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quinta-feira, 30 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24177: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte III: A nossa obrigação de contribuir para a desmistificação das inverdades e meias-verdades que se contam (Leopoldo Amado / Mário Dias)


Guiné > Bissau > A pacata cidadezinha colonial do início dos anos 60. A Praça da República. Postal da época. Cortesia de João Varanda, ex-fur mil, CCAÇ 2636  (que esteve em Có/Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/70, e depois Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1970/71).


Guiné > Bissalanca > 1959 >   Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata)  [nº 1, a amarelo]. O avião era, naturalmente, da Air France [5].

O João Rosa [2], o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné e um dos primeiros contactos políticos de Amílcar Cabral, tendo feito reuniões clandestinas, na sua casa, com o próprio Amílcar Cabral e outros nacionalistas guineenses; morreria no hospital, na sequência da sua prisão e tortura pela PIDE, em 1961, segundo informação do Leopoldo Amado], está na segunda fila à direita ; à sua frente, o segundo da direita é o Toi Cabral [António da Luz Cabral, irmão do Luís Cabral e meio-irmão do Amílcar Cabral] [3]. 

Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau, entre eles, talvez o Mário Dias, ou talvez não: não conseguimos ainda identificá-lo, mas  já lhe pedimos em tempos  para "validar" esta legendagem... Ele pode (ou não)  ser o elemento que está a seguir ao nº 4, e que se apresenta em calções e meia branca; em 3 de agosto de 1959 ele estava a acabar a recruta, tendo frequentado o 1.º CSM - Curso de Sargentos Milicianos, realizado na Guiné.  Parece que foi na altura em que ele estava na tropa que a NOSOCO encerrou as suas portas, conforme se depreende do que ele escreveu no poste P268, de 14/11/2005:

(...) "Já agora, e apenas também como curiosidade, eu fui trabalhar para o Sindicato porque, enquanto estava no serviço militar (com o Domingos Ramos, Rui Jassi, Constantino Teixeira, etc. etc.), a NOSOCO, firma comercial francesa onde eu trabalhava, encerrou a sua actividade na Guiné.

A sede da NOSOCO ficava junto ao rio, estendendo-se as traseiras para a actual Rua Guerra Mendes, mesmo junto a um dos baluartes da Amura. Ao lado era a PSP, comandada pelo major Pezarat Correia, pai do actual brigadeiro (ou general?) ligado ao 25 de Abril de 1974. Este edifício foi, durante a guerra, sede e armazém da Manutenção Militar. "(...)

O quarto elemento conhecido do grupo [4] é, a contar da esquerda, o Armando Duarte Lopes, o pai do nosso amigo Nelson Herbert, e velha glória do futebol guineense... (Esteve em 1943 no Mindelo, sua terra natal, integrado numa força expedicionária, vinda do continente, que veio reforçar o sistema de defesa da Ilha de São Vicente durante a II Guerra Mundial; viveu depois, trabalhou e casou em Bissau. Conhecido como o Armando 'Bufallo Bill', seu nome de guerra, foi o melhor futebolista da UDIB, e do Benfica de Bissau, tendo sido nternacional pela selecção da antiga Guiné Portuguesa...).

Recorde-se que o apelido Herbert, no caso do nosso amigo Nelson, antigo jornalista na VOA (Voz da América), vem do avô materno francês, que foi o representante local, na Guiné, da CFAO - Compagnie Française de l'Afrique Occidentale, fundada em 1887, e que, com a NOSOCO e a SCOA, foi um das peças importantes do sistema colonial francês.

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006), Todos os direitos reservado. [Edião e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Temos vindo a recuperar alguns postes com versões de contemporâneos dos tristes acontecimentos de 3 de agosto de 1959, a que o futuro PAIGC e a historiografia com ele alinhada chamaram, inapropriadamente ou não,  o "massacre do Pidjiguiti". Uma das versões é do nosso camarada Mário Dias, ainda a fazer a recruta, em Bissau, nessa data, e a outra é do Luís Cabral, que trabalhava então na Casa Gouveia como guarda-livros (*).

É possível que o assunto pouco interesse  aos nossos leitores, e nomeadeamente aos antigos combatentes que só conheceram a Guiné dos anos 60 e 70... Mesmo assim, e tendo em conta a divergência na descrição e interpretação dos factos, é bom que se acrescentem mais algumas achegas, incluindo as do historiador guineense, e nosso saudoso amigo Leopold0 Amado,  precocemente desaparecido (morreu de Covid-19 em 2021,  com pouco mais de 60 anos).

Lembrando-nos que tudo tem o seu verso e o seu reverso, Leopoldo Amado (1960-2021) (que era doutorado em história pela Universidade de Lisboa) escreveu o seguinte (em 16/2/2006) (**)  s0bre o depoimento do Mário Dias:

(...) A importância do texto que Mário Dias produziu sobre o Massacre de Pindjiguiti ou assim chamado, interpelou directamente a minha sensibilidade de interessado nessa guerra enquanto historiador guineense, mas também enquanto cidadão do mundo, pelo que aqui fica a minha promessa de nos próximos dias produzir um comentário crítico sobre o mesmo, não obstante ver-me antecipadamente e desde já na contingência de dar os meus vivos parabéns ao autor por mais esta importante contribuição que, além de animar um debate que reputo construtivo e altruísta, ainda possui o condão – assim espero – de trazer ao de cima senão toda a luz e toda a verdade (porque imossível, ao menos irá contribuir para a desmistificação histórica dos aspectos próprios dessa guerra, reduzindo consequentemente as zonas cinzentas, as inverdades ou as meias-verdades que essa recente historiografia necessariamente comporta, porquanto é igualmente recente o correspondente sujeito histórico. (...)


