

Desses tempos, em Bafatá, pouco depois de março de 1975, fui assistir ao funeral de um vizinho. Quando cheguei ao local, estava lá muita gente. Cumprimentei as pessoas, algumas responderam, outras não. Notei que um presente fez um gesto com a cabeça para um militar do PAIGC, que não me conhecia.

O militar deu a volta
 − para outro lado e mandou um miúdo chamar-me. Chegou junto de mim e disse:

 − Tio, um militar mandou chamar-te.

Segui o menino até ao militar do PAIGC. Dois militares, que estavam numa varanda com armas nas mãos, deram-me voz de prisão. Um à esquerda e outro à direita, conduziram-me em direcção ao quartel, onde era antes o esquadrão de Cavalaria. Chegado ao último cruzamento, vi um jipe a aproximar-se de nós. Subimos para o passeio e vi o Suleimane Djaló, 2º comandante do batalhão. Era da minha etnia, embora a gente não se conhecesse.

Quando me aproximei, acompanhado dos dois soldados da sua unidade, perguntou:

− O que é que se passou?

−  Fui eu que o prendi, meu comandante!  
 − respondeu o militar.

 −  Por quê? 
 − perguntou o Suleimane.

 
− Ele é alferes dos Comandos!

 − Então, podemos prender qualquer militar, sem ordem de ninguém? De onde é que vieste? Quem te deu ordem para vir cá prender gente?

 − Desculpe, meu comandante, ninguém me mandou!

Suleimane Djaló, o comandante, olhou para mim:

 −  Onde ele te encontrou, Amadu?

 −  No choro[2]!

O comandante mandou-me embarcar no jipe. O sol estava muito bravo. O chefe que me prendeu também pediu boleia, mas o comandante disse que fosse a pé. Levou-me até à minha casa e,  depois, regressou.

O que me prendeu era beafada, chamava-se Ansumane Injai. Na altura em que me prendeu, estava bem fardado, de oficial, com calça e camisa de terylene e sapatos bem engraxados, fio de ouro e mascote, tudo grosso.

Passados uns anos, um dia, eu estava com o cunhado do meu irmão mais velho, meu conhecido desde muito novo. Andávamos juntos muitas vezes, o pai dele foi meu professor do Alcorão e o meu irmão mais velho tinha casado com a sua irmã mais velha.

Eu e o meu parceiro tínhamos um Peugeot 404, uma station com sete lugares. Ele também tinha sido tropa, foi condutor da 1ª CCmds. O nosso carro estava na oficina a mudar peças e, nós estávamos à porta do mercado de Bafatá.

A certa altura, chegou uma pessoa à minha frente e cumprimentou-me, apertando-me a mão. Era uma pessoa magra, estava suja e cheia de nódoas. Ele olhava para mim mas eu não o conhecia. Perguntou-me se eu não o reconhecia.

 
 − Eu,  não!

 −   Fui eu quem te prendeu! No choro do homem do Bairro de Caibra.

 
− Ah, foste tu?

 
− Sim, fui. Olha, desde que te prendi, nunca mais passei bem. Estive preso um ano e dois meses, libertaram-me, passados alguns dias voltaram para me prender mais dois anos. Saí há 5 dias da prisão.

Antes de eu sair da prisão, faleceu um meu primo em Bambadinca. Não tenho dinheiro para o transporte, foi um amigo que me deu boleia de Bissau até Bafatá. Agora, eu peço-te, por favor, que me arranjes 20 escudos para pagar o transporte para Bambadinca, para ir cumprimentar os familiares do meu falecido primo.

Não lhe disse nada. Meti a mão ao bolso, tirei uma nota de 50 escudos e dei-lhe. Ele agradeceu e foi embora. O meu companheiro disse-me que eu era um burro.

Eu não tenho ódio, Deus pagou-lhe o que merecia. Ele prendeu-me durante uma hora, esteve preso mais de três anos. O que é que eu vou querer mais dele ? Nada!

Aqueles anos foram de fome, não havia arroz. No governo de Luís Cabral, desembarcou um barco com rações de milho para os burros para dar à população. Fizemos tudo por tudo para comermos aquele milho, mas não conseguimos, era ração para burros. Mas,  vendo bem, o Luís Cabral não devia ser o único culpado. O ministro do Comércio era filho da Guiné e o 1º ministro também.

Depois de 14 de Novembro [de 1980],
acabaram-se as perseguições. Até esse dia fui perseguido dia e noite. Estava cadastrado no aeroporto, como todos os africanos que tinham sido militares portugueses. Todos os cadastros foram levantados. Dentro do meu coração, não deixo de louvar o 'Nino' Vieira[3], Presidente da Guiné-Bissau.

Nunca esquecerei os primeiros anos do governo de Luís Cabral, desde 1 de janeiro de 1975 até janeiro de 1976. A partir de 11 de março, a emissão do rádio acabava à noite com a frase “a pena de morte continua”, o recolher era obrigatório, a partir das 20h00 tínhamos que fechar as portas e apagar as luzes. Acendíamos as lanternas, algumas fabricadas por nós próprios. Era assim até ao nascer do novo dia.

