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domingo, 10 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22617: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IV: Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965):


Capa da edição original da "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Coimbra, Vértice, 1965, 143 pp., Col. Cancioneiro) que o Cristóvão de Aguiar ainda foi a tempo de adquirir e ler na véspera de Natal, passado em Coimbra, quando já era aspirante miliciano no RI 15, em Tomar. O livro de poemas, que marcou a estreia literária de ;Manuel Alegria, foi de imediato apreendido e proibido pela PIDE. Imagem: cortesia de Manuseado


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada terça feira, dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).

Citado pela agência Lusa, no passado dia 5,  o presidente do Governo Regional dos Açores, José Manuel Bolieiro, lamentou a morte do escritor açoriano,, dizendo que "a literatura portuguesa, a lusofonia e sobretudo os Açores perdem muito hoje com o seu falecimento".



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

(Continuação)

 
Julho, 13, 1964 - Como os instrutores nunca ministraram um curso tão comprido, não sabem que mais hão-de dar.

Andamos a re­petir o que fizemos na re­cruta. Aplicação militar, ordem unida, crosses, obstáculos, rastejar, percursos fan­tas­mas, in­s­trução nocturna, o raio.

A grande novidade é darem os instruen­dos al­gumas aulas de ginástica para irem treinando as vozes de co­mando. Hoje coube-me a mim dar a minha, na parada. O meu vozeirão chegou ao convento. Al­guns amanu­enses vieram às janelas para ver o que estava acon­te­cendo. No final da aula, o comandante de pelo­tão chamou-me e disse-me que tinha uma voz invejável. Prometeu-me que me da­ria uma boa classi­fica­ção nessa alínea.

Julho, 18 - O que são as coisas! Nunca gostei de melão

Quando estava na Ilha 
[, de São Miguel, ], nem o cheiro dele podia suportar. Meu Avô Anselmo (que hoje faria anos se fosse vivo) bem que in­sistia co­migo para que experimentasse. Dizia-me que devia começar pela meloa, que era me­nos cus­toso. Qual quê! Dava-me vontade de lançar tudo quanto tinha e não tinha no estô­mago. 

Aqui, no refeitório da unidade, têm dado todos os dias me­lão à sobre­mesa. Ao princípio, e julgando que não insistissem muito, dava a minha parte ao camarada que se sentava ao pé de mim. Ficava sem so­bremesa, o que me deixava um buraquinho no estômago. E pus-me a pensar na minha fobia. Até que hoje re­solvi experimentar. Que tivesse o meu camarada de armas santa paciência. Provei a medo. E gostei tanto, que, em meia tarde, quando saí do quartel, fui com outros comprar melões a um lugar de fruta. Fo­mos depois comê-los para o quintal de uma tasca. Foi um fartote. E ve­nham-me cá dizer que na tropa não se aprende nada!

Agosto, 28 - Terminei o meu primeiro curso.

Amanhã é a entrega das armas e ala bote para Coimbra passar umas férias até ser colocado numa Unidade para dar instrução. Durante este longo curso apanhei chuva, árvores em flor, sol de estorricar os miolos, Agosto sem cheiro sequer a mar.

Sofrimento, suor, medo, espe­ranças logo abortadas. E com umas seguras noções de como se engraxa o calçado, e se muda de farda várias vezes ao dia, e alguns conhecimentos sobre a Pátria, virtudes militares, granadas, inimigo, armas automáticas – obtive a minha carta de curso...

No fim, os homens que entraram já não eram os mesmos. Nas conversas, em casa, no café com os camaradas, saía-nos da boca uma virtude militar com o mesmo à vontade com que toda a gente se peidava na caserna. Esta foi para alguns mais aplicados, ou com o cérebro mais bem lavado, um verdadeiro campo de treino, depois da instrução do dia: passos à frente e à retaguarda, meia volta volver, continências como mandam as re­gras, vozes de comando...

Terminou hoje a primeira fase da escola de virtudes. Bebe­deiras de fictícia alegria, com a tristeza ferindo, subtil, certos gestos e sentidos, ga­lões ensopados em whisky, como manda a praxe militar... E fica a EPI de Mafra, a casa-mãe da Infantaria (Entrada para o Inferno), aguardando, na sua adiposa arquitec­tura conventual, mais magotes de jovens cadetes para tentar fa­zer deles máquinas com o pensamento estrangulado no fundo opaco do crânio. Mas muitos resistem e conti­nuam sendo jovens, embora tristes e abstractos.

Agosto, 29 - Fui promovido a aspirante a ofi­cial mil­i­ciano (isto é, trouxe os galões comigo e enfiei-os, já fora de Mafra, nas platinas do dól­men), mas já sei que fui colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar.

Te­nho de me apre­sen­tar em meados de Setembro, numa segunda-feira, e só então po­derei usar os ga­lões, mas hoje quis entrar em Coimbra já promovido e de facto apa­nhei algumas conti­nências pela rua. Tinha pedido para ir para o Batalhão Inde­pen­dente 18, acanto­nado na freguesia dos Arrifes, na Ilha. Não calhou.

Talvez por­que vou ser mobili­zado muito em breve. Até à minha apresenta­ção em Tomar, vou go­zar umas fé­rias nesta Coimbra de­serta. Na República não há quase nin­guém. Al­guns de férias, nas Ilhas, outros já na guerra, como o José Bretão e o Viri­ato Ma­deira, ambos na Guiné e ou­tros como eu, quase a partir. O calor é muito. De dia não se pode sair de casa. À noite, dou grandes passeios pela fresca, jun­tamente com um rapaz da Terceira, o Helder Gomes, que está a preparar-se para o exame de aptidão à Uni­versidade. É interessante conver­sar com ele. Noto que me tem muito respeito, não sei se por ser oficial do exército, se por ser terceiranista da Universi­dade e ele simples para­quedista, isto é, nem bicho nem ca­loiro, segundo a praxe académica.

Tomar, Setembro, 14 - Apresentei-me ao coman­dante da uni­dade.


Den­tro de dias, vou principiar a dar uma recruta em substituição de um aspi­rante, perten­cente a um Batalhão de Caçadores com des­tino a An­gola, que se encontra de baixa. O comandante desse contingente, um tenente-coronel muito aprumado e de pinguelim, tem um ar de lunático e parece de uma tropa de outro tempo.

Encontrei dois açoria­nos na unidade. O capitão Moniz e um cabo mil­ici­ano, o Pedro Jácome Correia. Três ilho­tas neste mar de terra e oliveiras. Não há ainda instalações para oficiais no quartel novo, que ainda se não acabou de construir. E no velho estão já lotadas. Tive de ar­rendar um quarto, que fica na rua da sinagoga.

Setembro, 30 - O comandante do regimento mandou-me cha­mar ao gabi­nete.

Fiquei assustado. Depois de lhe ter pedido licença para en­trar, ele, depois de desfazer a continência, disse-me com bons modo:
- Soube que o nosso aspi­rante acamarada com um cabo mili­ciano e até se tratam por tu; quero infor­má-lo que tal atitude é contra o Regulamento Militar.

Nem justificando-me que se tratava de um con­ter­râ­neo e colega de Liceu, o homem se demoveu. Vem no regu­la­mento!

Dezembro, 15 - A minha companhia tem o número oito­cen­tos e destina-se a Cabo Verde, Ilha do Sal.

Acho que é muita sorte para um homem só.

Coimbra, Dezembro, 22 - Cheguei de Tomar em meia tarde, ainda a tempo de comprar a "Praça da Canção", que saiu ontem ou anteontem, mas que já os­ten­ta, na capa, a data de 1965.

Foi o Antero Dias quem me deu a novidade. Fui com ele jantar ao Texas da baixinha e a seguir viemos para a República, onde es­tive até al­tas horas a ouvi-lo ler em voz alta o livro do Manuel Alegre do primeiro ao úl­timo verso. Ele declama tão bem e com tamanha força expres­siva, que fiquei arre­piado por dentro e por fora. Como não houvesse mais poe­mas, principiámos de novo.

Ficámos com a sensação de que nos encontráva­mos perante uma poesia tão diferente daquela que estávamos habitua­dos, revolucionária e lírica ao mesmo tempo, com uma lingua­gem poética tão encan­tatória, que nos encheu o íntimo não sei de que energia e entu­siasmo. Dava vontade de sair por aí tocando os sinos que cada homem tem no cora­ção. É livro para ser proibido pela PIDE. Felizmente, está a edição prestes a esgo­tar-se, se­gundo me disse o livreiro. É natural que os esbirros não cheguem a tempo.