2. Texto do Mário Dias (originalmente publicado no poste P572, de 26 de fevereiro de 2006) (***):

Caro Luis

Estive a ler atentamente, e com a compreensível dose de emoção, o texto que o Leopoldo Amado anexou à sua mensagem.(**)

Começo por dizer que tão excelente trabalho só poderia vir de alguém que, tal como Leopoldo Amado, seja possuidor de uma extraordinária cultura, conhecimentos académicos e poder de síntese.

Fiquei mais rico e esclarecido sobre as movimentações que existiam no seio dos nacionalistas guineenses, que eu sabia que existiam mas cujos recortes me escapavam (tal como disse em recente poste).

Assim, este texto lança um pouco de luz sobre o desconhecimento daquilo que "do outro lado" se passava e confirma o que várias vezes tenho referido: o empolamento na informação dos acontecimentos por parte de ambos os contendores.

Do PAIGC, pela necessidade de afirmação perante a comunidade internacional e apoio psicológico aos seus combatentes. Das nossas tropas... bom, aqui a motivação (isto não passa de uma opinião pessoal) parece-me outra: a vontade de "mostrar resultados" subindo no conceito dos superiores hierárquicos e com isso... todos sabemos. Que me perdoem os muitos que sempre foram verdadeiros nas suas informações e relatórios operacionais. Felizmente, constituem a maioria.

Porém, o resultado prático traduziu-se no exagerar dos feitos praticados, principalmente no número de baixas causadas e, conforme muito bem refere Leopoldo Amado, facilmente chegamos à conclusão que não podem ser as apontadas pelo nosso Estado-Maior.

Outro aspecto referido neste texto prende-se com a intensa actividade existente nos movimentos nacionalistas que vieram, na prática, a desembocar no PAIGC e que, fiquei agora a saber, é bastante posterior ao evento do Pidjiguiti. A minha admiração - que já era muita - pela eficácia conseguida e pelo sigilo de todas as movimentações aumentou bastante mais. Tudo "me passou ao lado".

Em jeito de "desculpa esfarrapada" por tamanha ignorância e ingenuidade,  tenho a meu favor a pouca idade à época dos factos. Só queria divertir-me como é próprio da idade. Assuntos tão transcentes estavam, confesso, fora das minhas cogitações.

Reiterando os meus agradecimentos e admiração ao Leopoldo Amado, termino respondendo à sua estranheza por eu não ter referido a presença no cais do Pidjiguiti do Domingos Ramos, Constantino Teixeira e outros soldados africanos. Claro que eles lá estiveram, não no recinto do cais propriamente dito, mas nas imediações do mesmo tal como os restantes soldados. Eles faziam parte da companhia que regressava do aeroporto e para lá foi desviada.

Pareceu-me supérfluo estar a nomear a constituição dessa companhia (o que, aliás, nem conseguiria) e que era formada na sua esmagadora maioria por soldados africanos. Não me moveu qualquer espécie de reserva ou tentativa de manipulação com "meias verdades", defeito que não faz parte dos muitos que tenho. 

Podem todos crer que se alguma omissão ou menor exactidão houver em comentários meus, passados ou futuros, será apenas e exclusivamente por compreensível falha de memória.

Um grande abraço para todos os tertulianos.
Mário Dias

PS - Antes de enviar este mail, fui dar uma espreitadela ao blogue e vi que já começaste a postar o notável texto do Leopoldo Amado. Talvez seja melhor aguardar a publicação integral do mesmo, antes deste meu desabafo, caso aches que deva ser publidado.

Como tem sido recentemente muito referido o João Rosa, guarda-livros (actualmente designados contabilistas ou técnicos de contas) da NOSOCO, resolvi anexar uma fotografia tirada em Bissalanca na despedida do gerente da referida firma, monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). 

O João Rosa está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita, é o Toi Cabral. Não sei se será o mesmo que o Luis Cabral refere como um dos principais obreiros na fuga do Carlos Correia. Gostaria obter essa confirmação mas não sei como consegui-la. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau.

[ Fixação / revisão de texto / negritos: L.G.]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


24 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24166: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte II: A versão do guarda-livros da Casa Gouveia, e dirigente do PAI, o Luís Cabral

(**) Vd. postes de;

16 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P525: Pidjiguitgi, o verso e o reverso da verdade:comentários ao post do Mário Dias

Vd. também postes de:

sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24166: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte II: A versão do guarda-livros da Casa Gouveia, e dirigente do PAI, o Luís Cabral

Guiné-Bissau > Bissau > Cais do Pidjiguiti

Fogo (e legenda) © Paulo Salgado (2005).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Bissau > Postal de Maio de 1966 > Ponte-cais de Bissau e não cais do Pidjiguiti (que ficava mais à direita e onde atracavam as embarcações de pesca e de transporte de cabotagem),

Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Bissau > s/d > Vista aérea da Ponte Cais, e de parte da zona ribeirinha da Bissau Velha: à direita o edifício da Alfândega, em frente a praça e a estátua de Diogo Gomes e portão de armas e as muralhas (lado sul) do forte de São José da Amura (coberto de seculares poilões)... Do lado esquerdo (e já não visível na imagem) ficava o cais do Pidjuiguiti.

A ponte-cais do porto de Bissau (obra emblemática do governo de Sarmento Rodrigues, remontando o início das obras a julho de 1948) é inaugurada em 1953 por Raúl Ventura, subsecretário de estado do Ministério do Ultramar, sendo Sarmento Rodrigues ministro da tutela.

Pormenor de: Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).


Guiné > Bissau > s/d > Vista  da ponte-cais (ou porto) de Bissau, a partir da praça Diogo Gomes).

