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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22835: Os nossos seres, saberes e lazeres (483): Guerra e Desporto, mais um artigo de Alexandre Silveira publicado no Jornal Fayal Spor Club, enviado a partir da Mata dos Madeiros (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)

1. Em mensagem de 17 de Dezembro de 2021, o nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos mais um recorte da sua colaboração no Jornal Fayal Sport Club, a partir da Mata dos Madeiros, Guiné.

Mano Carlos,
Junto mais um dos meus escritos publicados no Jornal “Fayal Sport Club”, em 1971. Infelizmente não consigo saber exactamente o mês da publicação.
Ao tempo, ainda eu estava em Bissau, numa das minhas noites livres fui ao Estádio “Sarmento Rodrigues” para assistir a um jogo de futebol. Independentemente dos objectivos das minhas observações ao jogo e ao recinto, hoje isso pouco interessa, espero que o escrito traga memórias e recordações a alguns dos nossos companheiros.

Abraço fraterno do mano,
José


Recorte do Jornal Fayal Sport Club, com artigo publicado em 1971 pelo nosso camarada José "Alexandre da Silveira" Câmara, hoje radicado nos EUA.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22818: Os nossos seres, saberes e lazeres (482): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (22): As surpresas que o Museu de Lisboa nos reserva (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22739: Os nossos seres, saberes e lazeres (478): Guerra e Desporto, um artigo de Alexandre Silveira publicado no Jornal Fayal Spor Club, enviado a partir da Mata dos Madeiros (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)

1. Em mensagem de 19 de Novembro de 2021, o nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos um recorte de imprensa através do qual nos desvenda mais uma das suas facetas, a de colaborador do Jornal Fayal Sport Club, a partir da Mata dos Madeiros, Guiné.

Mano Carlos,
Amigo meu está a publicar cópias dos jornais do Fayal Sport Club dos anos 60 e 70. Nesse clube, apesar de jovem, desenvolvi várias actividades deportivas e outras tais como festas de angariações de fundos monetários, na feitura do jornal e, como não podia deixar de ser, lá ia publicando alguns artigos, pobres na escrita, mas que me dava prazer.
Aqui vai um artigo que escrevi na Mata dos Madeiros, sem a possibilidade de revisão adequada. Depois de leres, diz-me se isso tem algum interesse para o blogue.
Aquele Alexandre Silveira sou eu (José Alexandre da Silveira Câmara). Eu tenho mais alguns escritos na Guiné.

Abraço fratero do mano José


Recorte do Jornal Fayal Sport Club, com artigo publicado em 1971 pelo nosso camarada José Alexandre da Silveira Câmara, hoje radicado nos EUA.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22734: Os nossos seres, saberes e lazeres (477): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (18) (Mário Beja Santos)

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17024: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (34): Correspondência do Ultramar: Ressurreição nas Matas da Guiné

Mata dos Madeiros
Foto: © José Câmara


1. Mensagem do nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 31 de Janeiro de 2017:

Amigos e camaradas,
O tempo vai passando… A terra vermelha que impregnou os nossos corpos é a mesma, as recordações continuam bem vivas na nossa memória, as amizades que criámos ao longo dos tempos continuam.

Não me esqueci da sombra do Poilão que a todos refresca, nem dos belos artigos que animavam a tertúlia. Muito menos do respeito que havia na tertúlia e das discussões, por vezes mais acaloradas, que acabavam sempre num abraço. Nada substitui os afectos, o respeito, a amizade, porque no dia a dia esbarramos com situações que nos fazem acreditar que este mundo é bom, porque há pessoas que, não nos conhecendo de lado algum, têm o cuidado de nos presentear com emoções que um dia julgámos impossíveis.

Foi o que me aconteceu e jamais esquecerei esse momento. Agradecimentos sem fim que vão para todos os intervenientes desta bela jornada humana. O Sr. Coronel Hélder Vagos Lourenço, que fez comissão em Angola como Comandante de Companhia e mais tarde foi Comandante do BII17, hoje Regimento de Guarnição 1, em Angra do Heroísmo, com a colaboração do Sr. Major Costa e dos militares daquela Unidade Militar, presenteou-me com uma cópia de um pequeno artigo que então escrevi nas matas da Guiné e que foi publicado no jornal “O Castelo”, edição de 1 de Junho de 1971.

Passaram-se mais de quarenta anos sobre a minha primeira saída na Mata dos Madeiros e das emoções que me assolaram então e que a passagem do tempo ajudou a suavizar.
Hoje volto à Guiné.

Um abraço
José Câmara


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Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13792: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (33): Um bagabaga que serviu de altar num casamento

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P15944: Efemérides (218): Conheci o Cap. Alves no BII 17, em Setembro de 1970, mas foi na Guiné, na Mata dos Madeiros, aonde a CCaç 3327 chegaria no dia 6 de Abril de 1971, que comecei a conhecer o homem, o coração de ouro que a sua farda encobria (José Câmara)

1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 5 de Abril de 2016, homenageando o Comandante da CCAÇ 3327, Capitão Miliciano Rogério Rebocho Alves:


A minha homenagem ao Homem e ao Comandante, Senhor Capitão Rogério Rebocho Alves(*)

Amigos e camaradas,
Ao longo da minha vida, para além dos meus pais, encontrei pessoas e situações que me deram lições ímpares de civismo, carácter, humanismo, entre outras. Na sua maioria, porque apenas perceptíveis na leitura que delas se pode fazer, é difícil descrevê-las. Aqui, mais que uma vez, relatei a admiração que senti pelo Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, Comandante que foi da CCaç 3327 e a influência que ele teve na minha vida de militar e que transportei de alguma forma para a minha actividade civil, de homem casado, de cidadão de Portugal e dos EUA, que me acolheu de braços abertos quando imigrei para este País.

Conheci o Cap. Alves no BII 17, em Setembro de 1970, mas foi na Guiné, mais propriamente na Mata dos Madeiros, aonde a CCaç 3327 chegaria no dia 6 de Abril de 1971, que comecei a conhecer o homem, o coração de ouro que a sua farda encobria.

Eram os pormenores de que muitas vezes nos alheamos que me chamavam a atenção. O Cap. Alves tinha uma missão militar a cumprir. Fê-lo sempre com classe e a responsabilidade própria de quem tem que tomar decisões. Respeitava e era respeitado.

Ele adorava os seus comandados como se seus filhos fossem. Para nós, seus subalternos, o Cap. Alves foi e será sempre um Homem Bom. Nesta minha centésima intervenção, pretendo homenagear o militar, o homem, o amigo, o pai que foi o Cap. Alves. Por que é da mais elementar justiça descrever e enaltecer os sentimentos humanos daqueles que tiveram sobre os seus ombros a responsabilidade de comandar jovens em tempo de guerra. Mas ninguém melhor que ele, pelas suas próprias palavras, para descrever o que lhe ia na alma enquanto comandante da CCaç 3327.

Na hora da despedida no Roteiro da Saudade, um pequeno livrete com os nomes e endereços de todos nós, estas foram as suas palavras que dia após dia de serviço militar foi escrevendo no seu coração.


O Capitão Alves partiu o ano passado do meio dos seus familiares e de nós, os seus Nómadas. Connosco deixou o vazio da sua presença, mas a certeza de que fomos comandados por um grande Homem. Em sua memória, se me é permitido, deixem-me usar as suas palavras.

 Até logo meu Comandante.

Setembro de 2012 - Tropa especial na Mealhada: Cap. Rogério Alves, Furs. J. Cruz, L. Pinto, J. Câmara, Alf. Almeida e na frente o Cabo Isolino Picanço.

26 de Julho de 2014 - Quinta do Paúl em Ortigosa - Fernanda Cruz e o Cap. Rogério Alves.
 
26 de Julho de 2014 - Quinta do Paúl em Ortigosa - O Cap Mil Art.ª Rogério Rebocho Alves no uso da palavra. Na mesa, da esquerda para a direita, são reconhecidos o Alf. Mil Almeida, os Furriéis Leite e Caseiro e ainda o Alf. Mil Agostinho Neves. Encoberto, o Alf. Francisco Magalhães.
 
26 de Julho de 2014 - Quinta do Paúl em Ortigosa - O Fur Mil José Leite, o Cap. Rogério Alves e o Sold Cozinheiro Joaquim Rodrigues que veio de França.

