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segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24825: Casos: a verdade sobre...(35): Op Revistar, programada no ar condicionado de Bissau, uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaura, e que acabou por abortar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68 / José Brás, ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) e 7º Pel Art / BAC > O obús 8.8. Foto do álbum do nosso saudoso cap SGE ref  José Neto (1929-2007), na altura o 2º sargento da CART 1613, que chefiava a secretaria.

Foto: © José Neto (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (entrou para a Tabanca Grande em 8/12/2013; tem 135 referências no nosso blogue; por razões de saúde não tem prestado maior colaboração ao blogue nos últimos tempos; alegramo-nos com
o seu reaparecimento).

Data - 4/11/2023 04:39  
Assunto - Operação Revistar  
Caros Camaradas, Luís e Carlos

Capa do livro
de José Brás, "Lugares de passagem",
Lisboa, Chiado, Editora, 2011


Dia 5 deste mês faz precisamente 55 anos que regressou da Guiné a CART 1659. Desembarcámos só na manhã de 6, passando mais de 12 horas ao largo de Lisboa.

Cheguei com muitas dúvidas, tendo a sorte de desvendar todas,  com uma falha: a "Operação Revistar”.

No Blogue não surgiu ninguém que tivesse conhecimento da mesma. Passei horas no Arquivo Histórico-Militar, esclarecendo muitas dúvidas. Sabia que só era possível levar-se a efeito tal Operação, com objectivos tão ambiciosos, direi inclusive estúpidos. Pretendiam esses senhores de gabinete acabar com a guerra, inclusive matar os líderes ('Nino' Vieira) e apanharem toda a documentação confidencial.

Chegara de licença e em Bissau não se falava de outro assunto. (*)

Um Abraço a todos os Camaradas
Mário Vitorino Gaspar

PS - Podem publicar no Blogue. Continuo bastante doente, mas acrescentar a informação de José Brás à minha, a tudo que assisti, deixou-me melhor. Até parece que tenho menos dores.

2. Operação Revistar (não consta do livro da CECA, 2015, relativo à atividade operacional no CTIG, de 1967 a 1970)(**)



José Brás, (ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, 
Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),

Do livro de José Brás “Lugares de Passagem” (texto que me enviou, a mim, Mário Gaspar, o amigo José Brás; conheço-o desde o início dos anos 60; estudei no Colégio Sousa Martins, em Vila Franca de Xira): 

(..) Mas nada disto de que venho a falar-vos tem importância e a importância dou-lha eu no
 engano de vos fazer compreender melhor a encomenda do Santinhos no episódio burlesco que desde o início vos quero relatar. 

Comecemos pelo princípio! Em certo tempo, que como vocês sabem não é o mesmo que em tempo certo… em certo mau tempo, direi, foi programada no ar condicionado de Bissau uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaur (...). Salancaur, imaginem…  

Tal operação envolvia várias Companhias que passaram a noite deitadas pelo chão do acanhado quartel de Medjo e incluía bombardeamentos prévios nos dias precedentes pela aviação, Fiats, T6’s (...), e DO-27 no ar a horas que deveriam ser as do assalto, e bojardas dos tais obuses do Santos a partir de Medjo, tudo antes da planeada entrada da tropa apeada. 

As quatro peças de artilharia foram deslocadas dos seus espaldares para o exterior da paliçada, alinhadas lado a lado e apontadas em paralelo ao objetivo como dedos de deuses vingativos. A regulação do tiro seria feita, e foi, a partir do voo de um DO-27, Major de operações mais que duvidoso a mandar vir, tantos graus à esquerda, alongar o tiro mais cem metros…

Diz-se que o homem põe e Deus dispõe. Dizia Fernando Pessoa que Deus quer, o homem sonha e a obra nasce. Que Deus quisesse tal coisa, quer dizer, o assalto a Salancaur, é duvidoso, ainda que num mundo como este nem em deuses se possa confiar, e esta parte digo eu que tanta desgraça vi naquelas terras. O sonho, neste caso, o sonho seria do mastronço que ocupava a cadeira do poder de Bissau, ou de alguns dos seus bengalinhas querendo mostrar serviço, movendo pioneses coloridos no amplo mapa que ornamentava paredes nas competentes salas do QG (...) e do palácio do Governador. 