Coimbra, Dezembro, 24 - Natal passado com a família cor­sária, com vinho abundante para afogar não sei que saudade im­pertinente.

Não consigo arrancá-la do pensamento. E nestes dias lem­brados ainda pior. Não sei que nome hei-de dar a este ardume que me corrói as vísceras como um ácido forte. Não, não quero sequer pensar que seja o que neste instante estou pen­sando!

1965

Hospital Militar de Coimbra, Fevereiro, 26, 1965 - Dei entrada de urgência neste hospital.

Apendicite aguda. Fui operado ontem de manhã. Anestesia só da cin­tura para baixo. Dei conta de tudo. Depois de uma aula de aplicação mili­tar, em que pus o meu pelotão de língua de fora e completamente enlameado, como eu, que era sempre o primeiro a demonstrar o que queria que os homens fizessem, sobre­veio-me o castigo, dores de barriga insuportáveis. Vim de am­bulância de Tomar para Coimbra e aqui estou numa cama de hospital. Há pouco veio-me ver o Antero Dias.

Março, 4 - Cabo enfermeiro

Como não me permitiram que saísse do hospi­tal para ir dar uma volta, chamei o cabo enfermeiro, dei-lhe uma nota de vinte escudos e disse-lhe que ia guindar o muro das traseiras. Nem esperei pela reacção dele. No fim e ao cabo, era ou não era seu superior hierárquico? E, com a breca, a ginástica de apli­ca­ção militar sempre havia de servir para alguma coisa de préstimo.

Abril, 6 - Afinal, a minha companhia vai para a Guiné.

O co­man­dante recebeu hoje um rádio urgente a anunciar a mu­dança. Olhámos uns para os ou­tros como condenados à morte. Só o capitão é que aparentemente se não des­caiu. É a vida que escolheu. E eu que já tinha comprado sabonetes es­peci­ais para a água salo­bra da Ilha do Sal!

(Continua)
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Nota dos editores VB/LG:

(*) Vd. postes anteriores:

sábado, 9 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22612: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte III: Mafra, maio-junho de 1964


Amadora > Academia Militar > 1963 > Não é em Mafra, é na Amadora, na Academia Militar. ao tempo em que lá andava o nosso querido amigo, camarada ecoeditor(jubilado) Virgínio Briote... Cadetes de saída para fim de semana.

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que acaba de falecer esta semana (*). 

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue=: Virgínio Briote. Estes excertos, gentilmente cedidos pelo autor ao José Martins,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).





Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

1964

Maio, 1 – Fala-se numa possível revolução no dia de hoje.

Até agora, nada. Mas, apesar de ser boato, as forças da ordem estão em vigilân­cia abso­luta nos quartéis, de onde ninguém pode sair. Nem nós, instruendos do C.O.M., te­mos dis­pensa.

Maio, 2 – Estes instrutores militares são de uma crueldade mazi­nha.


Aos sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos ou­tros dias, para que o fim-de-semana fique estragado, sobretudo para quem o vai passar para fora de Mafra, e não dorme na noite de domingo para segunda.

Hoje, sábado, por exemplo, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por vigas com não mais do que trinta centímetros de largura.

O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e de­pois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos. Por vezes em passo acelerado.

Recusei-me a fazer tal exercício. Eu e alguns mais. Sinto vertigens e não estava para me estatelar de tal altura no chão duro e ficar maltratado para o resto da vida. O alferes não reagiu mal à recusa. Apenas disse que teríamos, no final do curso, nota mais baixa. Que se lixe a nota e o brio militar. Mas, a maior parte do pelotão lá subiu e fez tudo quanto lhe foi ordenado. Só de os ver cá de baixo arrepiava. Ainda para mais com chuva e lama...

Às segundas-feiras, iniciamos a instrução com um cross de muitos quilómetros, espingarda em bandoleira, para anular o descanso (?) do fim-de-semana. Puta de vida esta! E a procissão ainda vai no adro...

Maio, 6 – Mudei de caserna há duas semanas.

Meti uma pre­tensão es­crita ao comandante de companhia, que, entretanto, foi promovido a capi­tão. O meu pedido foi deferido. O Vítor Branco é agora meu companheiro. As nos­sas tarimbas fi­cam rente uma à outra, perto da entrada dos lavatórios e retretes.

Hoje à noite, vão apare­cer, lá dentro, panfletos revolucionários das JAPs (Juntas de Acção Patriótica). Há bo­cado, ao entrar na porta-de-armas, não sei como não deu o oficial de dia pela minha bar­rigona de grá­vida de mui­tos me­ses. Quando me apa­nhei cá dentro, até suspi­rei de alívio. O No­gueira e Silva é muito mais calmo do que eu. O Vítor nem se fala. E o Camargo, ape­sar de nervoso, também disfarça muito bem.

Maio, 7 – Ainda não tinha tocado a alvorada e já o oficial de dia estava na caserna a passar revista aos cacifos.

Fingi que estava a dormir, mas ele aba­nou-me e lá lhe fui abrir o meu. E lá foi rosnando, entre dentes:
- Há por aí uns sa­ca­nas de uns gajos que querem pôr o quartel em polvorosa; apareceram uns panfle­tos comunistas em várias instalações sanitárias, mas ainda se vão foder todos que é um re­galo.

Fiz-me desentendido e, depois da revista, voltei para o beli­che. Não apa­nhou rastro de panfletos em ne­nhum dos cacifos da caserna. O Vítor Branco sorriu para mim, à socapa. Guardo o caderninho destes apontamentos de­baixo do colchão e nunca me esqueço de o levar para Coimbra. Qualquer dia ainda me lixo.

Coimbra, Maio, 10 – Resolvi deixar o caderninho deste diário bem guar­dado na minha República, aqui em Coimbra.

Daqui em diante, vou passar a es­crever em folhas soltas. Depois, trago-as comigo todos os 
fins-de-se­mana, para as juntar ao caderno. O seguro morreu de velho.

Mafra, Maio, 13 – Hoje, numa aula conjunta de filosofia militar, cha­me­mos-lhe assim, com todas as companhias do C.O.M., o major encarre­gado da pre­lec­ção semanal passou parte do tempo a falar sobre subversão nos quartéis.

Arengou so­bre os inimigos da Pátria e, como exemplo de subversão, leu um pan­fleto que tinha aparecido há dias nas instalações sanitárias das três casernas dos ca­detes. Pediu-nos a todos vigilância sobre o inimigo que já se en­contrava entre nós e in­centi­vou-nos à sua denúncia, que a Pátria em armas as­sim o exigia de seus filhos legítimos.

Maio, 20 – Mais panfletos, desta vez comentando os comen­tá­rios do nosso major na última aula de quarta-feira e inci­tando os cadetes à subver­são.

Es­tava mesmo bem escrito. Na aula da semana que vem, com o major e com to­das as compa­nhias do C.O.M. juntas, não posso ficar ao pé dos meus ami­gos. É uma questão de precau­ção.

Junho, 10 – Apesar do feriado, não fui a Coim­bra.

Passei o dia por aí. De manhã fui ao café Frederico e, sem querer, vi a parada militar na tele­vi­são. Até me arrepiei. Sobretudo com as conde­corações póstumas.

A tarde, passei-a no quartel com o Nogueira e Silva, que se encontra castigado. O co­mandante da uni­dade, um coronel ti­rocinado, deu-lhe uma punição de três fins-de-se­mana sem sair.

Há dias, numa livraria da Vila, estava o Nogueira e Silva a ver livros ao lado de um sujeito à paisana. Às tantas, esse senhor, vira-se para o ca­dete pitosga e dis­para:
– O nosso cadete não me conhece? 

Resposta pronta do Nogueira e Silva, esten­dendo-lhe a mão:
– Não, não tenho esse prazer, mas apre­sento-me, sou fu­lano. 

O ho­mem não gostou e disse-lhe: 
– Com­pa­reça no meu gabinete ama­nhã de manhã, sem falta; não sabe que, pelo Regu­lamento Militar, é obrigado a co­nhe­cer o seu co­man­dante?

Junho, 19 – Iniciámos a semana de campo.

