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segunda-feira, 21 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23098: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (22): Lugares da Guiné

Carta Geral da Província da Guiné
© Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Em mensagem do dia 18 de Março de 2022, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71), lembra os locais da Guiné por onde peregrinou.


RECORDAÇÕES DA CART 2520

22 - LUGARES DA GUINÉ

A CART 2520 enquanto sediada no Xime exerceu uma grande actividade fora do arame farpado, tanto a nível de Companhia ou de pelotão e conjuntamente com a CCAÇ 12 e os Pelotões de Caçadores Nativos 52 e 54, originando para os operacionais um enorme trabalho e também um grande desgaste físico e psicológico. O 3.º pelotão a que pertenci, percorreu praticamente todos os cantos, trilhos e picadas da zona operacional. Por mero acaso fui tomando alguns apontamentos numa pequena pasta onde guardava a minha correspondência e que actualmente a conservo quase religiosamente.

A partir destes curiosos apontamentos, da minha memória e com recurso à carta do Xime e de outros locais, elaborei uma lista que vou partilhar com os camaradas da nossa Grande Tabanca, ou melhor, da Tabanca Grande, dos lugares da Guiné por onde andei, incluindo também os lugares da segunda fase da nossa passagem pelo Ultramar quando a nossa Companhia assentou arraiais em Quinhamel:

Bissau - Início da comissão em 30 de Maio de 1969, alguns dias. Em Junho e Julho de 1970 várias vezes e em Março de 1971
Brá - Primeiras dormidas na Guiné antes da partida para o Xime
Xime - Base da CART 2520 durante o 1.º ano, Junho de 1969 a Junho de 1970
Bambadinca - Um sem número de deslocações com a finalidade de alguns reabastecimentos, ir buscar e levar correio e outros serviços
Mansambo - Primeiras 3 semanas para o treino operacional com o 3.º pelotão
Bafatá - Várias idas com a finalidade do Vaguemestre comprar vacas para nossa alimentação
Ponte Rio Udunduma - Por inúmeras vezes como mini destacamento e de passagem para Bambadinca
Enxalé - Mais de dois meses como destacamento e para segurança da população
Finete - Patrulhamento até ao Enxalé
Mato de Cão - Patrulhamento a partir de Finete até ao Enxalé
Mato Madeira - No percurso entre Finete e Enxalé
Malandim - Zona do Enxalé, patrulhamento
Gambana - Nas proximidades do Enxalé, patrulhamento
Madina Colhido - Inúmeros patrulhamentos e montagem de emboscadas e de seguranças aos barcos que passavam no rio Geba
Ponta Varela - Em operações
Ponta do Inglês - Três passagens em Operações
Foz do Corubal - Uma passagem em Operação
Ponta Coli - Dezenas de seguranças para a passagem de colunas da nossa Companhia e de outros militares
Ponta Luís Dias - Passagem durante Operação
Mouricanhe - Em Operação
Chacali - Em patrulhamento
Chicamiel - Em Operação
Poidon - Em patrulhamentos
Háfio - Em operações
Darsalame/Baio - Em Operações
Buruntoni - Em Operações
Colicumbel - Em patrulhamentos
Lantar - Proximidades do Xime em patrulhamentos
S. Belchior - Em operações
Malafo - Patrulhamento
Bissilão - Em Operações
Gundagué Beafada -Em operações
Amedalai - Ponto de passagem obrigatório para colunas a Bambadinca
Samba Silate - Em patrulhamento, passando por Amedalai
Taibatá - Colunas de apoio à população
Demba Taco - Colunas de apoio à população
Quinhamel - Base da CART 2520, tendo divergido para Safim, João Landim e posteriormente para o Biombo
Safim - Base do 3.º pelotão - Junho, Julho e parte de Agosto de 1970
João Landim - Permanência de dois meses com uma secção
Nhacra - Breve passagem
Biombo/Ondame - Entre Setembro de 1970 e Março de 1971 como destacamento
Blom - Tabanca nas proximidades do Biombo
Blimblim - Tabanca nas proximidades do Biombo
Dorce - Tabanca nas proximidades do Biombo
Ponta Biombo - Patrulhamentos e momentos de descontração
Ilondé - De passagem
São Vicente da Mata - De passagem
Cais de Pigiguidi - Chegada a Bissau e "Adeus Guiné"

José Nascimento

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22311: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (21): Martins, o caçador de rolas

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22620: Notas de leitura (1388): Um acontecimento científico de renome: A Missão Geoidrográfica da Guiné (1947-1957) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
Jamais em tempo algum naquele período que levei de idas quase diárias de Missirá a Mato de Cão, uma espécie de patrulhamento com segurança da entrada do Geba estreito, para evitar eventuais ataques à roquetada por parte do PAIGC, que aconteceu entre agosto de 1968 e novembro de 1969, associei a existência de um medidor hidrológico em belíssimo estado, o que apodrecera fora o passadiço em madeira entre a estrada e aquela peça para a qual eu olhava como boi para palácio, uma estranhíssima relíquia de outras eras, eu estava ali era para ver passar bairros militares e civis em completa segurança. Pois aquele medidor estava ali por obra e graça desta missão geoidrográfico, seguramente que aquelas tabelas de marés seriam essenciais para a circulação marítima e muitos outros conhecimentos. Admirador e devedor de Teixeira da Mota, modestíssimo seguidor do seu amor pela Guiné, trago-vos ao conhecimento este trabalho do investigador Carlos Valentim.

Um abraço do
Mário



Um acontecimento científico de renome:
A Missão Geoidrográfica da Guiné (1947-1957)


Beja Santos

O investigador e oficial da Armada Carlos Manuel Valentim escreveu no n.º de outubro-dezembro de 2006 dos Anais do Clube Militar Naval um artigo intitulado “Teixeira da Mota na Missão Geoidrográfica da Guiné (1947-1957)”. Esta missão foi de um excecional valor científico, trouxe um conhecimento em profundidade que permitiu um mapeamento como jamais existira da geoidrografia guineense, foi a alavanca para cartas geográficas que mantêm um valor incalculável. O trabalho desta missão iniciou-se no pós-guerra, prendia-se com a necessidade de modernização em bases científicas para assegurar um desenvolvimento racional ao Ultramar português, era a proposta para o trabalho da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, designação que seria reformulada com a revisão constitucional de 1951. Marcello Caetano, enquanto Ministro das Colónias, apostara na ocupação científica do Ultramar, era um imperativo para cimentar a soberania portuguesa. É a altura de falar de Avelino Teixeira da Mota.

Em novembro de 1947, Teixeira da Mota cessara as funções de Ajudante de Campo do Governador Sarmento Rodrigues e passou a prestar serviço na missão geoidrográfica da Guiné Portuguesa. Deixara o cargo altamente prestigiado: foi o motor da organização e primeira fase da publicação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, contribuíra para um inquérito etnográfico, base de uma nova carta geográfica e etnográfica da colónia. O governo condecorou-o com a Medalha de Prata dos Serviços Distintos ou Relevantes do Ultramar. Teixeira da Mota irá ficar ligado à missão geoidrográfica até 1957. Apaixonara-se por aquela parcela de território africano, vai recolhendo elementos essenciais para futuros trabalhos com destaque para a sua monografia (ainda hoje em alguns pontos incontornável) da Guiné Portuguesa, publicada em 1954. Prestará serviço no navio hidrográfico Mandovi, Teixeira da Mota é 2.º Tenente. Toma posse do lugar mas vai participar na 2ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, que se realizou em Bissau em novembro de 1947. Como diz Carlos Valentim, a Hidrografia era um mundo à parte na Marinha: “O trabalho hidrográfico nos territórios ultramarinos de África associava um saber científico e técnico, baseado em disciplinas como a Matemática, a Geofísica, a Cartografia, a Biologia Marinha, a Geodesia, a Topografia, a uma aura de aventura, proporcionando um contato profundo com o meio marinho, no oceano ou próximo da costa, nos estuários e nos canais navegáveis, e em terra, por vezes em períodos longos de exploração, em contactos estreitos com as populações locais”. Era um ramo da investigação que tinha pergaminhos na Guiné, estavam inventariados trabalhos hidrográficos e geográficos entre os finais do século XIX e 1916.