José Câmara
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Nota do editor

Vd. poste de 2 de junho de 2015 Guiné 63/74 - P14689: In memoriam (221): Ex-Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, CMDT da CCAÇ 3327 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73) (José Câmara)

Último poste da série de 30 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15914: Efemérides (217): Cerimónia de homenagem aos combatentes da guerra do ultramar, amanhã, 5.ª feira, 31/3/2016, em Cascais, às 10h00, na Av Dom Carlos I: Convite do Povo e do Município de Cascais

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15699: (In)citações (82): Depoimento de um antigo combatente na diáspora (José Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56) (1): As experiências humanas que a guerra me proporcionou

1. Em mensagem do dia 14 de Janeiro de 2016, o nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos um texto, e algumas fotos, com aquilo a que chama Depoimento de um antigo combatente na diáspora. 
Aqui fica a primeira de duas partes.


Depoimento de um antigo combatente na diáspora  

1 - As experiências humanas que a guerra me proporcionou

José da Câmara*

Muito mais que a experiência militar, o que me marcou para a vida foram as experiências humanas que a guerra do Ultramar me proporcionou viver e a influência que tiveram na condução da minha vida desde então.

A guerra também é uma lição de vida que se aprende nas páginas de um livro sem linhas, sem palavras. Um livro em que as páginas mais importantes são escritas com a tinta dos sentimentos.

No mundo das lutas humanas que eu vivi não há palavras que consigam transmitir a capacidade de sacrifício, abnegação, camaradagem, religiosidade, dor e alegria do soldado português e, em particular, do soldado açoriano. A ânsia da incerteza do dia-a-dia, o receio, a miséria e a dor de ver perder um camarada vive-se, mas não se consegue descrever.

Porque também passei pela particular experiência de comandar tropas nativas, tive a possibilidade de aprender que o amor a Portugal, o meu querido País, era tão igual nas suas diferentes culturas, religiões, dialetos e fisionomia do todo humano que o compunha.

Quando cheguei à Província da Guiné, encontrei uma capital, Bissau, em franco e harmonioso desenvolvimento. Avenidas largas, limpas, iluminadas, comércio e restauração florescentes, assistência na saúde, escolaridade primária obrigatória, Liceu e muito mais. Ali, na cidade, respirava-se paz, harmonia social, desafogo económico e cultural. Era evidente que aquele bem-estar provinha do grande afluxo de tropas, muitas destas acompanhadas pelos seus familiares, excelentemente aproveitado pelas autoridades civis e militares no desenvolvimento da cidade.

Mas havia uma outra Guiné, aquela que estava para além de Bissau, a do mato, como se dizia na gíria militar. Aquele era aqui e ali entrecortado por alguns aglomerados populacionais de maior ou menor importância e desenvolvimento, sendo que as chamadas tabancas estavam mesmo a séculos de distância dos padrões de desenvolvimento da capital. A guerra, um autêntico flagelo humano, não explicava tudo. Era evidente que esta outra Guiné tinha sido negligenciada pelos poderes instituídos ao longo de centenas de anos. Talvez por isso mesmo, alguns autóctones ainda enraizados em costumes e tradições seculares se mostravam renitentes em aceitar mudanças que pusessem em causa a ordem social vigente a que estavam acostumados.

Naquele mato, a pobreza das gentes era chocante, mesmo para os corações mais duros. A subsistência familiar baseada numa agricultura insípida e antiquada era insuficiente e, em alguns casos, a religião e as tradições de algumas etnias não permitiam tirar o devido partido do pouco que havia. Águas inquinadas, mosquitos e malnutrição protagonizavam constantes problemas de saúde. Como se isso não bastasse, a rede de transportes, a assistência médica e o ensino obrigatório civis eram quase inexistentes. Muitas unidades militares faziam o que podiam para colmatar algumas daquelas falhas, mas em muitos casos podiam pouco. Aquele também era o mato das minas, das emboscadas, das flagelações, dos horrores da guerra.

A pobreza

Foi na Mata dos Madeiros, uma faixa de floresta densa entre a Mata do Balengerez e da Caboiana, a seguir ao Bachile, que por imperativos de defesa era agora completamente despovoada, que a CCaç 3327 montou o seu primeiro acampamento. Como companhia de intervenção às ordens do CAOP1, com sede na Vila de Teixeira Pinto, tinha como principal missão a proteção dos trabalhadores e das máquinas que prestavam serviço na construção da nova estrada que iria ligar aquela Vila ao Cacheu.
Naquela mata, recheada de fauna e flora maravilhosas, tive a oportunidade de viver o pulsar diário dos mais nobres sentimentos humanos de mãos dadas com os tremendos esforços físico e psicológico só ali possíveis e protagonizados por uma juventude maravilhosa.

O sacrifício da Mata dos Madeiros

O nosso dia de Páscoa (1971) naquele local foi marcado por um folar diferente, o casamento por procuração do Fur. Mil. Fernando Silva. Saiu de manhã com o seu grupo em patrulhamento. A meia tarde regressou ao acampamento para uma pequena cerimónia com os seus camaradas, para de novo voltar ao patrulhamento e respetiva emboscada noturna. Os segredos da noite perfumariam o barro vermelho da mata que lhe serviria de leito nupcial. Sem um queixume, sem um gesto de revolta apenas cumpria o seu dever.

Para no dia seguinte, segunda-feira, sermos todos atingidos com o trágico acidente sofrido pelo Manuel Veríssimo Oliveira, natural da Lomba de São Pedro, Ilha de São Miguel, o qual lhe custaria a vida dias mais tarde. No cumprimento de ordem militar, prestei a assistência necessária à família do Manuel. Na correspondência que mantive com a família, vivi por dentro o sofrimento de uma mãe que perdera o filho, sem o direito de o beijar uma última vez. O tempo se encarregou de suavizar a dor daquela experiência, mas ainda não me deu a oportunidade de esquecer.

De forma marcante e inesquecível, tive a oportunidade de participar diretamente na grandeza sublime do sentimento religioso dos nossos militares. Porque, na prática, a assistência religiosa era quase nula, um pouco por toda a companhia colmatava-se aquela falta com algumas manifestações de fé cristã. Entre elas, no tríduo preparatório em honra de Nossa Senhora de Fátima, o terço era rezado diariamente por muitos. Nas emboscadas noturnas, a minha secção rezava-o em conjunto através de sinais. Ali não havia medo, mas sim um sentimento de libertação do que nos rodeava, de conforto interior.

Na noite do dia 12 de Maio de 1971, os dois grupos de combate que estavam na proteção afastada ao acampamento regressaram a este para se juntarem aos outros dois. Com a sua chegada deu-se o andamento da Procissão pelo perímetro interior do acampamento. Com a arma numa mão e a vela acesa na outra, aqueles valentes militares deram largas à sua fé entoando o Hino a Nossa Senhora de Fátima que perfumava com a sua bênção as matas da Guiné. Durante aquela manifestação de fé a defesa do acampamento esteve entregue aos Anjos do Céu.

A religiosidade

Como poderei transmitir (ou esquecer) os sentimentos que me assolaram quando, numa noite diluviana, em corrida contra ao tempo, o meu grupo de combate, a que se juntaram algumas dezenas de voluntários, teve que evacuar de Teixeira Pinto para Bissau o soldado Miranda, da CCaç 2637, natural de São Miguel, em fim de comissão, também ele vítima de um acidente? No regresso a Teixeira Pinto sabíamos que ele jazia cadáver no Hospital Militar 241. Ou ainda a visão de um furriel a chorar, na chegada de uma operação de alto risco à Mata do Balenguerez, ao encontrar morto o seu amigo de estimação, um tecelão, uma avezinha domesticada por ele?

Na guerra mata-se, morre-se. Mas também há aquela situação em que se morre ficando vivo. Foi o que senti no Destacamento de Bassarel quando recebi a notícia de que iria ser transferido para uma unidade de recrutamento guineense. Sabia e compreendia que situações dessas aconteciam, mas logo eu, o único graduado açoriano numa companhia açoriana, não fazia sentido algum. Ou fazia? Com o coração despedaçado tive que me despedir daqueles fantásticos rapazes que compunham a minha secção, irmãos nas boas e nas más horas, para mim uma família muito especial.


A saudade na partida para as tropas africanas

Como transmitir em palavras os sentimentos que me assolaram quando no Destacamento de São João fui apresentado ao meu novo Pelotão de [Caçadores] Nativos 56 e me apercebi que aquele era constituído por manjacos, felupes, balantas, mandingas, fulas, beafadas, papéis, muitos deles inimigos tribais, que pouco comunicavam entre si, alfabetizados alguns e outros que não falavam português? Ou como foi a minha integração naquele pelotão no qual o soldado mais velho tinha 52 anos de idade que, como alguns outros, andava na guerra desde o seu início? Entre católicos, muçulmanos e animistas como conciliar os seus costumes, tradições e práticas religiosas com a disciplina e os afazeres militares? Como comunicar ordens em situações de risco, ou a simples afirmação de que ali eu era apenas mais um, com responsabilidades acrescidas sim, mas que eram eles os verdadeiros protagonistas protetores dos seus familiares, das gentes e do chão da Guiné?