Pormenor de: Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).



Guiné > Bissau > s/d  [c. 1960/70] > Pormenor de monumento a Diogo Gomes (às vezes confundido com Diogo Cão) e Edifício das Alfândegas > Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 136". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).

Bilhetes postais: Colecção do nosso camarada, natural do concelho de Leiria, Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72,  Mansoa, 1972/74),



Guiné-Bissau > Bissau > Bissau Velho, com as ruas rebatizadas pelo PAIGC > 1975 > Planta da cidade > Localização de: (i) fortaleza da Amura; (ii) cais ou porto  do Pidjiguiti (à esquerda); e (iii) porto de Bissau (à direita)... Alguns leitores confundem, por vezes, a ponte-cais de Bissau com o cais do Pidjiguiti (para sempre associado aos acontecimentos de 3 de agosto de 1959).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)

1.  Os graves e trágicos acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no cais do Pidjiguiti, são uma página triste na história da presença portuguesa em África. Nunca deveriam ter ocorrido. Como já o dissemos, as autoridades da época, a Casa Gouveia e o seu gerente António Carreira ficam mal na "fotografia da História"... Mas passados mais de 60 anos continuam a ler-se versões díspares, nomeadamente sobre o que realmente aconteceu, a sua origem, processo e consequências.

Há poucos relatos contemporâneos.  E não há imagens, ao que parece (*). É importante continuar a confrontar, serena mas criticamente, as diferentes versões. Uma delas é a do nosso camarada Mário Dias que esteve lá, integrado numa força militar, uma companhia de recruta que foi desviada no seu regresso ao quartel de Santa Luzia, depois de prestar honras militares, em Bisslanca, a subsecretário de Estado da Aeronáutica, a caminho de Angola: os recrutas levavam mausers sem munições, não tinham quaisquer armas automáticas (**). 

A outra versão é a do Luís Cabral (LC) , na altura guarda-livros da Casa Gouveia, e que irá sair clandestinamente do território alguns meses depois, no início de 1960. 

Como  futuro dirigente do PAI (e depois PAIGC), tem uma leitura "enviesada" do que aconteceu, mas de que foi também testemunha ocular (parcial, como o Mário Dias).  Todavia, há erros factuais na sua versão, escrita vinte e tal anos depois, já no exílio: consta do seu livro "Crónica da Libertação" (Lisboa, O Jornal, 1984). Excertos dessa versão já foram aqui em tempos publicados (***). Mas justifica-se voltar a reproduzir uma parte e compará-la com a versão do Mário  Dias.

Excertos de Crónica da Libertação, 

de Luís Cabral (1984) (pp. 65-73)(**)

(i) Reivindicações laborais do pessoal das docas e do transporte de cabotagem

(...) A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos  [o equivalente, a preços de finais de 2022, em Portugal, a 75 e 150 euros, respetivamente]; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado". Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.

O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé  [o equivalente, a preços de finais de 2022, em Portugal, a 7,50 euros] , quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.

Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.

Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.

(ii) Contexto político, interno e externo

(...) A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [PAI] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.

A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.

Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.

(iii) A greve

(...) A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. 

Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. 

Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.

Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.

(iv) O ultimato aos grevistas por parte do António Carreira, gerente da Casa Gouveia

(...) Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia [referência ao cabo-verdiano António Carreira] , mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. 

Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.

(v) Reacção das autoridades

(...) As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.

No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.

A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.

(vi) Resposta dos grevistas

(...) Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.

A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.

Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heroicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.

(vii) Tiros, mortos e feridos

(...) Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.

À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.

À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. 

Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.

(viii) Saída dos escritórios da Casa Gouveia

(...) Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. 

Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.

Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.

(ix) No apartamento 
 [do LC, que pertencia à Casa Gouveia] 

(...) Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.

Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco 
 [BNU] onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pelos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.

(x) Aproveitamento político por parte do PAI

(...) Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. 

Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. 

Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. 

(xi) O poder de influência do António Carreira que manda soltar o Carlos Correia

(...) No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.

Entretanto, o Aristides 
[Pereira, chefe da Estação Telegráfica] tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.

(xii) Na iminência de ser preso pela PIDE, o Carlos Correia foge para Dacar

(...) Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade?

O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto.

 O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo — disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.» (...)

(...) O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela polícia.

(...) Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos.

(...) À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7,30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda. (...)


Comentário do A. Marques Lopes (***):

Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAI / PAIGC. Como refere o Luís Cabral (****), a páginas 75 e 76 do seu livro:

(...)   Na reunião com o Amílcar (19/9/1959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios dos mártires de Pijiguiti.

Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.

Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.

Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.

A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo.  (...)

[Transcrição: AML  / Seleção, revisão e fixação de texto, subtítulos, negritos e notas em parênteses retos: LG]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959


(...) "Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).


(***) Vd. poste de 18 de fevereeiro de 2006 > 18 de fevereiro de 2006 >Guiné 63/74 - P540: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (A. Marques Lopes, cor inf , DAF, na reserva)

(****) Luís Cabral (Bissau, 1931 - Lisboa, 2009), meio-irmão de Amílcar Cabral (Bafatá, 1924-Conacri, 1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, filho do mesmo pai, o professor do ensino primário  Juvenal Cabral. Viria a ser sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).

Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabo-verdiana do PAIGC. Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de Estado...