Em novembro de 1947 o 1.º Tenente Pereira Crespo, que será o último Ministro da Marinha do Estado Novo, assumirá as funções de comandante do Mandovi, o navio encontrava-se praticamente reparado, houvera uma transformação completa dos seus equipamentos que custara ao Estado 8 mil contos. Carlos Valentim elenca os aspetos práticos do abastecimento, da guarnição branca e indígena, logo nesta primeira fase. Teixeira da Mota continua a produzir os seus trabalhos aproveitando fundamentalmente o período da época das chuvas, contacta com os membros do Institut Français de l’Afrique Noire, prestigioso centro de investigação científica da África Ocidental Francesa, aquando das reparações do Mandovi nos estaleiros de Dacar. Em 1950, Teixeira da Mota publica a sua primeira obra de fôlego, sobre a toponímia de origem portuguesa usada para denominar vários locais na costa ocidental de África, a comunidade científica internacional endereça-lhe público louvor. A monografia sobre a Guiné Portuguesa espelha o seu conhecimento e estudo sobre África. Como observa Carlos Valentim, era o corolário de quem aprendera a viver em África, no meio das populações africanas, a estudar a cultura e as sociedades com o rigor da observação e encará-las de um modo que diferia da maioria dos outros europeus. Entretanto o Mandovi irá ser substituído por outro navio hidrográfico, o Pedro Nunes, será o seu comandante quem lhe dará o último louvor em novembro de 1957 quando Teixeira da Mota findou a sua prestação de serviço na missão geoidrográfica.

A última parte do artigo de Carlos Valentim é um levantamento sumário dos trabalhos da missão. Logo à partida: medição de uma base geodésica em Bissau; desenvolvimento da base e reconhecimento de uma triangulação formada por figuras fechadas que ligam geodesicamente Bissau e Bolama; determinação de declinação magnética, inclinação, e componente horizontal em Bissau e Bolama; sondagem parcial do porto de Bolama e observação das marés em Caió, Bolama e Bissau. Escreve Pereira Crespo: “A realização de trabalhos hidrográficos na Guiné é tarefa dura, difícil e demorada. Todas as condições e todos os elementos se parecem conjugar para dificultar tais trabalhos. Mau clima, má visibilidade, costas baixas, que em virtude das marés – 5 a 6 metros – ou se transformam em enormes zonas de lodo, ou em denso arvoredo semimergulhado. Correntes impetuosas. Más condições de mar motivadas pelo vento e correntes. E principalmente a preocupação permanente da segurança do navio e embarcações, navegando em zonas baixas, rodeadas de perigos, e por cartas que são certamente das mais erradas do mundo”. E conclui Carlos Valentim: “Durante dez anos, os levantamentos topográficos e hidrográficos, triangulações e sondagens, trabalhos em terra e no mar, fizeram da missão geoidrográfica da Guiné um empreendimento científico/técnico – modelo para o conjunto dos territórios ultramarinos que Portugal dominava.”

Navio hidrográfico Mandovi (1945). Imagem extraída do blogue “Os Rikinhus”, com a devida vénia.
Navio hidrográfico Pedro Nunes. Imagem extraída do blogue “Os Rikinhus”, com a devida vénia.
Avelino Teixeira da Mota
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Nota do editor

Último poste da série de4 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22596: Notas de leitura (1387): Imagens à procura de comentários: Augusto Trigo e a CART 1746 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22558: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XIII: o fatídico dia 6 de outubro de 1966, duas minas A/C, dois mortos, no Mato Cão


Guiné > Zona Leste> Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá, Porto Gole, 1965/67)  > Estrada que atravessava a bolanha depois de Mato Cão  quando se vinha de Missirá para Enxalé



Guiné > Zona Leste> Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá, Porto Gole, 1965/67) > Ao meio, o furriel de transmissões, à direita de costas, o capitão Pires e à esquerda o fur mil op esp António dos Santos Mano, que irá morrer em 6/10/1966, na sequência de uma mina A/C, na estrada Missirá-Enxale.


Guiné > Zona Leste> Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá, Porto Gole, 1965/67) >Embora não possa pôr as mão no fogo sobre a sua exactidão, creio que foi este o Unimog  da coluna de 6 de outubro  que vinha a Missirá  a Enxalé. Eu estou nesta  foto ( em pé, o 3º da esquerda) que me parece ter sido tirada um dia quando eu estava em Missirá  antes do Zagalo .   

Fotos ( e legendas): © João Crisóstomo (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



João Crisóstomo
(a viver em Nova Iorque desde 1977)


1. Continuação da publicação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história”
como eu a lembro e vivi
(João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)


Parte XIII: Um dia fatídico, 6 de outubro de 1966, duas minas A/C, dois mortos


Depois de 9 Set 1966 (o ataque a Enxalé):

Haverá com certeza muito a lembrar sobre a vida e actividades da CCaç 1439 depois do ataque a Enxalé. Recordo apenas de ter ficado surpreendido e consternado que o IN tivesse tido a coragem de vir atacar a própria Sede da Companhia, onde, pensávamos, estávamos bem seguros.

Lamentavelmente nem eu (mea culpa, mea culpa) nem ninguém mais teve o cuidado de pôr algo em papel para memória desses dias que se seguiuram e portanto nada mais me resta do que continuar esta “história da CC1439” como se tudo continuasse como antes e este ataque não tivesse acontecido. 

De facto, as várias minas de que fomos vítimas, a seguir, o ataque a Missirá e outros acontecimentos levam-me a concluir que este ataque a Enxalé é evidência de que o IN se sentia cada vez mais à vontade para se aproximar das NT, intensificar os seus ataques e aumentar o seu campo de acção. Foi isso que senti e mais tarde vim a confirmar ao ler o primeiro livro de Beja Santos ,“ Diário da Guiné, na Terra dos Soncó”.


Dia 23 de Setembro de 1966

Copio à letra o relatório:

(...) " Um grupo de combate da CCaç 1439 participou na Op Girândola que consistiu numa acção ofensiva na mata de Belel. As NT detectarm um acampamento IN o qual se encontrava abandonado. Foram destruidas as casas de mato e culturas, No regress as NT foram emboscadas duas vezes não tendo sofrido qualquer baixa." (...)

Não posso dizer as datas, mas sei que entre as muitas lacunas deste relatório contam-se muitas “patrulhas de reconhecimento” que fazíamos, e que não chegavam a receber o termo pomposo de “operações”. Umas fáceis e outras “menos fáceis”. 

Lembro de várias vezes termos permanecido , como que emboscados junto de picadas suspeitas de serem usadas pelo IN. Lembro de ter uma vez descansado ao fim do dia com a minha cabeca em cima de uma pedra antes de tomarmos posições para passar a noite junto a uma picada ; não sei se foi nesta mesma ocasião ou foi noutra em que fiquei numa depressão de terreno ( talvez fosse mesmo terreno de bolanha, não sei) e eu fiquei com água pela cintura, quase louco de frio,  esperando que o dia chegasse depressa e não aparecesse ninguém na picada.

