Mostrar mensagens com a etiqueta Marco de Canaveses. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Marco de Canaveses. Mostrar todas as mensagens

sábado, 21 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24777: Manuscrito(s) (Luís Graça) (239): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VI: no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios" (Padre Manuel Vieira Aguiar, 1947)


Contracapa do livro de Padre Manuel Vieira de Aguiar - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp.




Uma das raras imagens do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. Fonte: Aguiar, 1947, op. cit., pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)


1. O Zé do Telhado (ou melhor,  a sua memória popular) calhou-me... "em herança". Tendo casado em Candoz, a escassos quilómetros de Fandinhães (terra da minha sogra, Maria Ferreira), na serra de Montedeiras, e a 5 minutos de carro da Casa do Carrapatelo na margem direito do rio Douro (o mais célebre dos assaltos cometidos por aquele "capitão de bandoleiros", no dia 8 de janeiro de 1852), tinha que me interessar pelas "lendas e narrativas" que sobre esta personagem oitocentista se contavam, ainda nos anos 70 do séc. XX.


Andava há anos para ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890). Só agora tive tempo e pachorra para o fazer. (E também só há uns anos conheci a casa-museu do Camilo, em São Miguel de Seide, V. N. Famalicão)

E, atrás do Camilo, vieram outros autores, não muitos, dos que tèm escrito sobre o banditismo no séc. XIX, em geral, e o Zé do Telhado, em particular.

Também, por "herança", veio-me parar às mãos o livro cuja contracapa se reproduz acima, da autoria do padre Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp). Está completo (falta-lhe a capa), mas em muito mau estado, muito manuseado, a precisar de ser restaurado e reencadernado.

O autor, Manuel Vieira de Aguiar, na altura era professor do ensino liceal, sendo irmão do padre Agostinho de Aguiar. ( Este foi pároco da freguesia de Paredes de Viadores, a que pertence Candoz, e também ele conterrâneo e condiscípulo do meu sogro, ao tempo da escola primária, e amigo da família Ferreira Carneiro, para cujos convívios costumava ser convidado: Já faleceu há já  uns largos anos; era natural de Mondim, uma lugar perto de Candoz, e a sua família foi um alforge de padres e freiras.)

O livro tem interesse documental, como monografia do concelho do Marco de Canaveses e as suas trinta e duas freguesias (na altura), incluindo Paredes de Viadores. Destaque também para as 75 gravuras (reproduçóes fotográficas), que ilustram o livro, e que são valiosas para o estudo etnográfico das gentes daquela terra do Vale de Tàmega, uma das tábuas do berço onde nasceu Portugal.

A I parte do livro  é dedicada à história dos concelhos, entretanto extintos em meados do séc. XIX, que deram origem ao atual concelho de Marco de Canaveses (Bem-Viver, Canaveses, Soalhães, Alpendurada, Santa Cruz de Riba Tàmega e Porto Carreiro) e ainda aos diversos coutos que existiam dentro do território do concelho, cinco privados (Alpendurada, Tabuado,Burgo de Entre-Ambos-os-Rios, Tuías, Vila Boa do Bispo) ou e 1 real (Vila Boa de Quires), Fala-se ainda de duas beetrias do Reino, Canaveses e Paços de Gaiolo (pp. 55-154).

Já agora, defina-se, muito sumariamente, esta terminologia, menos familiar ao leitor:

(i) beetria , segundo o dicionario, é uma  localidade medieval que gozava o direito  de eleger os seus senhores, um privilégio raro:
(ii) couto era "uma determinada zona de terra, limitada por autoridade real, com certos privilégios, isenções, justiça própria, pagando determninadas pensões aos senhorios diretos" (op, cit., pág. 117).

Havia os coutos privados (dos conventos e da nobreza) e os reais (estes também chamados "coutos de homiziados", ou sejam, de fugitivos à justiça: na prática, era um instrumento de "colonização interna", ficando situados  de preferência nas regiões fronteiriças; os criminosos encontravam ali protecçáo e guarida, com exceçáo para traidores, regecidas e hereges...); foram extintos em 1790.

A II parte do livro é dedicada à "história, demografia e corografia de cada uma das freguesias do a
tual concelho" (pp. 155-360),

E a III (e última) parte é sobre "o folclore em Marco de Canaveses" (pp.361-435): vida rural, com destaque para os trabalhos agrícolas (arranca do linho, espadeladas, malhas, vindimas, esfolhadas), folclore, romarias, serões, festas, bailados populares, superstições, janeiras e reis, carnaval, clamores e pregões, alminhas e cruzeiros, etc.

Na entrada sobre a freguesia de Penha Longa, o autor dedica 13 páginas (pp. 252-265) ao Zé do Telhado e o assalto ao Carrapatelo (passados 70 anos sobre a morte do assaltante e 85 sobre o assalto).

Socorre-se, no essencial, sobre fontes já nossas conhecidas, com destaque para o Camilo "Memórias do Cárcere), Eduardo Noronha ("Zé do Telhado"), Sousa Costa (" Grandes dramas judiciários"), Pinho Leal (" Portugal Antigo e Moderno"), e António Cabral ("Perfil de Camilo").

Antes de apresentar um resumo da vida do Zé Telhado, como militar e depois como bandoleiro, o autor descreve-o nestes termos:

"Alto, gordo, de agradãvel apresentação, génio indomável e fartas barbas, eis o temível capitão de bandidos, que, durante cerca de 10 anos, espalhou o terror do saque e do sangue em terras de Entre-Douro e Minho" (pãg. 252).

O tom é "hagiográfico": afinal trata-se de saber por que é que "os nobres e os ricos lhe davam guarida e proteção"... Já o povo tinha por ele "uma certa estima que, avolumada pela tradição, se transfornou, mais tarde, em admiração profunda" (sic) (pág, 252).

O autor resume o porquê em duas linhas: Porque se dizia que José do Telhado: 

(i) "cumpria sempre a sua palavra; 

(ii) "dívida contraída, na hora marcada se saldava"; 

e (iii) "distribuía pelos pobres o fruto das suas rapinas aos ricos"...

A sua vida "épica e aventurosa", resumida pelo autor (e que inclui o episódio da  da Guerra da Patuleia em que o José Teixeira da Silva conquista a medalha da "Torre e Espada") vai acabar em 1859, quando é preso... 

Vai acabar ou é apenas interrompida... Porque, na verdade, qual Fénix Renascida, há um Zé do Telhado II, em África, onde acaba por morrer, prematuramente,  em 1875, e do qual sabemos pouco, embora saibamos que a sua memória ainda hoje é lá recordada e respeitada... De facto, ao ser desterrado para a Angola, numa época em que ainda era escassa a presença portuguesa (uns poucos de milhares, na sua grande maioria desterrados), o Zé do Telhado torna-se um  dos seus seus primeiros povoadores e colonizadores.


2. Citemos então o autor, o padre Manuel Vieira de Aguiar, conterrâneo do meu sogro, José Carneiro (1911-1996), nascido portanto em Paredes de Viadores, Marco de Canaveses: 

(...) Por fim, cansado de desgostos, resolveu embarcar para o Brasil. A bordo já da barca Oliveira foi preso por iniciativa de Adriano José de Carvalho e Melo, ex-comissário da polícia do Porto [. Foi também Deputado da Nação e Governador Civil de Bragaça, nota de rodapé, pág. 260], e naquela data administrador do jovem, concelho do Marco de Canaveses, o qual soube soube do paradeiro do famoso facínora, por indicações de José Morgado, agora a ferros.

Conduzido à cadeia da Relação do Porto, ali respondeu por tentar fugir para o estrangeiro, sem a documentação precisa. É entregue depois ao Tribunal do Marco, onde corre o processo do crime de Carrapatelo, é é transferido da cadeia do Porto para a do Pisão, em Canaveses.