Lembro-me de ouvir falar de um acontecimento passado em Farim[4]. Noventa e tal pessoas, Comandos e outros militares e milícias, que viviam na região de Casamansa, foram presos no Senegal pela polícia e por militantes do PAIGC. Trouxeram-nos em viaturas até à fronteira e depois, em viaturas do PAIGC, para Farim.

Depois, meteram-nos nas covas, que durante a guerra serviram de depósitos das granadas de artilharia. Ficaram lá presos. Não havia nenhum buraco, nem nenhum furo, por onde entrasse ar. Fechados lá dentro bateram à porta, gritaram, ninguém ouviu nada. 

No outro dia, de manhã, quando abriram a porta, encontraram-nos mortos, só um ainda respirava. Deram-lhe água para beber e quando acabou de beber também descansou e foi para junto dos companheiros. Não ficou nenhum sobrevivente daquela prisão subterrânea.

Quando 'Nino' fez o 14 de novembro, não admitiu no seu governo o autor deste massacre, mas mandou dar-lhe uma carrinha para governar a sua vida, que ficou como a sua reforma.

Com o golpe de 14 de novembro, a Guiné mudou muito. Começou livre e a fome acabou. Passou a haver arroz, não milho para burros, chegaram mais mercadorias para a Guiné, o aeroporto ficou aberto para todos os guineenses, que estavam na Europa. Os guineenses podem agradecer tudo isto a 'Nino' Viera, um filho da Guiné.

Deixámos o passado para trás. Por quê o ódio? E a vingança? Qual é o destino da vingança? É a guerra! Qual o destino final da guerra? Estropiados, sangue, lágrimas, pobreza, suor, trabalho.

Vai demorar muitos anos para acabar com a pobreza.

FIM do I Volume (Publicar-se-ão a seguir os Anexos)
______________________

Notas do autor ou do editor VB:

[1] Lalo Baio, mandinga, sobrinho do chefe da tabanca de Morucunda, em Farim, tinha pertencido ao PAIGC, nos primeiros anos da luta. Por qualquer motivo, tomou a decisão de se apresentar às autoridades portuguesas, trazendo com ele dez elementos e as respectivas armas.

[2] O morto. antes de ser enterrado, é embrulhado num pano e envolto numa esteira. As mulheres põem luto, vestindo-se de branco, sem qualquer enfeite ou adorno, a não ser um lenço branco. 

Ao fim de quarenta dias faz-se a cerimónia do choro, que consiste na reunião da família e amigos, orações na mesquita local, abate de uma ou mais cabeças de gado, sendo depois repartido por todos, depois de cozinhado. Não têm cemitérios. A sepultura é no local mais conveniente, ficando o corpo com a cabeça para oriente.

[3] Nota do editor: João Bernardo Vieira, 'Nino' Vieira, 'Nino' ou 'Kabi Nafantchammma' como também era chamado, nasceu em Bissau, em 27 de Abril de 1939.
[ Tem 165 referências no nosso blogue.] 

Em Janeiro de 1961 partiu para a República Popular da China, integrado num grupo de dez camaradas escolhidos por Amílcar Cabral, a fim de receber treino militar. Com 25 anos apenas, 'Nino' já era o Comandante Militar da zona sul, que abrangia a região de Catió até à fronteira com a Guiné-Conakry. Foi quase sempre no Sul que actuou durante a luta, transformando esta zona, que abrangia o Cantanhez e o Quitafine, num dos mais duros, senão o mais duro, de todos os teatros de operações em que as forças portuguesas estiveram empenhadas e do qual ainda restam nomes míticos como Guilege, Gadamael, Gandembel, Cacine, Catió, Cufar, Cadique, Bedanda e tantos outros. 

Embora se tenha dedicado principalmente à actividade operacional, como comandante de unidades de guerrilheiros, 'Nino' Vieira ocupou os mais altos cargos na estrutura do PAIGC, sendo membro eleito do bureau político do seu Comité Central desde 1964, vice-presidente do Conselho de Guerra presidido por Amílcar Cabral em 1965, acumulando com o comando da Frente Sul, e ainda comandante militar de todo o território a partir de 1970.

Foi eleito deputado em 1973 e, posteriormente, Presidente da Assembleia Nacional Popular, que proclamou no Boé a República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973.

Após a independência foi Comissário do Estado para as Forças Armadas. 

Em 1980, 'Nino' chefiou o golpe que levou à destituição do Presidente da República, Luís Cabral, e assumiu os cargos de secretário-geral do PAIGC e a Presidência da República. 

As consequências deste golpe levaram ao fim do projecto de Amílcar Cabral, a união dos povos guineense e cabo-verdiano. Em 1984 foi aprovada uma nova Constituição e só em 1991 terminou a proibição dos partidos políticos.

Com o novo regime, as primeiras eleições tiveram lugar em 1994. 'Nino' Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, foi eleito Presidente da República à 2ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994. Quatro anos depois, ainda conseguiu suster um golpe que visava a sua destituição. Mas não por muito tempo.

A propósito de um nunca esclarecido fornecimento de armas para a guerrilha de Casamansa, em Junho de 1998 travou-se uma violenta guerra civil entre partidários de Ansumane Mané e forças fiéis a 'Nino'. Mané destituiu-o em 7 de Maio de 1999 e 'Nino' Vieira foi obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal.