No fim, quando treze meses depois regressei à minha companhia e aos Açores, deixei um amigo em cada um daqueles militares guineenses, uma amizade bem traduzida em alguns aerogramas que fui recebendo ao longo dos meses, prática que naturalmente desapareceu quando emigrei. Em São João ficara um pelotão de gente boa e dócil, agora com uma mentalidade diferente, mais receptiva, mais igual, mais amiga.

O Pel Caç Nat 56

Em fim de comissão, no dia da despedida em Brá, marchei na frente da companhia. Por ordem do comandante da companhia nas minhas mãos carregava com muito orgulho o Guião da CCaç 3327. Um gesto simples fora suficiente para esquecer a amargura do dia em que deixara a companhia. Lá mais atrás marchava a minha secção. Vinham todos, minha única honra e glória. Na companhia, infelizmente, faltava o Manuel.

A despedida da Guiné. Extracto do Jornal Voz da Guiné, 30 Dezembro de 1972, Página 13.

Um pouco mais de três anos após ter cruzado as portas do CISMI, em Tavira, tinha chegado a hora de dependurar o uniforme do exército de Portugal. Vestira-o com orgulho e dignidade. Pelo meio ficaram ainda a minha passagem pelo BII19, BII17, Santa Margarida e vários aquartelamentos na Província da Guiné. Cumprira com o meu dever de mancebo na defesa da Pátria, numa guerra justa ou injusta mas para a qual não fora chamado a decidir. O jovem que partira era agora um homem. Na bagagem, bem escondidas, trazia algumas cicatrizes internas, que o tempo se encarregaria de diluir, e muitas ilusões.

(Continua)
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Nota do autor:

(*) José Alexandre da Silveira Câmara.
Natural da Fazenda, Concelho das Lajes das Flores.
Prestou serviço militar no Ultramar como Furriel Miliciano na Companhia de Caçadores 3327, mobilizada pelo BII17 para a Guiné: partida a 21 de Janeiro de 1971 regresso a 7 de Janeiro de 1973.
Emigrou para os Estados Unidos da América no ano de 1973, tendo-se fixado em Stoughton, Massachusetts onde reside.
Encontra-se presentemente reformado.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15552: (In)citações (81): Amigo/a, camarada, faz a tua prova de vida: Manda-nos um simples "OK! Tudo bom! Vou indo" ! ... E os editores aproveitam para te desejar o melhor ano possível em 2016, apesar das dificuldades, enfermidades, mazelas, contrariedades, problemas, sacanices, minas e armadilhas que enfrentamos, cada vez mais, à medida que o tempo... pula e avança

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11503: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (32): Bassarel, um paraíso no chão manjaco

1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, BráBachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 6 de Abril de 2013: 

Meu caríssimo Carlos, amigos e Camaradas,
Num passado recente o nosso amigo e camarada José Martins presenteou-nos com dois excelentes trabalhos de pesquisa histórica.
Os artigos debruçaram-se sobre algumas das escaramuças sustentadas pelas nossas tropas contra os nativos da Guiné, muito antes da nossa chamada Guerra do Ultramar. Os belos trabalhos do José Martins evidenciam o cuidado que os nossos antepassados tiveram na feitura da história das suas unidades, que apraz registar. Infelizmente, a esta distância no tempo e por falta de dados suficientes, não me é possível referenciar com rigor histórico o movimento das praças da minha Companhia, nos chamados Destacamentos de Teixeira Pinto. Quedo-me pois pelo movimento dos graduados, aproveitando esta oportunidade única para apresentar aqueles que dignamente tiveram a responsabilidade de comando na CCaç 3327.
Neste escrito que agora trago ao nosso blogue, faço o que me foi possível para facilitar a vida de um futuro José Martins.

Abraço transatlântico.
José Câmara


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

32 - Bassarel, um paraíso no Chão Manjaco

Para trás ficaram os sacrifícios e as privações que sofrêramos na Mata dos Madeiros. Bem acorrentadas ao coração levávamos recordações que a neblina da memória até hoje não conseguiu apagar.

Mata dos Madeiros: Aspecto da nova estrada Teixeira Pinto/Cacheu, recordação de uma vida

A CCaç 3327, agora adida ao BCAÇ 2905 para efeitos operacionais, dava início à sua nova missão, ao ir substituir a CCaç 2637, também esta uma companhia açoriana do BII18, nos Destacamentos de Teixeira Pinto.

Era então o dia 29 de Junho de 1971.

Na altura, eram quatro destacamentos: Bajope, Blequisse, Chulame e Bassarel, tendo a companhia formado um novo destacamento em Calequisse, o mais afastado, a cerca de 25 quilómetros de Teixeira Pinto. Aí ficou o 3.° GComb, sob o comando do Alf Mil José Queiroz Lima de Almeida, coadjuvado pelos Furs Mils Carlos Jesus e André Fernandes.

1971 - Capelinha erguida pelo 3.° GComb da CCaç 3327, em Calequisse

Em Bassaarel, a cerca de 20 quilómetros de Teixeira Pinto, ficou o Comando e Serviços e o 4.° GComb, este sob o comando do Alf Mil Francisco João Magalhães, coadjuvado pelos Furs Mils José Alexandre Câmara e Luís José Pinto, aos quais se juntava o Fur Mil Manuel Lopes Daniel (Armas Pesadas) que para efeitos operacionais integrava esse grupo de combate. As transmissões estavam a cargo do Fur Mil João Nunes Correia, os serviços de saúde sob o Fur Mil Rui Esteves e da alimentação se encarregava o Fur Mil Luís Martins de Moura. A secretaria era da responsabilidade do 1.° Sarg João Augusto Fonseca. O comando da companhia estava a cargo do Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves.

O 2.° GComb, sob o comando do Alf Mil Agostinho Morgado Barada Neves, coadjuvado pelos Furs Mils Joaquim Fermento e João Alberto Cruz, tomou conta do Destacamento de Chulame.

O 2.° GComb, desfalcado de uma Secção, ficou em Chulame

Em Blequisse ficou uma Secção do 2.° GComb, sob o comando do Fur Mil Fernando Ramos Silva. Em Bajope, o Destacamento mais perto de Teixeira Pinto, ficou o 1.° GComb, sob o comando do Alf Mil João Luís Ferraz, coadjuvado pelos Furs Mils Carlos Alberto Pereira da Costa e Francisco Monteiro Caseiro. Os serviços Auto ficaram em Teixeira Pinto, sendo seu responsável o Fur Mil António José Marques e Silva. Infelizmente, a esta distância no tempo, não consigo localizar onde ficou o 1.° Sarg Manuel Pedro Vieira. Em Bassarel não foi de certeza.

O Furriel João Alberto Cruz, mais tarde transferido para Blequisse, fazendo o recenseamento da população neste Destacamento

Feitas as apresentações dos comandos e dispositivo militar, o que ressalta é a separação dos grupos de combate da CCaç 3327, que só voltariam a encontrar-se no dia 24 de Dezembro de 1972, quando a companhia, em fim de comissão, regressou a Bissau.

Com muita pena minha, com esta separação de forças, logicamente as minhas memórias passarão a ser mais concentradas nas minhas vivências em Bassarel.

Durante a deslocação entre Teixeira Pinto e Bassarel pudemos observar que a picada tinha óptimas condições, até porque ali ainda circulava um autocarro de passageiros que ia até Calequisse. A vegetação era bastante densa em ambos os lados. Como ponto de grande apreensão, a Curva da Onça, um autêntico cotovelo dobrado na estrada, a seguir a Chulame, oferecia condições idílicas para plantação de minas e emboscadas.

Outra particularidade verificada no trajeto, foi a ausência de povoados ao longo da picada, exceção para Balombe e Bafundade já muito perto da entrada para o ramal de Bassarel.
Ao entrarmos naquele ramal, foi possível verificar alguns terrenos muito bem cultivados na direita e outros terrenos em face de desbravamento na esquerda, que faziam parte de uma cooperativa agrícola.

Bassarel, sede do regulado com o mesmo nome, outrora campo de grandes tensões entre manjacos e tropas portuguesas, era agora um pequeno povoado, quase todo ele reordenado, relativamente bem arranjado. Mais tarde, foi possível verificar que as pessoas, sobretudo os homens, eram bastante reservadas, mas que depois da desconfiança inicial se mostravam amigas e receptivas aos nossos militares.