Pesadelo se deveria dizer, em vez de sonho, já que sonho é palavra mais adequada a gente que luta e morre por liberdade de sua terra e povos, e por justiça, o que ali, claramente, não era o caso, mas bem o seu contrário. Pesadelo, portanto, também querendo justificar-se a coisa torta e deformada, causadora de sofrimento e dores, talvez mortes a somar a mortes nos dois lados da contenda. 

A operação que deveria ser de um dia, naquela mata quase virgem, avançando nos poucos quilómetros à força de catana para evitar sinais de picada antiga, chegou à antecâmara do destino apenas na terceira madrugada. Sete quilómetros, a bem dizer, se medidos em linha reta, acho que era a leitura dos generais em Bissau. Fomes, sedes, exaustão, desidratação, medos, esfrangalharam corpos e convicções. As evacuações começaram em catadupa, umas de necessidade absolutamente comprovada e outras aproveitadas no ressalto, todas, vi eu, mais que justificadas no limite de cada um, nas caras torcidas de esgar, nos olhos febris. Na frente da tropa que se aprestava para o ataque, havia agora um enorme espaço de bolanha nua e rasa que era necessário passar para chegar ao objetivo.

Ordem para iniciar procedimentos de tiro de obus em Mejdo. Tudo a postos, cada peça com seu apontador e municiador. Em PRC-10 (...) ouvia eu as ordens do DO ao Santinhos, e em wallkie talk, a comunicação entre o Santinhos e o apontador de cada obus, conversa esta, em especial, para a qual peço a vossa inesgotável imaginação, recriando a manhã naquele lugar, quente e húmida, mais abafada ainda pelo stress da espera de meia dúzia de soldados que haviam ficado a garantir a segurança das peças, encarrapitados na bancada da paliçada; o DO esvoaçando e dando indicações, não tão longe dali que não se pudesse enxergar-lhe a evolução a olho nu; a voz do Santinhos nas perguntas ao avião, nas ordens às peças, pastosa, embrulhada na língua, augurando tensões.

− Primeira bateria?

− Pronto,  meu Alferes!

− Segunda bateria?

− Pronto.  meu Alferes!

− Terceira bateria?

− Pronto. meu Alferes!

− Quarta bateria?

− Quarta bateria?!

− Quarta bateria?!!!

− Foooooda-se!

BUUUUUUUUUUUUUUUUUM!!! Quatro buuuns num só, ecoaram inesperados nos meus ouvidos e no susto dos ocupantes do DO que voava em frente, não muito acima da linha de tiro!

− Tirem-me daqui!!!  − esganiçou o Alferes.  − Tirem-me daquiiiii!

Um médico de fora que por ali ficara para a possibilidade de ter de servir na operação, diagnosticou sintomatologia histeriforme e solicitou evacuação para o Alferes. O helicóptero que o veio buscar,  carregou já para Medjo o seu substituto, outro Alferes, açoriano, diferente do Santinhos no talhe físico e na atitude. Para aquele dia nem valia a pena a pressa da substituição. 

Os obuses não teriam mais serventia naquela operação acabada por ordem superior, como superior havia sido a do seu início. Do DO para a tropa na orla da mata a ordem foi de recuar porque do outro lado daquele largo espaço aberto, eram muitos os morteiros, canhões sem recuo, possíveis foguetões terra-terra dissimulados e outros materiais eficazes na função de matar, prontos para bater a bolanha nua e rasa.

Não havia tropas helitransportadas. E que houvesse! A morte de dezenas estaria assim mais que certa, ainda por cima, para nada, segundo concluíram os chefes. Sensatamente, desta vez.

Não morreu ninguém, portanto, do nosso lado, pelo menos.

Só fomes.

Só sedes.

Só medos.

Só pragas.

Só raivas!