O seu companheiro de clausura, que também aguarda julgamento pelo crime de adultério com Ana Plácido, o insigne escritor Camilo Castelo Branco, atendendo à sua pobreza e amizade, conseguiu-lhe para defensor o seu próprio advogado, Dr. Marcelino de Matos, que gratuitamente lhe presta os seus serviços.

E em 25 de abril de 1861, realiza-se na casa da Quinta, freguesia de Tuias, um notável julgamento em que José do Telhado é condenado a degredo perpétuo e trabalhos públicos em África. Mais tarde, mediante recurso, foi a sentença reduzida pela Relação do Porto a simples degredo.

Na selva africana continua porém a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios. No exílio, longe da terra natal e da família, a estrela cintilante, tão nimbada de luz que por vezes nuvens negras envolveram, de novo surgia na sua velhice alquebrada. E assim, lá longe. no olvídio de tantos que o temeram e respeitaram, se findou esse bravo, de sentimentos generosos, que foi grande mesmo no crime.

É assim o destino de alguns homens tatuados com o sinete do génio!....

José Teixeira da Silva tinha qualidades como várias vezes demonstrou, de aguerrido, fidelíssimo soldado. Se, do regresso das lutas partidárias, mãos amigas o tivessem auxiliado, teria sido um homem de bem, honestíssimo. Se nas sendas tortuosas, nubladas da existência, alguém orientasse a sua juventude, tão inclinada à epopeia, ao maravilhoso, teria sido um chefe invencível, talvez mais dominador que Napoleão Bonaparte, mais temido que Júlio César, mais intrépido que Alexandre Magno.

Assim, abandonado às suas próprias forças, sem o amparo carinhoso da avara família humana, foi o que foi − um misto formidável de glória e infâmia, de grandeza e baixeza, de epopeias e tragédias. (pp. 260-262).


Não deixa de ser surpreendente este retrato, feito por um homem, sacerdote católico, que escreve em meados dos anos 40, no auge do Estado Novo. Já agora, não é de ignorar esta dedicatória do livro:  "ao Instituto para a Alta Cultura, Secretariado Nacional de Informação, Câmara Municiapl de Marco de Canavese e Junta da Província do Douro Litoral, que se dignaram patrocinar esta obra, a gratidáo reconhecida do autor"... 

Em 1945, recorde-se, tinha chegado aos écrãs das salas de cinema em Portugal, o filme de longa metragem, "Zé do Telhado", realizado por Armando de Miranda, com exteriores filmados perto de Candoz, na Serra de Montedeiras, e protagonizado pelo romàntico e popular ator Virgílio Teixeira, no papel principal. Um verdadeiro "western à portuguesa", disponível no You Tube, em versão integral, aqui (com a duração de cerca 86 minutos).

Um Zé do Telhado, vítima das "circunstâncias histórias" (as lutas fratricidas dos portugueses, na época do liberalismo), e de algum modo "reabilitado" pela História, também convinha à propaganda de um Estado Novo, "antidemoliberal": no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua (...) a realizar proezas", isto é, "subjuga os pretos (sic), funda prósperas roças, dirige negócios" (a expressão é de Manuel de Aguiar).

(Continua)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)

sábado, 14 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24755: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (9): A pisa, a desfolha, a apanha da lenha nos montes, o cultivo da batata, a olivicultura... (António Carvalho, Medas, Gondomar)

Marco de Canaveses > circa 1947 _ A vinha de enforcado, as vindimas

Marco de Canaveses > circa  1947 > O típico carro de bois de Entre Douro e Minho


Fonte: Aguiar, P. M. Vieira de - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947. (Com a devida vénia).


1. Já aqui publiquei,  há dois anos atrás,  várias notas de leitura sobre o livro "Um caminho de quatro passos", do António Carvalho. (*)

Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro no sul da Guiné, durante dois anos (CART 6520/72, Mampatá,1972/74),   encantou-me, de sobremaneira, na altura em que o li,  as suas vivas recordações da infância passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que muitos de nós ainda chegámos a  conhecer, tanto no Portugal continental como insular e até ultramarino. (estou-me a lembrar no nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé,  "menino e moco em Fajonquito").0

Não sendo propriamente um "menino da cidade", tendo vivido numa pequena vila à beira mar, Lourinhã, com avós, tios e primos ali ao lado, no campo, a 3 km de casa  (Nadrupe e Quinta do Bolardo), eu também acompanhei,  até aos meus 10, 11, 12 anos,  algumas das atividades marcantes da vida rural,  como a panha da fruta (as macas, os fihosGomo as vindimas, em setembro, ou a matança do porco, em pleno inverno.

Na região do Oeste, na Estremadura da minha infância, na altura uma das regiões do país com mais produção vitivinícola (até aos anos 60), vinham ranchos de homens e mulheres das Beiras, os "ratinhos" ou "bimbos", vindimar os milhares de hectares de vinha no tempo em que o vinho, dizia a propaganda nacional, dava de comer a um milhão de portugueses....  Era também um conde lho de muitas  "caldeiras"  (destilarias) onde se "queimava vinho" para a produção de aguardente vínica com destino à região demarcada do Douro.

Deslocavam-se os ranchos beirões, em grupos com um capataz, e dormiam nos palheiros, como animais... Depois, os homens foram para a guerra ou a salto para França, arrancaram-se as vinhas, mecanizou-se a agricultura, a vinha e o trigo deu lugar a outras culturas mais rentáveis, primeiro os pomares de pera rocha e depois as hortícolas, hoje as estufas, a batata, as abóboras, etc.

Mais tarde, a partir de 1975, descobri a  região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar em andamento o passado", a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos a água), as histórias do linho e das desfolhadas, as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima ou abaixo", a parceria agrícola e pecuária (formas pré-capitalistas de produção) , as feiras de gado, as romarias, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta) no lagar...

2. Estas  e outras tradições, ligadas a uma economia agrícola fracamente monetarizada, e ainda em grande parte de autossubsistência (como aquela que se praticava até aos anos 50/60 em Entre Douro e Minho), hoje já se perderam, embora perdurando na memória dos "antigos"...  

Voltei a encontrá-las (e a saboreá-las) no livro do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos". Achei que havia similitudes entre Medas (Gondomar) e Candoz (Marco de Canaveses), afinal estamos a escassos 60 quilómetros de distância, na mesma região, a de Entre Douro e Minho. E até com algumas das recordações da minhas idas à aldeia dos meus avós e tios.

A primeira parte do livro (e nomeadamente a reconstituição do quotiano da vida rural em Medas, Gondomar,  até aos anos 60 do séc. XX) tem inegável interesse documental (e até etnográfico).  

E, mais, tem interesse sociológico: muitos dos homens e mulheres da nossa geração ( que fez guerra colonial / guerra do ultramar, 1961/74) conheceram a dureza da vida no campo e do trabalho agrícola, e, em muitos casos, foi vítima, "avant la lettre", da exploração do trabalho infantil.

Para além da riqueza das observações sobre as culturas e as atividades agrícolas, os apontamentos que o autor nos deixa sobre a sua infância são saborosos  pelos regionalismos ou provincianismos usados, parte dos quais  continuam por grafar nos nossos dicionários ou então são deconhecidos de muitos falantes da língua portuguesa, a começar pelos citadinos e pelos mais novos.

uma subcultura camponesa do Norte que está em extinção. Na realidade:

  • quem sabe o que é uma "pipa" e a sua equivalência em litros ?  
  • e menos ainda o significado de "desarroar as pipas" (tirar o sarro);
  • "canastro" (ou espigueiro) também é um vocábulo estranho a um lisboeta;
  • tal como "canistrel" (pequeno cesto de vime); 
  • ou como "calda bordalesa", "pingue de porco", "queiró, carqueja e tojo", "pisa", "desfolhada", etc.