Fazendo jus à sua antiga imagem de combatente, 'Nino' regressou a Bissau em 2005 para anunciar a candidatura às presidenciais de Junho de 2005, que venceu à 2ª volta contra Malan Bacai Sanhá. Mas a sorte, que tantas vezes o protegeu, estava prestes a abandoná-lo.

Há Guineenses que dizem que, depois do regresso de Portugal, 'Nino' nunca conseguiu recuperar os poderes políticos e militares, que antes detivera. Que o poder militar se mantinha nas mãos dos que o tinham exilado e que, apesar das várias tentativas para fazer e compor alianças, o poder político se mantinha longe dele. Outros afirmam que 'Nino' foi tão bom combatente como mau político.
De herói da luta de libertação nacional a vilão e tirano, é como o retratam alguns camaradas, depois de o verem à frente dos destinos da Guiné-Bissau durante 22 dos 36 anos de Independência.

Companheiros cabo-verdianos na luta pela libertação, não esquecem que foi 'Nino' que, em 14 de Novembro de 1980, matou o sonho de Amílcar Cabral de unir os dois países. E não se coíbem também de referir que, com o golpe militar que derrubou Luís Cabral, 'Nino' abriu caminho a uma violência que durou até aos nossos dias. 

Outros contrapõem que a violência e os ajustes de contas começaram ainda antes do 1º Congresso do PAIGC, em Cassacá, Cacine, e fizeram sempre parte da vida do partido. Certo é que, nos últimos trinta anos, 'Nino' esteve sempre no centro das muitas crises que afectaram a vida da jovem República. E na sequência de mais um grave conflito político-militar, 'Nino' Vieira morreu, em 2 de Março de 2009, às mãos de alguns militares das Forças Armadas de que foi um dos principais criadores.

Ironias do destino dos antigos camaradas de luta e adversários depois: os corpos de “Nino” Vieira e o do general Tagmé Na Waié, também vítima, um dia antes, de uma explosão violenta no seu gabinete e ambos companheiros na luta pela independência, repousaram juntos, bem perto um do outro, na morgue do Hospital Simão Mendes, em Bissau, antes de serem sepultados no cemitério de Bissau, em extremos opostos.

[4] Nota do editor: em depoimento a Nelson Herbert, editor-sénior do serviço em português para a África, da Radio Voice of Amrrica (Voz da América), Luís Cabral refere-se assim ao acontecimento: 

(...) “Houve um acidente gravíssimo, acidente que todos nós lamentamos imenso. Foi numa altura em que numa prisão subterrânea deixada em Farim pelas autoridades coloniais, puseram-se lá indivíduos que nos foram entregues na fronteira do Senegal, indivíduos em número bastante elevado e houve à noite uma asfixia, falta de ar, e morreram pessoas nessa prisão. Quando tivemos conhecimento desse desastre, desse acidente, ficámos altamente perturbados e isso nem os homens que estavam directamente ligados a esses prisioneiros nem nenhum dos outros elementos da direcção do País deixaram de sofrer, sofrer mesmo, com esse acidente que vitimou várias pessoas. Isso foi uma coisa que lamentei muito e que gostava imenso que nunca tivesse sucedido.” (...) 

(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos, links, fotos, notas adicionais entre parènteses retos, título, subtítulo, síntese das partes anteriores: LG)
___________

Nota do editor:

Último poste da série  > 1 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25126: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLII: No rasto do PAIGC, a última saída da CCAÇ 21: apanhada de surpresa, em Canjufa, pela notícia do golpe de estado do 25 de Abril (pp. 272/276)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25072: Notas de leitura (1658): "Reflexos da Carta Secreta - Caso 12 de abril", por Samba Bari; Nimba Edições, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho 2022:

Queridos amigos,
O Dr. Samba Bari escreveu uma narrativa com bastante detalhe sobre os acontecimentos do golpe militar de 12 de abril de 2012, apoiado por uma parte da sociedade civil. O seu trabalho culmina com uma análise política quanto à doença crónica das insurreições militares que pautam a vida guineense depois do golpe de 14 de novembro de 1980, a partir desta data os militares sentiram carta branca para impor condições aos políticos.

 Como é público e notório, a Guiné-Bissau possui uma das Forças Armadas mais originais de África, tem mais chefes que soldados, é tudo uma questão de soldada, e na indigência ou na cupidez estes militares sentem-se à vontade para participar nos negócios da cocaína ou estar sempre a reclamar aumentos.

 É outra pecha do regime, nunca se encontrou solução idónea, depois da independência, para motivar os antigos combatentes a encontrar um rumo para a vida. Samba Bari dá-nos um bom registo de acontecimentos, pena é que não tenha levado a objetividade ao ponto de documentar as muitas alfinetadas que espeta em Carlos Gomes Júnior, isto de fazer reportagens requer distanciamento e absoluta isenção para que tais trabalhos se tornem documentos para a História.