E do Santinhos, Alferes e civil, engenheiro brilhante, segundo se dizia, e contestatário, nunca mais ouvi fosse o que fosse, por palavras escritas, ou ditas… ou (des)ditas.


In "Lugares de Passagem" (com a devida vénia...)

Nota do editor: nesta altura devia estar em Mejo o 6º Pel Art / BCAC (8,8 cm). OU o 7º, que depois foi para Guileje.
 



Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas,
CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)
  

3. Sobre a  “Operação Revistar” ver o texto que publiquei no blogue, Poste P14302 (***).

(...) A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação. (...)

(...) Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT. Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço. (,,,)


4. E agora acrescento eu, para se percebeu o meu reencontro como Zé Brás:

No início dos anos 60 um grupo de 9 estudantes do Externato Sousa Martins fundaram o Jornal “Eco Académico”, entre eles estava eu. A Direcção do Externato pensou ser um Jornal tipo “quadro de honra”. Através do Padre, Professor de Moral, conseguiu-se que fosse composto e impresso na Tipografia do Centro de Apoio Social Infantil (CASI).

Conseguimos assinantes e publicidade, após cada um de nós entrar, penso com 50$00.

Começámos por inserir artigos que foram contestados pelo Externato e o CASI deixou de nos apoiar. Falou-se em desistirmos mas continuámos. Foi complicado visto termos de pagar a uma Tipografia.

Entretanto já tínhamos sido convidados para colaborar na Criação da Secção Cultural do União Desportivo Vilafranquense (UDV).

Quem nos coordena é o escritor Alves Redol em reuniões semanais (?).

Já deixara de estudar mas continuei a frequentar esses encontros. Nasci em Sintra e desde os meus 3 anos que vivia em Alhandra – rival nº 1 do União. Os meus Amigos chamaram-me traidor por colaborar com o clube de Vila Franca. Trabalhava mas continuei a frequentar o Restaurante Maioral, local onde anteriormente nos juntávamos diariamente e que continuava por ser o “local de encontro”. Vítor Manuel Caetano Dias, meu primo, é um dos obreiros.

A Secção Cultural nasce, já com o amigo José Brás que a compõe. Outras figuras surgem. O Cineclube do UDV faz história.

A 3 de Maio de 1965 sou obrigado a iniciar o Serviço Militar no RI 5, nas Caldas da Rainha o Curso de Sargentos Milicianos. José Brás encontra-se na mesma unidade. Finda a Recruta vou para Tavira em Agosto, e o Amigo José Brás também.

O meu Comandante de Pelotão é o Alferes de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete.

Devido a ter sido hospitalizado no Hospital Militar de Évora, perco a Especialidade – Armas Pesadas – e vou de Licença Registada para casa. Em Janeiro mandam-me apresentar na Escola Prática de Artilharia (EPA), em Vendas Novas e termino a Especialidade e sou promovido após ter sido forçado contra vontade a prestar Provas para os Comandos – recusei, tive a sorte de me safar – e após Licença sou colocado no RI 14, Viseu. Monitor em várias Recrutas, com sucesso. Imagine-se. 

Quando penso estar prestes em terminar o Serviço Militar vou, contra vontade, Prestar Provas para os Rangeres. Após concluir todas as provas, foram 9 dias, e uma caminhada de 40 quilómetros, regresso a Viseu, onde integro a Equipa de Natação no Campeonato da Região Militar. Sou o único elemento da equipa a apurar-se para os Campeonatos das Regiões Militares Nacionais. Volto a ter esperança, mas sou destacado para o RAC, em Oeiras. Dai sigo para a Escola Prática de Engenharia, Tancos para frequentar o Curso de Minas e Armadilhas. Acontecem aqui umas histórias curiosas, mas noto ter sido deveras enganado. Preferível ter ido para os Comandos ou Rangeres. Passei o Curso com 14,8 (?), recebi um diploma e fui mobilizado para a Guiné.

Chego a Bissau em Janeiro de 1967 – não desembarcamos na cidade – e seguimos de LDM para o desconhecido. Defronte de Cacine dizem irmos para Gadamael Porto. Visto um Pelotão e uma Secção ter de ir para o Destacamento de Ganturé, toca-me esse destino.