Viemos de Ma­fra até à Praia de Santa Cruz, a pé, com a mochila às costas e a espingarda em ban­do­leira. Es­tamos acampados nuns pinhais não muito longe do areal. Cheguei com os pés es­fo­la­dos. Felizmente que hoje à noite não estou de guarda. Posso ir dormir para a tenda, que compartilho com o Júlio Freches. Dormir ves­tido, claro. Só se descalçam as botas.

Junho, 24 – Ontem à noite estivemos brincando à guerra.

Es­tive de sentinela ao acampamento. Havia-as de vinte em vinte metros, formando um cor­dão à volta do aquartelamento de campanha. Escuro que nem breu. Não se re­conhe­cia um vulto.
A dado mo­mento, sinto aproximar-se uma patrulha. Dou voz de alto e de ime­diato debitei a senha para que o comandante da pa­trulha me respon­desse com a con­tra-senha. Só assim lhe poderia dar autorização para prosse­guir.

Tinha-se es­quecido dela e eu não quis deixá-lo passar. Mas o capitão vinha também integrado na patrulha, ape­nas para ver como se portavam os homens da sua com­pa­nhia. Soube-o, não porque o ti­vesse visto, reconheci-o tão-só pela voz. Disse-me ele então:
– Deixe lá passar, nosso ca­dete e apre­sente-se amanhã de manhã junto da tenda do co­mando. 

Logo que termi­nou o exer­cício e clareou o dia, fui-me apresentar ao capitão. Só me queria co­nhecer. Fi­quei fulo comigo mesmo por ter sido tão milita­rista e tive algum nojo de mim... Afi­nal, a la­va­gem a que eu e os meus cama­radas havía­mos sido sujeitos durante cinco meses estava dando os seus frutos.

Junho, 26 – Terminou a semana de campo.

Regressámos em duas colunas, uma de cada lado das bermas da estra­da, mochila às cos­tas e es­pin­garda em bandoleira, caminhamos em direcção ao convento. Vem toda a gente der­reada, os pés em ferida, o corpo empastado de suor velho.

À entrada da Vila de Mafra vejo o casa­rão pesado e ba­lofo e até se me exulta o coração como se regres­sasse a casa após uma longa au­sência. Antes de chegarmos à porta-de-armas, ouve-se a Banda do Regi­mento. To­ca para nós marchas militares.

E não é que os nossos pés ganham le­veza, as feri­das se ca­la­m, o peito se ergue, os bra­ços pegam de fen­der o ar com altivez e dos olhos re­bentam lá­grimas de um prazer sensual?
Ao pas­sarmos em continência ao lado da Banda Regi­men­tal já não somos os mesmos maltrapi­lhos que regressam alquebra­dos de um teatro simulado de guerra.

Creio que fo­ram os Espartanos que ganharam uma batalha, com um general coxo e gago, que os Atenienses lhes haviam mandado por escárnio. En­quanto lutavam, o gene­ral can­tava-lhes, com a afinação dos gagos, cantos bélicos que enchiam os guerrei­ros de ânimo. Foi o meu velho pro­fessor de História do terceiro ano, o Doutor Ruy Galvão de Carvalho, quem nos con­tou este episódio.

Junho, 28 – Juramento de Bandeira em frente do Convento de Mafra.

Não só não junto a minha voz ao coro, como também faço figas... Juro o raio que os parta! Fim do primeiro ciclo de instrução. A especialida­de são mais dois me­ses. Ao todo sete. É demais. É este o primeiro curso que tem tamanha duração.

O Estado Maior justificou o prolonga­mento por se tratar de oficiais que vão ter a res­pon­sabili­dade de co­mandar homens em teatro de guerra. E cinco meses de ins­tru­ção, in­cluindo recruta e especialidade, como vinha sendo praticado até agora, era pouco tempo. Vou continuar em Mafra, que a minha es­pecialidade é a de atirador de infan­taria. Nem os testes psico-técnicos, aos quais respondi com sinceridade, me valeram.

Muitos cama­radas vão para outras uni­dades receber a instrução, con­soante a espe­cialidade que lhes ca­lhou. Os que entraram para a Força Aé­rea foram os mais sortu­dos. No sorteio que há dias se fez, tirei o número quarenta e sete. Como eram sessenta os cadetes pedi­dos ao Exército pela Força Aérea, deviam ser para lá trans­feridos os que haviam ti­rado os primeiros sessenta algarismos, isto segundo o crité­rio de sorteios ante­ri­ores.

Ainda ali­mentei grandes esperanças e esfreguei as mãos de contenta­mento durante algum tempo. Mas, dias depois, viu-se perfeitamente o crité­rio seguido. Primeiro, as cunhas. E, para não dar muito nas vistas, os dois ou três números mais próximos delas.

Por exemplo, entraram para a aviação o 70, 71, 72, depois o 19, 20, 21, depois o 120, 121, 122, e assim por diante, sem qualquer ordem ou aparente critério. Ninguém deu pio, mas toda a gente perce­beu. O Ca­margo e o Vítor Branco tiveram sorte e lá vão para a Ota dentro de dias. O nosso grupinho desmanchou-se, cada um para seu lado, ligações corta­das. Com a queda há semanas de Nikita Krutchev baral­ha­ram-se muitos espíri­tos.

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Postes anteriores:

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964


Mafra > EPI > Março de 1967 > "Fotografia do meu pelotão (1.º Pelotão da 1.ª Companhia de Instrução) do COM de janeiro de 1967, desfilando de regresso à parada da EPI, depois do juramento de bandeira. Nesta foto, do meu álbum de guerra, estou em 3.º lugar na 1.ª fila. O sargento, que empunha uma FBP, não conta.

"A foto foi tirada por um familiar de um camarada soldado-cadete. A foto é de março de 1967. Ainda fiquei mais cerca de 3 meses em Mafra para a especialidade de atirador de infantaria." 
 

Foto (e legenda): © Eduardo Moutinho Santos (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Publicámos, no devido tempo, em 2009, há cerca de 12 anos, o "Diário de Guerra", do nosso camarada e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021) (*)
, que nos chegou às mãos,  por intermédio do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70). 

A grande maioria dos nossos leitores não teve oportunidade de conhecer este notável texto, de que se publicaram 11 postes (, muito espaçados, entre janeiro e setembro de 2009).

O "Diário de Guerra" abarca um período de tempo de seis anos, desde a entrada do autor em Mafra, em 26 de janeiro de 1964, para fazer a recruta e dar início ao Curso de Oficiais Milicianos (**) até ao fim da comisão na Guiné (onde foi alf mil, CCAÇ 800, Contuboel e Dunane, 1965/67) e o "difícil regresso à vida civil", entre 1967 e 1970. (***)

Estes textos fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).

Na altura a revisão e fixação do texto, para efeitos de publicação neste blogue,  foi da responsabilidade do nosso coeditor (hoje, jubilado( Virgínio Briote. Agradecemos ao José Martins a sua sensibilidade e a sua generosidade ao servir de intermediário entre o nosso blogue e o escritor, e ao aceitar organizar o texto para publicação no blogue, com a devida autorização do autor. 

Está é também uma forma de homenagearmos a memória do nosso camarada açoriano Cristóvão de Aguiar que,como escritor,é dono de uma vasta obra (publicada na totalidade pelas Edições Afrontamento).



Cristóvão de Aguiar. 
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

1964

Janeiro, 26 – Acabei de chegar.


O casarão do convento é tão frio e tão feio, que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto aban­donado.

Durante a viagem de boleia de Coimbra para Lisboa, bem se esforçou o Carlos Can­dal, meu amigo e companheiro de República, por me animar. Está na tropa, na capital, e só amanhã vou principiar o Curso de Oficiais Milicianos. Fi­quei na ca­serna número quinze, no ter­ceiro piso, a maior de todas, de tecto abaulado e baixo.

Acabei de fazer a cama, como soube e pude. Segui atentamen­te a demons­tração de um habilidoso fur­riel que exibiu as suas capacidades domésticas com mãos rápidas e tarimbeiras para um grupo de novos cadetes que entraram na caserna, de­bai­xo de forma, para tomar posse do cacifo e do beliche. Também nos deu sá­bias instruções sobre disci­plina, la­trocínio de quartel e obediência.

Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra ses­senta e quatro. De­pois de ar­ru­mar as minhas coisas e de mu­dar de roupa, fui até o Bar do Cadete, no piso do rés-do-chão, e lá encontrei o Ca­margo, que chegara na véspera. Já envergava o seu fato-macaco militar cor de azei­tona.

Os meus passos naqueles tú­neis perdiam-se de perdidos que estavam. E logo amaldiçoei o empreiteiro de tal enormidade arquitectónica e as ordens religiosas que ali se encafuavam praticando as piores patifarias em nome de uma fé codificada. Tanto eu como o Camargo parecía­mos dois fan­tasmas navegando por den­tro das bo­tas e do fato zuarte. Não ficámos na mesma ca­serna. Ele ficou na um, a an­tiga capela, junta­mente com o Nogueira e Silva. Ao Vítor Branco, ilhéu da Madeira, coube a dois, a mais pequena e a mais acon­che­gada das três. Foi-me apre­sentado pelo Ca­margo. Fazemos um molhi­nho de soli­darie­dade.


Janeiro, 27 – Esta noite não preguei olho.

Acolhido na caserna com uma caterva de jovens como eu, senti, ao deitar-me, uma tristeza encharcando-me os ossos e um desânimo só semelhante ao da criança perdida dos pais por entre uma multidão de desconhecidos, numa feira ou num arraial de festa de padroeira. Mas, ali, na caserna, não havia altifalantes como nos re­cintos das festas para anunciar a criança perdida.

Ali, naquele enorme dormitório, com um nauseabundo odor a pés, a ventosidades sonoras e a outras sorrateiras mas enjoosas, estava mesmo perdido para sempre. Mesmo que de mim próprio fizesse um grito de terror. Um toque, ainda madrugada escura, estranho, fez-me levantar do leito da insónia. Era o toque da alvorada. Depois de far­dado, olhei-me de alto a baixo, e achei-me ridículo. Só não chorei por vergonha. Fiz a cama como quem escreve o a, e, i, o, u pela pri­meira vez. Estava ainda na pri­meira classe atrasada...


Mafra, Janeiro, 28 – Fiquei a pertencer ao quarto pelotão da terceira com­panhia de in­s­tru­ção.

O comandante da companhia, um tenente goês, é muito apa­ratoso nas con­ti­nên­cias. Parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. Que mundo este!

O coman­dante do meu pelotão, o quarto da companhia, é um açoriano da Ilha Ter­ceira. Mas ainda não me dei a conhecer, nem deve ser preciso, que ele deve-me topar pela pro­núncia. Pelo que lhe já ouvi, deve ser um grande maluco e vai-nos decerto pôr a to­dos no mesmo estado. Já esteve em An­gola cum­prindo uma comissão e segundo consta fez lá das suas.

Hoje passámos o dia a aprender a fazer continência e a dis­tin­guir os postos. As aulas são na parada, com o pelotão formado em U. Aos supe­ri­o­res trata-se por meu. Meu isto, meu aquilo. Aos infe­riores, por nosso. O cade­te Carva­lhosa, que tira aponta­mentos do que ouve ao al­feres e está sempre muito atento à li­ção, como se estivesse nos bancos da Uni­versidade, passou a tratar o cabo lateiro da arre­cadação do material por meu cabo. O alferes foi aos arames com a atoarda. Nin­guém pode sair do quartel para a Vila, após a instrução - ainda não sabemos com­por­tar-nos militarmente. E não se sabe se vamos a fim-de-semana.

Janeiro, 29 – O comandante de pelotão mandou-nos formar.

E explicou-nos que a formatura era sagrada. Não se podia falar, mexer, rir ou sequer pensar. Creio, no entanto, que alguns pensaram. Depois afivelou uma cara de mau e afirmou que era proibido haver doentes. Só o médico poderia comprovar, porque as­sim determinava o Regulamento... Não está no Regulamento - era quanto bastava para se dar uma resposta menos regulamentar.

Janeiro, 30 – Escrevi-lhe para Coimbra uma longa carta.

An­tes de para aqui vir, estive com ela e outras colegas no bar da Faculdade de Medi­cina, mas não tive coragem de me declarar. Fi-lo há pouco numa longa carta que por acaso prin­cipiei a escrever ainda na República, a semana passada.

Se for a fim-de-semana, vou tentar encontrar-me com ela e hei-de obter uma res­posta. Mora num lar de freiras, ao lado da República. Não há-de ser difícil che­gar-lhe à fala. Ainda não cicatrizei a ferida da outra, a da Ilha, e já estou a meter-me noutra...

Hoje, na segunda hora de instrução, com o pelotão formado em U, a aula versou sobre o conceito de pátria, como vem nas fichas da instrução, que esclarecem que se deve apresentar aos instruendos significati­vos exemplos da nossa História para lhes incutir os verdadeiros valores.

O nosso alfe­res pegou no manual e principiou a ler: 

"Temos, por exemplo, D. Duarte de Almeida, o decepado, o porta-bandeira ou alferes, que ofereceu com o seu gesto heróico um verdadeira lição de patriótico amor, abnegação e audácia.

"Outro feito que dignifica as páginas doiradas da nossa História é o praticado por D. João de Castro, Vice-Rei da Índia, que num acto valoroso, cortou, como penhor, as venerandas barbas... E a pro­pósito, nossos cadetes, quero lembrar-vos que na formatura para terceira refeição vou passar revistas às barbas e cabelos"..

Janeiro, 31 – Iniciámos de manhã o estudo da espingarda Mauser, que se di­vide em dez partes, a saber...

O alferes ia chamando os cadetes por or­dem numérica. Todos receberam a velha Mauser – "A vossa noiva, estimai-a como à vossa noiva..."

Saímos hoje para a Vila, depois da instrução da tarde na tapada. Mas não tivemos dis­pensa do recolher, nem da ter­ceira re­fei­ção. Foi pre­ciso fazer uma for­matura de saída. O oficial de dia veio-nos pas­sar mi­nu­ciosa re­vista. À barba, ao ca­belo, à graxa das botas ou dos sapa­tos da ordem, ao vinco das calças da farda número um, aos botões da camisa e da farda! Dois camaradas não fo­ram autorizados a sair. Tinham os pêlos da barba a arra­nhar.

Voltámos ao quartel an­tes da terceira refeição. Como estava a chuvis­car, fez-se a forma­tura para o jantar no corredor em frente do refeitório. Chama-se o corredor La Couture e nele andam jipes e outras viaturas mili­tares. Na forma­tura do recolher tinha tanto sono que cabeceava em pé, enquanto o sargen­to de dia lia a ordem, fazia a cha­mada e distribuía o correio.

O Magalhães rece­beu um telegrama da namorada, já aberto. O instruendo fazia anos. E o sar­gento, com ar de gozo, leu alto: Amo-te, stop, Mada­lena... Quando chegou ao meu número, pus-me em sentido e bati com os tacões das botas. Depois de ter man­dado destroçar, fui para a cama. Eram nove e pouco da noite. Nunca dormi tão bem em toda a minha vida.

(Continua)
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Notas dos editores VB / LG:

(*)  Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021


(**) Vd. postes de:


10 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4932: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (XI): Final (Mai68-Jan70)

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22586: Convite (15): Encontro de ex-militares milicianos e amigos que estiveram directa ou indirectamente ligados à contestação antimilitarista e anticolonialista, dia 7 de Outubro de 2021 na Casa do Alentejo



Lisboa, Casa do Alentejo > Taberna (Cortesia da página da Casa do Alenejo)

C O N V I T E

ALERTA, CAMARADA - Última chamada

1. No dia 7/10/21, quando se completam 50 anos do início do 4º turno/71 do COM em Mafra, que ficaria indelevelmente assinalado, vamos organizar um Encontro de ex-militares milicianos e amigos que estiveram directa ou indirectamente ligados à contestação antimilitarista e anticolonialista.

2. Às 16.00h juntamo-nos na Casa do Alentejo (taberna) para um convívio com petiscos alentejanos, animado com as cantigas do "Cancioneiro do Niassa", pelo João Maria Pinto (actor de teatro e recolector das canções), assinalando a influência importante que os milicianos tiveram na tomada de consciência dos militares de carreira.