Publicou em 1984 as suas memórias (que vão da infância até à morte de Amílcar Cabral): "Crónica da Libertação"(Lisboa, O Jornal, 1984)

Luís Cabral era empregado, guarda-livros, da Casa Gouveia, do Grupo CUF,   em 3 de Agosto de 1959. E dirigente do PAI, na clandestinidade. Nessa data, o Amílcar Cabral estava em Angola, em trabalho, como engenheiro agrónomo, não tendo ainda passado à clandestinidade. Passou por Bissau em 19/9/1959 para se reunir  com o pequeno grupo dirigente do seu partido, que então se chamava PAI.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24161: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte I: Eu estive lá (Mário Dias)

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs cabos milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo): estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (*)

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Passados tantos anos, continua a haver curiosidade, da parte dos nossos leitores, sobre o que se passou em Bissau, no cais do Pijiguiti (lê-se: Pidjiguiti), ou  Pindjiguiti (como escrevem, mais recentemente, os guineenses), ainda uns anos antes da guerra em que estivemos envolvidos.  No nosso blogue, publicámos logo no início duas versões, de Luís Cabral (na altura "guarda-livros" da Casa Gouveia) e do nosso camarada Mário Dias, um dos históricos do nosso blogue (**), e que frequentou, em 1959,  o 1.º CSM que se realizou na Guiné e de que fizeram parte alguns futuros quadros do PAIGC, como Domingos Ramos, o Constantino Teixeira ou o Rui Djassi.

Escrevemos na altura (***):

(...) O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional", na narrativa do PAIGC (que então se chamava apenas PAI).

Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos  marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF – Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. 



Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", edição de 4 de agosto de 1959 (em que o destaque ia para as peripécias da XXII Volta a Portugal em Bicicleta): a agència Lusa, noticiava, a partir de Lourenço Marques, um "fait-divers": "Elefantes trucidados pelo comboio no vale do Limpopo"... 

Fonte: Citação:(1959), "Diário de Lisboa", nº 13166, Ano 39, Terça, 4 de Agosto de 1959, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_17262 (2023-3-22)

Na época, é bom lembrá-lo,  a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo. E, nós, adolescentes (eu tinha 12 anos), estávamos longe de pensar que a futura guerra da Guiné iria sobrar também para nós (dez anos depois, no meu caso)...

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa. (...)

Guiné-Bissau > Bissau > 1976 >  Planta da cidade em mapa publicado a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). Imagem gentilmente cedida por A. Marques Lopes (2005).
 

Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959: 

depoimento de Mário Dias (***)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (*****). Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas), Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas 
– umas à vela e outras a motor  – que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.



Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente  –   na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente 
 [António] Carreira – sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica 
 [na altura, Subsecretário de Estado da Aeronàutica, Kaúlza de Oliveira de Arriaga (1955 - 1961)].

Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca.

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão 
  [José Severiano]  Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá.. Foto do 
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. 

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com es
pingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. 

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local [o intendente António 
Carreira],  os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.

– Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? 

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe  que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. 

Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

(i)  O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

(ii)  Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

(iii) Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

(iv) Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (****), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

(v) E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Parênteses retos: LG]



Guiné-Bissau > Bissau > 2005 > Também eles, os filhos, netos e bisnetos do Pidjiguiti, os filhos, netos e binetos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros e trabalhadores do Porto do Pidjiguiti, em 3 de agosto de 1959, têm direito à verdade.(*****)

Foto: © Jorge Neto (2005). Todos os direitos reservados
 [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas de L.G.:



(...) Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné. (...)


(****) Fui eu que fiz referência, em 2006, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos soldados (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

(*****) Vd. poste de 21 de março de 2023  > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

Guiné > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > LDM desembarcando as NT. Foi a maior ou uma das maiores operações realizadas no TO da Guiné, durante toda a guerra (1963/74). Segundo o Mário Dias, as baixas de um lado e doutro foram as seguinte: das NT, 8 Mortos, 15 Feridos; do PAIGC: 76 Mortos (confirmados), 29 Feridos, 9 Prisioneiros... 

Erradamente, ao que parece, demos a seguinte informação no poste P2406, de 4 de janeiro de 2008 (*): "Na batalha do Como, morreu um dos primeiros heróis do PAIGC, o comandante Pansau Na Isna, cuja história poucos jovens guineenses de hoje devem conhecer, apesar de ter dado o nome a uma das principais avenidas de Bissau". 

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > PAIGC > A Libertação do Komo. In: O Nosso Primeiro Livro de Leitura, p. 31. Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC, 1966 (1). 

Foto: © A. Marques Lopes  / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007) 


Infografia: © Mário Dias / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)

4. Quem foi Pansau Na Isna?  Sabemos pouco da sua vida, é um dos heróis nacionais da Guiné-Bissau, que tem nome de avenida no centro histórico da velha Bissau colonial. 

A Av Pansau Na Isna (antiga Av Alm Américo Tomás) é, a par da Av Domingos Ramos (antiga Av Governador Carvalho Viegas), uma das paralelas à Av Amílcar Cabral (a antiga Avenida da República). Os seus restos mortais repousam no Mausoléu Amílcar Cabral e dos Antigos Combatentes da Liberdade da Pátria, na Fortaleza de Amura.

Já vimos algumas versões sobre quem foi este homem, que para os guineenses é sobretudo o "herói do Como" (tinha 26 anos quando comandou os 300 guerrilheiros que os portugueses enfrentaram no decurso da Op Tridente). Para os portugueses (ou os "tugas") que o combateram, tende a ser visto como um valente combatente balanta e sobretudo como uma figura  "excêntrica", do qual se sabia pouco, no nosso tempo (anos 60/70),  oscilando "entre o mito e a realidade" (**).

Vejamos agora o que se diz "do outro lado de lá"... É a versão (no mínimo, romantizada),  de alguém, da mesma etnia, balanta, que na década de 80 do século passado, primeiro com 10 anos e depois com 16, já adolescente, ouviu e registou, na sua memória, as conversas tidas com o seu tio, N'tchaagn, antigo companheiro de Pansau Na Isna, tendo com ele resistido à ofensiva desencadeada pelas NT (Op Tridente, 14 de janeiro / 24 de março de 1964). 