Bassarel: José Câmara junto do monumento da CCaç 2637/BII18

O quartel, de pequenas dimensões, cercado por duas fiadas de arame farpado, tinha dois edifícios principais, relíquias da Casa Gouveia. No edifício senhorial ficavam os dormitórios e messe de oficiais e sargentos, serviço de transmissões, arrecadação de géneros e cantina geral. No alpendre das traseiras ficava o refeitório das praças. O outro edifício, um barracão com alguma dimensão, servia de caserna para os praças.

Destacados destes edifícios havia um forno, uma pequena arrecadação e uma cozinha, esta sim com poucas ou nenhumas condições. O poço de água estava seco.

Como complemento de tudo isto, havia um paiol geral em frente ao edifício principal e uma única vala de defesa virada para o lado oposto da entrada principal. Do lado de fora do arame farpado havia um heliporto construído em cimento, que parecia oferecer excelentes condições de aterragem.

Na direita, junto da entrada principal para o destacamento, entre os arames farpados, debaixo de uma grande árvore mangueira funcionava a escola militar para os jovens das redondezas.

A parada, de terra batida de boas dimensões, também servia de campo de jogos.

Na verdade, Bassarel oferecia condições logísticas muito razoáveis. Para além disso, a zona estava perfeitamente pacificada.

Para nós, que ainda recentemente vivêramos o inferno das Mata dos Madeiros, Bassarel era um paraíso terrestre que importava que assim continuasse.

Quando ali chegámos, cedo na tarde daquele dia 29 de Junho, reparámos que ficaríamos alojados em Tendas de Campanha. Era a nossa sina, mas compreendemos ser razoável e normal num pequeno quartel, cujas instalações não tinham capacidade para tanta tropa.

Fomos recebidos com simpatia e alegria pelos elementos da CCaç 2637. Para estes, era o princípio do fim da sua comissão. Para além disso, havia muita gente conhecida entre os elementos de ambas as companhias. Mas toda aquela simpatia e alegria tinham um preço.

Ainda antes de descarregarmos as viaturas recebemos ordem para nos prepararmos para a primeira patrulha. Iria dar-se o início à sobreposição.

Nessa altura estava bem longe de saber que nos dias mais próximos iria protagonizar o dia mais negro das minha curta carreira militar.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JUNHO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (31): Operação Sempre Alerta: a morte de um amigo diferente

terça-feira, 12 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11242: A geografia da guerra ou o nosso calvário, de A a Z (1): Rui Santos, Henrique Cerqueira, João Rebola



Portugal > Terras do Demo > Sernancelhe > Santuário da Lapa > 28/12/2011 > Cruzes do calvário...



Portugal > Terras do Demo > Sernancelhe > Santuário da Lapa > 28/12/2011 > Grafitos de antigos combatentes da Guiné nas paredes do WC... Onde começa e acaba o calvário dos homens que foram a guerra ? 17 foram os naturais de Sernancelhe  que morreram na guerra do ultramar/guerra colonial, seis dos quais no TO da Guiné... Onde terão morrido mais exatamente ?

Fotos: © Luís Graça (2011). Todo os direitos reservados .

1. Amigos e camaradas da Tabanca Grande:

Ao fim de 9 anos a blogar (mais de 11200 postes, 608 membros da Tabanca Grande, 40 mil comentários...) há lugares (ou topónimos) que ainda não constam da nossa lista, na coluna do lado esquerdo do blogue, como "marcadores"... Por exemplo, Capó, na estrada Bachilé-Cacheu, onde morreram 3 camaradas açorianos,  da CCAÇ 2444, em 6 de fevereiro de 1969 (, acabando por serem, confundidos com os desaparecidos no Rio Corunal, em, Cheche, por lapso nosso, já entretanto corrigido)... Capó só há dias entrou para a lista... E o mesmo se passa com Bacar Dado, na estrada Mampatá-Aldeia Formosa... Quem já tinha ouvido falar em Bacar Dado ?

Muitos  outros topónimos com "marcas de guerar", não constam da lista dos nossos  "marcadores"... Ou ainda não foram falados (o que é difícil...) ou foram evocados, "au vol d'oiseau" e esquecidos...

Fazemos  um apelo: Vamos atualizar essa longa lista do nosso calvário  guineense... O calvário de Jesus Cristo teve 14 estações. O nosso não terá tido menos...

Fazemos apelo à vossa memória, consultem as cartas dos subsetores por onde passaram, releiam os vossos apontamentos, enfim, completem a lista, de A a Z,  das nossas 14 estações do calvário... Queremos ter, no nosso blogue, a geografia, mais competa possível, da guerra... Todos os sítios onde penámos, matámos, morremos, ferimos, fomos feridos, sofremos emboscadas, ataques, flagelações... mas também onde apanhámos insolações, ficámos desidratados, fugimos em pânico das abelhas ou das formigas bababagas, enfim, onde dormimos agarrados à G3, ou por onde passámos, em trilhos ou em colunas logísticas, sempre com o credo na boca, com medo das minas A/P; das minas A/C, dos fornilhos, das embocadas.. A geogradia da guerra deve incluir não só as nossas guarnições militares, mas os rios e braços de mar onde houve combates, as bases do IN bombardeadas pela FAP, etc.

A ideia era, para já, publicar (ou ir publicando) a lista de todos esses lugares... Se possível antes do nosso 9º aniversário, que é a 23 de abril de 2013... Um abração. Luís Graça

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Afiá (Corubal)
Afiá (Quebo)
Aldeia Formosa
Amedalai (Xime)
....
Xitole
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2. Publicamos, entretanto, os primeiros contributos que nos chegaram: Rui Santos, Henrique Cerqueira e João Rebola.


Rui Santos (ex-Alf Mil da 4.ª CCAÇ, Bedanda, 1963/65),

9/3/2013

Com possíveis erros de memória, na zona de Catió:


(i) Ganjola (na margem norte do mesmo rio, teve um destacamento,em 1970 já estava abandonado);

(i) Cabedu (chegava-se lá pelo rio Cumbijã, no extremo sul do Cantanhez, teve um destacamento creio que até ao fim da guerra);

(ii) Cufar (uma companhia);

Outros lugares menores na zona de Catió:


(iv) Ilhéu de Infanda (onde mantinhamos uma pequena guarnição, era o "porto" para acesso pelo Cumbijã a Bedanda e Cufar ao norte e Cabedú ao sul) [vd.carta de Bedanda]


(v) Mato Farroba (idem) [dd.carta de Bedanda; não exista na nossa lista]

Na carta militar de Cacine publicada, aparecem quase na margem Cabedú e Ilhéu de Infanda.

Um abraço,
Rui Santos



Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1961) (Escala de1/50 mil) > Posição relativa de Ilhéu de Infande, Mato Farroba e Cufar.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Henrique Cerqueira (ex-Fur Mil da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74)

O meu BCAÇ 4610/72 esteve com companhias em lugares a assinalar:

(i) Encheia: 1ª Companhia (foi atingido na cabeça Fur.mil Maia, antigo jogador do Académica de Coimbra, felizmente sobreviveu. O comandante da companhia Capitão mil. morreu de acidente, próximo de Nhacra não me lembro do seu nome nem o nome da Companhia);

(ii) Bissum:  2ª Companhia, Os  Terriveis, a do nosso camarada Manuel Maia, bloguista e poeta da nossa tabanca;

(iii) Biambe:  3ª Companhia (Tá no Papo):  era a minha companhia até eu ir para Bissorã;


(iv) Inquida, destacamento da companhia do Biambe (Comandada pelo Alf Coelho, que saudade deste meu camarada, era de Lisboa); [não constava da nossa lista, vd. carta de Mansoa]

(v) Olossato: Companhia independente sobre o comando da CCS/BCAÇ 4610/72;

Já agora eu não me lembro ao certo dos nomes dos furrieis que morreram de acidente quando iam ás compras a Bissau,  dias antes do embarque para Lisboa. Se não estou errado eram da 2ª companhia.
Resumindo: Biambe, Bissum, Encheia, Inquida, Olossato
.
Por agora é tudo um abraço e bom fim de semana. Henrique Cerqueira

João Manuel Pereira Rebola (ex-Fur Mil da açoriana CCAÇ 2444, Cacheu, Bissorã e Binar, 1968/70)

9/3/2013


Olá,  Luís Graça, boa noite. Acho muito interessante a tua ideia, pois recordar esses topónimos, reaviva o subconsciente e até poderá mexer - quem sabe - com o inconsciente. Penso que os membros da Tabanca Grande irão responder ao teu desafio. E por que não começar já?!