Um abraço do
Mário



Tentar compreender a impunidade das insubordinações militares na Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Reflexos da Carta Secreta - Caso 12 de abril, por Samba Bari, Nimba Edições, 2021, é um relato detalhado dos acontecimentos de um golpe militar conduzido por António Indjai, um general ligado ao narcotráfico, tudo aconteceu em 2012 e não restam dúvidas que a vida guineense ainda não se restabeleceu deste doloroso caso insurrecional, onde, uma vez mais, vieram à tona apetites oligárquicos, casos de puro mercenarismo, em que uma organização regional (a CEDEAO - Comunidade Económica dos Estados de África Ocidental) mostrou claramente que quer, pode e manda do que ocorrer em território da Guiné-Bissau.

Samba Bari, no final da sua narrativa, procura interpretar as causas do contínuo golpismo na Guiné-Bissau. O Estado independente nasceu sob um projeto ideológico de Amílcar Cabral, a condução política pertencia ao PAIGC, os militares estavam completamente integrados e subordinados – foi assim na luta armada depois de Cassacá, prosseguiu com Luís Cabral, após 1974. 

Nino Vieira, com a sua rebelião de novembro de 1980, potenciou os militares na ribalta política, tinha nascido a cultura do golpismo, das negociatas e cumplicidades de ocasião, da tentativa de predomínios étnicos nas Forças Armadas, a entrada das altas patentes militares em negócios corruptos e no narcotráfico. Este cenário estará presente no afastamento do presidente da República interino e do primeiro-ministro legítimo, em 2012.

Samba Bari não esquece o cenário violento que se seguiu à independência, a ferocidade contra antigos militares das forças coloniais, todos os responsáveis do PAIGC não estiveram isentos de culpas; em 1985, 

Nino Vieira desembaraçou-se do comandante Paulo Correia, tudo num quadro arrepiante de tortura e mentira, assim se chegará ao levantamento conduzido por Ansumane Mané e ao afastamento temporário de Nino Vieira e da sua claque. 

O período que se segue envolve tempos de derrisão com Kumba Ialá, destituições, assassinatos, incluindo o de Nino Vieira. É nesse tempo que chefia as Forças Armadas o vice-almirante Zamora Induta, tendo como ajunto o general António Indjai, o presidente da República eleito, Malam Bacai Sanhá, eleito em 2009, gera um período de estabilidade, mas o presidente está gravemente doente, irá falecer no início de janeiro de 2012.

 Segue-se o período eleitoral, o primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior não consegue obter a fasquia dos 50%+1, iria à segunda volta com Kumba Yalá, este e outros derrotados insurgem-se perante os resultados eleitorais, reconhecidos pela comunidade internacional como legítimos. Entramos no quadro irrespirável do golpe.

Sem contestar a linha diacrónica utilizada por Samba Bari, confesso o meu desapontamento pelo teor acusativo que vai relevando para certas personalidades, o pior é que não consegue demonstrar documentalmente os fundamentos dessa franca hostilidade. Carlos Gomes Júnior, ou Cadogo, é no seu relato um verdadeiro bombo de festa, parece assumir as funções de um príncipe de Maquiavel, ora apoiando-se numa fação militar ou noutra, mas decididamente com provas provadas de que Indjai tinha ligações diretas ao narcotráfico. 

Aliás, os EUA, que tinham informações claras de quais os militares envolvidos com a droga, depois da nomeação de Indjai para o alto cargo de Chefe de Estado-maior das Forças Armadas, retiraram o seu apoio à reforma do setor da defesa e segurança, Indjai odiava Zamora Incuta, tudo fez para o destratar. A CEDEAO queixava-se repetidas vezes não haver progressos na Guiné-Bissau contra a impunidade, matava-se e não havia culpados, e era preocupante haver naquele ponto de África Ocidental um ponto de passagem de cocaína destinada à Europa, com envolvimento das altas patentes militares.

Estes acontecimentos decorrem num período em que Bacai Sanhá contava com o apoio de José Eduardo dos Santos, Angola garantia ajuda, que se concretizou, a CEDEAO não gostou, entendeu que era uma interferência na sua capoeira. 

Assim se chegará ao quadro bizarro de uma carta que terá sido escrita por Cadogo a José Eduardo dos Santos, depois mostrada pelos órgãos de comunicação social, nunca comprovada como fidedigna, e que terá espoletado a insurreição que conduziu à detenção dos altos dirigentes, a uma quase crise diplomática entre a Guiné e a Angola. Samba Bari esclarece que fez três entrevistas para este seu trabalho, ao Tenente-coronel Daba Naualna, porta-voz dos golpistas, a Manuel Serifo Nhamadjo, presidente da República de transição e a Idriça Djaló, político e analista, não se pode compreender não ter ouvido o Carlos Gomes Júnior, Zamora Induta e António Indjai, figuras de primeiro plano em toda esta trama, isto para já não falar no presidente da República interino, Raimundo Pereira. 

Nunca se documenta se houve ou não alguma fraude eleitoral ou se Kumba Ialá e outros candidatos não se sentiram imediatamente tentados a colaborar no golpe militar.

Saúda-se o modo como são descritos o golpe e o comportamento dos golpistas, não se entende porque é que não foi ouvida a fundo a direção do PAIGC, a força política predominante, e que o golpe expusera ao lamaçal. E fica claro que à CEDEAO era indiferente a essência do golpe, houve que manter internacionalmente as aparências e apoiar uma política de transição, a CEDEAO não queria investir mais apoios financeiros naquele quadro insurrecional, os doadores cortaram todos os apoios e os golpistas entraram na lista negra das Nações Unidas.