A "ajuda rogada" é uma expressão idiomática que me parece muito mais nortenha do que sulista. Ou mesmo se pode dizer de "carro de milho" como medida, ou o "almude" ou a "talha de barro almudeira" (onde se guardava o azeite)... 

Embora o sistema métrico tenha entrado em vigor em Portugal, por volta de 1860, com a intenção de se uniformizae o sistema de pesos e medidas (mudança fundamental para a criação de um verdadeiro mercado e, portanto, para o desenvolvimento da economia capitalista, a par das estradas, do caminho de ferro, da máquina a vapor, do código comercial, etc.), persiste até hoje, no campo, o uso das antigas unidade de  medidas portuguesas, como por exemplo, moio, alqueire,  quarta, oitava, maquia , etc. (medidas de capacidade para secos); ou tonel, pipa, almude,pote, canada, quartilho, etc. (medidas de capacidade para líquidos).

Há, no livro do António Carvalho,  expressões deliciosas, castiças, e outras de que lembro de ler e ouvir no Norte, como:

  • "à  medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar";
  • "tanger os bois";
  • "guiar à soga";
  •  "o moleiro que arrochava os sacos de farinho sobre o dorso das mulas";
  • "os dois porcos grandes, que se queriam gordos";
  • "um terço de despacho (desembaraço)";
  • "com a sua licença, o porco";
  • "apercar";
  •  "freima";
  • "aneira";
  • "anos minguados"
  •  "barco rabão";
  •  "sortes" ... 

Enfim, vocábuos e expressões, de sabor castiço, camiliano, que enriquecem a língua portuguesa, embora tendam a desparecer ou sejam cada mais de uso local ou restrito, face ao "rolo  compressor" dos mídia, da televisão, das redes sociais, da globalização,  etc..

Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro  do António Carvalho (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como contributo para a nova série que temos em curso, "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço", onde a sua participação  (para mais, agora às voltas com a gestação de um novo livro)  é absolutamente  obrigatória (*), a par de outros camaradas como o transmontanto Francisco Baptista, por exemplo. (Temos de recuperar alguns dos seus escritos sobre Brunhoso.)


António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", ex-fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74, membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008, autarca na antiga freguesia das Medas, Gondomar durante 28 anos (hoje, União das freguesias de Melres e Medas); tem cerca de 80 referências no nosso blogue.

(...) "Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro e pela serra de Açores, rebatizada (não sei por quem nem porquê) a partir da segunda metade do séc. XX, como serra das Flores, como aqui nasceram também, pelo menos, alguns dos meus octavós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho.

(...) Talvez também por isso, nem em sonhos me passou algum dia pela cabeça assistir à assimilação da minha freguesia por outra, numa amálgama sem identidade !

(...) Espero não morrer sem ver a minha freguesia ressuscitada – a única coisa que me interessa, ao nível da política local. (...)" (pp. 212/214)  (...)

A PISA E A DESFOLHADA


Setembro era o mês de maior azáfama, porque se juntava a colheita do milho e a vindima, não havendo um minuto de folga naqueles dias ainda grandes, mas já sem as reparadoras sestas. 


Na nossa casa [ em Medas].e nas de envergadura semelhante era sempre preciso assalariar mulheres , sobretudo na vindima, mas também na colheita do milho porque, antes que viessem as chuvas de outubro, o vinho tinha que estar nas pipas e as espigas no canastro. 

Enquanto um carro [de bois, não havia ainda ] andava no transporte das uvas, dos campos para o lagar, o outro carregava as espigas, para a eira. O lagar grande, de quatro pipas, levava dois dias a encher, mas o mais pequeno ficava lotado num só dia. Se hoje havia uma pisa , amanhã podia haver uma desfolhada. As uvas eram pisadas à noite, sempre com a ajuda rogada dos nossos vizinhos. 

Nós, os da casa, à medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar, não tínhamos como evitar esse esforço acrescido, mesmo depois de um dia de trabalho pesado. 

É certo que, quando chegávamos ali aos treze ou catorze anos, entrar pela primeira vez no lagar era sinal de que já éramos homens e essa assunção, havia muito tempo almejada, de uma pretensa maioridade, envaidecia-nos. 

O meu avô nunca pisava, mas estava sempre presente para servir vinho e cigarros aos pisadores, ao mesmo tempo que apontava para um ou outro ponto do lagar onde a grainha ainda não tinha chegado à superfície, sinal de que era preciso ali mais pé. O meu pai, esse andava por ali a dessarroar as pipas e a apertar-lhes as aduelas ou agarrado à prensa a aproveitar os últimos litros de vinho. 

No fim de cada pisa, à ordem do meu avô, saia o primeiro pisador e só se lhe seguia o segundo depois do primeiro ter lavado as pernas, e assim sucessivamente até ao último. 

Alguns pediam aguardente para se livrarem da comichão nas pernas aproveitando para, de um só trago, engolir um pequeno copo dela, antes que todos subissem as escadas de acesso à nossa grande cozinha, onde a minha mãe e a minha tia tinham posto na mesa três travessas grandes de arroz de tomate com bacalhau frito. 

Lembro-me de me sentir grande quando já fazia parte do grupo dos pisadores, sentado ali à mesa, com os meus irmãos mais velhos e o pessoal de fora.

As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele. 

Havia sempre um dos meus irmãos a subir a escada de acesso ao canastro, onde cabiam mais de seis carros de milho, enquanto outro se ocupava a acomodar as espigas dentro das divisórias. 

Era ali que as espigas ficavam a secar, para serem debulhadas, à mediada que precisássemos do milho, em qualquer dia de céu limpo. Debulhava-se sempre para cima de um carro de cada vez, guardando-se o milho, já limpo, numa das caixas grandes que tínhamos em casa. 

E era dessa caixa, enorme aos meus olhos de criança que, todas as semanas, se enchiam dois sacos para entregar ao moleiro que os arrochava sobre o dorso das mulas.

E não era demasiado o milho que mandávamos moer, porque para além da farinha para a fornada semanal, também os dois porcos grandes, que se queriam gordos, gastavam dela.


A ÁREA BRAVIA E A LAVRADIA


Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as camas do gado. 


E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por queiró, carqueja e tojo,  tornou-se mesmo decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de estrume. 

Ora nessa área de terreno  inculto, dispersa por várias parcelas a que os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas  por sorteio, em número proporcional à área agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução. 

Os lavradores maiores que tinham excedentes de mato,  vendiam, para os fornos do Porto, alguma carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles, anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.

 Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros, reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam nas  lareiras de quase todas as casas, antes da chegada dos fogões a gás e a eletricidade

lenha das videiras que resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa. 

As medas de ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família, faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.


A CULTURA DA BATATA


Logo a seguir ao milho e ao vinho,  a batata era o produto mais representativo na nossa casa de lavoura, em termos de volume e de rendimento. 


Desde a década de quarenta até à minha adolescência uma parte significativa do trabalho era dedicado ao cultivo deste tubérculo que, semeado entre março e abril, não carecia de rega, adaptando-se assim muito bem aos nossos terrenos onde a água não abundava. 

O meu avô e mais tarde o meu pai deram uma especial atenção ao incremento desta cultura e terão sido, durante duas ou três décadas, os maiores produtores de batata da freguesia. 

Em quase metade dos nossos campos, bem estrumados, semeávamo-las, ficando os restantes, aqueles que podiam ser regados, dedicados ao milho e feijão consociado. Depois de se ter coberto o terreno com uma boa camada de estrume, lavrava-se e gradava-se com os bois. 

O trabalho de que mais gostava, aí pelos meus oito ou nove anos, era de me sentar na grade, agarrado com uma das mãos a uma das travessas enquanto que, com a outra munida de uma vara, tangia os bois à ordem do meu pai ou de um irmão mais velho que os guiava à soga. 