Assim, entre o Cacheu e o Bachile, além de Capó, há os Madeiros [, Mata dos Madeiros], local de emboscadas constantes. Aí, ficou uma Daimler durante vários anos, pois o receio de ter sido posteriormente minada, afastou a possibilidade de recuperação. Dizia-se, se verdade ou não, que o condutor, terminada a emboscada, estava de tal modo agarrado ao volante, que  houve muita dificuldade em retirá-lo..!! [Não consigo localizar o Mato dos Madeiros, topónimo que passamos a registar. LG]

Muito perto do Bachile, um nome tenebroso - Cobiana e não Caboiana, como se dizia. Entre o Bachile e Canchungo, havia um posto de vigia junto à antiga Ponte Alferes Nunes, controlado durante o dia por uma secção e à noite esta era reforçada.

Luís, além de nomes, não sei se as fotos que te envio, que datam de Abril 2011, aquando do meu regresso à Guiné, têm interesse. Tenho mais nomes em mente na área de Bissorã, Biambe, etc. Gostaria que me dissesses se devo ou não continuar.

Um abraço, João Rebola

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MAPAS DA ANTIGA PROVÍNCIA PORTUGUESA DA GUINÉ (NÃO INCLUI BIJAGÓS) (ESCALA: 1/50.000)

Aldeia Formosa (Quebo) / Xitole
Bafatá (1955)
Bambadinca (1955)
Banjara (1956)
Bedanda (1956)
Beli (1959)
Bigene (1953)
Binta (1954)
Bissau (1949)
Bissorã / Mansoa (1954)
Bolama (1957)
Bula (1953)
Buruntuma (1957)
Cabuca (1959)
Cacheu / Sâo Domingos (1953)
Cacine (1960)
Cacoca (1954)
Caiar (Ilha de) (1959)
Canchungo / Teixeira Pinto (1953)
Canquelifá (1957)
Cansissé (1959)
Catió (1956)
Colina do Norte (1956)
Como (Ilha de) / Caiar (Ilha de) (1959)
Contabane (1959)
Contuboel (1956)
Duas Fontes (Bengacia) (1959)
Empada (1955)
Farim (1954)
Fulacunda (1955)
Gabu (Nova Lamego) (1957)
Gadamael / Cacoca (1954)
Galomaro / Duas Fontes (Bengacia) (1959)
Geba / Bambadinca (1955)
Guidaje (1953)
Guileje (1956)
Jumbembem (1954)
Jábia (1959)
Madina do Boé (1958)
Mambonco (1954)
Mansabá / Farim (1954)
Mansambo / Xime (1955)
Mansoa (1954)
Nova Lamego (Gabu) (1957)
Padada (1959)
Paunca (1957)
Pelundo (1953)
Piche (1957)
Pirada (1957)
Província da Guiné (1961) (Escala 1/500 mil)
Quinhamel (1952)
Saltinho / Contabane (1959)
Sedengal (1953)
Sonaco (1957)
Susana (1953)
São Domingos (1953)
São João (1955)
Teixeira Pinto (1953)
Tite (1955)
Varela (1953)
Xime (1955)
Xitole (1955)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (31): Operação Sempre Alerta: a morte de um amigo diferente

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 6 de Junho de 2012:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história sobre as minhas memórias lá para os lados da Mata dos Madeiros.
Como sempre fica ao teu dispor fazer com ela o que bem entenderes.

Para ti, para os nossos camaradas, votos de muita saúde e de um bom verão.

Um abraço fraterno,
José


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS (31)

Operação Sempre Alerta: a morte de um amigo diferente

Era então o dia 25 de Junho de 1971. Os dois grupos de combate da CCaç 3327, que tinham estado a fazer segurança ao acampamento na Mata dos Madeiros, regressaram na manhã daquele dia. Sem o pessoal das transmissões, o que avolumava as suspeitas de que estava eminente uma operação de grande envergadura.

Como acontecia muitas vezes, durante a tarde fui ajudar na Secretaria. Gostava de o fazer. Para além de ser útil, mantinha alguma actividade que me ajudava a passar o tempo.

Ao cair do dia, o Sr. Cap. Rogério Alves entrou na secretaria. Vinha tenso e o seu semblante denotava preocupação. Carregava um punhado de papéis e mapas nas mãos que chapou, esse é o termo, em cima da secretária e à qual se sentou. Colocou os cotovelos no tampo e a cabeça entre as mãos. Era a imagem completa do desalento num homem que, pela sua dinâmica e trato fino, transmitia confiança e algum à-vontade. O que o levara àquele estado tinha que ser muito sério.

Pressentindo que estava ali a mais, levantei-me e dirigi-me para a saída. Ao passar junto da secretária do Capitão Alves, este, com um pequeno gesto, empurrou os mapas na minha direção.

Estaquei! Durante semanas andara com eles na Mata dos Madeiros. A diferença, a grande diferença, eram as linhas vermelhas estampadas nos mapas, que partiam em paralelo do nosso último acampamento da Mata dos Madeiros até ao fundo da Mata do Balenguerez.

Ali, pela confiança depositada em mim por aquele homem bom, tomei conhecimento antecipado da enormidade e dos perigos que aquela operação acarretava. Estava em marcha a operação “Sempre Alerta”.

Senti um calafrio enorme. Não pela operação que já todos esperávamos, mas pela forma como ia ser executada, para um sítio que desconhecíamos completamente. Com a duração de cerca de nove horas, seria executada por toda a Companhia, dividida em dois bigrupos em progressão paralela, com as duas linhas de penetração muito perto uma da outra. Não me recordo de alguma vez termos praticado esse tipo de progressão, daí a minha grande apreensão.

Conjeturando com os meus próprios pensamentos, decidi dar uma volta pelos arredores. Na parada, encontrei o Fur Mil André Manuel Lourenço Fernandes, do 3.° GComb, em amena brincadeira com o seu amigo predileto, o Piriquito. Este, um tecelão amarelo ainda jovem, tinha sido apanhado pelo André, que o alimentou e matou a sede. Enquanto um corria o outro voava. Ao chamamento do André, lá vinha o passarito que pousava no seu ombro e aguardava pacientemente que o André lhe reconfortasse o bico com algum acepipe. Eram inseparáveis! Aquela cena enternecedora contrastava com o turbilhão de desencontros que me ia na alma.

Os meus passos levaram-me até à porta de armas, subi a avenida principal de Teixeira Pinto e entrei num bar muito frequentado pelas nossas tropas. Era a primeira vez que ali ia. Não dei pelo fumo dos cigarros, tão pouco pelo cheiro do álcool e muito menos pelo barulho ensurdecedor que se fazia ouvir. Tudo isso era-me indiferente. Estava ali para beber uns copos, eu que não conseguia beber duas cervejas seguidas.

Foi então que aquela voz chegou até mim, melhor, estalou no meu cérebro, de tal forma que ainda hoje não esqueci:
 - Eh Furriel, manga de ronco no Balenguerez!

Na penumbra do estabelecimento tentei descobrir quem era aquele guineense alto, vestido à civil, que já sabia do que me ia na alma. Talvez devido à surpresa do momento, saí muito mais lesto daquele estabelecimento do que quando entrei. Fui para o meu quarto que, entretanto, tinha sido distribuído. O dia acabava repleto de emoções.

 
A Senhora que nunca nos abandonou

Três dias depois, na madrugada do dia 28 de Junho, cerca das três da manhã, estavam em pleno os últimos preparativos para o começo da Operação. Dada a ordem de partida, a coluna deixou Teixeira Pinto em direção ao nosso último acampamento na Mata dos Madeiros. Ainda era noite quando lá chegámos.

Como previamente ficara estabelecido, os 1.° e 2.° Grupos de Combate sob o comando dos Alferes Ferraz e Neves, respetivamente, seguiriam a linha da esquerda. Os 3.° e 4.° Grupos de combate sob o comando dos Alferes Almeida e Magalhães seguiriam a linha da direita. O nosso Cap. Alves iria integrado no 4.° Grupo.

O Alferes Magalhães, comandante do meu grupo, aproximou-se de mim e entregou-me o Mapa da Operação e a bússola. Era um gesto normal. Acontecera tantas vezes antes. Já não foi normal quando o Cap. Alves nos informou que ia integrado na minha Secção. Tentámos, eu e o Alferes Magalhães, dissuadi-lo, sem o conseguirmos. Mais uma vez admirei a sua coragem e compreensão ao permitir-me dar-lhe uma posição na Secção, que também me obrigou a mudar o dispositivo que normalmente usava. Não tanto por ele, mas por causa do homem das Transmissões, que queria suficientemente perto de mim, sem ficar muito longe do Capitão e não perder potencial de reação. A nossa missão, reconhecer o terreno, encontrar e destruir o inimigo, independentemente dos imponderáveis, só poderia ser bem sucedida à custa de muita disciplina, sacrifício, alguma inteligência e, acima de tudo, muita proteção divina. O inimigo, os guerrilheiros do PAIGC, estava à nossa espera algures na Mata do Balenguerez. Para isso se espalhou a notícia desta operação com três dias de antecedência.