 A avidez aos cargos manifestou-se prontamente, abandonaram-se partidos, ir para ministro ou secretário de Estado tem imensas conveniências, abre portas a negócios, a despeito da suspensão de projetos financiados por doadores que podem permitir habilidades.

E no relato também são referidos os acontecimentos de 21 de outubro, um grupo de homens armados tentou tomar de assalto um regimento de elite em Bissau, mau sucedido. Foi preso o cabecilha, Pansau Ntchama, antigo subordinado de António Indjai. Como especular era fácil e demonstrar nunca acontece, as autoridades de transição atribuíram cumplicidades de Portugal, da CPLP e a Cadogo, seriam estes os três autores morais do atentado. 

O objetivo era derrubar o Governo de transição e trazer Cadogo de volta ao poder. O primeiro-ministro Rui Duarte Barros foi mais longe, tudo apontava para uma ação concertada entre elementos recrutados na zona de Casamansa e comandados pelo capitão Pansau Indjama. Toca de enviar uma carta ao Governo português exigindo extradição de Cadogo para Bissau para responder sobre o seu alegado envolvimento nos assassinatos ocorridos nos últimos anos na Guiné-Bissau.

A oposição aos golpistas não esteve propriamente de mãos atadas, formou uma frente, os seus líderes foram surrados, sequestrados, batidos, tiveram que vir fazer tratamento a Portugal. E Bari escreve: 

“Após o ataque armado de 21 de outubro, a situação do país piorou com relatos frequentes de violações graves aos direitos humanos, incluindo espancamento de cidadãos.

Para além disso, alguns elementos do grupo étnico Felupe foram acusados de apoiar o ataque. Os serviços militares de inteligência do país montaram operações de busca. E foi na sequência de uma dessas operações que aconteceu o rapto e tortura do líder da FRENAGOLPE, e Iancuba Djola N’djai, e o líder do Movimento Democrático da Guiné, Silvestre Alves.”

Vejamos como funciona a justiça na Guiné-Bissau com o julgamento de Pansau N’tchama: 

“No dia 26 de abril de 2013, em julgamento no Tribunal Superior Militar, Pansau N’tchama, Jorge Sambu e Braima Djedju foram acusados de crimes de traição à pátria e uso indevido de armas de fogo, condenados a 5 anos de reclusão efetiva. Mas em setembro de 2014 todos beneficiaram de indulto e foram libertados pelo presidente da República José Mário Vaz.”

A situação modificar-se-á com as eleições de 2014, José Mário Vaz é eleito presidente da República. A imprensa, de um modo geral, abona em prol da competência e integridade de Vaz. No entanto, Samba Bari escreve que ele foi peça central de acusação de um alegado caso de desvio de 12 milhões de dólares de ajuda orçamental doados por Angola ao governo do PAIGC de Cadogo. E depois das eleições, Vaz nomeia Domingos Simões Pereira, também do PAIGC, como primeiro-ministro, recomeçam as tricas e as faltas de respeito a nível institucional. Resta registar que foi o único mandato presidencial levado do princípio ao fim.
Os golpistas de 12 de abril de 2012 não esqueceram os roubos e as destruições
Militares no quartel de Amura, após o golpe de Estado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25061: Notas de leitura (1657): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (7) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25050: Notas de leitura (1656): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
É um testemunho de um valor inquestionável, alguém que acompanha e anota acontecimentos entre 1973 e 1976, a chegada de um novo poder a Bissau, regista as mensagens de maior impacto, cedo se percebe que não houve uma negociação séria entre o novo poder e os portugueses, os hospitais ficam sem médicos e as escolas sem professores e livros. O Padre Macedo regista as primeiras tensões com os apologistas da laicidade e da completa intromissão na obra missionária, deu faísca, as missionárias de Bafatá são as primeiras a sair. O tempo encarregou-se de alisar as propostas fanáticas como as de Lilica Boal, os missionários, depois deste período turbulento regressaram e são altamente estimados, deve-se-lhes o crescimento do catolicismo na Guiné, que não passava de um dígito magro até à independência, hoje o clero é influente, dialogante com o islamismo, as suas escolas são altamente procuradas e o trabalho na área da saúde mantém-se sem rival. Espero que a Ordem Franciscana publique o essencial deste diário, dada a sua riqueza histórica.

Um abraço do
Mário



Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (3)

Mário Beja Santos

Na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamaram-me à atenção para o número mais recente da revista Itinerarium, o n.º 227, referente ao semestre de janeiro a junho de 2020, a Itinerarium é a revista semestral de cultura publicada pelos franciscanos em Portugal. Ali aparece um artigo com páginas do diário de Frei Francisco de Macedo (1924-2006) que foi missionário na Guiné entre 1951 e 1997. O diário inclui os apontamentos do religioso sobre os primeiros anos da Independência, a matéria versada relaciona-se com a educação e as missões.

Estamos a 18 de outubro de 1974, escreve: “O ruído das pancadas é estranho! Depressa me ocorre a verdade do facto: estão a retirar as letras Honório Barreto do liceu. Pobre Honório… Até tu, que eras guinéu de têmpera e que nos dias de hoje terias sido outro Amílcar, foste considerado grande colonialista e por isso querem apagar o teu nome da memória dos homens!”