Não me dói a consciência por , com o meu peso, exigir aos bois aquele esforço suplementar, porque, se não fosse eu a desfrutar daquele prazer, um calhau grande seria lá posto na minha vez para fazer os dentes da grade penetrar bastante na leiva.

Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado. 

A minha avó materna também ajudava algumas vezes bem como a minha tia Quina, mas ficavam-se por um terço do despacho da minha mãe. O meu avô dirigia as operações dos homens da enxada, enquanto o meu pai já andava a lavrar outro campo. 

Havia normalmente dois ou três homens a abrir regos e meu avô, sabendo da capacidade e vontade de cada um, mandava sempre o mais lento começar no primeiro rego, deixando o último para o trabalhador melhor, forçando deste modo os mais lentos a andar da perna, antes que o mais rápido esbarrasse com ele, o que seria uma vergonha para o atropelado. 

A mim, como a qualquer um dos meus irmãos, a partir dos sete ou oito anos, estribados por uma varinha de vinte e cinco centímetros, cabia-nos a tarefa de dispor as batatas nos sulcos que os adultos iam abrindo.

Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva. 

Entretanto era preciso pulverizar os batatais com calda bordalesa e inseticida de modo a erradicar-se o míldio e o escaravelho. Julho e agosto eram os meses da colheita e do armazenamento numa loja fresca e escura. 

Tínhamos batatas em barda e, como a produção excedia largamente o consumo, vendíamo-las para as mercearias da freguesia e até para o Porto onde as fazíamos chegar por barco rabão.

Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado. 

cultura do nabal era também muito rentável, até aos anos sessenta, quando vinham diariamente meia dúzia de mulheres da outra margem do rio, comprar grandes quantidades de nabos que carregavam em gigos bem acogulados, destinados à alimentação humana e à engorda de porcos.

O AZEITE , O ÓLEO  DOURADO


Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura. 


Mas a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados. 

Entre novembro e dezembro  era a altura de se colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos, para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados,  deixando que as copas se desenvolvessem na vertical, sempre com o propósito de  evitar que se apoderassem do solo com a sua sombra.

A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso varejar os ramos mais altos.

 Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que varejávamos do chão e de cima das escadas. 

A azeitona colhida mais cedo e sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não fossem acompanhadas de carne gorda.

Na culinária a gordura que se usava mais frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano. (...)

© António Carvalho (2021)

(Seleção, revisão e fixação de texto, negritos, para publicação deste poste: LG) (Com a devida vénia...)




Capa do livro do  António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.

O livro (se não estiver já esgotado) pode ser adquirido, ao preço de 15,00 euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) | Contactos do autor: António Carvalho, Medas, Gondomar | Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036
_____________

Notas do editor:


17 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23005: Notas de leitura (1420): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): uma excursão a Lisboa, de 4 dias, em 1959

(**) Último poste da série : 13 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24667: Manuscrito(s) (Luís Graça) (231): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte II: o carrasco, Adriano de José de Carvalho e Melo, fundador e administrador do Marco de Canaveses


José do Telhado (1818-1875)... (A partir de uma foto da época)



Capa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862).



1. Zé do Telhado (Penafiel, 1818-Malanje, Angola, 1875) já nada diz hoje à geração atual dos nossos filhos e netos. Mas é capaz de dizer a alguns de nós (sobretudo os nascidos e/ou criados no Norte, ou pelo menos Entre Douro e Minho) e sobretudo à geração dos nossos pais, que vieram ao mundo nas décadas de 1910 e 1920. (*)


O meu sogro, José Carneiro, por exemplo, nascido em 1911, e natural da região do Vale do Tâmega, do concelho de Marco de Canaveses, falava-me ainda, em meados dos anos 70, vinte anos antes de morrer, da lenda do Zé do Telhado, que “roubava aos ricos para dar aos pobres”. E essa lenda transmitiu-a aos filhos.

Acontece que este verão pus-me a ler a autobiografia romanceada do Camilo Castelo Branco, as “Memórias do Cárcere”, em dois volumes, na 8ª edição, 1966. E por aí cheguei ao retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico,  que ele traçou do seu companheiro de infortúnio (mas também "guarda-costas"), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto.

No prefácio à 2ª edição (Porto, 1864), Camilo conta-nos que esta obra foi escrita em 40 dias, e nela reuniu mais de 3 dezenas de “historietas”, centradas no submundo do crime da época, ali bem representado na cadeia da Relação do Porto. Mais de 30 páginas (cap. XXVI, pp. 84-107) são dedicadas ao Zé do Telhado. 

Camilo, acusado de adultério, na iminência de ser preso, e por conselho de amigos, saiu do Porto, andando “fugido à justiça” cerca de 6 meses, escondendo-se aqui e acolá em casa de familiares, admiradores e amigos: primeiro um mês, nas águas furtadas da casa do amigo portuense Custódio José Vieira, e depois três meses na Quinta do Ermo, em Fafe, do mais tarde tristemente célebre José Cardoso Vieira de Castro (1837-1872), condenado por homícidio da sua jovem esposa brasileira, e desterrado para Angola, um crime passional que deu brado na época, em Portugal e no Brasil.

No seu estilo inconfundível, Camilo descreve a partida da “diligência” para a Régua nestes termos sarcásticos:

(…) “Me embarquei na ‘diligência’ que partia, mais duvidosa do seu destino, para a Régua, do que a nau de Cristóvão Colombo para o novo mundo” (CCB, 1966, pág.14).

Cansado da “clandestinidade”, Camilo acaba por entrar na prisão em 1 de outubro de 1860. O
 Zé do Telhado já lá estava, nessa altura. Viria a ser condenado, por sentença transitada em julgado, no Tribunal Judicial do Marco de Canavases, a pena de desterro em África, em 27 de abril de 1861… Tinha sido preso em 31 de março de 1859 quando tentava fugir para o Brasil, ficando então  detido nos calabouços da Relação.

Já agora, e como curiosidade, o Camilo nunca explicita, talvez por pudor, hipocrisia social ou mero calculismo (ele vivia exclusivamente da escrita, foi o primeir0 escritor português a 'profissionalizar-se"), a razão da sua detenção durante um ano, e muito menos menciona o nome da sua companheira, Ana Plácido (que era casada, contra a sua vontade, com um  comerciante rico, o "brasileiro" Pinheiro Alves, e que estava igualmente detida, por adultério, na ala feminina).

No sítio do Museu Judiciário do Tribunal da Relação do Porto, pode  saber-se algo mais sobre este homem,  Zé do Telhado, que entrou para a história não tanto como militar e guerrilheiro, condecorado com o grau de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada (por ter salvo a vida do general Sá da Bandeira, em 1846, na revolta da Maria da Fonte, a que se seguiu a guerra da Patuleia) mas sobretudo pela sua alcunha, a sua fama, as suas façanhas em data p
osterior, como “bandido social” ou “bandido-herói”, que acabaria por morrer desterrado em Angola.


O Processo (1859-1861)

(…) Chefe de uma quadrilha de salteadores, Zé do Telhado deve a sua fama lendária de roubar aos ricos para dar aos pobres – uma espécie de Robin dos Bosques português. O escritor Camilo Castelo Branco presta-lhe homenagem nas “Memórias do Cárcere” (com quem esteve preso na Cadeia da Relação do Porto e de quem se tornou amigo).

Foi preso em 1859, julgado no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes (julgamento iniciado a 25 de abril de 1859) e condenado a degredo na costa ocidental de África para toda a vida. Embora a pena tenha sido comutada posteriormente para 15 anos de degredo, Zé do Telhado acabaria por falecer em Angola.(…)


E mais se pode ler no sítio do referido museu virtual:

Processo de Querela contra o réu José Teixeira da Silva (Zé do Telhado):

(…) Libelo acusatório por diversos crimes cometidos com violência: tentativa de roubo; tentativa de roubo com princípio de execução, com arrombamento; roubo com homicídio; roubo com espancamento e ferimentos. E ainda autoria e chefia de associação de malfeitores e tentativa de evasão do reino sem passaporte e com violação dos Regulamentos Policiais. É condenado a trabalhos públicos por toda a vida no Ultramar e ao pagamento das custas.