Com os primeiros alvores do dia, partimos rumo ao nosso destino! Para trás ficava o acampamento e a Mata dos Madeiros. Atravessámos a estrada antiga que ligava o Bachile a Cacheu e entramos naquele mundo desconhecido, a Mata do Balenguerez. Esta não tinha sofrido queimadas durante os últimos tempos e não recebera visita de tropas há alguns meses.

Apanhada que foi a ponta do trilho marcado no mapa, de imediato mandei obliquar à direita, saindo por completo daquele. Assim fomos progredindo em ziguezague à ilharga do trilho. Apercebi-me que o avanço seria muito penoso e mais lento do que o calculado. O arvoredo e palmeiral muito denso e baixo impediam o avanço rápido, obrigando-nos, muitas vezes, quase a rastejar em alguns sítios. Mas o trilho, prometera a mim mesmo, não seria acariciado pelas solas das nossas botas. Com cerca de três horas de progressão, deparámos com a primeira grande clareira. Apenas capim de altura média Por ventura um antigo terreno de cultivo. Dividia-se pelos dois lados do trilho. Um campo de morte com cerca de oitenta metros, local ideal para uma emboscada.

José Câmara bem protegido pelo soldado Alberto Teixeira Dutra

Estávamos afastados do trilho. Numa breve análise visual ao terreno à nossa volta e pelo mapa, pressenti que a melhor solução seria mesmo atravessar a clareira, até porque a partir daí iríamos encontrar situações muito semelhantes. Mandei avançar. O meu homem de ponta, carregando a HK21, olhou para mim. O seu olhar pareceu-me angustiado. Aquele não era o local para hesitações, coloquei-me ao seu lado, atravessámos a clareira rapidamente. Os outros seguiram-nos.

Do outro lado da clareira, embrenhados no arvoredo, fomos ao encontro do trilho. Não me enganara. Ali tinha estado gente e as suas intenções não seriam certamente dar-nos as boas vindas com foguetes, como era costume fazermos aos forasteiros ilustres que chegavam às nossas terrinhas açorianas. A prová-lo estava um pequeno jarro de barro partido, a água empapando o trilho, alguns rastos de pegadas de calçado.

Foi dada ordem para ninguém pisar o trilho ou tocar nos estilhaços.

Rapidamente, afastámo-nos daquele local e do trilho. Minutos depois, uma avioneta transportando o comandante do CAOP 1, Sr. Ten. Cor. Paraquedista Durão, fazia algumas passagens sobre o local onde tínhamos estado antes. De lá de cima não nos via, bom sinal. Perante a insistência de contacto, demos-lhe a nossa indicação.

Segundos depois passava à nossa perpendicular.

Na sua passagem indicou-nos que estávamos a afastar-nos do nosso objetivo. Foi informado do nosso contacto visual com o jarro, sinal irrefutável da presença do inimigo e que não era aconselhável a nossa progressão nas imediações do trilho. Aos poucos, o barulho dos motores da avioneta foi desaparecendo.

Cerca das onze horas da manhã estávamos nós a atingir o nosso objetivo. Mais uma vez a avioneta a sobrevoar-nos. Desta vez com uma boa notícia, regressar ao acampamento. Cansados, algo esfarrapados, famintos, mas não podíamos descurar a disciplina e os cuidados no nosso regresso. A nossa missão ainda não tinha terminado.

Só começamos a sentir algum alívio quando finalmente atravessámos a antiga estrada e voltámos a pisar a Mata dos Madeiros. Aqui tínhamos feito grandes amigos ao longo dos dias, das semanas, dos meses. Conhecíamos as formigas pelos seus nomes próprios e aprendemos a cantar canções de amor com os pombos verdes. Os mosquitos, nos seus voos picantes, lembravam-nos constantemente do zumbido dos aviões que vindo das Américas passavam pelas nossas terrinhas açorianas. Os tecelões, lindos que eram, davam-se ao luxo de gozarem connosco, chamando-se a si próprios canários de peito amarelo, avezinhas que um dia se enamoraram dos rochedos plantados entre a Europa e as Américas e por ali ficaram. Tudo isso ficava ali, cada passo nosso uma recordação.

No acampamento desmanchavam-se as antenas de transmissões, o morteiro 107 e carregavam-se as viaturas que já estavam à nossa espera. A tarde avançava e havia que chegar a Teixeira Pinto antes do anoitecer.

Finalmente foi dada a ordem de partida e um último olhar ao acampamento que tinha sido a nossa casa durante oitenta e três dias. Pelo caminho passámos junto ao local onde o nosso Manuel Veríssimo Oliveira sofreu o acidente que o vitimou. Muitos braços estendidos naquela direção. Nas circunstâncias era o único gesto possível de homenagem ao nosso amigo e companheiro de luta.

Outros continuariam a estrada que deixamos aberta até ao cruzamento com a estrada antiga

Para trás ficava a Mata dos Madeiros e uma estrada que outros continuariam e concluiriam. Ali, a história foi escrita no barro vermelho com o sangue de muitos combatentes e o suor de muitos mais. De nativos também. Para os guineenses, em paz, ficou uma excelente obra alcatroada para que um dia pudessem ter uma vida melhor. Finalmente chegámos a Teixeira Pinto. Em paz. Missão cumprida. Dirigimo-nos aos nossos quartos. Ali, uma desagradável surpresa nos esperava.

O Fur Mil André Fernandes, com as lágrimas nos olhos e o seu amigo entre mãos, balbuciou:
- O Piriquito morreu!

 A avezinha, que ficara fechada no quarto, sucumbira ao calor, sede e saudade. Também ela fora uma vítima de uma guerra que cada um sentia à sua maneira. Naquele momento o André era o espelho de um desses sentimentos. Para ele, depois de uma operação com aquele perigo e envergadura, ainda houve tempo para chorar a morte de um amigo especial, certo que diferente dos demais, mas amigo da mesma maneira.

No dia seguinte, 29 de Junho de 1971, a CCaç3327 seguiria para os Destacamentos de Teixeira Pinto.

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Notas soltas:

Nos 72 dias que a CCaç 3327 esteve toda na Mata dos Madeiros, diariamente saíam dois grupos que permaneciam fora do acampamento por 24 horas a fazer a segurança afastada da estrada e do acampamento.
Dos outros dois grupos um fazia a picagem do traçado da estrada e a segurança próxima às máquinas e capinadores durante 12 horas diárias.
O Outro mantinha a segurança do destacamento e realizava as escoltas ao Bachile para abastecimento de pão, água e correio. A segurança imediata noturna do acampamento era garantida por estes dois grupos. Cada posto de sentinela era reforçado por 3 elementos.
Cada Secção, na ausência de imprevistos, tinha um descanso de 12 horas a cada 13 dias.
Acções: 72
Emboscadas: 72
Escoltas a Teixeira Pinto e Bissau: 24
Operações a nível de Companhia: 1 (Sempre Alerta)
Mortos: Manuel Veríssimo de Oliveira, Sold At. Inf. NM 09624870, natural da Ilha de São Miguel.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9537: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (30): Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9537: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (30): Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 27 de Fevereiro de 2012:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Não tenho estado afastado do nosso blogue e muito menos dos amigos. Apenas menos activo.

Junto mais uma pequena história da minha passagem pela Mata dos Madeiros. Como sempre fica ao teu dispor a sua (ou não) publicação. Como as anteriores é uma história simples. Certamente que trará à memória de alguns dos nossos camaradas situações em tudo muito semelhantes.

Para ti e para os nossos camaradas um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (30)

Velhice, uma aprendizagem dos sinais dos homens e da guerra

Os dias que se seguiram à nossa chegada a Teixeira Pinto foram aproveitados por nós, cada um à sua maneira, para aliviar a alta pressão psicológica a que tínhamos estado sujeitos, nos últimos meses, na Mata dos Madeiros. O descanso, as incursões pela vila e os seus locais de diversão fizeram parte desse alívio bem merecido.

Como gostava de trabalhar na secretaria da Companhia, era ali que passava muito do meu tempo. Também tive a oportunidade de assistir a uma missa dominical e a um casamento entre gente da mesma etnia Manjaca. Destas coisas fiz referência muito superficial numa carta que então escrevi à minha madrinha de guerra.