Cresce a tensão entre membros da direção do PAIGC e os missionários. Nessa mesma data, consta do seu diário: “O Sr. Prefeito Apostólico recebeu as Irmãos de Bafatá, que lhe falaram da visita da Dr. Lilica Boal à casa das Irmãs em Bafatá. É uma fanática do Partido. Disse às Irmãs que o internato teria de ser misto, o que pôs em sobressalto as pobres das Irmãs. À noite, o Sr. Prefeito recebeu notícia de que tinha sido convidado para ir ao aeroporto esperar os “Homens Grandes” do Partido, que deviam chegar ao aeroporto às 10h do dia 19. A notícia caiu bem e deu-nos ânimo.” E no dia seguinte relata a chegada de Luís Cabral, Aristides Pereira, Nino e Chico Té, houve saudação à chegada do presidente do município, Juvêncio Gomes. E regista a resposta de Aristides Pereira: “A luta continua. Cabo Verde não está livre e é preciso que connosco forme uma só nação.”

A 21, volta a anotar que a posição do novo Governo não é manifestamente favorável às missões. “Uma onda de tristeza e de derrota se apoderou de alguns de nós, ao termos conhecimento da orientação que o Partido está decidido a tomar em relação aos internatos das Irmãs. Não há chance alguma para as obras missionárias.” A 25, continua as suas considerações sobre a mesma matéria: “Pelos contactos havidos e observações feitas, se vai notando que a ação da Igreja vai ficar muito coartada pela nova orientação política. É um Governo declaradamente laico que quer tomar nas mãos toda a juventude para instruir segundo a doutrina do Partido.” Mas não deixa haver surpresas, pois nesse mesmo dia Mário Cabral preside a uma reunião com os responsáveis da Educação e professores onde anuncia que será o camarada Padre Macedo que vai ser o reitor do liceu.

Estamos agora a 28, já está decidido qual o nome para o liceu de Bissau: Liceu Nacional Kwame N’Krumah. A 1 de novembro, regista que o Internato de Bor vai ser dirigido por um elemento do Partido e escreve que o totalitarismo se está a implantar. “Frequentes vezes nos interrogamos sobre qual o melhor sistema de governo para os povos africanos. A democracia evidentemente só é possível em países onde haja respeito mútuo pelas ideias políticas e maneira de pensar de cada cidadão. Ora, isso não acontece em países africanos, onde predomina o regime patriarcal. Dizem que há muitos inimigos. Continuam em luta e tomam todas as precauções de defesa. Todas as residências dos dirigentes e responsáveis estão guardadas por militares.” Também nos dá a saber que partiram delegações da Guiné-Bissau para Lisboa, é o próprio Mário Cabral quem declara que a Guiné-Bissau necessita com urgência que os seus hospitais não fiquem sem médicos e que as escolas não parem por falta de professores e de livros escolares, apela-se à cooperação portuguesa.

Em 5 de novembro, é manifesto o seu desânimo, nunca escrevera a este nível de desfalecimento: “Desfazer, desmantelar, derrubar, demolir, arrasar, abater, destruir, destroçar, desconjuntar, desertificar, aluir todas as obras de valor cultural, assistencial ou socioeconómico, realizadas e mantidas pelos portugueses, parece ser a ideia principal de alguns responsáveis do Partido. O pensamento essencial é anular, desfigurar, dissipar, apagar da mente do povo todo o conceito de bem que possa haver a respeito do branco. O único remédio e médico para estas coisas é o tempo.” Estamos agora a 8 de novembro, iniciaram-se as aulas no liceu, sai-lhe um comentário muito pessimista: “Este estabelecimento de ensino está transformado numa fábrica de… futuros operários desempregados.” No dia 14 regista no diário que a Rádio Libertação tinha emitido naquele dia um ataque frontal aos padres: “Padres sobrealimentados… e o povo subalimentado. Queremos uma nação sem subalimentados e sem padres sobrealimentados.” É neste período que há uma troca de correspondência entre o Prefeito Apostólico e o Secretário-Geral do PAIGC, Aristides Pereira. Este procura ser habilidoso, escreve contidamente, apela a que os missionários se mantenham no seu posto, o seu trabalho é altamente meritório. Acontece que as Irmãs de Bafatá tinham recebido instruções para regressar a Portugal.

Estamos nas vésperas de Natal, a 22 de dezembro, Chico Té preside a um seminário para professores do ensino secundário, o seu apelo é provavelmente a produção, não deixa de afirmar que o Governo é laico, mas que respeita todas as crenças. A 27 de dezembro, há um seminário político em que o conferente foi o Dr. Vasco Cabral. Observou em determinada altura que a direção do Partido organizara a greve o Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959 (rotunda mentira, dirigentes máximos do PAIGC, como Luís Cabral, sempre tiveram cuidado a falar desta greve dos estivadores manjacos), o Partido tinha analisado o acontecimento e reconheceu que não podia adotar essa via dentro dos meios urbanos (o que efetivamente aconteceu foi que Amílcar Cabral foi o autor de tal observação, abrindo espaço para a organização da subversão e desvio para Conacri de militantes para sempre preparados para a luta armada, o que efetivamente aconteceu graças ao denodado trabalho de Rafael Barbosa).