Vários Furriéis Milicianos, Amigos e conhecidos que estavam já destacados na zona falam-me que o meu amigo – já Capitão Cadete – se encontrava em Mejo, entre eles o Amigo José Brás. Sempre que era destacado para Operações nesse aquartelamento, tentava que ele não me visse. Em Dezembro de 1967 dou de caras com o Capitão na falada “Operação Revistar”.

Devido a um Rebentamento, no dia 4 de Julho, quando morrem (dizem) 10 nativos e mais de 20 feridos graves,  vou para Gadamael. Entretanto já tenho o doutoramento de Minas e Armadilhas.

Não li o livro de José Brásm  “Lugares de Passagem”, só por mero acaso há poucos dias, tomei conhecimento. É notório que a Operação é a mesma – uma mancha tremenda na História que se recusam em falar – História da Guerra Colonial.


5. Lisboa > 
Hospital Júlio de Matos >  25 de Setembro de 1998 > Colóquio "Amor em Tempo de Guerra"

Volto a encontrar-me com José Brás, Aqui fica uma resumo,

O Amor em Tempo de Guerra

 por Mário Vitorino Gaspar

No dia 25 de Setembro de 1998 houve um Colóquio com o tema “Amor em Tempo de Guerra – A Guerra Colonial Portuguesa”, no Anfiteatro do Hospital Júlio de Matos. Para além do Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque e da Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, esteve presente um convidado surpresa, José Brás, ex-combatente que publicou o livro “Vindimas do Capim”, Prémio Revelação do Ano de 1986,  que começou por afirmar: 

– Na Guerra Colonial não existiram, quanto sei, orgias, como as vistas nos filmes americanos da Guerra do Vietname. (…). Que soldados portugueses eram estes? Alguns fizeram-se homens com as prostitutas das feiras anuais da província. E vão para a guerra. Guiné, onde cumpri o serviço militar, é um território pequeno… mas a solidão era maior. O soldado, na maioria carente de bens materiais, e muitas vezes de sexo, vai para a guerra e sente-se mais livre em combate que no quartel. 

Continua: 
– A masturbação, essa, sim, existia, até pela descoberta do corpo.

O Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque, que cumpriu o serviço militar como Médico em Moçambique, referiu: 
– A sexualidade em tempo de guerra tem a ver com a experiência havida em tempo de paz. Quando parti para Moçambique chorei … limpei as lágrimas e lancei o lenço ao mar… Chegado à zona onde se instalou a minha Companhia, as prostitutas quando souberam que estavam nas imediações novos militares instalados, surgiram logo. Existia uma mulher branca, por cada dez europeus. Os perigos das relações sexuais com as nativas eram as doenças venéreas. Não havia preservativo, mas bisnagas de sulfamida. Os soldados afirmavam que aquilo tirava a potência. Sucedeu que um número de militares analfabetos, e não só, acabaram por ter experiências sexuais com animais.

Falou-se da homossexualidade existente na Guerra Colonial.

A Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, disse: 

– Era natural que a namorada ou noiva fosse virgem. Casos houve que antes da partida para a guerra deixava de o ser. Decerto que algum pacto foi feito por mulheres de ex-combatentes, visto esses casamentos durarem ainda hoje.

Mário Vitorino Gaspar, fez notar:

– Importante referir, pela minha experiência, que o amor em tempo de guerra, estava aqui e não no sul da Guiné em 1967/1968. Lá existia guerra e não amor. Em Ganturé, destacamento de Gadamael Porto, o Régulo da zona, o beafada Abibo Injasso, Tenente de 2ª Linha, e elo de ligação entre o Exército Português e os “informadores” – que jogavam com um “pau de dois bicos” – e pago com uma viagem anual a Meca pelo Estado Português, proibia que as mulheres, e principalmente as bajudas (raparigas novas e em princípio virgens) de terem relações sexuais com os militares, sendo castigadas se o fizessem. Quando confrontadas com a tropa para terem relações sexuais, as mulheres ou bajudas recusavam com uma frase: - “Mim cá nega!”