3. Por volta das 18.00h, vamos para uma sala histórica da Casa do Alentejo para uma conversa sobre três temas:

A - Memórias e relatos da participação dos milicianos na tropa militarista e na guerra colonialista (projecto DA GUERRA NUNCA SE VOLTA)

B - A actualidade da temática das guerras (neo) colonialistas e do papel das intervenções militaristas e agressivas (Cabo Delgado- Moçambique, Afeganistão,Síria, Iraque, Líbia, etc.).

C - A participação organizada de ex-militares milicianos nas Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (2024) - Criação de uma Comissão ad-hoc.

Caros companheiros e amigos, para organizar a logística é necessário a confirmação definitiva da vossa participação.

Um abraço
Armando Teixeira
arsouteixeira@gmail.com


2. Nota do editor:

O Armando Sousa Teixeira apresenta-se como "ex-cadete , ex-furriel e ex-soldado do Exército Português, com o nº 09420870, mobilizado em Moçambique, 1972/74". É autor, entre outros,  dos livros editados sob a chancela da Editorial Avante, “Guerra colonial, a memória maior que o pensamento” e "Barreiro, Uma História de Trabalho Resistência e Luta (1926-1945)".
 
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quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22504: Pequeno dicionário da Tabanca Grande (13): "Máfrica" (termo irónico, para não dizer sarcástico, para designar a EPI, sita em Mafra), grafado por Vasco Pires e por Rui Alexandrino Ferreira


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1964 > Curso de Sargentos Milicianos (CSM) > "Mafra, 26 de Janeiro de 1964 > O 1.º pelotão, da 1.ª Companhia, ao 2.º dia de tropa"... Pormenor: todos equipados de Mauser... Foto do álbum do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67).

Foto (e legenda): © Veríssimo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. "Máfrica" é um vocábulo da nossa gíria castrense e consta do Pequeno Dicionário da Tabanca Grande, tendo sido "grafado" pelo nosso saudoso Vasco Pires (Vilarinho do Bairro, Anadia, 15/6/1948 - Porto Seguro, Baía, 31/10/2016) (foi alf mil art, cmdt do 23º Pel Art, Gadamael, 1970/72; entrou para a Tabanca Grande em 27/9/2012; tem cerca de 7 dezenas de referências no nosso blogue).

Alguns excertos do seus postes com o descritor "Máfrica:

&&&

 (...) Eu venho lá da Bairrada pofunda, que na década de 50 era mais conhecida como terra da batata, ao invés de terra do vinho, o vinho ainda se vendia a granel.

(...) A minha infância e adolescência foi passada em escolas da região, seguida de uma passagem de cinco anos pela efervescente cena coimbrã da segunda metade da década de 60.

Em 69, saí desse "borbulhar" de novas ideias e atitudes, para a disciplina EPI na "Máfrica" de tantos de nós. Logo começou a minha boa sorte, de ter camaradas, subordinados e superiores que me ajudaram nesta caminhada de três anos pelos quartéis de Portugal e África. (...) (*)

&&&

(...) Mas éramos todos muito inocentes, aí com facilidade o sistema nos enquadrava com um Tenente e dois Cabos Milicianos e às vezes, poucas, um Sargento.

Poucos dias depois receosos de perder o fim de semana, íamos-nos tornando instrumentos de um sistema que durante tantos anos (63 a 74), enquadrou uma geração de pouca sorte.

O processo começava aí: "Máfrica", Vendas Novas, Tavira, Caldas da Rainha... E lá íamos nós, mais ou menos convencidos e eficientes agentes, enquadrar outros mais, pelos quartéis de Portugal e de África. Mafra e Tavira, eram o início de um processo de inserção no sistema de muitos milhares, que a propaganda chegou a fazer pensar, que estavam "dilatando a Fé e o Império". (...) (**)

&&&

(...) De qualquer, a grande escola de cadetes e fábrica de oficiais que depois seguiam para os teatros de operações do ultramar, a grande 'Máfrica' (, a expressão é do nosso grã-tabanqueiro Vasco Pires), que terá formado dezenas e dezenas de milhares de oficiais subalternos e comandantes operacionais, era, como em qualquer parte do mundo, uma verdadeira "instituição totalitária" ("total institution") no sentido forte, sociológico, do termo.

Se não, vejamos alguns traços comuns às instituições e organizações a que poderíamos aplicar a tipologia desenvolvida, e,m 1961, pelo sociólogo americano Erving Goffman (Asyluns: essays on the social situation of mental patients and otther inmates. New York: Anchor, 1961).(...) (***) 

&&&

(...) Então, "Máfrica" exprimia a reação,  de jovens inocentes e provincianos que se julgavam na vanguarda da modernidade e pensavam que iam mudar o mundo, à disciplina militar, reforçada, por ser num curso acelerado [, o COM].

No meu caso, o impacto foi "amortecido", pois dormia e comia fora do quartel [, EPI]. (...) (****)

&&&

(...) Tempos atrás, lendo uma matéria, lembrei de cartaz que vi em um dos quartéis por onde passei, talvez "Máfrica" [, EPI, Mafra]. Dizia: "O boato fere como uma lâmina " (se não falha a memória).

Quantos boatos não passaram na nossa vida militar? Muitos fabricados pela contra-informacão, outros gerados pelos nossos medos. Logo propagados nos "jornais da caserna". (*****)

2. Comentário de Fernando Ribeiro ao poste P22489 (******):


(...) "Máfrica" - Estive cerca de seis meses a frequentar o COM em Mafra e tenho que puxar muito pela memória para me lembrar de ouvir alguém chamar "Máfrica" a Mafra. De que eu tenha a certeza, só ouvi uma vez, mas admito que tenha ouvido mais uma vez, no máximo duas. Fora isso, sempre ouvi chamar Mafra a Mafra. Confesso que acho estranha esta insistência na palavra "Máfrica", mas se calhar a minha memória é que já não é o que era. (...)

3. Comentário do editor LG:

Em relação a Mafra, as "memórias" são das personagens do conto, não do autor, o contista (******).  Quarenta anos depois é natural que haja contaminação entre "ditos" e "feitos" de diferentes épocas. 

Relativamente ao termo "Máfrica" temos, no nosso blogue, 14 referências   (*******)... E Mafra tem sessenta. A EPI cerca de metade.

Máfrica deve ser termo da gíria coimbrã, era uma forma irónica (, para não dizer sarcástica, ) de identificar a EPI, situada em Mafra... O nosso saudoso Vasco Pires, que morreu no Brasil, usava-o muito... Mas também o angolano, nascido em Sá da Bandeira (hoje, Lubango),  Rui Alexandrino Ferreira, no seu livro "Rumo a Fulacunda" (2.ª edição, 2003, Palimage Editores, Colecção Imagens de Hoje, 415 pp.). Veja-se este excerto:

(,,,) Para lá [,EPI, Mafra,] me vi empurrado, pois naquela altura, corria o ano de 1964, não havia Curso de Oficiais a não ser no continente. Infantaria só mesmo lá-. E como o rapaz Rui nem tinha padrinhos, nem certamemte servia para outra coisa... e sobretudo porque as necessidades eram "carne para canhão", ou seja, combatentes, nem vale a pena acrescentar mais nada...

"Muita chuva, muito vento, muita e...um convento". Eram com estes sábios, esclarecidos e esclarecedores termos que pela voz do povo se definia aquele "paraíso"- E como a voz do povo  mais não é do que a voz de Deus, já para não referir  quaisquer outras vozes - é claro - que afirmava, que "pior que África só mesmo Máfrica", correspondia em absoluto com a realidade no que dizia respeito  à chuva, ao vento e ao convento. Esqueceram-se de acrescentar o frio e a"merda que restava só podia ser mesmo a tropa".

Tropa que apesar de tão mal tratada, fazia com que a vila perdesse a  monotomia e espantassse a modorra de cada vez que se apresentava para a recruta mais uma fornada de "jeijão verde" (alcunha com que os locais brindavam os milicianos em geral, quer se tratassem de soldados-cadetes do Curso de Oficiais, ou de soldados-instruendos do Curso de Sargentos. Por grosso e atacado eram agrupados ao molho  e todos equiparados ao mesmo vegetal)" (pág. 49).