Saibamos também ouvir as "histórias do outro lado", o que nem sempre é fácil, entre antigos combatentes...  Nem todos, de um lado e do outro, souberam "fazer as paees"... Mas, por favor, leia-se ou releia-se, a seguir,  o nosso querido amigo Mário Dias (***) que, esse, também lá esteve, na ilha do Como, tal como o tio N'tchaagn... 

E faço minhas as palavras deste srgt 'comando' reformado,  um histórico da nossa Tabanca Grande, um homem sábio e um grande amante daquela "terra verde rubra" (onde viveu na sua juventude e onde combateu), justamente a propósito do balanço final da Op Tridente (***):

(...) "Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e... sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados." (...)

 
Blogue "Intelectuais Balantas na Diáspora" > 20 de janeiro de 2018 > Homenagem a Herói Kpänsau Na Ysna,  conhecido como Pansau Na Isna  > Artigo de opinião do dr. M'bana N'tchiga

[Seleção de excertos / resumo / condensação / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos / itálicos: da responsabilidade do editor do nosso blogue, para efeitos de publicação neste poste... 

Os itálicos   correspondem ao texto, adaptado,  do autor, M'bana N'tchiga ou Na Tchiga, nascido por volta de 1970; os itálicos a negrito são  citação de excertos do  discurso direto atribuído ao tio do autor, antigo guerrilheiro, combatente na Ilha do Como, N'tchaagn; chama-se a atenção para a extrema dificuldade de, para os lusófonos, grafar corretamente os vocábulos da língua balanta (ou brasa), a começar por topónimos e antropónimos; o artigo em causa está, além disso, escrito em mau português... 

Não sabemos onde o autor se licenciou, mas não deve ter sido em Portugal, talvez no Brasil (a avaliar pela construção das frases, pelo uso de termos como "flagrar" ou "codinome", etc.); de qualquer achamos interessante o seu depoimento sobre Pansau Na Isna, mesmo que ele não o tenha conhecido: estava a nascer, em 1970, quando o seu herói Pansau Na Isna morreu, ao que parece em Nhacra... Mas, pelo menos, teve o mérito de  passar ao papel as memórias do seu tio, o que é raríssimo  na Guiné-Bissau, entre os antigos combatentes, que estiveram de um lado ou do outro da barricada... 

Se ele o dr. M'bana N'tchiga nos ler, queremos que saiba que lhe estamos gratos por ter realizado essa tarefa ou missão... 

Com a devida vénia, vamos então reproduzir aqui uma "condensação" do seu artigo, esperando que ela seja amigável para todos e que, no essencial, não traia o sentido das palavras do autor... LG]


Kpänsau Na Ysna (na língua brasa ou balanta) (****), mais conhecido por Pansau Na Isna, nasceu em 1938 e morreu em combate em 1970, aos 32 anos, em Nhacra. 

Era oriundo de uma família balanta (brasa), do sul da Guiné. Era um homem alto, de pescoço saliente e cabeleira farta. Destacou-se pela sua audácia e coragem na batalha do Como (em crioulo,  Köm), com apenas 26 anos. Era o comandante da Baraka Garandi, o quartel-general das tropas do PAIGC, cujos abrigos ficavam a 7 km da praia.

Como quase todos os nomes Braasa, Kpänsau, também tem significado...  
Na língua balanta (brasa), Kpänsau quer dizer literalmente morança ou tabanca acabou, desmoronou-se... Em sentido figurado, pode significar o fim ou aniquilação da geração, do clã, da comunidade...

O "Na" equivale à preposição preposição "de", "do", "da"... E neste caso indica, não a filiação, mas a pertença ao clã, à morança, à tabança (Ysna). 

Os Braasa raramente carregam apelidos dos pais junto aos seus nomes. Daí que se deve entender a horizontalidade e a democracia deste grupo. O filho é do clã e não do pai...

Aos dez anos, em 1980, o autor, M'bana N'tchiga,  ouviu, hipnotizado,  o seu tio, N'tchaagn, antigo guerrilheiro e companheiro do Pansau Na Isna na Ilha do Como, durante a Op Tridente (que decorreu 
de 14 de janeiro a 24 de março de 1964).

 Com sotaque Braasa,  ele disse: 

− Köm... Köm e Kation... Como você não sabe ainda, mas Köm é um dos setores de Kation, ou seja, Catió. De porto de Köm até aos nossos esconderijos distavam 7 km apenas.

Durante os combates, alguns portugueses descreveram-na como a ilha maldita. Para outros, era a ilha que deixava os cabelos de qualquer um em pé.

  De Kation até à ilha eu não sei, mas imagino que seja uma distância de 15, 20, no máximo 30 km. E, como os portugueses  estavam aquartelados em Catió, não podiam  tolerar a presença de terroristas, o termo  com que se referiam a nós, os  de PAIGC, naquela época. Daí o seu interesse em nos expulsar do Como,  definitivamente,  para legitimar e assegurar a sua hegemonia.

E o autor acrescenta, da sua lavra, que um comerciante português, de seu nome Brandão, tinha na ilha um comércio florescente, praticamente sem concorrência. Não havia libaneses na ilha. Noutras partes da Guiné, eram eles, os libaneses, que dominavam o comércio.