Amor era o amor de pais, família, da noiva ou namorada.

Mas até se fazia sexo por correio – por carta ou aerograma – sexo por escrita, com noiva, namorada ou madrinha de guerra, por vezes até havia masturbação! Os militares na zona onde me encontrava só podiam ter relações sexuais, quando evacuados por ferimentos ou doença para Bissau, onde existiam prostitutas

Muitas vezes ficava imensamente triste por receber tanta correspondência e soldados nem um simples aerograma terem. Estes quando me falavam choravam e queixavam-se que as namoradas andavam com outros, por vezes até familiares, principalmente primos.

O Dr. Santinho Martins completou: 
– Necessário fazermos a distinção entre oficiais, sargentos e praças. É que estes últimos não tinham dinheiro. As prostitutas eram mulheres na decadência, já com uma certa idade.

Foi levantada a questão:
– Até que ponto o amor pode ser uma boa terapia para o Ex-Combatente que sofre de Perturbações do Stress Pós Traumático de Guerra?

A Doutora Fani Lopes, ao terminar afirmou: 
– Um ou outro regressa da guerra e posteriormente isola-se de tudo e de todos. O isolamento consigo próprio é uma situação de risco. A vida não é aquilo que queremos, mas aquilo que ela é!

Discutiu-se o “Amor em Tempo de Guerra – o Sexo em Tempo de Guerra”

NOTA: Este texto foi publicado no Jornal APOIAR, fui um dos seus fundadores e 1º Director.
 ____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...

(**) Fonte: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa (2015).

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Ficarei imensamente grato a quem me puder ajudar com informações sobre a CCAÇ 1591 e Mejo. Quando li "Vindimas no Capim", escrito pelo nosso confrade José Brás, encontrei algumas referências a Mejo, mas fiquei-me por aqui. É uma grande surpresas, esta literatura memorial do Coronel Luís Cadete, chegou à Guiné ainda tenente, aqui foi promovida a capitão, vê-se à vista desarmada que aquela terra vermelha se tornou inesquecível, como aliás ele escreve na introdução:
"Mejo foi, no fim de contas, o nosso primeiro amor na Guiné e ainda hoje temos saudades dele, pois puxou por tudo quanto tínhamos de melhor para ultrapassarmos as dificuldades inerentes a uma situação de campanha."
É um livro que não merece ficar confinado a uma pequena edição, não é justo. Há por vezes ressaibos, ajusta contas com a sua própria instituição militar, maldiz a incompetência, mas até apetece recordar a frase icónica de Álvaro Guerra de que aquela terra foi um permanente avolumar de dores e inquietações, mas foi ali que se selou a nossa têmpera pelos anos vindouros.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (1)

Mário Beja Santos

Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses. Nunca li uma introdução a um ambiente tão poderosa e tão viva como Luís Cadete faz de Mejo, a ninguém pode deixar indiferente prosa tão precisa, uma demonstração de um olhar tão fecundo, lembra um geógrafo, um antropólogo, um etnólogo:
“A tabanca que dava pelo nome de Mejo situava-se, sensivelmente, a 9 quilómetros de Guileje, na estrada para Bedanda, na bifurcação para Salancaur Fula, colina com cerca de 110 metros de altitude com o cume em forma de tampo de mesa ligeiramente inclinado para Nascente, com o ponto mais elevado a Poente.
Esta colina, restos de formação rochosa de maior vulto dissolvida pelas chuvas diluvianas e ácidas do Pluvial, há vários milhões de anos, domina vasta extensão do rio Cumbijã que lhe corre a Norte. Com as encostas cobertas de grandes poilões e mato rasteiro, é um ponto de referência importante num território predominantemente plano. A vastíssima bolanha do Cumbijã dava arroz em quantidade que, antes da guerra, quer a Casa Gouveia, representante da CUF no território, quer a Sociedade Comercial Ultramarina, vinham comprar, na época própria, ao cais existente na margem direita, isto é, fronteiro a Salancaur e do outro lado do rio.”