O processo iniciou-se em 30 de Maio de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado por sentença do juiz António Pereira Ferraz, de 27 de Abril de 1861, na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi mantida pela Relação do Porto, substituindo apenas a expressão “costa ocidental de África”, por “Ultramar”.

Por acórdão da mesma Relação de 11 de Agosto de 1865,  foi comutada a pena aplicada na de 15 anos de degredo para a África Ocidental, a contar desde a data do Decreto de 28 de Setembro de 1863.(…)


O réu acabou por ser condenado por “diversos crimes [cometidos] com violência”, comprovados em tribunal, e absolvido de outros:

  • tentativa de roubo, com começo de execução, em casa de António Fabrício Lopes Monteiro, de Santa Marinha do Zêzere, comarca de Baião [em 27 de novembro de 1952];
  • homicídio na pessoa de João de Carvalho, criado de Dª Ana Victória de Abreu e Vasconcelos, de Penha Longa, Baião [erro: trata-se de Marco de Canaveses], e roubo na casa da referida senhora (Casa de Carrapatelo) de objetos de ouro e prata no valor de oitocentos mil e um conto de reis e algumas sacas com dinheiro, cujo valor a queixosa calculou em doze contos de reis, não sabendo ao certo quanto era, porque o dinheiro se encontrava na casa mortuária onde jazera, poucos dias antes, seu pai, e, após isso, ela ainda nem sequer lá voltara a entrar [crimes estes ocorridos em 8 de janeiro de 1852];
  • roubo [cometido em março de 1859] em casa do Padre Albino José Teixeira [em Sequeiros, freguesia de] Unhão, comarca de Felgueiras, no valor de um conto e quatro centos mil reis em dinheiro e ainda objetos de prata e outro;
  • outro homicídio na pessoa de um correligionário [o “Avarento”], ferido num confronto com as autoridades [na Eira dos Mouros, serra de Montedeiras, em 22 de maio de 1852, e levado para uma estalagem, na freguesia de Santa Catarina, concelho de Felgueiras, o Zé do Telhado lhe deu um tiro de misericórida];
  • para além de outros crimes de roubo e de resistência à autoridade, foi também condenado como autor e chefe de associação de malfeitores e de tentativa de evasão do reino [para o Brasil] sem passaporte e com violação dos regulamentos policiais.

(...) “A sua qualidade de chefe é que o tornou responsável pelo homicídio do Carrapatelo, pois o autor material foi um capanga que abateu o criado quando este tentou reagir, num momento em que o caudilho ainda nem entrara na residência. “ (…).

Foi brilhante a sua defesa, para mais a título gracioso, pelo advogado portuense, Marcelino de Matos, amigo e defensor do Camilo. 


Contexto histórico, político e militar:

Continuando a citar a mesma fonte:

(…) "A ação do Zé do Telhado, alcunha de José Teixeira da Silva, integra-se no fenómeno organizativo de grupos de assaltantes que tem a sua génese, de formação espontânea, durante as invasões francesas.

"Perante a total falta de reação do exército português à entrada dos napoleónicos, grupos de populares procuram quebrar a total impunidade dos invasores. Esses grupos, meras milícias populares, entretanto com experiência guerrilheira acumulada, foram aproveitados na guerra civil liberal por forças políticas e militares em campo: os “corcundas” (absolutistas) e os “malhados” (liberais).

"Terminada a guerra, ficou o gosto e o proveito da guerrilha por conta própria: é o João Brandão, é o Remexido, é o Zé do Telhado. Este atingira, ao serviço liberal, a glória, com a atribuição da Torre e Espada. Finda a guerra pretendeu um emprego no Depósito do Tabaco, no Porto. Não conseguiu.

Usava evoluída assinatura, com o último apelido abreviado (S.a), curioso indício de cultura acima da vulgaridade.” (…)



Marco de Canaveses, concelho criado em 1852

O Marco de Canaveses foi elevado a concelho, em 1852, por ação, direta ou indireta de dois homens, contemporâneas e vizinhos, o administrador Adriano José de Carvalho e Melo (1825-1894) e... o Zé do Telhado (1816-1875), nascidos na mesma região, berço fecundo de gente nobre e ilustre,  o Vale do Tâmega, o primeiro, e o Vale do Sousa, o segundo.

Em 1809, ainda não existia a cidade do Marco de Canaveses, muito menos o concelho, apenas a pequena vila medieval de Canaveses, sobranceira ao rio Tâmega, na margem esquerda, e por onde passava a estrada real Porto-Régua. A ponte medieval era do tempo de Dona Mafalda, esposa de Dom Afonso Henriques.

E foi essa ponte que os habitantes locais demoliram parcialmente na tentativa de impedir o trânsito das tropas do marechal Soult, que comandava o exército napoleónico,  na sequència da segunda invasão francesa (de 3 de fevereiro a 12 maio de 1809). 

Os invasores não transpuseram o Tâmega em Canaveses, fizeram-no mais a montante, em Amarante. Menos conhecida dos portugueses é a bravura posta na defesa da ponte de Canaveses contra os invasores, que está bem patente num relato de um soldado francês:

"O General Caulaincourt, que nos comandava, pretendeu apoderar-se de Canaveses a fim de não deixar inimigos entre si e o Porto. Formou um destacamento de 500 cavalos e marchámos para Canaveses; não encontrámos ninguém até à nossa chegada a uma altura que domina a povoação: aí avistámos a alguma distância bandos de 15 a 20 paisanos que aparentavam não esperar senão o sinal para nos atacarem. Vestidos de negro ou de cor sombria, entre rochedos acinzentados, tinham o ar de fantasmas devotados à nossa perseguição e que nos vinham acusar da infelicidade do seu país: seguiam de longe os nossos movimentos e paravam quando nós fazíamos alto (...).

"Após duas horas de um combate muito vivo no qual tivemos 80 homens feridos todos pela frente, o destacamento regressou às alturas onde lutámos com os habitantes que nos tinham atacado de todos os lados, desde que a luta se tinha desencadeado sobre a ponte. (...) 

"Operámos uma retirada sobre Penafiel, conduzindo os feridos. Fomos perseguidos até aos nossos bivaques por uma multidão de paisanos que pareciam sair da terra ou tombar das nuvens, desde que nos afastássemos um pouco." (citado por Nayles, M. de (1817). - "Memoires sur da Guerre d'Espagne pendante les années 1808, 1809 e 1811". Paris: [s.n.]. In: Wikipedia > Marco de Canaveses)

Acrescente-se que o concelho do Marco de Canaveses, juridicamente falando, só existe desde 31 de março de 1852, dois meses e tal depois do assalto à Casa do Carrapatelo:

(i) em 1836, a vila de Canaveses e o concelho de Tuías unem-se ao concelho de Soalhães, formando o concelho do Marco de Soalhães; era seu administrador Adriano José de Carvalho e Melo (que será mais tarde comissário da Polícia no Porto e Governador Civil do Distrito de Bragança);

(ii) em 1852, há uma nova união, a dos dos concelhos de Benviver (a que pertencia Candoz, Fandinhães e a serra de Montedeiras...) e Marco de Soalhães, dando-se assim início ao processo de fundação do atual concelho de Marco de Canaveses.  