Um destes casos, que não constam deste relatório, aconteceu nos dias 4 e 5 de Outubro. E creio que o efectivo das NT neste dia não era de um simples pelotão mas bem maior . A razão de eu lembrar este caso e não outros deve-se ao seu relacionamento com o dia fatídico de 6 de Outubro.



Guiné >Zona Leste> Sector L1 > Bambadinca > Estrada Enxalé-Missirá > Sítio do Mato Cão > 6 de Outubro de 1966 > Cratera povocada por uma mina A/C cuja explosão provocou a morte do Soldad Manuel Pacheco Pereira Junior, da CCaç 1439. Era natural de São Miguel, Açores. Os restos mortais (cerca de 3kg) ficaram no Cemitério de Bambadinca, Talhão Militar, Fileira 2, Campa 1, Guiné-Bissau. NO regresso de Missirá, a mesma coluna accionou outra mina A/C que decepou a perna do Fur Mil Op Esp António dos Santos Mano, acabando por morrer.

Foto (e legenda): © Henrique Matos (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dia 6 de Outubro de 1966, um dia fatídico

Copio à letra o que consta no relatório: e escreverei depois “a minha versão” como as coisas se passaram, baseado na minha memória, por vezes bem fresca sobre casos como este, e também na memória de outros com quem tenho falado sobre o assunto.

(...) "As NT acionaram dois engenhos explosivos quando se efectuaram duas colunas, uma vinda de Missirá (para) Enxalé, e outra ao encontro da primeira. Os engenhos explosivos encontravam-se em pequenas poças de água, embora se tivesse os cuidados julgados necessaries na picada da estrada.

"Resultados dos dois engenhos explosivos:

Dois Unimogs destruidos
Uma espingarda G3 perdida em virtude de ter sido projectada para o Rio Geba.

Baixas sofridas pelas NT:

Furriel Mil António dos Santos Mano ( morto em combate) (**)

Soldado 203/65 Manuel Pacheco Pereira Jr. ( morto em combate) (***)

Furriel Mil ( Mec Auto) Octávio Albuquerque da Silva ( ferido)

1º cabo 7316565 Manuel Abreu Velosa 

1º cabo 3456665 José Firmino Quintal 

Soldado 9311265 Ernesto Camacho Rodrigues 

Sold 7317965 Manuel Correia

Sold 5974165 Francisco de Freitas Timóteo 

Sold 1011265 Manuel de Sousa Mendes

1º Cabo 9271565 José Ilídio Andrade Gouveia .

Soldado 8356465 Manuel Alves Junior

Sold 9805565 Agostinho Gerardo 

Sold cond auto  2630164 José Maria Mendes 

Sold cond auto5140464 Jerónimo Gonçalves Sadio 

Caç Nat Contratado Pucha Nanan, ferido

Foi detectado na região de Mato Cão uma armadilha antipessoal a qual foi destruida. Foi distinguido nesta acção o soldado telefonista 2642365 Júlio Martins Pereira, louvado pelo Cmdt Militar e condecorado.

Este foi um dia fatídico e traumático para todos e que todos mais ou menos lembram imediatamente quando se fala dele.

O Alferes Zagalo estava destacado neste momento em Missirá e precisava de reabastecimentos. Sabendo que o pessoal em Enxalé estava exausto e não podia fazer uma coluna para o abastecer, resolveu vir ele mesmo a Enxalé buscar o que precisava. A sua coluna constava de um jipe e um Unimog, com todo o pessoal que estes podiam transportar.

Antes de chegar a Mato Cão o Unimog pisou uma mina anticarro escondida numa poça de água. O jipe tinha-se desviado para evitar essa poça, precaução que o Unimog não teve.

Os resultados podem-se avaliar pelas fotos e pelo número de mortos e feridos. Entre estes o Furriel Mano. Como o Unimog vinha superlotado , ele vinha em cima do Unimog mas com a perna de fora e veio a falecer no local antes da chegada do helicóptero.

Houve ainda um outro morto, José Moreira, caçador nativo “contratado” e uma dezena de feridos, alguns deles com muita gravidade que foram evacuados para Bissau. A situação era desesperada e nem meios de comunicações para pedir auxílio tinham. Pelo que o soldado de comunicações Júlio Pereira que felizmente não estava ferido, pegou na sua G3 a tiracolo e foi a correr vários quilómetros , sujeitando-se a ser apanhado pelo IN em direcção a Finete, na margem do Geba, oposta a Bambadinca.

Aqui ,com a ajuda do pessoal amigo desta tabanca, conseguiu passar o Geba numa canoa e chegar a Bambadinca onde lhe facultaram um rádio para chamar os helicóperos e avisar Enxalé do sucedido.

 Em Enxalé esperávamos passar esse dia como um dia de descanso .O pessoal da Companhia tinha acabado de regressar duma dura saída ao mato ( embora nada conste no relatório) e estávamos todos exaustos. E de manhã ouvimos ao longe um estrondo, mas não fazíamos idéia do que fosse. Passado o que me perece ter sido mais de um hora recebemos notícia de que a coluna do Zagalo tinha sofrido uma mina, havia feridos e que os helicópteros já estavam a caminho.

Ficamos todos preocupados, incluindo o capitão Pires. Quando este disse que era preciso ir ao encontro da coluna para ajudar o Zagalo, eu ofereci-me. Ele aceitou logo e disse-me: “Eu sei que o pessoal está todo estafado. Pega em todo o pessoal de serviços que ficaram no quartel (nos dois dias anteriores) e vê se arranjas mais alguns voluntários. Se não arranjares voluntários, diz-me que eu arranjo-os."

Assim fiz e depois de ter dados instruções a todo pessoal de serviços, antes de perguntar a outros por voluntários,   eu chamei o meu pelotão, certo de que haveriam alguns que iriam comigo. Foi para mim uma sensacão tremenda quando, logo após eu ter dito o que precisava, eles barafustavam como se eu os tivesse ofendido; que não havia um nem dois e que iam todos . “O que é que o nosso alferes está a pensar da gente?” ouvi o “Figueira” a dizer para os outros .

E assim fomos, picadores à frente, um Unimog vazio a seguir e o resto da coluna atrás , caminhando tão ligeiro quanto possível. A região de Mato Cão é uma passagem muito perigosa: a estrada passa perto do Geba e do lado esquerdo há uma colina. Era sempre com o coração nas mãos que aí passava.

Por isso ao passar a bolanha que precede Mato Cão, já perto deste eu disse ao furriel Lopes: "Olha, Lopes, isto é mesmo um bom sítio para uma emboscada; eles sabem ( o IN) que a gente (ao ouvir o rebento duma mina) não deixa de vir e são capazes de estar à nossa espera. Pega na tua secção, sobe e faz um reconhecimento pela esquerda". 

Ele assim fez e a coluna continuou; e depois, logo passada a bolanha, de repente houve um grande estrondo e o Unimog deu um salto pelos ares. A mina, como o que sucedeu com a coluna do Zagalo, estava dentro duma poça de água e não foi detectada pelos picadores.

Imediatamente nos deitámos nas redondezas do buraco e do Unimog destruido, prontos a responder, mas nada sucedeu. E depois de algum tempo respirei fundo; ao fim e ao cabo podia ter sido muito pior, pensei eu: perdeu-se o Unimog, mas o importante é que não há mortos nem feridos. E não me recordo do que sucedeu a seguir, e o que foi o resto do dia, mas imagino (agora) o que terá sido para todos quando soubemos da morte do furriel Mano e dos vários feridos.