Hoje, a esta distância no tempo, o Coro da Capela formado por jovens em idade escolar, constitui a imagem que ainda retenho da missa que me foi possível atender, no dia 27 de Junho de 1971, na Vila de Teixeira Pinto. Do casamento, lembro-me que foi feito durante a noite. A noiva, natural da zona do Pelundo e acompanhada de muitos familiares, veio de urbana buscar o noivo que morava em Teixeira Pinto. No regresso juntou-se o batuque. Na verdade, é muito pouco o que recordo e sinto pena de não ter escrito mais sobre esse casamento.

Outro acontecimento de extrema relevância para nós foi a saída de algumas tropas de Teixeira Pinto, que nos permitiu deixar as tendas de campanha e ocupar as instalações muito razoáveis do quartel de Teixeira Pinto.
Foi nesse ambiente, não constituindo qualquer surpresa para nós, que fomos informados de que a nossa Zona de Intervenção continuaria a ser a Mata dos Madeiros. O facto dos nossos camaradas das Transmissões continuarem ali instalados deixava antever isso mesmo. A missão é que seria diferente, bem mais perigosa.
Até ali a protecção do acampamento era feita à distância por dois grupos de combate da CCaç 3327 e ainda de uma outra força de intervenção do CAOP1. A defesa imediata do acampamento era também assegurada pela nossa Companhia. Com a nova estratégia as forças de defesa afastada foram eliminadas e passámos apenas à defesa imediata do acampamento, cujas condições de defesa eram exíguas. As valas eram extremamente abertas e os obuses do Bachile não tinham o alcance suficiente para nos ajudar em caso de flagelação. Contávamos com o nosso Morteiro 107.

Em contrapartida, o moral dos nossos soldados era bastante alto, pois sabiam que o dia 25 de Junho seria o do adeus definitivo da CCaç 3327 à Mata dos Madeiros. Pelo menos assim pensávamos.

No dia 22 de Junho de 1971 escrevi assim à minha madrinha de guerra:

“O tempo que disponho (para escrever) é bastante escasso. Durante o dia estive a trabalhar na Secretaria da Companhia e agora a noite já vai adiantada. Amanhã, pelas 6:30 horas da manhã, vou para o mato e tenho que descansar. Irei passar 24 horas no acampamento onde estivemos. Contudo, deve ser a última vez.” 

Certamente que me referia ao meu grupo de combate.

Aspecto da Mata dos Madeiros 
Foto de José Câmara

No dia 23 de Junho de 1971, estávamos nós no acampamento quando vimos passar alguns bombardeiros em direcção a Ponta Costa, área do Cacheu. Foram lá deixar naquela zona a sua carga mortífera. As explosões eram enormes. O fumo e o pó subiam nos ares, a terra estremecia debaixo dos nossos pés e os corações tremiam perante tamanha bestialidade. Pessoalmente, pela primeira vez assistia a uma acção directa da nossa Força Aérea.

Os bombardeamentos, a meia dúzia de quilómetros do nosso acampamento, pareceram-nos normal naquela zona. Foram as repetições durante o dia que nos chamaram a atenção. Era evidente que aquilo não era mais que o pronúncio de uma grande operação militar e a CCaç 3327 iria estar de, algum modo, envolvida nela.

Estava explicada a razão do nosso posto de transmissões manter-se em actividade no acampamento, enquanto o Morteiro 107 descansava preguiçosamente no seu espaldar. Aos poucos também aprendíamos a ler os sinais dos homens e da guerra. Da experiência se fazia a velhice.

Na manhã do dia 24 de Junho, quando fomos substituídos no acampamento e regressámos a Teixeira Pinto, tínhamos a certeza de que voltaríamos a ouvir as vozes e os ruídos que aprendemos a distinguir na Mata dos Madeiros.

Só faltava mesmo saber como, onde e quando.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 23 de Novembro de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto um pequeno trabalho para fazeres dele o que entenderes melhor.

A história, a sua crueldade intrínseca, foi vivida por muitos de nós. Naquelas alturas os segundos contavam e eram dramáticos. Jubilávamos quando o nosso esforço e sacrifício eram recompensados. Chorávamos quando víamos o destino cruel ser mais forte que a nossa vontade. Do que não podemos ter dúvidas é que num caso ou no outro sempre, mas sempre, cumpríamos com o nosso dever humano e militar.

Amanhã, dia 24 de Novembro, é dia de Acção de Graças nos EUA. Ao longo dos anos habituei-me a compreender, a respeitar e a participar nesta grande festa da Família Americana. Aqui fica o meu convite para que tu e todos os nossos amigos da Tabanca, celebrem comigo o dia do Thanksgiving.

Um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (29)

Quando o destino cruel desabafava a sua ira

Ao fim da manhã do dia 17 de Junho de 1971, a coluna da CCaç 3327 deixava para trás o seu último acampamento na Mata dos Madeiros e um grupo de elementos das Transmissões agora protegidos por outras forças de intervenção. Pelo caminho fez uma breve paragem no Bachile para pegar os militares e nos haveres da secretaria, tendo seguido em direcção à Ponte Alferes Nunes. Esta que, recentemente, sofrera algumas reparações tinha uma estrutura forte, mas o seu tabuleiro, por ser estreito, requeria alguns cuidados, sobretudo com as viaturas mais pesadas. Daí a perda natural de algum tempo na sua travessia.
Mas que importava isso, se depois da ponte entrávamos no paraíso comparado com o inferno que tinha sido a nossa vivência nos últimos meses?

A meia tarde, a coluna entrava na avenida principal de Teixeira Pinto e, finalmente, cruzava a Porta de Armas do quartel sediado naquela vila. Ali receberíamos a primeira grande desilusão do dia. Pela indisponibilidade de instalações, foi-nos ordenado que montássemos o nosso bivaque na parada grande que ficava em frente aos edifícios de Comando e Serviços. O solo guineense continuaria a ser o lençol onde se deitariam os nossos corpos ansiosos por um descanso condigno.

Estávamos a findar a nossa tarefa quando nos apercebemos que ali fazíamos parte de uma outra guerra. Um clarim soou o toque de Ordem. A verdade é que os nossos corpos, depois de cerca de trinta e seis horas de actividade, precisavam mesmo de descanso e os nossos estômagos de serem reconfortados com aquela ração de combate que esperava por nós.

Como quase sempre fazíamos, eu e os militares da minha Secção sentámo-nos juntos para darmos início ao nosso repasto. Para além do ambiente social normal dessas ocasiões, aproveitávamos para trocarmos entre nós as conservas que cada um mais gostava. Já tínhamos aberto algumas latas quando o clarim voltou a soar. Desta vez, o som era mais angustiante, o som do formar piquete.

Era certo que o 4.° GComb, o meu grupo, estava de serviço mas, acabados de chegar àquele quartel, aquele toque não devia ter nada a ver connosco. Como estava enganado!

Alguém gritou:
- Furriel Câmara mande formar o grupo de combate! - A ordem tanto pode ter vindo do Comandante do Pelotão, o Alf. Mil. Francisco Magalhães ou directamente do Comandante da Companhia. Para o caso pouco importava. Tudo era feito com disciplina compreensível, sem atropelos.

Os soldados que me acompanhavam ainda tentaram um pequeno protesto. Tinham alguma razão, estavam exaustos e eu também.
Apenas disse:
- Vamos! - A ordem simples não deixava margem para dúvidas. A verdade é que aqueles rapazes, habituados à minha maneira de ser, devem ter percebido na minha voz que eu não agoirava nada de bom e assim era. Naquele momento, o meu coração estava na Mata dos Madeiros e nos camaradas das Transmissões que deixáramos lá de manhã. Felizmente que essa suspeita não se materializou, mas a verdade é que a noite que se aproximava seria longa e muito dolorosa.

Acampamento na Mata dos Madeiros. O Posto de Transmissões estava na tenda montada à esquerda.

Com o Pelotão formado e pronto para receber ordens, fomos informados que houvera um acidente grave na CCaç 2637/BII18, adida ao BCaç 2905, precisamente aquela que iríamos substituir nos Destacamentos de Teixeira Pinto. Um soldado caíra de uma viatura e sofrera um traumatismo craniano grave. Hoje, a esta distância no tempo, não me recordo em qual dos Destacamentos.

Na pista de Teixeira Pinto uma avioneta aguardava a chegada do sinistrado para a evacuação, mas devido ao adiantado da hora poderia ter que levantar voo e regressar a Bissau antes da chegada daquele. Infelizmente foi o que aconteceu e, como alternativa, fizemos uma coluna a Bissau para evacuar o sinistrado.