O Vasco Pires, emigrado no Brasil desde 1972, e que só descobriu o nosso blogue em 2012, não leu por certo o livro do Rui Alexandrino Ferreira. (*******)
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(******) Vd. poste de 27 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22502: Memória dos lugares (425): Mafra, EPI, março de 1967: desfilando com o meu pelotão, o 1.º, da 1.ª Companhia de Instrução do COM, após o juramento de bandeira (Eduardo Moutinho Santos, advogado, Porto)

 

Mafra > EPI > Março de 1967 > Fotografia do meu pelotão (1.º Pelotão da 1.ª Companhia de Instrução) do COM de janeiro de 1967, desfilando de regresso à parada da EPI, depois do juramento de bandeira.   Nesta foto,  do meu  "álbum de guerra", estou em 3.º lugar na 1.ª fila. O sargento, que empunha uma FBP,  não conta.

A foto foi tirada por um familiar de um camarada soldado-cadete. A foto é de março de 1967. Ainda fiquei mais cerca de 3 meses em Mafra para a especialidade de atirador de infantaria... A foto não pode, pois,  ser do pelotão do Paulo Raposo, ele foi incorporado na 2.ª leva (Abril) de 1967 de futuros alferes...

Foto (e legenda): © Eduardo Moutinho Santos (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. M
ensagem de Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2366 (Jolmete e Quinhámel) e ex-Cap Mil Grad, CMDT da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada), advogado com escritório no Porto, e régulo da Tabanca de Matosinhos; tem mais de 2 dezenas de referências no nosso, entrou formalmente para a Tabanca Grande em 22/10/2012 (*):


Data - terça, 31/08/2021, 12:53

Assunto - A galeria dos meus heróis (42): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida

Olá, Luís Graça. Bom dia.

Esperando que estejas a gozar merecidas férias, e que a tua recuperação esteja a correr bem à sombra do Poilão de Candoz, queria, antes de mais, deixar-te um abraço de parabéns pelo enternecedor conto "A galeria dos meus heróis". De companheiros de infortúnio a amigos para a vida"  (**) que, após uma leitura atenta, quase me pareceu autobiográfico (de mim) em parte!!!

Fiz um comentário à fotografia de um pelotão de soldados-cadetes desfilando em Mafra, após o juramento de bandeira, de regresso à parada da EPI, foto que apareceu num dos "artigos " que o Paulo Raposo, nos longínquos anos de 2008, inseriu no Blogue de que eu, então, ainda desconhecia a existência. Não pode ser o pelotão do Paulo Raposo, ele foi incorporado na 2.ª leva (Abril) de 1967 de futuros alferes...

Aproveito para te enviar a mesma foto que tenho no meu "álbum de guerra", onde estou em 3.º lugar na 1.ª fila. O sargento não conta.

Abraço
Eduardo Moutinho
Advogado, Porto



Guiné > Região de Cacheu > Jolmete > CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845 (1968/70) > No "baú dos despejos" encontrei esta declaração que terei assinado para vir de férias, e que me terá sido devolvida porque não fui "d'assalto" até Paris... Fazia parte das regras militares assinar este tipo de declaração.

Foto (e legenda): © Eduardo Moutinho Santos (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário de L.G.

Eduardo, fico sensibilizado pelo teu comentário. E lisonjeado, também. Tiveste a coragem de ler o conto (**), que é demasiado extenso para o blogue. A ideia era retratar uma época e uma terra de província. Este Portugal dos anos 40/50/60/70 já não existe, para os nossos filhos e netos, felizmente, é passado, ou melhor nunca existiu. Mas nós atravessámos essas décadas... E não foram pera doce. (***)

Obrigado por me teres autorizado a publicar a tua mensagem como poste, com o teu nome, incluindo a foto do teu pelotão, no COM, Mafra, jan-março de 1967. Já agora, vê se lembras de alguma vez, no teu tempo (1.º semestre de 1967) teres ouvido o termo "Máfrica" para designar, pejorativamente, a EPI.

Entretanto, e como já to disse, por email, ainda não estou em Candoz. Até sexta feira tenho fisioterapia, aqui na Lourinhã. Vou lá estar uma semana, e dia 11 de setembro, sábado, comprometi-me com o António Carvalho a ir, com todo o gosto (, e apesar das minhas limitações de mobilidade) à Tabanca dos Melros, fazer a apresentação do seu livro. Se lá puderes ir, teremos a oportundiade de falarmos um pouco mais e darmo-nos aquele abraço.
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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 22 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10556: Tabanca Grande (366): Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2366 e ex-Cap Mil Grad, CMDT da CCAÇ 2381 - "Os Maiorais" (Guiné, 1968/70)

(**) Vd. postes de:

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22490: A galeria dos meus heróis (42): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte II (Luís Graça)


Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043. Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Commons
 

A galeria dos meus heróis > De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte II 
(Luís Graça) (*)

 

3A. Ganhava-se mal na função pública, 
mas era um emprego certo, 
com cheque ao fim do mês e algumas pequenas regalias. 
Nas finanças, havia os “emolumentos”, 
que representavam mais uns tostões ao fim do mês. 
Eu teria preferido entrar para a banca, 
nessa altura tinha mais prestígio. 
Os bancos, privados, pagavam melhor e tinham melhores instalações. 
E já havia uma ou outra rapariga ao balcão…

 

Naquele tempo, com a economia a crescer a dois dígitos (como se diz hoje), e a máquina do Estado a expandir-se e modernizar-se não era difícil entrar para função pública, a banca, os seguros, as caixas de previdência, os escritórios, as fábricas… 

Não, não era o meu sonho seguir as peugadas do meu pai, um obscuro funcionário corporativo num Grémio da Lavoura. Tenho pena de o dizer, mas infelizmente, o meu pai era um fraco exemplo de ambição e liderança. De resto, lá em casa vigorava o matriarcado, a minha mãe era mestre-escola, tinha o curso do Magistério Primário, a primeira mulher da família a ir estudar. E sobretudo era minhota, e que em pequenino me contava a lenda da Deu-la-deu Martins. Os homens da casa e a criada chamavam-na a “generala”, com o devido respeito… E integrava a comissão local do Movimento Nacional Feminino. Sem favor, acho que fez um bom papel, ajudando muitas famílias pobres da região, com filhos no Ultramar.

Quando eu saí da tropa, apetecia-me era “correr mundo”, como alguns dos meus amigos do colégio dos jesuítas. E que, mais finos e expeditos do que eu, se safaram melhor, alguns, da tropa ou até do ultramar: um ficou em Luanda, outro ficou no Hospital da Estrela em Lisboa ...

Devo acrescentar que não meti nenhuma cunha para me livrar do Ultramar. O meu pai, que era da União Nacional (, tinha que ser, era funcionário corporativo), ainda esteve tentado a “mexer os seus pauzinhos”, como ele me confessou, eufemisticamente. Mas a minha mãe fuzilou-o com um olhar de reprovação. Era (ainda é) uma mulher de grande verticalidade. Uma senhora de grandes princípios, com um educação esmerada. E, ela, sim, de origem fidalga. O meu pai era um plebeu, um manga de alpaca que nunca passaria da cepa torta. Claro que o Ravasco não acreditaria nesta história, se eu caísse na patetice de lha contar.

Enfim, fui colocado, sem entusiasmo,  na repartição de finanças de Mafra, Mafra Dois, como dizia o Ravasco, num lugar do quadro de pessoal, como aspirante de finanças. Entrava numa carreira técnica. Passava a ser liquidador de impostos, como na Roma Antiga, como fantasiava o meu pai. No passado, era um lugar de prestígio, de nomeação régia. Na época ainda não havia computadores, liquidava-se os impostos à mão, de lápis na orelha. Quando muito havia já umas pesadas maquinetas, electro-mecânicas, que funcionavam como “calculadoras”. O mais importante era saber fazer contas de cabeça. Nisso eu era bom, melhor que o meu irmão que foi para o magistério primário, seguindo o exemplo da mãe (, enquanto o meu pai queria que ele fosse regente agrícola).

Já não me lembro das categorias, nem das letras de vencimento, mas estava cá para o fundo da tabela: começava-se como aspirante de finanças estagiário, depois aspirante concursado, depois aspirante do 2º grau e depois do 1º…

O Ravasco gozava comigo e perguntava-me com que idade é que eu me imaginaria chegar,  se não a diretor de finanças como o meu tio-avô, pelo menos a adjunto… Mas o que eu mais gostava era do meu cartão da DGCI, com uma barra na diagonal, a verde e a vermelho, as cores da República, que me dava acesso a quase tudo, com destaque para as casas de… “diversão noturna”. 