De volta no Enxalé, no dia seguinte fez-se a formatura geral de manhã. E parecia estar tudo certo, até que quando foi chamado o nome do Manuel Pacheco ( conhecido de todos como o Açoriano por ser dos Açores e o único soldado que não era madeirense) ele não respondeu. Perguntei se alguém o tinha visto ou se alguém sabia onde ele estava e foi então que alguém disse : "Quando o vi ontem a última vez ele estava a caminhar junto do Unimog… com certeza por não ter ouvido as intruções do furriel Lopes a cuja secção ele pertencia, ele estava junto do Unimog quando a mina rebentou"…

Imediatamente voltamos ao local (recordo que o Alferes Henrique Matos que estava naquele dia em Enxalé decidiu ir connnosco ) . Reproduzo o testemunho que sobre este momento ele deixou neste blogue, referindo-se ao Manuel Pacheco: no dia 10 de maio de 2008, poste P 2830 (***):

(...) "Quando digo pulverizado é o termo que melhor descreve a situação, pois sou um dos que andou à procura de restos do corpo e apenas encontrámos pequenos fragmentos de ossos com que fizemos um embrulho que pesava poucos quilos. Tem a sua campa em Bambadinca, como se pode ver na relação do Marques Lopes (...). A G3 dele nunca mais se viu, pensando-se que terá voado para o Geba que passa a não muitos metros de distância."

Mais informa ainda no poste P15998 (**), referenciando o lugar da sua sepultura: (...) "Era natural de São Miguel, Açores. Os restos mortais (cerca de 3 kg) ficaram no cemitério de Bambadinca, talhão militar, fileira 2, campa 1, Guiné-Bissau".

Como já está dito foram momentos tristes e difíceis estes,  em que com todo o respeito fomos juntando o que restava do nosso querido ‘Açoriano'. Lembro também o momento em que os seus restos sairam depois do Enxalé, num caixão normal, como se dentro estivessem uns restos mortais completos.

Durante esta busca pelos seus restos mortais e pela G3 que desapareceu , e que deve ter sido projectada com tanta violência que atingiu o Geba , mesmo ao lado da estrada, veio-se a descobrir uma mina antipessoal. A nossa sorte foi que alguém viu um fio, suspeitou e …lá estava uma mina, que foi destruida no mesmo momento.

16 e 27 de Outubro:

O relatório menciona a seguir três operações neste mês de Outubro de 1966:

Operação Grude a 16 de Outubro, 
Operação Grisu a 16 de Outubro 
Operação Giesta, a 27.

As três são descritas como “patrulhas de reconhecimento fluvial e terrestre ao longo do Rio Geba.” Sem qualquer acontecimento digno de nota. Mas há com certeza engano nas datas pois, tendo nós os forças divididas/destacadas em Missirá e Porto Gole, além de não podermos deixar Enxalé sem protecção, não me parece que fosse possível fazer duas operações no mesmo dia.

(Continua)

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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21932: Os nossos camaradas guineenses (46): O Jobo Baldé, o padeiro de Missirá e depois do Mato Cão, Pel Caç Nat 52, ferido ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), e que sonhava vir para Lisboa e trabalhar na panificação...

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/70)  > 1969 > O sold Jobo Baldé, ao tempo do alf mil Mário Beja Santos, comandante do pelotão. Veio de Galomaro, Cossé, em 1969. Ofereceu-se como voluntário para fazer o pão no destacamento. 

"Esta é a primeira fotografia do Jobo na sua padaria: ele amassa cheio de vontade o nosso primeiro pão; veio um mestre do Cossé ensinar a fazer o forno; ele amassa num cunhete de granadas de bazuca mas do que gosto mais é a determinação do seu olhar, há ali um mundo de sonhos que ninguém, parecia, iria parar. Honra ao trabalho, amassarás o teu pão com o suor do teu rosto." (*****)

Foto (e legenda): © Beja Santos (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Chamava-se Jobo Baldé, recorda o seu antigo comandante, o Mário Beja Santos. Era "o padeiro de Missirá, empreendedor topo de gama, sacrificava todos os seus lazeres para fazer pãozinho para a população civil".  (*)

E acrescenta o nosso camarada e colaborador permanente: "Revejo sempre esta fotografia com orgulho e olhos humedecidos. O Jobo prepara o pãozinho num cunhete de granadas de bazuca. Enviei esta fotografia à minha noiva e digo: 'Jobo, o padeiro que Rossini esqueceu para as suas óperas'...

"O Jobo tinha um fio de voz, quase ciciava, seguia bem perto do seu alferes. Escreveu-me anos a fio, também queria vir trabalhar para Portugal. Em Dezembro de 2010, procurei vê-lo. O Fodé Dahaba telefonou-lhe, não tinha dinheiro para se deslocar da região de Galomaro a Bambadinca, e nós não podíamos lá ir. Caí na asneira de lhe dizer que regressaria à Guiné, alguém ouviu, e é por isso que de vez em quando me escrevem para saber quando eu volto"… (*)

2. Mensagem do Beja Santos, com data de 29 de Setembro de 2006:

Caro Luís, a violência deste exercício ficou atenuada quando a Cristina me passou para as mãos as centenas de aerogramas que lhe enviei. Estou presentemente a arrumar por anos e depois passarei aos meses e dias. Até agora a memória não me tem atraiçoado, das cartas encontradas do período abordado vejo que há episódios humanos que merecem ser relatados.

E descobri algumas cartas dos meus soldados que te vou enviar pois eles enriquecem a histórias de todas as nossas relações afectivas, o português que se usava, o amor que se instalou entre os homens. Tu farás o uso que entenderes desta correspondência, tens plena liberdade para reproduzires como e quando for mais conveniente. (...) (**)

Exmº Sr Meu Alferes

por Beja Santos

Passou por aqui há dias o Queta Baldé, antigo soldado do Pel Caç Nat 52. É segurança nocturno numa empresa das redondezas, e de vez em quando vem partir mantenha. Trouxe-me uma carta datada de 1 de Janeiro, de Bissau, e assinada por Jobo Baldé. A fotografia dele já aqui apareceu, era o nosso padeiro a quem demos uma concessão de vender algumas fornadas de pão à população civil.

Na época das chuvas, não era possível trazermos os sacos de farinha na viatura e pedimos apoio aéreo. Lembro a ocasião em que um helicóptero nos largou a 15 metros de altura, sob a parada, um saco de farinha que tivemos de peneirar para tirar a terra... O Jobo escreve assim:

"Antes de mais desejo-te uma boa continuação de saúde e felicidade. Espero que não tenhas esquecido o Jobo. Olha Alfer Becha dos Santos você tinha-me dito vai me levar em Lisboa quando eu entrego a farda da tropa. Eu era o teu antigo padeiro em Missirá. Quero ir para Lisboa. Cumprimento para a sua família da casa. Jobo em Bissau, telefone 25-51-25."

Guardei outras missivas do Jobo. Por exemplo:

"Meu Senhor Alferes que eu queria dizer uma coisa que seja verdade porque meu mulher já pariu na nossa terra. Olha, ela pariu na segunda feira passada. Dá autorização a Jobo para ir a Galomaro"...

E outra:

"Querido Alferes, eu queria visitar meu familiar, empresta-me 500 ou 400 escudos pois tenho que fazer festa do filho e sem dinheiro eu fico com muita vergonha. Eu peço 4 dias de dispensa. Adeus".