 E tio N’tchaagn fez uma pausa  e tomou um gole de seu vinho de cíbi (palma):
 
− O comandante Kpänsau Na Ysna sabia disso. Pois além da gente  que nos informava sobre a manobra e a intenção de tugas na ilha, ele próprio, Kpänsau, era um homem inteligente, um estratega de guerra, um guerreiro nato, corajoso como poucos que conheci. E intransigente, quando a questão era defender a nossa posição. Não gostava de perder. Eu, N’tchaagn, nunca conheci igual. Cada um dos nossos comandantes tem as suas características próprias de comandar, mas Kpänsau continua a ser uma  lenda na minha mente até hoje. 

Pansau Na Isna não estaria na ilha do Como aquando do início  da Op Tridente. 

− Estava em missão fora da ilha. Não sei muito bem, estava lá para os lados de M’brüi (Caboxanque), Tchüm-Kpáss (Cadique) ou Yembrém (Jemberém)...

Ao saber que a ilha do Como ia ser atacada pelo exército português, apressou o seu regresso, andando na maioria das vezes à noite e  atravessando Tchüm-Kpáss (Cadique), Flágck-N’ñandy (Ilhéu de N’fandá), Kybíl, Katün, atravessando pântanos e bolanhas, até chegar ao interior do Como.

A guerra já tinha começado antes, no dia 14 de janeiro de 1964. Era uma  terça-feira. Dois outros comandantes, Guádn Na Ndamy e  Biotchá  Na M’batcha [seguramente não Biohctá, deve ser gralha] já estavam na ilha.  

Pansau Na Isna  misteriosamente caiu enfermo. As pernas incharam e não conseguiu andar durante duas semanas".  Mas ninguém podia saber, muito menos os tugas... 

 Só Biotchá Na M’batcha e mais outros comandantes, sabiam que o lendário (sic) estava doente. Perguntaram-lhe se não seria melhor evacuá-lo para fora do Como  por estar doente. Logo esbraceejou, e com voz determinante disse: 'N’keia yânta. Bitën luza. Bbürtikìz tën luza. Köm ka wínbu'. (Não saio daqui. Têm que ir embora. Os Portugueses é que têm que ir embora. O Como é nosso)....

Mas, prossegue o tio falando para o sobrinho:  

− Não foi  só o Kpänsau  quem fez tudo. Para além dele,  foram o  Guádn Na Ndamy e Biotchá Na M’bátcha. Bravos camaradas que estavam sempre por perto,  obedecendo ou contestando o que convinha ou não, pronunciado por Kpänsau. Contudo, as decisões partiam sempre dele, como comandante em chefe. Ao entardecer, com o  crepúsculo,  chamava Biotchá Na M’batcha para tomar vinho de palma e aliviar a tensão do dia trabalhoso, analisar a ação que já tinha sido desencadeada até então e preparar o amanhã. 

O  tio N’tchaagn parou e me pediu para levar vinho de cíbi ao seu primo na varanda da outra casa ao lado. Fui e voltei rápido. Já tinha feito os  16 anos quando esta história reaparece para mim através dele. Mas o combatente N’tchaagn, como contador de histórias nato, lembrava-se  com detalhe dos episódios da batalha que Kpänsau dirigiu. Continuando, disse: 

− O exército português batizou a guerra contra o Köm de 'Operação Tridente'. Nas suas imaginações recuperaria não só Köm, mas, também, Katugn, Cayar (...) e, se instalaram também em Kônghan. (...) Estrategicamente instalaram no porto de Köm, Katchil, N’komny, Kônghan (onde se instalou general português que dirigiu a operação). Mas, nada que intimidasse o lendário, pois os portugueses desconheciam ou ainda subestimavam o poderio da força e do grau de organização de Kpänsau Na Yisna com seus homens, que já se encontravam bem instalados. Sobretudo ao nível dá tática móvel que ele sabia usar muito bem.

Passava já das 23 horas da noite e tio N’tchaagn já  ansado e tomado por força da embriaguez pediu para parar (...) E parámos. Fui dormir, empurrei a porta e a minha mãe perguntou: 'Você ainda não está a dormir, M’bana?'...  Não respondi,  com medo de ela me dar um par de açoites,  enfiei-me, silencioso, no quarto.

Passaram-se dois dias, após o que o tio N’tchaagn me pede para lhe relatar o que eu havia ouvido por ele sobre Kpänsau. Eu repeti tudo. O que ele aprovou e disse: 

− Ótimo, bom menino, guarde bem para ninguém te falsear com outra história que não seja essa. 

E prosseguiu. 

 Kpänsau organizou os seus homens em dois grupos diferentes. Em primeiro lugar,  um grupo armado de guerrilheiros em área territorial fixa. Esse grupo encarregava-se de defender o espaço aéreo de Köm, instalando a defesa antiaérea e hospitais debaixo do chão. O grupo detinha armamentos sofisticados que os tugas não imaginavam que tivesse. 

Ao todo, nós homens de Kpänsau, éramos 300 guerrilheiros armados contra 800 ou mais da força dos tugas. Eram forças desproporcionadas e, claro, com vantagem para os tugas. Uma vez que, para além de 800 homens, os tugas tinham armas em quantidade e em qualidade superior às que tínhamos. Tinham ainda aviões, navios e outras embarcações menores para se deslocarem à vontade. Eram facilidades que nós não tínhamos. Nós já tínhamos armas que começavam a igualar-se  a algumas das deles. Mas a distância entre nós e as armas que ficavam na fronteira de Conakry era imensa. Transportá-las até nós era uma enorme dificuldade. O único transporte que havia eram as pessoas dispostas ou obrigadas a ir a pé para buscar armas e munições na fronteira com Guiné-Conakry.

