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sexta-feira, 29 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16033: Nota de leitura (834): Panos de Cabo Verde e Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

Pano guineense

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2015:


Queridos amigos,


Há quem esqueça que as esculturas Nalus e Bijagós são exibidas nalguns dos museus mais exigentes em todo o mundo.

Dentro do artesanato há igualmente expressões de grande valor, mostra de grande sensibilidade, é o caso da panaria, o tecer foi trabalho dos escravos transportados da Senegâmbia para Cabo Verde, o tecer na África Ocidental está documentado desde os tempos mais remotos.

A exposição de que iremos falar realizou-se em 1996 no Museu Nacional de Etnologia e foi um senhor acontecimento, destinada a graúdos e miúdos, muitíssimo bem documentada, foi um primor. Bom seria que estes panos que fazem parte de um riquíssimo acervo do museu deambulassem pelas escolas e pelas localidades onde reside a comunidade guineense instalada em Portugal.

Um abraço do
Mário


Panos de Cabo Verde e Guiné-Bissau

Beja Santos

Entre Abril e Novembro de 1996 decorreu no Museu Nacional de Etnologia a exposição Panos de Cabo Verde e Guiné-Bissau. Por diferentes títulos, foi uma exposição modelar. O museu possui um acervo riquíssimo de panaria cabo-verdiana e guineense. A ideia central da exposição foi a de propor um diálogo com as comunidades cabo-verdianas e guineenses, pensou nos mais novos e em divertimentos multiculturais. Preparou-se igualmente uma excelente documentação, corrigiram-se informações que permitiram avaliar as mutações ocorridas desde a criação do museu (anos 1960) e o fim do século XX. O ponto de partida foi o livro de referência de António Carreira, "Panaria Cabo-Verdiana-Guineense", de 1968, reeditado pelo Instituto Cabo-Verdiano do Livro em 1983.

É sobre a rica documentação produzida que vamos dizer alguma coisa. Nos países da África Ocidental ao Sul do Saara – numa área situada entre o Senegal, a Oeste, e os Camarões a Este – há a tradição de os tecelões produzirem panos de algodão de bandas estreitas, que geralmente não ultrapassam os 25 centímetros de largura, em teares horizontais. Este pano de bandas estreitas é a expressão da tradição e da inovação na tecelagem de Cabo Verde e da Guiné, e está mesmo presente na vida dos emigrantes.

Perde-se na noite dos tempos a tecelagem na África Ocidental, nos apontamentos refere-se a importância da tecelagem no Reino do Gana, por exemplo. Os relatos dos séculos XV e XVI sobre os povos africanos com que se estabeleceram relações comerciais e de amizade dão-nos conta da antiguidade da tecelagem. Cadamosto e Valentim Fernandes referem que a maior parte da gente andava nua mas as mulheres e os homens de estatuto superior usavam roupas de algodão, panos e camisas, compridas e de mangas largas. Os panos vincavam o estatuto social e a hierarquia política dos seus possuidores. Esta tecelagem tem origem em Cabo Verde e depois migrou para a Guiné, onde o pano de bandas continua a ter um papel importante nos momentos ritualizados dos diferentes grupos étnicos; em contratos e cerimónias de casamento muçulmano, nos funerais e no amortalhamento de cadáveres, no pagamento de práticas de adivinhação. Escreve-se nos apontamentos desta exposição que Fulas e Mandingas, no pedido de casamento, a mãe da noiva recebe do emissário do noivo bandas brancas de algodão. Refere-se mais adiante que o vestuário tradicional dos Fulas e dos Mandingas islamizados é o pano de bandas azul-escuro ou claro tingido pelo Saracolés. Os Manjacos e os Papéis usam panos com decoração elaborada e com grande semelhança com a panaria cabo-verdiana.

Era explicado na exposição que os panos apresentados tinham sido recolhidos em 1963, na Guiné, por Fernando Quintino, e em 1964 e 1970, em Cabo Verde, por António Carreira. Os currículos e a vida de investigação de Quintino e Carreira aparecem muito bem detalhados.

Depois produziu-se documentação para o meio escolar, a história dos panos contada na escola. Diz-se concretamente que no século XV já se exportava bastante algodão para Portugal, Flandres e Espanha, e foi com este produto que se passaram a fabricar, a partir do segundo quartel do século XVI, milhares de panos com os quais se adquiriam por compra, escravos na Costa da Guiné.

A produção de panos em Cabo Verde está diretamente relacionada com os primeiros contingentes de escravos que vêm da Guiné (entenda-se, a Grande Senegâmbia). Assim o tecelão surgiu em Cabo Verde com o escravo africano. Sobre o pano artesanal na Guiné-Bissau e a sua recuperação nos anos de 1980 escreve Isabel Mesquitela, alguém de quem aqui se já se falou. Isabel Borges Pereira Mesquitela foi para a Guiné-Bissau em 1986, descobriu que a panaria guineense tinha praticamente desaparecido, procurou contribuir para a recuperação de uma arte ancestral de grande beleza. O declínio da panaria manifestou-se nos anos 1960, entre um pano de importação europeia e um pano produzido num tear Manjaco o preço podia variar sete vezes mais. Para essa recuperação, como ela escreve, selecionou-se Calequisse, Bafatá e Gabu: Calequisse era considerada o berço dos tecelões Manjacos, em Bafatá viviam famílias de tintureiros Saracolés, e o Gabu por ter uma tecelagem diferente da dos Manjacos. Vale a pena ler o que ela escreve:

“A importação do fio de algodão fiado nas fábricas portuguesas, o grande desejo dos velhos artesãos voltarem aos teares, a valorização e promoção dignificada do pano e as boas condições económicas proporcionadas aos tecelões, foram os agentes fundamentais para sucesso da empresa M’Banyala, Panos da Guiné-Bissau (a palavra é de etnia Manjaca e significa mostra de bandas)”.

Noutro contexto, Isabel Mesquitela confessou o seu desalento quando, a partir de 1994, não pôde prosseguir com o seu projeto empresarial, tais e tantos foram os condicionalismos impostos que desviaram de forma drástica os índices de qualidade e de beleza que sempre caracterizaram a tecelagem guineense. Ela escreveu um livro sobre o pano artesanal na Guiné-Bissau, socorreu-se do clássico de António Carreira “Panaria Cabo-Verdiana-Guineense”, descreve minuciosamente o tear Manjaco/Papel e o que o distingue do tear Fula. Explicando como estes panos são feitos em peças chamadas bandas fala da panaria. Um pano de banda estreita mede aproximadamente 1,2 m x 1,8 m. É constituído por seis bandas de aproximadamente 0,2 m x 1,8 m. Às barras transversais das pontas chamam “boca” e o padrão em si, entre duas bocas é denominado corpo. Isabel Mesquitela elenca os padrões recuperados. Dá igualmente atenção ao pano tingido que tem longa história nesta região de África. Segundo António Carreira, os Mandingas eram bastante entendidos na arte de tingidura de panos.

Esta exposição que decorreu no Museu Nacional de Etnologia produziu documentação do maior interesse, incluía mesmo legendas e explicações sobre as peças expostas e incluía glossário explicando, entre outros termos, o que eram anil, banda, pano, pano boca-branca ou pano de pente ou pano d’obra.

Creio que foram deixados vários aliciantes para uma visita ao Museu Nacional de Etnologia. A panaria guineense merece ser conhecida.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16013: Nota de leitura (833: “A descolonização da Guiné-Bissau e o movimento dos capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016 (2) (Mário Beja Santos)