3. O Jobo Baldé não vinha da formação inicial do Pel Caç Nat 52, ao tempo do alf mil Henrique Matos (Enxalé, 1966/68). Mas chegará ao fim. O Pelotão será extinto em agosto de 1974, era comandante o alf mil Luís Mourato Oliveira (***).

Demos de novo a palavra ao seu "biógrafo" (****):

(...) Depois do grande incêndio de Missirá, em 19 de Março de 1969, durante a reconstrução, deu-se azo à imaginação, alguns progressos foram possíveis no nosso ameaçado bem-estar. Para substituir Sadjo Baldé, um dos falecidos durante a flagelação, veio o Jobo, natural de Galomaro.

Não tínhamos padaria, e em conversa informal perguntei tanto no Pel Caç Nat 52 e do Pel Mil 101 se havia voluntários para as tarefas da padaria. Jobo ofereceu-se logo, e, moderno e polivalente, fez-me a seguinte proposta: Faria pão para a tropa dentro do seu horário, independentemente dos reforços, idas a Mato de Cão, colunas de abastecimento, emboscadas e operações; fora do serviço queria dedicar-se ao que hoje se chama o empreendedorismo.

E assim foi, ele era bem jovem e deu conta do recado tanto na actividade independente como nas tarefas marciais. Era um regalo o cheirinho a pão, a partir de Julho de 1969. A Missirá civil deu-lhe farta clientela, todo o pão alvo era escoado sem reclamações.

O Jobo ainda resistiu quando fomos para Bambadinca, em Novembro, queria ficar, mas ninguém no Pel Caç Nat 54 quis trocar com ele. Resignado, abandonou as lides da panificação" (...) (****)

Aqui fica o retrato possível de mais um nosso camarada guineense (*****), o improvável padeiro de Missirá (1969) e depois de Mato Cão (1973/74). Oriundo do Cossé, o seu sonho ainda era vir para Lisboa e ser padeiro. E se estamos a falar do mesmo militar, o Soldado Atirador Jobo Baldé 82068868, do Pel Caç Nat 52, ficamos também a saber que ele faz parte da lista dos feridos do Sector L1 ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), pormenor do seu CV militar que, se calhar, tanto o Beja Santos como o Luís Mourato Oliveira desconheciam. (******)
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Notas do editor:


(****) Último poste da série > 5 de junho de 2017  > Guiné 61/74 - P17435: Os nossos camaradas guineenses (45): Encontro no LNEC com o Augusto Delgado, ex-Fur Mil da CCAÇ 18, hoje Engenheiro Técnico (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21926: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (8): O casqueiro nosso de cada dia... ou a feliz história do Jobo Baldé, o improvável padeiro do Mato Cão, que nos matou... a malvada (Luís Mourato Oliveira,ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)


O Casqueiro Nosso de Cada Dia Nos Dai Hoje...


Foto (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O Padeiro de Mato Cão (*)

por Luís Mourato Oliveira


O pão é um alimento extraordinário que caso não tivesse sido criado há mais de 6.000 anos na Mesoptâmia, provavelmente a existência humana tivesse sido comprometida. Não conheço ninguém que não goste de pão nas suas múltiplas formas de fabrico e, em particular, nós, portugueses, não o dispensamos para acompanhamento ou mesmo como elemento principal de uma refeição.

Em Mato-de-Cão [ou Mato Cão] embora o efectivo dos europeus se limitasse a dez elementos, um deles tinha a “especialidade” de cozinheiro que também abrangia a de “padeiro”. Infelizmente tratava-se de uma pessoa com enormes limitações cognitivas, recordo-me que entre outras confusões achava que “valor declarado” e “louvor declarado” eram a mesma coisa e, não fora as grandes dificuldades de recrutamento da época , o nosso jovem “cozinheiro” seria certamente adstrito ao contingente de básicos.

Na cozinha, dada a simplicidade e a repetição dos menus, as coisas iam correndo, mas no que dizia respeito ao pão, o homem não se safava e a nossa dentição só resistia devido aos vinte e poucos anos de uso que tinha na altura e o produto do nosso padeiro só era tragável numas sopas de café.


Propus-me a alterar esta situação, para mim desastrosa, e com calma e paciência arranjei umas medidas para que ele respeitasse as quantidades de farinha e fermento, indiquei-lhe o tempo da levedar da massa, mas continuavam a sair pedras, ao invés de pães do nosso forno. A paciência perdida e um exemplar da padaria na cabeça do “cozinheiro/padeiro” que ia originando um traumatismo craniano no funcionário, levou-me a desistir de o transformar num padeiro capaz.

Ma, como o homem é criativo e sabe aproveitar as oportunidades, um soldado do pelotão [de caçadores nativos] 52, o Jobo Baldé, abordou-me com oportunidade e a sua habitual irreverência:
– Alfero, Jobo passa a fazer o pão para o pessoal!
– Não sabes fazer pão, Jobo, não te metas nisto que arranjas problemas.
– Jobo sabe fazer pão, alfero, deixa experimentar e vais ver.

Perante sua insistência e convicção e no desespero de não haver outra alternativa, resolvi experimentar as aptidões do Jobo para novo responsável da padaria. Expliquei-lhe as medidas para a farinha e para o fermento, o tempo para levedar, e ele atacou de imediato a nova função.

Não sei se por milagre ou se pelas aptidões inatas do Jobo, no dia seguinte quando este me chamou para ver o pão acabado de cozer, tive das grandes alegrias gastronómicas da minha vida. O pão estava quente, tinha crescido por obra do fermento e da forma carinhosa com a massa tinha sido tratada, o som da batida no “lar” parecia um tambor a acusar uma boa cozedura e o abrir a crosta estaladiça evidenciava um miolo macio, fumegante e com um cheiro delicioso. Regalámo-nos de imediato com pão quente e manteiga e o Jobo ganhou o lugar!

O Jobo estava feliz com a nova função e cumpria-a com pontualidade, brio e grande competência. Posteriormente ensinei-o a fazer merendeiras com chouriço e ele começou a produzi-las sem grande esforço de explicação. Quando as tinha cozido, trazia-me de imediato uma e eu recordava as que a minha avó fazia na Marteleira [, Lourinhã,] quando era dia de cozedura.

No que dizia respeito ao pão, tínhamos atingido, graças ao Jobo Baldé, a felicidade. O Jobo também estava feliz, era casado com uma mulher, bem mais velha, que ele herdara do irmão entretanto falecido. Embora esta mulher fosse divertida e senhora de um grande sentido de humor, já tinha perdido o fulgor e a beleza da juventude e o nosso amigo e saudoso Jobo Baldé, quando acabava de fazer o pão, tinha sempre visitas de exuberantes bajudas a quem ofertava uns pães a troco de inconfessáveis favores.

A felicidade conquista-se com pequenos acordos e cedências. Estávamos todos satisfeitos…até as bajudas. (**)



Luís Mourato Oliveira: lisboeta, vive atualmente na Lourinhã.
Foi o último comandante do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá (1973/74), 
pelotão que foi comandado por membros da nossa Tabanca Grande 
como  o Henrique Matos, o Mário Beja Santos e o Joaquim Mexia Alves.
Tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue.


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Notas do editor:

(*) Excerto do poste de 10 de novembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16706: De Cufar a Mato Cão, histórias de Luís Mourato Oliveira, o último cmdt do Pel Caç Nat 52 (2) - Experiências gastronómicas (Parte II): Restaurante do Mato Cão: sugestões de canibalismo ("iscas de fígado de 'bandido' com elas"), "pãezinhos crocantes com chouriço" e... "macaco cão [babuíno] no forno com batatas a murro"!...