Passei a ser um gajo respeitado pelos “gorilas” que estavam à porta das “boîtes”, como então se dizia, “à francesa”...Quantas vezes não entrei no “Ouriço”, na Ericeira, que, ao que me dizem, ainda hoje existe… (Nunca mais lá voltei à Ericeira, depois de ter sido transferido para Braga.)


4. Vê-se que o Bacelar não nascera para isto, 
“manga de alpaca”, como ele dizia, com desdém, do pai. 
Eu chamava-lhe o “morgadinho”, com ironia. 
Tinha a mania que era de “sangue azul”. 
Mas a verdade é que ele tinha de fazer pela vida, tal como eu. 
Via-se que tinha “bons princípios”, 
tendo nascido, se não em berço de ouro, 
 pelo menos em cama com lençóis de linho. 
 Pois fora coisa que eu nunca tivera
 E a minha mãe, coitada, era analfabeta. 
E o meu pai, mineiro. E o meu avô, ganhão. 
E mais do que avô não conheci



Procurei consolá-lo, fomos petiscar, “jaquinzinhos fritos”, com arroz de tomate, ainda me recordo, numa tasca saloia, de um fulano da Malveira,  que ainda lá existia, quatro anos depois. Já estava mais “modernaça”, para o meu gosto, com mesas envernizadas e tampos de vidro… 

Depois procurei mentalizar o meu colega de “desterro”  (mas, no fundo estava a tentar arranjar algum consolo para o meu próprio infortúnio=: um gajo, na vida,  tem de começar por qualquer coisa, “estagiário” ou “aspirante” a qualquer coisa. A menos que se tenha um pai rico… Começáramos como “aspirantes estagiários”, muito bem… E um dia, se o convento não desabasse, haveríamos de subir mais um ou dois degraus… Pensava nisso quase todos os dias quando subia aquela maldita escadaria, de manhã, para chegar à repartição. Foi o que o “chefe” nos disse, incentivando-nos a estudar… “É uma carreira bonita mas dura”… E, aí, de repente, tive a intuição de que ele só poderia ter sido padre, há uns vinte e tal anos atrás… Os padres são marrões, conhecia-os de ginjeira.

 O grande chefe, Salazar, também ex-seminarista, esse, já tinha morrido, uns tempos antes, mas o seu regime sobrevivera, aparentemente incólume, reproduzindo-se o “mandarinato chinês”, como eu dizia depreciativamente. Era o que estávamos a viver, na época, a “mudança na continuidade”. O regime estava a chegar ao fim, mas eu não conseguia predizer quando…  E os “mandarins” começavam a andar nervosos, mas eu não sabia nada do que se passava por detrás dos muros da “Máfrica”, naquela época, em finais de 1973: conspirações, traições, alianças, vinganças, etc.

Tudo isto para dizer que fui completamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril. Nessa manhã eu estava na repartição, quando alguém, de fora, da nossa tertúlia, me veio dar a notícia, alvoraçado, ao balcão.  Mas ainda a medo, segredando-a ao meu ouvido. Eu próprio pensei logo que era um golpe da extrema-direita, orquestrado pelo Américo Tomás e o Kaulza de Arriaga. Mas de tarde já andava tudo nervoso, lá na repartição, a começar pelo "açoriano", que se trancou no gabinete.

Pessoalmente não tinha grandes ideias para o meu futuro pessoal. Queria poder equacioná-lo numa perspetiva de futuro… coletivo. Precisava de sentir que o meu país tinha futuro. Era uma dos chavões da época... Queria continuar a estudar, mas não tinha grande cabeça para o fazer. Faltava-me a disciplina mental. Ainda estava a fazer o “luto”: não já da morte do meu pai, mas da minha participação na guerra… Estranhamente, só depois de ter regressado, é que comecei a sentir “asco” por ter feito aquela guerra…

Não é que eu fosse muito “informado” quando parti para a Guiné… E, confesso até, não tinha “consciência política” na altura… Nem grande nem pequena… Não tenho hoje vergonha de o dizer, depois de passar à “peluda”… 

Quando fui mobilizado, não questionei a legitimidade da guerra… Aceitei a “canga” que me puseram em cima, como o burro que puxava a nora, lá no quintal de um dos vizinhos dos meus avós de São João dos Caldeireiros… Mas depois vi coisas, na tropa e na guerra, de que não gostei. E isso terá enviesado a maneira de ver o que se passava em Portugal, a partir de 1972. De resto, tinha tido uma educação, no mínimo, “religiosa e conservadora”, propícia à aceitação resignada da "ordem estabelecida", como então se dizia… O Vaticano II, o Concílio,  levara tempo a chegar a Portugal, mas começava a “fazer estragos”, e um deles foi o progressivo despovoamento dos seminários...



4 A. Fui, no domingo, à missa
e gostei de conhecer o padre cá da paróquia.
Pela idade, deve ser o coadjutor, 
mas irradia simpatia e inspira confiança. 
E rodeia-se de gente nova. 
Parece ser um padre “arejado de ideias”, 
como agora se diz. 
Tenho-o de o apresentar ao herege do Ravasco.


Suspeito que é um daqueles padres “progressistas”, que nem sempre sabem distinguir as coisas de Deus e os negócios dos homens. A linha de fronteira é ténue, é verdade. E eu próprio às vezes fico confuso sobre o teor dos sermões que agora ouço nas homilias. É um tipo que se aproxima das preocupações dos mais novos e, sem abordar diretamente as questões mais quentes da sexualidade, retira a carga de pecado que os padres mais tradicionalistas, associam aos nossos “pensamentos, palavras e obras"... Fala também de liberdade e justiça...

Talvez antes ir ao próximo Natal a casa, lhe peça para me ouvir em confissão. Há quase um ano que não me confesso nem comungo. Não sei o que dizer à minha mãezinha se ela, na Missa do Galo, vir que eu já não comungo… Acho que já não sou o mesmo, também não vim o mesmo de Angola onde a descristianização era já muito maior do que aqui. As pessoas estavam instaladas, viviam bem, os brancos, e tinham-se tornado cínicas… E sobretudo demasiado confiantes em relação ao futuro… Arrogantes, diria mesmo… Pertenciam a outro mundo, em acelerado desenvolvimento, e no fundo sentiam alguma sobranceiria  em relação  às gentes  do "Puto"... que nem todos conheciam. 

Em Luanda não havia guerra nem se falava da guerra, se não fora a presença de tropa fardada e o movimento de viaturas e aviões militares…Mas tenho saudades, de Luanda, onde ainda passei os últimos meses da minha comissão... Da ilha e da baía de Luanda, do Mussulo, da vida noturna… Ah” aquelas noites tropicais, com os pés dentro de água, e, na mão, um gin tónico com uma rodela de lima… 

 

5. Acho um ridículo atroz o Bacelar usar, 
no anelar esquerdo, um cachucho com brazão!...
Não esconde as suas simpatias monárquicas 
e é católico de ir à missa. 
Fazia questão de me dizer que não se interessava 
pela “política politiqueira”. 
 Onde é que eu já ouvira isso ? 
Nas “conversas em família”… 
do senhor professor doutor Marcello (com dois eles) Caetano


Gostava de gabar-se de que ainda tinha algumas boas relações, que vinham do tempo em que um dos antepassados, do lado do ramo materno, fora juiz-conselheiro e par do reino no tempo do senhor Dom Carlos. Não quis humilhá-lo perguntando-lhe o que era isso de ser “par do Reino”… e lembrando-lhe que em 1910, há mais de 70 anos, tinha caído a monarquia em Portugal… 

Para desgosto da mãe, que devia ser  uma pessoa intelectual e moralmente exigente, ele nunca fora bom aluno, tirara o quinto ano dos liceus, se calhar à rasquinha, pelo oque eu deduzi.  O que não era normal nos filhos dos professores primários, formatados para serem os primeiros da turma. Mas tinha jeito para línguas, mais do que eu, que era um cepo. Vá lá, eu safava-me no latinório, que era uma língua morta, e desenrascava-me no francês de praia…

O Bacelar era o que se podia dizer um sedutor nato, tinha sorte, garantia ele, junto do “sexo fraco”. Mas também fazia facilmente amigos de ocasião. Tinha olho azul e era alourado. Tinha uma bela cabeleira. Enfim, era bem “apessoado” e caprichava no vestir.  Mas eu não lhe dava grande trela, não tinha pachorra para lhe ouvir as aventuras amorosas desde o tempo do colégio dos jesuítas… Secretamente, invejava-lhe a sorte de ter tido, nessas matérias,  melhores professores do que os meus…

Ao Bacelar não era  totalmente estranha a “região saloia” (, como ele abusivamente dizia), já que tinha passado dois ou três meses, mais a norte, nas Caldas da Rainha como 1º cabo miliciano, monitor no Curso de Sargentos Milicianos, antes de ser mobilizado para Angola. Expliquei-lhe que a “região saloia” ia das muralhas de Lisboa até Mafra… O Dom Afonso Henriques poupara os mouros, não os passando pelo fio de espada, como era norma, bárbara,  em tempos de cruzadas,  mas mandara-os cultivar alfaces fora das muralhas. Enfim, esta era a historieta que me contara um dos meus instrutores, na “Máfrica", se calhar ele próprio ainda com sangue mouro  nas veias...