(iii) recorde-se que,  a 7 de janeiro de 1852, o  Zé do Telhado e o seu bando  preparam-se junto à capela românica de Fandinhães, na vertente norte da serra de Montedeiras, para levar a caso o audacioso assalto à Casa do Carrapatelo;

(iv) o alarme social provocado por este assalto (onde houve um homicídio) levou o administrador Adriano José de Carvalho e Melo, deputado e administrador do concelho de Soalhães, a mover uma "luta de vida ou de morte" contra o Zé do Telhado, mas só iria conseguir prendê-lo nove anos depois, em 31 de março de 1859;

(v) citando a Wikipedia, "a lei não permitia à justiça de uma comarca entrar noutra, sem autorização do seu administrador", e foi por causa desse impecilho burocrático que o Adriano de José de Carvalho e Melo vai mover mundos e fundos para poder criar-se o concelho do Marco de Canaveses (um grande concelho reunindo em si os vários concelhos e comarcas vizinhos, de menor dimensão e importância);

(vi) em 31 de março de 1852, a rainha D. Maria II assina o decreto que cria o concelho de Marco de Canaveses (que passa a integrar os concelhos de Benviver, Canaveses, Soalhães, Portocarreiro, parte dos de Gouveia e Santa Cruz de Riba Tâmega);

Os marcoenses podem estar gratos, hoje, ao Adriano José de Carvalho e Melo (que nasceu e morreu em Tuías, na Casa da Picota) pelo seu papel como pai-fundador do seu concelho, mas não podem ignorar que, de algum modo, o "fora-da-lei" Zé do Telhado  também faz parte desta história...

A avaliar pelos poucos livros (apenas três) que encontrei na biblioteca municipal local, quer-me parecer que o homem também anda por aqui muito esquecido... Claro que não seria caso para ter direito a um busto de bronze, no jardim municipal, como o Adriano José de Carvalho e Melo, mas, bolas, na altura o alegado "bandido social", nascido no concelho vizinho de Penafiel e casado na Lousada, também ajudou a pôr o Marco de Canaveses no mapa... 

Ingratidão,  mesquinhez, tacanhez dos portugueses? Já o Camilio dizia, em 1862, nas suas "Memórias do Cárcere";

(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)

(…) “Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo” (pág. 84)
 
(Continua)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste anterior: 14 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24649: Manuscrito(s) (Luís Graça) (229): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte I: a lenda que eu ouvi contar ainda em 1976, em Candoz

(*ª) Vd. poste anterior da série: 7 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24664: Manuscrito(s) (Luís Graça) (230): Há minas... e minas

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24506: Contos com Mural ao Fundo (Luís Graça) (6): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) - II (e última) Parte

 


O "milagre" do bacalhau do Natal com pencas (ou "tronchudas"). Fotograma de vídeo de Luís Graça (2013).

Fonte: Blogue A Nossa Quinta de Candoz > 30 dxe dezembro de  2013 >  nossas comidinhas (7): O bacalhau com pencas. da ceia de Natal


Segunda e última parte do texto elaborado para a  série literária da autoria do nosso editor Luís Graça, "Contos c0m Mural ao Fundo"  (*)


O  "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) - II (e última) parte

Foi aqui, em pleno "chão manjaco", que o nosso cabo descobriu que tinha jeito para os negócios. E mais: que tinha a estrelinha da sorte a brilhar no seu céu… Um ano depois, voltou a Felgueiras e a Amarante, as suas "duas terras natais".

Vir de férias à metrópole era um luxo só reservado a alguns, aos oficiais e sargentos, milicianos ou do quadro. Raros eram as praças (soldados e cabos) que podiam desembolsar as seis notas de conto que custava a viagem de ida e volta na TAP. Alguns, coitados, faziam das tripas coração, só para poder estar um mês com a família, sendo já casados e com filhos (que mal conheciam ou não conheciam de todo).

Numa região com grande tradição de emigrantes de torna-viagem (Brasil, França…), o "Felgueiras" fez questão de voltar exibindo alguns sinais exteriores de riqueza… Até um carro alugou, no Porto, só para impressionar a família e os amigos que cá deixara. (Poucos, de resto, a maior parte deles espalharam-se pelo mundo fora: uns na Invicta ou em Lisboa, outros na França, outros ainda na guerra do ultramar).

− Sorte ao jogo, azar no amor?!... Vamos lá testar a roleta da sorte…

De há muito que o "Felgueiras" tinha uma paixão, "assolapada", não correspondida, por um antiga colega do colégio de Amarante, a "morgadinha". A rapariga pertencia a uma família com pretensões a ter "origem fidalga"… Fizera o antigo 5.º ano do liceu e o melhor que arranjou, por ali perto, foi um emprego na Câmara Municipal, como escriturária administrativa.

Durante o primeiro ano de comissão, o "Felgueiras" e ela trocaram algumas cartas e aerogramas, mas sempre na condição de "amigos, vizinhos e antigos condiscípulos"… Do colégio ficaram, de resto,  algumas amizades comuns. Não se namoravam, mas ela também teria um fraquinho por ele.  Os pais dela opunham-se, e tinham outros planos para a rapariga, que era filha única: ao que parece, o eleito era um professor primário, que andara a estudar para padre, e que também estava na tropa, em Moçambique, como alferes miliciano. Seguramente, um melhor partido do que "o filho do rendeiro da Lixa"…

Os pais da rapariga não tinham, alegadamente, "dinheiro para mandar cantar um cego" e, muito menos, para mandar restaurar a arruinada fachada da casa, "com brasão", onde viviam, nos arredores de Amarante, herança de um tio-bisavô, cónego da Sé de Braga.

O filho do rendeiro, operário da Tabopan, não era, na verdade, nessa época, um "bom partido", pelo que o "Felgueiras" voltou para a Guiné com um "amargo de boca"…

Convencido de que o dinheiro pode "comprar tudo (ou quase tudo), até o amor", acabada a comissão, o "Felgueiras" voltou com uma malota cheia de notas ("escudos", legítimos, da metrópole, em vez dos "pesos", o patacão, sujo, sebento, da Guiné, trocados lá no Banco Nacional Ultramarino e na "candonga", nos comerciantes de Bissau que cobravam uma taxa de 10%).

Depositou a malota aos pés da rapariga e pediu-a aos pais em casamento, assim, de chofre, à bruta, sem mais cerimónias, "sem o romantismo que se via nas fitas do cinema" (sic)... Os "fidalgotes" nunca tinham visto na vida tanto nota de banco, em maços separados, atados por uma fita… Até desconfiaram que fosse produto de algum assalto…

Estranhamente, a rapariga, a "morgadinha",  levantou-se, lívida, sem pinga de sangue, para logo a seguir correr para o quarto, lavada em lágrimas, num pranto… Os pais esboçaram um pedido de desculpa, mais embaraçados e envergonhados que o pretendente à mão da filha. 

A partir deste dia, o "Felgueiras" esqueceu, para sempre, a sua eleita do coração…  

No dia seguinte, rescindiu o contrato de trabalho que ainda o ligava à Tabopan, e decidiu comprar um bilhete da TAP para visitar Luanda, onde tinha um irmão estabelecido desde que terminara a tropa em 1963.

– Um homem das Arábias, o nosso "Felgueiras" – conclui eu.

− Das Arábias, não, um homem, sim, das Áfricas! – emendou o Arlindo.  
 Mas partiu para Angola com o coração destroçado.

− Males de amores não são fáceis de curar! – comentei eu.

Ex-furriel, camarada do "Felgueiras", maquinista da CP reformado, pai do Jorge, meu vizinho do Marco de Canaveses, voltei a encontrá-lo, ao Arlindo, depois do casamento do filho, mais duas ou três vezes. E foi através dele que fui sabendo mais histórias do "Felgueiras" que, segundo os meus cálculos, terá regressado da Guiné em princípios de janeiro de 1969…

Sabemos que foi ter com um dos irmãos, o mais velho, o Tó, que se radicara em Angola: fora dos primeiros militares a ir para lá, em meados de 1961, tendo sido um dos bravos da Operação Pedra Verde. Em finais de 1963, terá rumado para a Lunda, e andado metido com "garimpeiros". Depois acabaria  por abrir um pequeno restaurante em Luanda, lá na Mutamba, na parte baixa da cidade. 