Honra seja feita a muitos soldados e graduados da minha Companhia que se voluntariaram para fazerem parte da coluna de evacuação que partiu para João Landim. Nesse trajecto foram vistas patrulhas de segurança nocturnas saídas do Pelundo, Có e Bula. A todo aquele aparato de forças bem poderia chamar-se, com toda a propriedade, um aparato de solidariedade humana e militar, só possíveis num exército bem formado, capaz e disciplinado.

Em João Landim, fizeram a travessia do rio Mansoa o sinistrado e uma força suficiente para a sua segurança até ao Hospital Militar. O resto da coluna aguardou o regresso daquela força.

Cerca das duas da manhã, já no dia 18 de Junho de 1971, os militares e as viaturas que tinham ido até ao Hospital regressaram e com eles a notícia que nenhum de nós gostava de receber. O Soldado sinistrado Agostinho Lopes Miranda, natural da Ribeira Seca, Ilha de São Miguel, sucumbira aos ferimentos recebidos no acidente.

Cabisbaixos e pesarosos regressámos a Teixeira Pinto. Os céus, em solidariedade com a nossa tristeza, juntaram as suas fortes e grossas lágrimas às nossas. Tínhamos a consciência do dever cumprido, infelizmente, atraiçoados por uma força muito mais forte que a nossa vontade.

Chegados ao quartel completamente encharcados, exaustos e abatidos pelo drama a que acabáramos de assistir, procurámos refúgio nas nossas tendas inundadas pelas chuvas que caíam insistentemente.

O despontar dos alvores da madrugada não conseguiu trazer luz à escuridão que cobria os nossos jovens corações. Para nós a noite tinha sido muito longa.

No meio do oceano Atlântico, quem sabe se no mundo da emigração, para uma família ficava o vazio deixado pela ausência eterna do seu soldado. Que partira nas vésperas do seu regresso a casa.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9059: Memória dos lugares (163): Mampatá saúda Mampatá (António Carvalho / José Câmara / José Eduardo Alves / Mário Pinto)

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8964: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (28): Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas

domingo, 30 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8964: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (28): Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 30 de Outubro de 2011:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena e simples história das minhas andanças pela Mata dos Madeiros. Os segredos militares, quando bem usados, eram muitas vezes as bases dos sucessos e da disciplina. O Cap Mil Rogério Rebocho Alves usava-os com mestria ponderada.

Para ti e para os nossos camaradas vai um abraço imenso do
José Câmara


Memórias e histórias minhas (28)

Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas

No regresso de Bissau a coluna da CCaç 3327 foi pernoitar ao Bachile, sede da CCaç 16. Ali, talvez por falta de instalações ou pela falta de lembrança de quem comandava, não éramos acomodados ou recebíamos instruções de defesa em caso de ataque. Nas poucas noites que ali pernoitei, sempre estranhei esse procedimento.

Independentemente dos motivos que me faziam sentir parte de uma outra guerra, chegada a hora do recolher, acomodei-me, juntamente com os meus camaradas, no alpendre de um dos edifícios ali plantados. A minha amante, como era seu costume, recolheu-se entre as minhas pernas, encostou o seu corpo ao meu e apoiou a sua cabeça no meu ombro. No nosso primeiro contacto surgira um sentimento profundo, aquilo a que bem poderíamos chamar amor à primeira vista. Os adornos, amarrados à minha cintura, pareciam sorrir daquele inocente amor, prontos para ajudar em qualquer pezinho de dança que acontecesse nas imediações.

José Câmara com a sua amante, par inseparável, algures na Mata dos Madeiros

A noite avizinhava-se longa, cheia de visitas indesejáveis. Estas, talvez deliciadas com o meu cheirinho natural e pela falta daquele perfume pestilento, com o qual normalmente me besuntava, eram de tal maneira agressivas que me faziam perceber que não estava necessariamente no paraíso. Mesmo assim sonhei, de olhos bem abertos, com chuvas torrenciais que me levariam a Teixeira Pinto e aos seus destacamentos. Chuvas que só tinham aparecido uma vez e que tardavam em reaparecer.

Passei em revista a minha ida a Bissau. Naquela cidade as pessoas, dentro do possível, tentavam passar pela vida. Eu, ali sentado contra uma parede, só podia fazer pela vida. Não podia aspirar a mais.

Pela manhã, a nossa coluna juntou-se à escolta matinal que viera do acampamento e rumámos à Mata dos Madeiros. Ali ainda não havia notícias quanto à nossa saída daquele lugar. Tínhamos entrado em compasso de espera.

Na noite de 10 para 11 de Junho fomos surpreendidos com outro temporal. Tal como acontecera no primeiro, fiquei extasiado com aquele espectáculo da natureza que tinha tanto de belo como de pavoroso. Os relâmpagos e os trovões deflagravam por todos os lados, o firmamento transformava-se numa autêntica bola de fogo e a chuva caía como um caudal. Esses elementos naturais chegaram repentinamente e com a mesma ligeireza se foram, dando lugar à lua e às estrelas.

Sempre confessei à minha madrinha de guerra o meu fascínio por esses dons da natureza. Desta vez não foi diferente. Mas estas chuvas trouxeram outra novidade, em tudo muito semelhante às primeiras, as que levaram os capinadores a regressar aos seus lares com as primeiras chuvas e às sementeiras do arroz.
Agora, com este novo temporal, foi a vez dos trabalhadores das máquinas recusarem continuar a trabalhar na estrada.
Sobre este assunto escrevi o seguinte:

Mata dos Madeiros, 11 de Junho de 1971
“Há algumas coisas novas por aqui, entre elas a proximidade da nossa saída deste sítio. A minha afirmação é bastante contingente pois que, formalmente, nada se sabe. Falar assim é proveniente da recusa dos trabalhadores das máquinas que estão a trabalhar na estrada, em continuarem os trabalhos.”

Essa recusa, melhor a saída destes últimos trabalhadores da estrada, deixou-nos apreensivos. Sabíamos que sem civis ficaríamos mais vulneráveis. Compreendíamos isso, mas nada se poderia fazer. A nossa ordem de marcha tardava a chegar, ou se existia e alguém sabia dela, neste caso o nosso comandante de companhia, mantinha muito bem o segredo.

Escrever à minha madrinha de guerra não era um passatempo, mas uma necessidade

Por incrível que pareça, na correspondência seguinte, não voltei a tocar na saída da CCaç 3327, diria iminente, da Mata dos Madeiros.

No dia 15 de Junho de 1971, escrevi à minha madrinha de guerra aquele que foi, sem saber que o era, o último aerograma que escreveria no acampamento da Mata dos Madeiros. Sobre a situação militar foi isto que lhe escrevi:

“Cá vai mais este bate estradas ao teu encontro para uma pequena conversa, dando assim algumas notícias minhas. Estas são poucas e sem interesse, daí o serem breves. Por aqui tudo continua bem, felizmente.
Mais uma saída para o mato, sem problemas na ida e no regresso. Isso, por si só, é motivo suficiente de regozijo; aliás, nem poderia ser de outra maneira.”

No dia 16 de Junho de 1971, dois grupos de combate, sendo um deles o meu, saíram normalmente para mais uma acção de patrulha e emboscada com a duração de 24 horas. Como todas as outras que fizéramos antes, esta também correu bem. A surpresa estava reservada para o nosso regresso, na manhã do dia 17.
Ao entrarmos no acampamento, como vinha na frente com a minha secção, reparei de imediato que algo de anormal se passava no acampamento, sobretudo, não vi os grupos preparados para nos substituir no mato. Apesar das minhas observações quase nem tive tempo para perguntar o que se passava.

Que teria sido de mim, de nós, sem a sua protecção

As ordens breves e rápidas voavam por todos os lados. Passar de imediato pela cozinha de campanha, beber o café, levantar nova ração de combate, preparar as malas pessoais, carregá-las nas viaturas, acima de tudo não destruir nada no acampamento. Tudo cumprido sem confusões, sem rasgos de alegria, disciplinadamente. Nessa altura, apenas sabíamos que tínhamos cumprido uma missão e que iríamos embalar noutra.

Ao fim da manhã, a coluna da CCaç 3327 punha-se em marcha a caminho de Teixeira Pinto. Para trás ficava a Mata dos Madeiros, um acampamento intacto, as antenas de rádio montadas e alguns dos nossos camaradas das Transmissões, entre eles o Fur Mil João Nunes Correia, agora protegidos apenas e só por uma das outras forças de intervenção.

Aquilo que deveria constituir um motivo de alegria, a nossa saída daquele inferno, acabava por ser um motivo de grande preocupação. Tudo levava a crer que a nossa missão na Mata dos Madeiros ainda não tinha terminado.
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Nota do Editor

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8597: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (27): Algumas fotos de Tite