(**) Último poste da série > 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21866: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (7): Receita caseira de Bourbon County, Kentucky, USA... Enquanto se aguarda a vacinação contra a Covid-19... (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21406: Casos: a verdade sobre... (12): O mistério das ruínas de Ponta Varela e Mato Cão... Afinal, tratava-se de estações liminigráficas instaladas pela Brigada dos Estudos Hidráulicos da Guiné (1956-1965)


Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Sector de Bambadinca > Mato Cão > S/d > Estação liminigráfica no rio Geba, instalada pela Brigada dos Estudos Hidráulicos da Guiné, criada em 1956 e extinta em 1965.

"Não é a primeira vez que se põe esta imagem, faz parte da minha relação muitíssimo íntima com o rio Geba, em Mato de Cão, é aqui que a estação se posiciona, as colunas de cimento e o que resta da estação, mesmo com as marcações para a água existiam há 50 anos atrás, a passadeira em madeira já estava num escombro, tinham caído as guardas, mas eu podia ir até junto do marco da estação e pedir boleia aos barcos civis e militares que seguiam para Bambadinca. Na margem esquerda, segue-se em direção a Ponta Varela, local temível no tráfego fluvial, corria-se o risco de roquetadas". (*)

Imagem extraída do livro "As comunicações e os aproveitamentos hidráulicos da Guiné, Angola e Moçambique” (Lisboa,  Agência-Geral do Ultramar, 1961, 101 pp.).

Foto (e legenda):: © Mário Beja Santos (2019). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 2 > Guiné > Zona Leste >Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Subsetor do Xime > 

"A temível Ponta Varela: restos do que parece ser um antigo cais acostável. Em 1963/65, ao tempo da CCAÇ 508 existia aqui uma tabanca e um destacamento onde morreram, em 3 de junho de 1965, quatro dos seus homens, a começar pelo seu comandante, o Capitão Francisco Meirelles, em consequência do rebentamento de uma mina." (*)

Foto (e legenda): © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).



Foto nº 3 > Giné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > Ponta Varela > 2010 > 

"Exactamente no local onde as forças do PAIGC atacavam as embarcações civis e os navios da Marinha. É pena não se ficar com a ideia de como, também neste local, nascia o Geba Estreito, o leito do rio afunilava, à esquerda, não muito longe daqui, passava o rio Corubal. Com o assoreamemnto do rio Geba, já as embarcações não chegam aqui, muito menos a Bambadinca." (**)

Foto (e legenda): © Mário Beja Santos (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 4 > Guiné > Região de Bafatá > Sonaco > S/d > 

"Estação medidora de caudais no rio Geba, nos rápidos de Sonaco, instalada pela Brigada dos Estudos Hidráulicos da Guine."

Imagem extraída do livro "As comunicações e os aproveitamentos hidráulicos da Guiné, Angola e Moçambique” (Lisboa, Agência-Geral do Ultramar, 1961, 101 pp.) (*)

Foto (e legenda): © Mário Beja Santos (2019). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 

(...)



(excertos, com a devida vénia)


1. Está explicado o "mistério" das ruinas da Ponta Varela, no subsetor do Xime, ao tempo da guerra colonial (Foto nº 2):

Na realidade, não se tratava de um "antigo cais acostável", como se pressupunha, servindo até meados de 1965 a tabanca e o destacamento de Ponta Varela, mas sim de uma "estação liminigráfica", instalada pela Brigada dos Estudos Hidráulicos da Guiné, criada em 1956,  com o fim de proceder "ao estudo dos trabalhos necessários ao melhoramento das atuais condições hidráulicas do Rio Geba, nomeadamente no que diz respeito à navegação, defesa contra cheias e drenagem e, eventualmente, rega dos campos marginais" (nº 1 da Portaria nº 15696, de 7 de janeiro de 1956).

A Brigada foi extinta pela Portaria n.º 21032, de 5 de janeiro de 1965, do Ministro do Ultramar, António Augusto Peixoto Correia.

"A brigada de estudos hidráulicos da Guiné, criada pela Portaria n.º 15696, de 7 de Janeiro de 1956, para proceder à recolha dos necessários elementos de campo e ao estudo dos trabalhos a realizar com vista ao melhoramento das condições hidráulicas do rio Geba, completou a primeira parte da sua missão, não se reconhecendo, presentemente, necessidade de prosseguir com estes estudos e trabalhos."

Presume-se que a razão  imediata para o fim da missão  tenha sido a falta de segurança, provocada  pelo alastramento da guerra, Mas, nestes nove anos (1956-1965), a engenharia hidráulica portuguesa deixou obra no território (Fotos nºs 1 e 4): o rio Geba era de facto navegável, de Bissau a Bafatá, passando pelo Xime e Bambadinca, na maré cheia... Hoje este troço está, de há muito, completamente assoreado e, portanto, instransitável. (****)

2. Já em comentário de 23 de setembro de 2020 às 21:54, no poste P21386 (*****), o nosso camarada António J. Pereira da Costa tinha levantado o véu, em relação às "ruínas" da Ponta Varela (Fotos nºs  2 e 3):

(...) "Estive na Ponta Varela em Jul / Ago 72 [, como comandante da CART 3494 / BART 3873].  Nessa altura, já só havia, no marégrafo, uma régua de cimento vagamente graduada em centímetros destinada a determinar a altura da maré do Geba (ainda não Corubal). Cheguei a pensar em regular a artilharia sobre o marégrafo de modo a aumentar a precisão de tiro." (...).

Era neste troço, entre a Ponta Varela (Xime) e o Mato Cão (Bambadinca), ou seja, no Geba Estreito, que alguns de nós tivemos o privilégio de ver o relativamente raro fenómeno, no mundo, do "macaréu" (e, francês, "mascaret") (******), capaz de provocar o naufrágio de pequenas embarcações. 


 


Guiné-Bissau > Região de Bafatá  > Xime > 2001 >  Rio Geba: o  famoso macaréu (, fotografado a partir do velho cais fluvial do Xime, em completa ruína).

No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança.

Neste rio, ou nesta parte do rio que ainda é de água salgada, dois soldados da CART 3494, aquartelada no Xime, desapareceram, apanhados pelo macaréu numa operação ao Mato-Cão em 1972. Um terceiro camarada, doutra companhia, também desapareceu (Informação do nosso camarada, o grã-tabanqueiro nº 2,  Sousa de Castro).

Fonte (e legenda): © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(***) Sobre a Brigada de Estudos Hidráulicos da Guiné, vd. ainda postes de:


22 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19516: Notas de leitura (1152): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (74) (Mário Beja Santos)