As coisas melhoraram quando o irmão mais novo, o "Felgueiras",  se tornou sócio. Trouxe dinheiro fresco e sobretudo o tal "jeito para o negócio", talento que tinha descoberto na região do Cacheu, na Guiné. 

O início da década de 1970, antes da crise petrolífera de 1973, foi ouro sobre azul para quem tinha "porta aberta" em Luanda. O "dinheiro sujo" da guerra era ali "branqueado". O "ventre de Luanda" regurgitava, os "comes & bebes", a "diversão noturna" e a "indústria do sexo" deram muito "cumbú" (dinheiro, em calão de hoje) a ganhar a muita gente. Havia até um restaurante muito  conhecido, o "Floresta", que servia sardinhas assadas de Peniche acabadas de chegar do avião da TAP... Enfim, pequenos luxos que o "boom" económico de Angola permitia a alguns, civis e militares...

Inesperadamente, em princípios de 1973, seis meses antes da crise, o "Felgueiras" vendeu a sua quota ao "cota" do irmão Tó, just in time, na hora certa. Parece que adivinhava que o mundo ía ficar louco e que nada voltaria a ser como dantes... Alegava que "queria correr mundo e encontrar a futura mãe dos seus filhos"...

Em troca terá recebido do mano velho um saquinho de "vidrinhos", guardados no fundo de um bau, desde o tempo da Lunda, como uma espécie de pé de meia. O "cota" insistiu que estava ali uma pequena fortuna, mas ele nunca tentara sequer trocar as "pedrinhas" por dinheiro vivo. A Diamang, dizia-se, tinha um braço comprido e o contrabando de diamantes (a "camanga", em bom angolês...) era severamente reprimido. Era um Estado dentro de outro Estado, justificava-se o "cota", seguramente menos atiradiço (e "com mais escrúpulos"...) que o "caçula" da família.

Por razões óbvias, por se tratar de um assunto "delicado, íntimo", eu nunca puxei a conversa para esse lado, das poucas vezes em que ainda estive (ou melhor, falei ao telefone) com o "Felgueiras", nestes últimos anos, depois do casamento do Jorge e da Clara. Nunca saberei, pois, como é que ele conseguiu eventualmente aumentar a sua conta bancária (e o seu património), com o valor de um saquinho de "vidrinhos" da Lunda. Mesmo para o Arlindo, era uma "assunto-tabu".

− Por favor, camarada, quando voltares a estar (ou falar) com ele, nunca toques na história dos "vidrinhos"... Ele ficaria muito aborrecido, se não mesmo melindrado ou até enfurecido... Se há coisas de que ele não gosta de falar, é disso e da rede bombista de 1975...

Quando conheci o "Felgueiras", ele tinha um passado de "empresário de sucesso", acionista do BPN ("pequeno accionista", emendou ele), e chegara a ser inclusive uma "figura grada" da política local e regional. Recordo de me ter confidenciado:

− Nunca fui do reviralho, se é isso que queres saber. Antes do 25 de Abril não me interessava por política. Tocava a minha vidinha… No dia 26 de Abril, apanhei o comboio da democracia, como muito boa gente. E até viajei em 1.ª classe. Fui dos primeiros a ter 'cartão partidário'...

− O "abre-te, Sésamo" do novo regime − ironizei eu... mas julgo que ele não percebeu a piada.

Numa região com grande tradição de caciquismo, é fácil, para quem tem o poder (económico e/ou político), tornar-se cacique. O "Felgueiras" não gostava da palavra... Como também não gostava nada de falar desses tempos nem da sua "pública e notória" participação nos acontecimentos do "verão quente de 75". (Dizia-se, à boca pequena, que também teria chegado a financiar algumas atividades contra os "comunas", o mesmo era dizer, que teria feito parte da "rede bombista" do MDLP, o que nunca foi comprovado...)

Considerava-se, antes de mais, "um português, patriota" (...), "com o coração talvez mais à esquerda e a razão seguramente mais à direita" (...), "mas hoje afastado das lides político-partidárias" (...) "onde quem manda é a canalha, que nunca foi à tropa e muito menos à guerra".  Ou citou-me nomes de alguns conhecidos ou alegados desertores...

− Limito-me a ter as quotas em dia… Mas já ninguém me escreve, ou telefona, pede conselho, convida ou visita. Parece que tenho lepra...

Começou, "modestissimamente" (sic), como autarca, presidente de uma junta de freguesia onde tinha um grande estaleiro e já dava trabalho a um "pelotão de gente". Ajudou o partido a ganhar as eleições municipais num dos concelhos vizinhos. Foi eleito vereador municipal, e chegou inclusive a substituir, por uns tempos, o seu grande amigo e correligionário que iria depois ficar à frente dos destinos do município. 

"Os maiorais da distrital do Porto" chegaram a sondá-lo para aceitar um lugar, elegível, nas listas do partido, como candidato à Assembleia da República, mas ele recusou, com orgulho e desprezo:

− Lisboa ?!... Nem pensar!

O que não o impediu de chegar a a comendador, distinção que ele aceitaria de bom grado, anos mais tarde, das mãos do Presidente da República que ele "ajudou a eleger" (sic)...

Mas, abreviando a sua história como empresário (e depois comendador da Ordem de Mérito): "tocou os seus negócios, alargou o seu estaleiro de construção e obras públicas", ganhou uma fortuna com os contratos de empreitada por adjudicação direta, "fez estradões, pontes, escolas, creches, lares de idosos, campos de futebol, redes de água e saneamento, rotundas, repuxos, viadutos, túneis, e até um cemitério e um quartel de bombeiros"…

− Levei o progresso a quase todo o lado, aqui no Vale do Tâmega e n0 Vale do Sousa, em vários concelhos... Ganhei e dei a ganhar muito graveto. Aliás, este sempre foi o meu lema de vida, ganhar e dar a ganhar, e depois ser grato e estimar sempre quem te quer bem… Perdi dinheiro, isso, sim, e muito, com o túnel do Marão. Veio a crise, vieram os tubarões do fisco e da segurança social, fechei a empresa, mandei mais de 100 homens para o desemprego, dezenas de máquinas e camiões foram parar à sucata… Mas estou vivo, graças a Deus!

− Lamento imenso, afinal foi uma vida de trabalho... E o futebol?

− Ainda fui tentado, no início dos anos 90, nos meus anos de ouro, a meter-me no futebol. Por vaidade, ou por influência de falsos amigos, bajuladores, que gostam de te oferecer presentes envenenados.

− Mas era a tua "coroa de glória", não!?...

− Nem pensar, percebi logo que aquilo era um sorvedouro de dinheiro e um ninho de víboras… O futebol, camarada, é uma amante cara!... E às tantas, deixas de ter sossego, vida privada e corres o risco de teres de recorrer ao teu mealheiro para pagar os ordenados ou os prémios e as avenças dos técnicos e dos jogadores. Hoje é tudo uma canalha, essa rapaziada que gira à volta da bola… E já há não amor à camisola!... Como não há amor à Pátria!... Enfim, felizmente o futebol foi sol de pouca dura...

− E muita ingratidão também, não ?!

− Um gajo passa facilmente de bestial a besta. O povo hoje é ingrato. Tanto te põem-te no pedestal, erguem-te uma estátua, como no ano seguinte já estão a apear-te… Vê o que se passa com o homem da tua terra,  a quem o Marco tanto deve, perdeu as eleições, e já querem tirar-lhe o nome do estádio e da avenida principal… Ingratidão, é um dos nossos piores defeitos, podes escrever aí.