Quis o destino que fôssemos os dois parar àquele antro de públicas virtudes e vícios privados, desde o tempo do senhor Dom João V… O "cubículo" da repartição de finanças era, só por si, um casarão, onde apesar do eco, não se falava alto. O chefe impunha o seu tom de voz, mavioso, de ilhéu terceirense, se bem me lembro. Acho que ele era da terra do Vitorino Nemésio, Praia da Vitória. Raramente aparecia em público. Passava a maior parte do dia, no seu gabinete, a preparar-se para o “próximo concurso” que nunca mais chegava...

Ah!, também não gostava de ver o Bacelar a puxar do o “cartão da PIDE/DGS”, como eu lhe chamava com sarcasmo,  quando  íamos ao “Ouriço” ou atéao bar do hotel!... Ele tinha cá uma lata!... Eu, pelo contrário, recusava-me a fazer uso do cartão da DGCI. Penso que nunca puxei por ele para me impor a alguém ou entrar num estabelecimento da vida nortuna, que de resto só frequentava para fazer companhia ao Bacelar.

 

5 A. Na divisão de serviço, o Ravasco teve mais sorte do que eu: 
atribuíram-lhe o imposto de compensação e transações…. 
Fazia o mapa das empresas rodoviárias, 
de transportes de passageiros e mercadorias, 
a Mafrense, a Isidoro Duarte e outras…

 

A mim, pelo contrário, deram-me o trabalho de um reles escriturário: expediente, correio, diário do Governo, atendimento ao público, e pouco mais… Foi o sacana do adjunto que distribuiu o serviço, em nome do chefe “que nunca podia ser incomodado, a não ser por força maior”…

Desde o início que o gajo não simpatizou comigo, o adjunto, por alegadamente eu ser “filho de Ansião”. O homem devia ter tido algum conflito com o diretor-geral, no passado. E quem pagava, por tabela, eram os “afilhados”… 

Inconsolável, fui pôr o caso ao chefe da repartição e falei-lhe do meu tio-avô, diretor de finanças…. Enfim, para não se chatear com o seu adjunto, alargou a minha área de competência com a contribuição predial que era “muito trabalhosa”, e retirou-me o correio e o expediente, que era coisa de escriturário…

Em jeito de protesto, eu no dia seguinte pedi logo transferência para Viana do Castelo ou Braga, conforme as vagas…

O “serviço melhor” já tinha dono, três ou quatro funcionários do “grupinho do adjunto” controlavam as “principais áreas de poder”: contencioso, fiscalização externa, imposto sucessório, imposto profissional, imposto complementar, contribuição industrial… Eram todos da terra, quer dizer “saloios”, com exceção de um de fora, mas já com raízes familiares em Mafra.

Acabei por descobrir, por portas e travessas, que este era também o “grupinho das meninas”: uma vez por mês iam a Lisboa, a uma casa de passe clandestina, controlada por uma “madama” com muito boas relações com a hierarquia da DGCI… Creio que era à sexta-feira da última semana do mês… Percebia-se pelas conversinhas, entre eles, na segunda-feira de manhã, que a noitada tinha sido em grande, acabando numa conhecida marisqueira das Portas de Santo Antão…

Contei tudo isto ao Ravasco, que ficou indignado e mostrou-se solidário comigo. Afinal, quem paga tudo isso ?, interpelava-me ele.  A minha consideração pelo meu colega alenyejano aumentou mais um ponto ou dois. Mas não alterou nada da minha situação ali dentro. Sentia-me deslocado, infeliz, com saudades da minha gente e da minha terra.


6. Não posso jurar que havia aqui corrupção. 
 Corrupção ?!... Não se falava disso na época. 
Discutia-se o regime como um todo. 
E esperava-se, à boa maneira sebastiânica, 
que acabasse por cair um dia. De podre.

 

Eu tinha chegado há pouco e tencionava não demorar muito por lá, pela repartição de finanças de Mafra Dois. Mas não punha as mãos no fogo pelo adjunto e o seu “grupinho das meninas”, como lhe chamava o Bacelar. Quiseram ser simpáticos connosco e, no feriado do 1º de Dezembro, que calhava a um sábado, convidaram-nos para beber um copo, a seguir ao jantar e ver um "filme pornográfico sueco" (, na realidade, dinamarquês), em 8 mm, na quinta de uns amigalhaços, ali para os lados do Gradil.

O Bacelar levou o carro dele, eu fui num outro, não queria ser votado ao ostracismo logo nos primeiros dias. Percebia-se que cultivavam boas relações com alguns dos maiores contribuintes. Era costume, por exemplo, um deles, muito conhecido, ligado à indústria de alimentação e bebidas, oferecer, pelo Natal, uma lauta ceia aos funcionário da repartição de finanças. Era uma tradição já arreigada, não só nas contribuições e impostos,  como no restante funcionalismo da província, incluindo os tribunais. Noutras ocasiões  ia-se a uma marisqueira de Ribamar da Ericeira,

Nesse final de ano de 1972, eu e o Bacelar também fomos convidados. Parecia mal não alinhar, logo no nosso “primeiro ano”. Sabíamos que estávamos “à prova”, debaixo de escrutínio… O chefe, esse,  delegou no adjunto. Parecia-nos um homem decente, mas fraco em termos de autoridade… Chamavam-lhe o “açoriano”…

Nessa “ceia de Natal do fisco”, entre “charutos cubanos” e “conhaques franceses”, ouvi a história do fundador da empresa que, no tempo da guerra de Espanha, aprendera a fazer contrabando de “essência de laranja”, e acabara por abrir uma fabriqueta de “pirolitos”…O segredo do negócio ? A água, o acesso a água, “muita e de boa qualidade”… Percebi depois que, com a “guerra de África”, as exportações haviam aumentado em flecha…Era um dos fornecedores da Intendência Militar. Lembro-me de ter visto a marca, na Guiné… Mas eu não bebia refrigerantes, com carradas de acúcar, que só faziam aumentar a sede…

A minha santa ingenuidade, a minha crença, parva, na honestidade e bondade intrínsecas do ser humano, sofreu mais um duro golpe. Eu tinha idade para ficar de pé atrás contra certa gente. Afinal, aquilo de administração pública tinha pouco. O tal adjunto era apenas a ponta do iceberg. Entristecia-me ter colegas daqueles a trabalhar a meu lado. Infelizmente tinha que lhes sorrir e apertar a mão direita enquanto, com a mão esquerda, eles enfiavam no bolso o “santo antoninho”, a nota de vinte paus, que o pobre do contribuinte saloio lhes deixava debaixo da capa do “processo"... O  "processo”, o terror de qualquer pequeno contribuinte !!!...

Mas, adiante. O acontecimento mais marcante que vivi em Mafra Dois, no tempo em que lá estive, enquanto trabalhador dos impostos, foi o 25 de Abril de 1974. Não por nenhum acontecimento local, digno de especial nota: não vi movimentação de tropas, alvoroço de tropas,  viaturas,  chaimites, tiros para o ar, nada disso… Tudo se decidiu alguns quilómetros mais a sul, na capital. Mas antes tenho de recordar aqui uma cena, das minhas memórias de Mafra Dois,  que nunca mais esquecerei, enquanto pelo menos não apanhar o Alzheimer.

(Continua)



© Luís Graça (2021)

Nota do autor: Neste conto, os nomes são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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