(****) Último poste da série > 7 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21230: Casos: a verdade sobre... (11): Álcool & drogas na guerra colonial: de consumidores a traficantes de canábis... Seleção de comentários ao artigo do Público, de 2/8/2020 - Parte III


sexta-feira, 17 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21178: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (11): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
O arrependimento pós-guerra era inevitável, havia que assumir causas do incumprimento, de pura negligência, de comportamentos menos corretos, atendendo à qualidade daquele capital humano, gente fidelíssima que me seguia no mato, aquela população civil vivia na maior das misérias e que, paradoxalmente, esperava que lhes levássemos outros padrões de civilização, dentro da tormenta da guerra. Aqui se fala de dois casos de arrependimento, havendo mais. Não foi suficiente saber, no regresso, que eu ia acompanhando quem aqui vivia com próteses ou outros infortúnios, e que nessa dimensão se cumpriu bem e deu atenção.
As desatenções ainda hoje me pesam, embora eu sinta algum alívio em dizê-lo publicamente.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (11): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette,
Continuo muito comovido com a sua longa carta que chegou ontem, já a li vezes sem conta, gratíssimo fico pelas suas manifestações de ternura. Não se deixe dominar pela ansiedade, dentro de breves dias indicarei a data do meu regresso, estou impaciente pela sua companhia, preciso da viva-voz para lhe falar do que tem sido a minha vida e como a sua companhia me subtrai aos desertos da alma, depois dos meus amores frustrados. Mas continuemos a falar da Guiné, como tanto insiste. Estou a desvelar os primeiros meses, apresento-lhe o meio em que me insiro, sou subjugado à pressão dos acontecimentos: é crucial remodelar o aparelho defensivo, as estacas do arame farpado apodreceram, já lhe falei dos abrigos que têm palmeiras cheias de bichos, é tudo inseguro, o lugar em que comemos, pomposamente chamado messe, é uma imundície, dentro de dias vai começar o trabalho de trolha para cimentar as paredes e ladrilhar o chão, estou ansioso que cheguem os bidões e venha um bom volume de chapas para se renovar o balneário, é para o facilitar para os homens da população civil; falta constantemente arroz, mais ou menos de 15 em 15 dias é necessário fazer uma coluna para Bambadinca e trazer a viatura com sacas, são toneladas; foi-me distribuído um auto de averiguações referente à deflagração de uma granada incendiária que feriu gravemente uma criança, tenho que fazer deprecadas, isto é, contactar oficiais, sargentos e praças de uma determinada unidade militar que aqui esteve há uns anos atrás para procurar apurar a responsabilidade de quem deixou uma granada abandonada num reboque que essa criança acionou; com os meus colaboradores reparto um sem-número de atividades que vão desde o expediente burocrático, à verificação de existências, à elaboração dos mapas de pagamentos, nunca descurando os tais patrulhamentos naquele local chamado Mato de Cão, são 25 quilómetros a qualquer hora do dia ou da noite, com chuvas torrenciais ou a fornalha do sol. E procuro resistir, há quem pense que eu sou insociável, os minutos disponíveis são para escrever aerogramas, ler, ouvir música, recordar quem sou, quais as minhas bases culturais, manter a chama acesa para o que pretendo fazer após a guerra; este agora é o meu território, sou o responsável n.º 1 pela defesa intransigente destes homens, mulheres e crianças. Daí a necessidade de com eles conviver, percorrer o interior de Missirá ou Finete, sentar-me à porta das moranças e conversar, quando é extremamente penoso para o meu interlocutor, só fala crioulo ou mandinga, peço ajuda ao Cabo Domingos Silva para interpretar, ao fim de umas semanas deste trabalho de intérprete perguntou-me se eu vou escrever algum livro sobre estas pessoas a quem pergunto de onde vêm, o que sonham fazer depois da guerra, o que eu devo fazer para as ajudar, o Cabo Domingos Silva andou numa escola de missionários e já me perguntou se eu tinha andado a estudar para padre… Daí voltar a falar-lhe neste Adulai Djaló, valoroso soldado, arranja-me problemas porque é um galanteador infrene e os maridos ou pais não estão pelos ajustes; a fotografia em que eu estou a caminho de uma operação, que como lhe disse, não serviu para coisa nenhuma a não ser para nos moer os ossos, é tanto quanto me recordo a primeira fotografia a cores que tenho desse tempo.

Chère Annette, demorei muitos anos a perceber esse sentimento tão profundo que dá pelo nome de arrependimento. Arrependimento de quê, já que estou a falar da Guiné? De não ter cuidado, nem acompanhado nem manifestar a minha presença a camaradas em provação ou apoiado a tempo e horas quem precisava de mim. Fora deste contexto destes primeiros anos de guerra, conto-lhe só aquilo que mais tarde irá ter um peso enorme do meu olhar sobre a dor e o sofrimento humano, uma mina anticarro que roubou uma vida e feriu sete soldados, escapei milagrosamente, só com o rosto queimado e os olhos em péssimo estado, um oftalmologista em Bissau fez prodígios, recuperei rapidamente.

 Adulai Djaló, bazuqueiro e grande destroçador de corações das bajudas de Missirá

A caminho de uma operação na região do Xime

Veja-me nestas obras de reconstrução, a pressão do tempo era horrível, dentro de escassas semanas ia começar a época das chuvas, estávamos a renovar abrigos, aproveitavam-se os tijolos anteriores e usava-se o material novo para a cobertura, cimentando as paredes exteriores, seguiam-se algumas instruções dadas a partir do Batalhão de Engenharia em Bissau. Alguém captou a imagem em que eu conversava com os meus soldados exatamente quanto ao bom assentamento daqueles troncos de palmeiras, eles eram conhecedores da boa técnica. Ao fundo, do lado esquerdo, está o 1.º Cabo Alcino Barbosa, um colaborador como não há memória, muito discreto, ouvindo e cumprindo, responsável por uma secção de um furriel que fazia para se ausentar em consultas médicas, um calaceiro e um verdadeiro biltre, o Alcino trabalhava noite e dia, fora assim a sua vida desde pequeno. Muito mais tarde, Annette, depois dessa mina anticarro que em 16 de outubro de 1969 alterou a vida do Alcino, que ficou com fratura no calcâneo, e depois evacuado para Bissau, jamais procurei saber dele, muitos anos depois escrevi-lhe uma carta, um documento público, expressando o meu arrependimento:
“Escrevo-te pedindo-te perdão pelo meu silêncio e pela minha ausência. É legítimo que tu nunca me tenhas perdoado a incúria de ter esquecido, de não te ter procurado como se tu não fosses o meu caríssimo Alcino por quem eu nutria uma amizade correspondida. Não sei exatamente porque te escrevo hoje, talvez por me ter aparecido uma fotografia da Capela de Bambadinca, e associei que fora junto da sua porta que tu me apresentaste. Busco alívio nesta minha confissão. Vivemos num mundo onde não há barreiras informativas para se descobrir onde tu ou eu estamos. A ver se ganho coragem e te procuro. Mas se acaso tu leres esta carta, ou alguém te falar dela, meu estimadíssimo Alcino, tal como nós dizíamos nos aerogramas, que a mesma te encontre cheio de saúde e prosperidade”.

 Durante os trabalhos de reconstrução de Missirá, junho de 1969

Exterior da capela de Bambadinca, imagem do blogue

Continuo a falar consigo sobre o arrependimento. Aprendi que quando se comunica com um familiar a morte de um filho na guerra, há que tentar procurar suavizar a dor, evitando aspetos mais dolorosos, escrevendo sempre que o filho ou marido não sofreu muito. Pois nessa mina anticarro de 16 de outubro de 1969 morreu o condutor, com que sofrimento, praticamente todo desmembrado nos membros inferiores, dava gritos lancinantes, não havia maqueiro nem material para o socorrer, foi transportado numa padiola improvisada até Finete, eu entretanto fui a Bambadinca pedir o apoio médico, nada pôde fazer perante a gravidade das contusões, o helicóptero veio buscá-lo na manhã seguinte, levou um morto. Escrevi ao pai, procurei suavizar a morte do Manuel Guerreiro Jorge. O pai exigiu a clara certidão da verdade, uma descrição cabal dos últimos momentos. Andei vários dias a remoer a história, e quando voltei a escrever de novo menti, fora uma morte rápida, morrera na explosão da mina, e apressei-me a dizer que esperava em breve visitá-lo, no concelho de Ourique. Ele prontamente me respondeu. A vida trocou-me as voltas, não mais nos encontrámos, perpassa uma mágoa de ter faltado ao cuidado, ser solícito com quem estendia as mãos, aquele homem sabia que tinha visto tudo, aquele testemunho era tão importante, ou quase, como a urna lhe entregaram naquele ponto do Alentejo.