O Padre Macedo ainda põe no seu diário a 30 de dezembro a referência uma conferência do Dr. Fidélis Cabral de Almada sobre a Justiça popular, e traça um quadro histórico:
“Os descobridores veem povos com leis, com costumes, com justiça, com tradições. Queriam eliminar tudo o que era costume, queriam suprimir todos os elementos de civilização. Era este o método de colonização. A regra do domínio de um povo sobre outro povo. Por isso, a noção de Justiça e de Direito foi também eliminada. O povo da Guiné foi considerado colónia de indigenato. De fazer justiça eram encarregados os chefes de posto e os administradores, gente com espírito mercenário que vieram apenas para enriquecer. Os comités de tabanca acatam os princípios em que o povo tem de mandar na sua cabeça. A eleição do comité de tabanca faz-se por eleição popular. Em 1969, o Partido chega à conclusão de que tudo está maduro para a criação da Justiça popular. Lançámos a ideia de juízes populares, eleitos pela maioria. Escrivães, professores primários, faziam parte dos tribunais populares. O nível de criminalidade diminuiu logo. Havia pena de morte por fuzilamento. A revitalização da nossa cultura nacional surge no campo jurídico.”

O diário do Padre Macedo termina em 12 de fevereiro de 1976. Espera-se que a Ordem Franciscana, perante a valia deste testemunho histórico, permita a sua publicação, contém matéria digna de reflexão para esse período em que tantas medidas foram tomadas e que o tempo se encarregou de esvaziar o conteúdo.
Missão das Irmãs Clarissas Franciscanas em Gabu, Guiné-Bissau
No sábado, dia 29 de dezembro de 2018, em Suzana, Dom Pedro Zilli teve a felicidade de viver a graça da ordenação sacerdotal do Pe. Jacinto Baliu Sibandió, o primeiro missionário da comunidade paroquial de Suzana para a Congregação dos Missionários do Santo Espírito

____________

Nota do editor

Post anterior de 1 DE JANEIRO DE 2024> Guiné 61/74 - P25027: Notas de leitura (1654): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 5 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25038: Notas de leitura (1655): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24971: Notas de leitura (1650): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Entrevistado na dimensão ainda em voga da História Oral, o comandante Pedro Pires fala da sua vida ao serviço do PAIGC e do PAICV. Confesso que me toca positivamente o que ele comenta quanto à dedicação às causas pela luta da independência dos dois países, não há para ali nem charamelas nem o vemos atrelado a nenhuma carro triunfal, resistiu a muita insídia e comentários soezes por parte da oposição, quando perdeu em 1991, faz-nos ver que Cabo Verde caminha saudavelmente como uma democracia liberal, é um verdadeiro farol africano. Não se entenderá, à luz dos conhecimentos históricos, que continue a dar como certo e seguro que Spínola e a PIDE/DGS mandaram matar Amílcar Cabral, foi mantra de grande conveniência durante algum tempo, acontece que não há nenhum, absolutamente nenhum, documento que comprove qualquer ligação do Governo de Bissau, da delegação da polícia política com o assassinato de Cabral, houvesse e dele se teria feito a devida publicitação, mas não há, não houve marinha portuguesa à espera do barco de Inocêncio Kani, e é preciso ter um grande estômago para pôr como coordenador do complô Momo Touré, não sei como pessoas com pesadas responsabilidades históricas ainda têm e tanta desfaçatez, e parecem aliviadas quando propalam tais inverdades.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (2)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu Presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel, FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires assume elevadas responsabilidades na luta da Guiné-Bissau, é um quadro político de peso e é nessa altura que é questionado pela equipa entrevistadora sobre o assassinato de Amílcar Cabral em 20 de janeiro de 1973. Começa por referir que Amílcar Cabral já tinha alertado sobre a probabilidade desse risco, a partir da recolha de várias informações de amigos no seio do exército português. Considera ter havido falhanço nos serviços de segurança, o próprio Amílcar Cabral não teria dado o valor necessário a tais informações. Nesse dia, 20 de janeiro, Pedro Pires encontrava-se na base de Kandiafara, na Frente Sul, as informações pareciam suspensas, só quase ao anoitecer é que alguém lhe veio dizer que ouvira na BBC a notícia do assassinato. Através de um emissário enviado a Boké receberam-se pormenores dos acontecimentos pelo responsável local, José Pereira, fora em Boké que Inocêncio Kani fora detido.

Uma semana depois, na companhia de outros líderes, como Nino Vieira e Cármen Pereira, estão em Conacri, assistem às cerimónias de homenagem a Amílcar Cabral, o ambiente encontrado era pesado e de muita tristeza. Pedro Pires propõe aos seus colegas do Comité Executivo de Luta a realização de uma reunião extraordinária para análise da situação, fez-se a reunião e traçaram-se novas linhas de orientação, todos voltaram para as frentes de luta, ele regressou à Frente Sul. Dá-se a sua visão sobre o apuramento das responsabilidades sobre os acontecimentos do assassinato, justifica a importância da operação Amílcar Cabral que tinha como objetivo geral a intensificação e multiplicação da ação militar nas três frentes, era necessário tornar a vida insuportável aos militares portugueses. Associa tais acontecimentos ao golpe de Estado de 25 de Abril, detalha ao pormenor o cerco a Guileje, e não deixa de ressalvar a diferença introduzida na luta pelos mísseis Strela. Fala num embate que teria tido lugar em território manjaco da qual um tenente dos Comandos africanos se passou para as forças do PAIGC.