A viagem para ir buscar munições durava 4 a 5 dias. Isto é, se o grupo não se se encontrasse com os tugas no caminho. O percurso era saindo de Köm: WedëKaya ou Kantônaz, Ndin-Welgglè, Kandjóla, Kan, Kangnha-Ley, Katché, Kambíl, N’gháfu, N’thâne, Banta-Silla, N’dala-Yèll, Sambassa, Linga-Yèll, N’tchintchedaré, Yeng até fronteira de Conakry.

Essa distância em linha reta era de 160 a 200 km, aproximadamente. Mas a pé  tinham que dar muitas voltas, imagino que fossem 200 a 230 km. Imagina,  M’bana, percorrer essa distância com munições pesadas, à cabeça?! Às vezes com fome, apenas bebendo açúcar cubano misturada com água.

Não posso ser injusto em relação ao Kidèlé Na Arítchn, não o mencionando. Devo falar dele  um pouco,  para ti, nessa história das munições... Quando as munições chegavam ao porto, para serem introduzidos na ilha, era mais difícil de que a própria luta. Tuga estava ao longo de todo o perímetro da ilha. E vigiando o tempo todo para ver como é que iríamos receber reforços. Literalmente não havia ninguém que se atrevesse a desafiar os tugas atravessando o mar para o Köm. É aí que surge um único, chamado Kidèlé Na Arítchn que enche de munições uma B’sahë Në Braasa (canoa Brasa/Balanta) e põe-se a remar atravessando um mar perigoso vigiado dia e noite pela tropa inimigas.

Assim Kidèlé Na Arítchn abasteceu-nos de  munições,  atravessando o mar várias vezes sem que os  tugas alguma vez o apanhassem em flagrante. A pergunta que não tem resposta até hoje, é:  Como é que ele nunca se encontrou com os tugas? Será que podemos acreditar em milagres..? Coincidência ou não, não é à toa que os seus pais lhe puseram esse nome de Kidèlé (que na língua brasa quer dizer literalmente... Milagre). Aconteceu um verdadeiro milagre no abastecimento, feito por esse homem, aos guerrilheiros da ilha. 

Pkänsau sabia da força do inimigo e soube admitir a sua fragilidade antes de encarar a guerra. Mas soube também desafiar os tugas provocando-os para, com isso, causar o desgaste físico, de munições e de seus aparatos bélicos. Até mesmo contra  umas simples silhuetas de soldados falsos montados na escuridão da noite os tugas gastavam munições. 

Conseguiu colocar muitos combatentes inimigos fora de combate com apenas dois e ou três guerrilheiros. (...) Era capaz de enganar os fuzileiros dos tugas, "obrigando-os" a desembarcar no lodo que dificultava a sua progressão. Ou a seguir num caminho estreito na mata densa através de alarmes falsos. E quando os tugas caíam nessa armadilha era a altura de nós, os homens de Kpänsau, tirarmos vantagem (...) Daí a expressão: “tuga ka pudi anda na lama.” (Tugas não sabem andar no lodo). (...)

Kpänsau conhecia os espaços que nos eram favoráveis. Por isso não admitia que a marinha portuguesa chegasse por perto e controlasse esses locais. Atraíamos os tugas sempre para o lado de lodo, mangue, ourique e para clareira, seguido de mato fechado onde os homens de Kpänsau estavam fortemente armados. A sua firme postura na luta de Köm encorajou até as mulheres a disparem contra barcos portugueses que se atreviam a subir nos rios, floresta adentro.

O céu da ilha estava coberto de fumaça devida  aos disparos de canhões a partir de Kayar, Kônghan e Kambontõ contra nós em Köm. E, por terra,  homens, mulheres, jovens, crianças e, claro, 300 guerrilheiros liderados por lendário Pänsau Na Ysna não arredavam pé de onde estavam. 

A população de Köm sofreu. As mães com crianças de colo, a amamentar,  sofreram e perderam a vida com seus bebés que,  quando choravam, a resposta da força portuguesa, sem pena não se fazia esperar: , metralhavam, disparavam morteiro ou bombas de napalm contra o local de onde vinha o choro da criança,  matando populações civis indiscriminadamente. 

 O povo de Köm viveu situação desumana durante  75 dias. 'Djigân' (bicho de pé) e as lêndeas de piolhos infestaram pés e cabelos de pessoas. Muitos abandonaram a ilha, desmoralizados, chamando a Kpänsau  'Balanta teimoso', que não vai vencer a guerra contra brancos. 

Chegavam relatos dizendo que Amílcar Cabral pedira que Kpänsau e nós, guerrilheiros em Köm, abandonássemos a guerra para poupar massacre que tropas colonial praticavam contra populações civis, mas Kpänsau intransigente meneou a cabeça, dizendo: 'Wisaguë Kanã' (Não acredito nisso). Ignorou essa ordem e prosseguiu o seu trabalho. Certo de que a vitória estava próxima. 

Como se não bastasse, M’bana, um dos nossos soldados recebeu informação triste, no dia 19 de fevereiro, quarta-feira, de 1964, de que os tugas estavam a queimar o arroz dos Brasa,  deliberadamente,  como forma de impedir a persistência dos guerrilheiros de PAIGC na luta. Pois sabiam que nós Brasa (Balanta), além de constituirmos mais de 90% da guerrilha do PAIGC,  éram0s produtores de arroz e que os nossos excedentes alimentavam os guerrilheiros. 

O que eu, N’tchaagn,  esbravecei com lamento: 'Hack N’ghala, biotë bìg impanpan ni Bifilá, Biafadá kinë a binalú... bë thëd malu ni Braasa tida. hack, Bëbábm match bu. Weñan miin yá ki Braasa a bi ka hera0. (Meu Deus; ignoraram impanpan [?]  de Fulas, Biafadas de Quínara e de Tombali..., só queimam arroz dos Brasa. Então, tuga nos detesta..? Já está claro que declararam guerra a nós, Brasa!) 