Annette, esta foi uma expressão de arrependimento, mas há muito mais para contar, quando, com a sua preciosa ajuda, escrevermos este livro. Ainda não me habituei a tratá-la por tu, não é estranheza, é uma ponta de pudor, vai passar, talvez já com o nosso próximo encontro. Bien à toi, Mário




(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21157: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (10): A funda que arremessa para o fundo da memória

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20888: Historiografia da presença portuguesa em África (206): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Que grande surpresa, uma imagem do porto de Bambadinca, com mais de um século, o território desencravava-se, Calvet de Magalhães, Administrador de Bafatá, inaugurara a estrada de Bafatá até Bambadinca. É o limite da navegabilidade para barcos de transporte de mercadorias com algum calado, para cima do Geba estreito circulavam uns barquinhos à vela, de dimensão reduzida. É o porto da minha vida, quando diariamente patrulhava Mato de Cão sabia que era essencial manter aquela via aberta para o Leste, até Bambadinca chegavam as embarcações com os contingentes militares, mantimentos, armamento, munições, tudo o que era indispensável para dar continuação à guerra, transportavam-se civis e também o coconote e a mancarra. Quando visitei em 2010 a Guiné, o porto desapareceu completamente, restavam umas chapas de ferro.
Pareceu-me bem interessante este artigo sobre as madeiras da Guiné, os conhecimentos evoluíram muito depois, o engenheiro Xavier da Fonseca olhava para o cajueiro não pela riqueza que hoje dá mas pela madeira e pela resina, não deixa de ser curioso.
A seguir iremos ver o que ele nos diz, noutro número do Boletim Geral das Colónias sobre a que se deve o êxito da cultura do amendoim na Guiné.

Um abraço do
Mário

O Porto de Bambadinca em 1917


Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (1)

Beja Santos

O Boletim Geral das Colónias surgiu na década de 1920, teve longa vida, veio a ser substituído pelo Boletim Geral do Ultramar. Era inequivocamente uma publicação oficial, de exaltação, formação e informação. Foi a percorrer um número de 1947, mês de janeiro, que encontrei um curiosíssimo artigo sobre as madeiras da Guiné assinado pelo Engenheiro Agrónomo Armando Xavier da Fonseca. Permitam-me que saliente alguns aspetos que reputo do maior interesse. Começa por dizer que “A Guiné foi a primeira colónia que forneceu madeiras para a construção das naus, e para a do velho Arsenal da Marinha”. Confessa ter tido dificuldades na classificação das madeiras, e discreteia sobre as que conhece. “Uma das árvores mais vulgares na Guiné é a alfarroba de lala, que dá uma madeira amarela lindíssima, e muito apreciada pela marcenaria. Há, que eu saiba seguramente, duas qualidades, uma de cor amarela mais clara e outra de cor amarela mais escura. Os Fulas chamam-lhe marroné. Outra árvore que é muito comum na Guiné é a que, em crioulo, é cognominada por pau conta. É uma árvore de grande porte. O pau veludo é uma linda árvore, no Congo belga é muito empregada na construção marítima. O bissilom, como é conhecido na Guiné, é o célebre mogno africano, que é procuradíssimo, e é a árvore mais vulgar na Guiné. Há diversas qualidades, que se distinguem pela cor da madeira. O pau sangue é madeira que pesa 700 quilos por metro cúbico. O célebre pau-ferro é uma árvore que dá uma madeira preciosa para minas e travessas de caminho-de-ferro, mas da Guiné ainda se não fez qualquer exportação, que seria de desejar que se fizesse para ser experimentada como travessas para os nossos caminhos-de-ferro”.

Uma das riquezas da Guiné é o pau-sangue, tem grande acolhimento nos mercados mundiais, é madeira exótica muito apetecida.

O autor dá prioridade ao estudo da classificação, era imperioso tornar uniformes em todas as colónias as condições da exportação, tendo em conta que as madeiras brasileiras tinham uma maior preferência nos nossos mercados, e dá as suas sugestões de que em todas as colónias devia haver taxas absolutamente uniformes quanto aos direitos de exportação. Passando para os preços, observa: “Na Guiné, não há quem não repare em que os preços das madeiras de produção local são iguais aos das madeiras importadas da metrópole. Quem se der ao trabalho de somar todos os encargos que oneram o corte de madeiras, desde a concepção até à exportação, acaba por se convencer que são muito pesados”. Remete a questão para a Junta de Investigações Coloniais, onde havia especialistas, quanto à classificação de todas as essências e do seu valor comercial.

Avança com um episódio que viveu na Guiné:  
“Passei uns dias na sede da administração civil de Bubaque, capital do arquipélago dos Bijagós, e estando com o administrador, na excelente varanda do palácio, admirando a mansidão das águas do mar, no canal de Canhambaque, chamaram a minha atenção as belas cadeiras de espaldar, que julguei serem de verga da ilha da Madeira.
O administrador informou-me que as cadeiras eram feitas ali em Bubaque, com uma madeira branca, muito bonita, conhecida pelo nome de cavoupa, madeira que depois é recoberta, como se fosse com verga, mas é afinal uma trepadeira que acompanha as palmeiras de azeite, e se presta muito a ser cortada em lâminas muito finas que se sujeitam a revestir a madeira em obra, sem estalarem.
Fui depois ver à floresta alguns pés de cavoupa, dos raros que existem à volta da sede da administração. As árvores que vi inteiras não têm ramos laterais, e as folhas são terminais, muito grandes, como as folhas mais pequenas das bananeiras. As árvores que vi cortadas, por meio dos palmares que tinham sido limpos para a melhor produção das palmeiras do azeite, tinham três ou quatro rebentos em haste com mais de meio metro de diâmetro, resvés da terra.

Uma vez que me encontrei de novo no continente da Guiné, procurei reencontrar a cavoupa, mas na maior parte das regiões não a conheciam por esse nome, até que, tendo ido a S. Domingos e visitado o posto de Sedengal, na sua área, vi várias cavoupas, e pedi a um cipaio que me indicasse o nome da árvore, o que fez prontamente: nós chamamos-lhe pau bóia, e outros, poucos, cavoupa; estas cavoupas que estão aqui nas lalas, são os machos, e as que estão nas bolanhas são fêmeas.
Relacionei o que podia relacionar, mas o que não consegui saber foi a identificação científica, e a classificação da árvore, mesmo sem saber se o nome crioulo de pau bóia lhe dá a qualidade de boiar, porque então mais valiosa se torna.
E o que se dá com esta árvore, uma das menos abundantes da flora da Guiné, dá-se com outras tantas incompletamente conhecidas, quer pelas suas madeiras, quer por outros produtos valiosos.

Certo dia, tendo percorrido uma das mais densas matas da margem direita do rio de Farim, onde já estavam marcadas para corte umas centenas de árvores de bissilom, reparei que todas as feridas estavam abundantemente providas de uma goma linda, não inferior à da goma-arábica, e não pude saber que outras qualidades possam ter, inclusivamente para o fabrico de alimentos.
E, quanto ao cajueiro, não só quanto à sua madeira, como à sua resina, são incompletíssimos os nossos conhecimentos”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20859: Historiografia da presença portuguesa em África (205): Monografia-Catálogo da Exposição da Colónia da Guiné - Semana das Colónias de 1939 (2) (Mário Beja Santos)