A explicação para o assassinato do líder fundador do PAIGC pôde dar muito alívio a Pedro Pires, mas não tem qualquer consonância com factos documentais e elementos de prova. Que era urgente travar Amílcar Cabral antes que fosse tarde demais para a sobrevivência do Império português; que no plano interno português tinha crescido a oposição e o descontentamento pelos sacrifícios humanos, económicos e financeiros impostos ao país; que o prestígio e a credibilidade internacional de Amílcar Cabral atingira a sua quota máxima e estava em andamento uma dinâmica que devia conduzir à emergência do Estado soberano da Guiné-Bissau; que as autoridades coloniais, num esquema de guerra antissubversiva, aproveitara-se de alguns traidores que fomentaram a divisão do PAIGC entre guineenses e cabo-verdianos; refere antecedentes como a Operação Mar Verde, em que se procurara liquidar Amílcar Cabral; que Inocêncio Kani era o principal responsável pelo crime de traição.

Este mantra fez o seu percurso útil para liquidar os elementos do complô que os tribunais revolucionários decidiram, fez-se um hábil desvio histórico da fundamentada e multisecular tensão entre guineenses e cabo-verdianos, hoje é argumento de venda para puros nostálgicos, faz deliberadamente esquecer que não se podem entender os acontecimentos de novembro de 1980 e o afastamento da liderança cabo-verdiana na Guiné sem ter em conta a tensão existente em Conacri e mesmo nas bases do PAIGC no interior da Guiné, Pedro Pires nem refere que no dia do assassinato Inocêncio Kani esteve sempre na companhia de Osvaldo Vieira, e que este assistiu à distância ao assassinato do líder – pormenor de pouca importância, claro. Para consolo de nostálgicos e permanente enigma para a história é a destruição de todo o material que se acumulou sobre os julgamentos dos elementos associados ao assassinato. Há explicações que são de farsa, pôr o Momo Touré a liderar uma sedição de centenas de pessoas é por de mais caricato, não tinha nem envergadura nem credibilidade para tal cometimento. E penso que não se tem feito qualquer pressão para ouvir as figuras que participaram nos julgamentos (caso de Joaquim Chissano), que disseram ter lido toda a documentação (caso de Ana Maria Cabral), os testemunhos de quem compareceu em tribunal e não sofreu da pena capital, etc. São de presumir razões fundadas para manter esta pesada barreira de silêncio.

Pedro Pires fala do segundo congresso do PAIGC, da eleição de Aristides Pereira, a líder do PAIGC, e descreve-se o processo da Independência da Guiné-Bissau e tudo quanto aconteceu até ao reconhecimento de Portugal da Guiné-Bissau como Estado independente.

Não se pode desdizer que Pedro Pires não seja um homem de consciência tranquila sobre o seu comportamento político como Primeiro-ministro de Cabo Verde, e ele próprio explica os insultos miseráveis que sobre ele proferiram elementos de oposição. Teria tudo a ganhar em mostrar de corpo inteiro que soubera perder as eleições em 1991, que as calúnias proferidas ficaram por demonstrar, responde aos seus entrevistadores com elevado nível de tolerância, escusava de dizer qual era, no seu entender, a origem do MpD:
“Muitos foram militantes do PAICV. Por outro lado, houve gente de boa-fé entusiasmada com a abertura política que quis uma alternativa ao PAICV. Era um grupo heteróclito. Constituía uma autêntica frente dos contra. Faziam parte desta aliança ex-militantes do PAICV dececionados, os trotskistas, os herdeiros do colonialismo, os despromovidos socialmente que tinham perdido privilégios de classe, funcionários desonestos sancionados, os imediatistas à espera de resultados milagreiros em curto prazo, gente que discordava da Independência, também pessoas de boa-fé que queriam uma mudança do Governo e, ainda, os fiéis que acreditaram nas intrigas veiculadas pelo clero católico, pela rádio e pela imprensa escrita de inspiração católica. Foi mais ou menos isso. Era esse o contexto sociopolítico em que lutou o PAICV, naquela altura, e os adversários contra os quais se tinha batido”.

Comentários completamente escusados, diga-se em abono da verdade. Ao comandante Pedro Pires saem por vezes comentários que não o dignificam. Já aqui repontei com aquela sua tirada de que os Comandos Africanos cobiçavam trazer artigos das bases do PAIGC, eram artigos que eles não tinham à sua disposição no mercado da colónia, escreveu num prefácio do livro O PAIGC Perante o Dilema Cabo-Verdiano (1959-1974), de José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015. Enfim, dislates pouco abonatórios para um líder do seu tamanho.


Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
____________

Notas do editor

Poste anterior de 11 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24943: Notas de leitura (1648): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24960: Notas de leitura (1649): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (3) (Mário Beja Santos)