− Deixa-me ser franco contigo: não concordo que, em vida, se dê o nome a ruas, praças, avenidas, estádios, escolas, aeroportos, etc., a gente que ainda está viva. Hoje podes ser um herói, e amanhã um proscrito social. Vê o que aconteceu ao nosso Zé do Telhado, Torre e Espada, desterrado para Angola…

− O Zé do Telhado, o mesmo que limpou o sebo ao Zé Pequeno, na Lixa, tanto quanto sei pelos antigos − apressou-se a complementar o "Felgueiras".

 ... Sim, sim, e  lhe cortou a língua, com uma tesoura, por traição, aqui mesmo, a  Lixa!...− acrescentei eu.

− Sim, isso mesmo. Vejo que estás por dentro da história da minha terra.

− Na nossa terra, ele andou por aqui, entre montes e vales, Penafiel, Lousada, Marco, Baião, Felgueiras... há mais de 150 anos!... Aliás, o seu fantasma ainda anda por lá, pelo Carrapatelo, por Montedeiras, pelas faldas do Marão...

− Já o meu avô me contava essas peripécias... Eu também tenho um pouco esse jeito do Zé do Telhado, que roubava aos ricos para dar aos pobres...

− Exageros do Camilo Castelo Branco, de quem o Zé do Telhado foi vizinho, amigo e guarda-costas, na Cadeia da Relação, no Porto, por volta de 1860/61... E, claro, fez dele um herói romântico...

− Eu, por mim, gosto é de fazer o bem, e muitas vezes sem olhar a quem. Não é por acaso que me chamam (ou chamavam) o "padrinho"… Tenho montes de afilhados na região, o Jorge é mesmo o último. Muitos não os conheço, quando me vêm (ou vinham) cumprimentar, à moda antiga: "Sua benção, padrinho!"...  

Padrinho...?!

− Sim, padrinho, tenho muitos afilhados, de batismo, crisma, casamento. E, no bom tempo, quando eu ainda mandava qualquer coisinha, meti muita cunha para muito boa gente, a começar pelos que tinham mais mérito e necessidades, para empregos nas autarquias, nas empresas, na banca, nas escolas, nos centros de dia, nos lares de idosos, eu sei lá. Até na tropa, quando ainda havia serviço militar obrigatório… Até ao bispo cheguei a ir...

− Sem olhar a quem?!

− Sim, podes crer, sem olhar a quem!... As pessoas também fazem o favor de serem minhas amigas. E eu não me faço rogado quando me convidam para ser padrinho de casamento. Ainda para mais quando o pedido vem de um antigo camarada da Guiné… Neste caso, não foi um pedido, foi uma ordem do amigo e camarada Arlindo!

− Sei que ainda voltaste à Guiné…

− Sim, há uns largos anos atrás, para "matar saudades". Fui com malta de uma ONGD, com trabalho realizado no setor de Canchungo, e para a qual eu fazia as minhas doações, em géneros e em dinheiro. Levaram um contentor com vestuário, material escolar, livros, mobiliário… Havia (não sei se ainda há) uma missão católica que fazia a distribuição. Mas, confesso, fiquei triste com o que vi...

O "Felgueiras" voltou, de facto, aos sítios por onde andara entre 1966 e 1968… Mas aí teve uma "experiência desagradável"… Uma mulher, na casa dos seus quarenta, abeirou-se do jipe dele e gritou-lhe: 

Tuga, tu és o meu pai!

Na realidade, era filha de uma mulher manjaca, cristã, com quem o "Felgueiras" tivera um relacionamento, de apenas "dois ou três meses" (sic), no segundo ano da comissão. Ele ajudava a família com comida e dinheiro, mas nunca deu conta de que ela estivesse grávida, muito menos dele. Ambos tomavam "algumas precauções" (sic)... Feitas as contas, a mulher que dizia ser sua filha, tinha nascido em finais de 1972 ou princípios de 1973. Nunca poderia ser sua filha, já que ele estava a viver em Angola desde o 1.º trimestre de 1969…

− E se fosse minha filha, eu estaria disposto a reconhecê-la e a ajudá-la, inclusive a obter a nacionalidade portuguesa… O meu capitão, esse, ao que parece, é que lá deixou um filho, toda a gente sabia dessa história que, em boa verdade, me entristece.

O "Felgueiras" nunca me quis falar desse caso que manifestamente o incomodava. Foi o Arlindo quem, mais tarde, falou, com mais detalhe e à vontade, da história do capitão da companhia. Dizia-se que tinha feito um filho à lavadeira, mas nunca chegou a conhecer e a reconhecer a criança, que terá nascido ainda antes da comissão terminar, por volta do Natal de 1968. Um dos furriéis da CCS do batalhão, que editava o "jornal de caserna", até fez uma quadra popular, brejeira e satírica, alusiva ao “Santo António”… Toda a malta achou logo que assentava que nem uma luva na figura do comandante da companhia do "Felgueiras" e do Arlindo.

− Tornou-se popular no Batalhão, e alguns sacanas da companhia, que tinham tido problemas com o capitão,  vieram a cantá-la no "Uíge", de regresso a casa, com música de fado e tudo...  
− lembrava-se o Arlindo,

A letra rezava assim:

Santo António foi à guerra,
Na Guiné perdeu os três,
Foi bajuda lá da terra
Quem o menino lhe fez.

O "Felgueiras" achava a brincadeira de mau gosto, e mesmo ofensiva do bom nome do seu comandante, por quem tinha grande admiração e estima. O capitão era, de resto,  popular entre a generalidade da  rapaziada da companhia, mas motivo de chacota  para os do batalhão.

− O meu coração ficou na Guiné – disse-me um dia o Felgueiras", com alguma emoção no tom de voz... 

− E Angola?...

− Em Angola até vivi mais anos, mas era outra gente. Enfim, Angola foi boa para os negócios.

Não lhe perguntei como nem porquê. Também nunca mais o vi. Também soube que casara, que tinha tido 2 filhos e 4 netos, e que entretanto enviuvara para, logo a seguir, em 2017, morrer de cancro no pâncreas. Uma morte quase fulminante, em menos de três ou quatro meses. Um choque para todos, família, amigos e afilhados. E até para os seus inimigos, políticos, que ele também os tinha e não eram poucos. 

− Os anos não perdoam. E os de África contam sempre a dobrar – lamentou-se o Arlindo, que perdeu "um bom amigo e um melhor camarada", padrinho de casamento do seu filho.

O seu compadre  (ou parceiro, como aqui se diz) não tinha completado ainda os 75 anos de idade.

E eu, por mim, só soube da notícia tardiamente, uns meses mais tarde, quando estivera no Norte, por altura das vindimas. A minha homenagem, tardia, chega agora, sob a forma desta história de vida do "Felgueiras" (1943-2017). Lamento a sua morte precoce e tenho pena que ele não tenha chegado a reencontrar o "Paranhos", seu braço direito na "horta do chão manjaco", nem a conhecer os régulos e demais camaradas da Tabanca de Matosinhos.

Talvez algum leitor conheça o "Paranhos" e ainda lhe possa dar, mesmo atrasada, a triste notícia da morte do seu amigo e camarada "Felgueiras". É de todo improvável que o "Paranhos" conheça este blogue... como, de resto,  a maior parte dos camaradas da Guiné, agora no ocaso da vida.

[PS - Costuma-se prevenir o leitor de contos como este, de que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados podem ou não inspirar-se em factos reais. Se no final o leitor se sentir desconfortável, peço-lhe que volte para a cama e continue a dormir, 
descansado, como eu faço: afinal "a guerra colonial nunca existiu", foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós. Ou "pesadelo climatizado", para outros.  E poucos se puderam dar  ao luxo de comer bacalhau com batatas e pencas pelo Natal nos trópicos. Estas "estórias" são, afinal,  apenas "contos com mural ao fudo", onde o leitor pode sempre deixar um comentário ou grafitar umas garatujas... Boa noite.]