Isto era o que dizia N’tchaagn, horrorizado, ao lembrar aquele episódio. 

No dia 20 de março, numa sexta-feira, de 1964, quatro dias antes de terminar a guerra, recebemos mais informações, de que agora tugas estavam a matar bois e vacas em Katün, a tiro, deliberadamente, sem levar a carne. Era a  destruição pura e simples,  com a intenção clara provocar mais danos ao nosso povo. 

Sempre as vacas e os bois de Braasa serviram de carne para eles ao longo da guerra. Sempre que invadiam terras Brasas pilhavam, saqueavam,  matavam e escolhiam  as melhores cabeças, de entre bois e vacas,  para comer nos seus quartéis. Agora que estavam a perder a guerra,  estavam a  matar sem levar. N’tchaagn contava para mim, horrorizado.

  Nunca foram às tabancas desses grupos étnicos para queimar os cereais deles. Por representarem pouco valor em termos de abastecimento aos guerrilheiros do PAIGC. Mas num só dia, M’bana, antes de tu mesmo nasceres, o exército português queimou,  nesse ano de 1964,  o arroz das tabancas de Kablôn, M’brüi, N’ñaaé Thúe/Tchuguê, Kátche, Kângha-lei, Kibumbän, Kambyl, N’thäny, SaráckDjaty, Saráck-Cull, Sambassa, Botche-Thãntä, N’dala-Yièll... Ou sejam, 14 aldeias dos Brasas sofreram perdas do seu arroz. Por serem realmente tabancas que abrigavam armazéns de povo e que produziam arroz em larga escala para abastecer o PAIGC

Isso chegou aos ouvidos de Kpänsau que ficou em silêncio, por uns segundos,  perante o informante. Para depois responder; 'Wìì biotte Bin hera ki bo? Wil wólo kei bo tchóhg-na sifá kë sif-bu. Be mada thedá, bë kite thët, wetè kher ka herë kantë be-fida buidn ya bitën lusa ka botchi-bu'. (Por que não vêm combater-nos?... Nada vai nos fazer desistir do nosso trabalho. Que queimem arroz da nossa população, mas a guerra vai prosseguir até que entendam que tem que sair da nossa terra.) 

Os abusos que as tropas coloniais cometiam, matando  civis,  doía muito a Kpänsau. Mas ele sabia que era guerra psicológica que os homens de Salazar estavam fazendo para intimidá-lo e levá-lo a  abandonar as armas. 

Kpänsau não se abateu e manteve-se firme na luta para libertar esse povo. Deslocava-se  pessoalmente à  linha de frente para ver cada desatamento e como é que as coisas estavam a acontecer.  Não era um comandante para dar ordens e ficar no seu QG. Ao chegar à linha de frente, via alguns famintos sem comer durante dias que apenas misturavam açúcar cubano com água e bebiam para continuar entrincheirados. Encorajava-os com palavras tais como: ' Herá, botche-bo win' (Lutemos, a terra é nossa!) 

O dia começava, para Kpänsau,  a partir das 05h00 / 6h00. Nesse horário, toda a movimentação para mais um dia sangrento começava  a ser cronometrada. Instalado na Baraka Garandi (comando central de PAIGC, seu quartel-general) elaborava e decretava ordens para uma missão quase impossível. 

Em matéria de crenças, Kpänsau era animista. Na sua fé religiosa, reuniu anciãos, anciãs, sacerdotes e sacerdotisas na Baraka Garandi para pedir proteção e vitória. No centro de adoração (Baloba, guardiã da ilha de Köm) separou anciãos e sacerdotes das anciãs e sacerdotisas. Sem se misturar, os  sacerdotes faziam sacrifícios e consultavam a Baloba, a guardiã. A sacerdotisa-mãe, ladeada pela sua gente, murmurava palavras inaudíveis pedindo proteção para o  comandante Kpänsau e  os  guerrilheiros que estavam combatendo os tugas ferozmente. 

As árvores,  M’bana, testemunharam durante 75 dias tudo que estava a acontecer e que hoje te conto. Assim foram estes dias, de  14 de janeiro (terça-feira) a 24 de março (terça-feira) do ano de 1964 na ilha de Köm.

PS - O autor, M'bana N'tchiga (sobre o qual não temos mais qualquer informação adicional) quis sobretudo fazer uma homenagem a um herói guineense, Pansau Na Isna, e por tabela ao seu próprio tio e aos demais combatentes do PAIGC que lutram no Como. Mas faz uma prevenção, reveladora da sua boa fé e honestidade intelectual: "Com todo o respeito aos meus leitores, eu não sou dono da verdade"... Sujeita-se, pois, ao contraditório. 

E diz isto nomeadamente em relação à questão de se saber qual foi o papel do 'Nino' Vieira na batalha do Como. Contrariando outras versões, ele defende o ponto de vista de que o 'Nino' Vieira não participou na batalha do Como, pela simples razão de que estaria em Conacri, e ao que parece "doente". O seu tio confirmou-lhe que nunca viu o 'Nino' Vieira em nenhum dos combates que se desenrolaram ao longo de 75 dias. Sabia-se (ou constava) que ele estava em Conacri, e talvez em tratamento por doença.

A ser verdade (que o 'Nino' Vieira não pôs os pês na Ilha do Como, durante a Op Tridente) pode ser apócrifa a mensagem que lhe é atribuida, e que, segundo o Màrio Dias, estava "em poder de um prisioneiro por nós capturado":

(...) “Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças… camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “ (...).