Manifesta o autor a preocupação de que o leitor se insira naquele espaço e até naquele tempo, é um observador cuidado, quer manifestamente que o leitor ponhas os pés naquela terra de combate e em voo picado estamos em Mejo:
“Do ponto de vista militar, Mejo era um retângulo de 100 por 110 metros de lado que dependia da companhia de Guileje que aqui tinha um pelotão para garantir um mínimo de proteção à população regressada. A CCAÇ 1591 foi a primeira a estanciar por lá por 8 meses e meio. Sem instalações para alojar o efetivo da companhia mais os do pelotão destacado de Guileje, os primeiros meses foram vividos em tendas cónicas carcomidas pelo sol e pelas chuvas da Guiné. Os buracos eram tapados por rolhões de capim enquanto se trabalhava no fabrico artesanal de tijolos para a construção de casernas. Quando a CCAÇ 1591 arribou a Mejo, cuja má fama corria infrene por todos os cantos da Guiné, só se via capim verde e alto como um homem de pé, não só no exterior, mas também no interior da posição. Embora pareça inconcebível, aqui andava-se por trilhos ladeados de capim!”.

Segue-se a descrição da população civil e do armamento rudimentar da unidade dependente do comando de batalhão de Buba, ficamos a saber que a população de Mejo era da subetnia Futa-fula, mas não faltavam Fulas-forros.
Não se compadece, tem comprovadamente a memória bem acerada, com as jigajogas do decisor militar e muito menos com as manhosices burocráticas. Qual a importância de Mejo? Fazia parte de um plano de operações que tinha como objetivo principal a ocupação da colina de Salancaur, plano que se iniciara alguns meses antes da chegada de Schultz, concebido pelo comandante militar, pois a primeira medida de Schultz foi cancelar toda a atividade operacional determinada por este comandante. “A ordem alcançou a tropa quando esta já marchava rumo a Salancaur com o Pelotão de Reconhecimento Fox de Guileje a abrir a progressão, nunca mais se pensando em acabar algo que fora bem pensado.”

Mesmo a descrição da chegada da CCAÇ 1591 tem toques de originalidade, houve para ali umas trocas a baldrocas no quartel-general, estavam à espera de outra unidade, o Tenente Luís Cadete é mal recebido por aquela burocracia que tinha a inteligência de uma porta ondulada, lá vão para Brá, metidos numa caverna devoluta sem camas, andaram a fazer carreira de tiro em Prábis e depois metidos na LDG Montante, rumo a Fulacunda. Vão agora começar histórias galhardas, pícaras, de entremeio com lembranças afetuosas, algumas delas, garanto a pés juntos, merecia ser reproduzidas aqui por inteiro. Convém que o leitor não se esqueça que estamos em 1966, o corredor de Guileje ainda não assumira a dimensão infernal com que hoje é por muitos lembrado.

No pórtico das lembranças temos a paixão de Mariama, a bajuda mais bela da tabanca, Luís Cadete burila a quintessência da beleza:
“O corpo era escultural, de fazer inveja à estatuária da Antiguidade Clássica. Tinha um par de pernas deslumbrante, bem torneadas e esguias e a mama alta, firme, delicadamente cheia, como eu nunca vira nem voltei a ver outra e que, conforme à tradição, trazia em liberdade franca; a pele escura de tom avermelhado era acetinada, quente e glabra sem imperfeições. Quando ela passava no seu passo elástico e elegante a caminho da Fonte das Mocinhas – nome pelo qual era conhecida a nascente permanente situada a Sul da estrada para Buba e à entrada da tabanca –, sorrindo de olhos baixos aos piropos do pessoal, ninguém havia na Companhia que se não virasse para a ver passar.”

Mariama apaixonou-se pelo soldado D, rapaz sossegado, disciplinado e respeitador, nado e criado lá para as bandas da Lousã. E era correspondida. E não falta uma pitada forte de romantismo para adubar o romance:
“A Mariama e o D namoravam ao arame farpado e era um regalo vê-los conversando horas a fio sem que se descortinasse o que tanto tinham para segredar um ao outro. Dos olhos da Mariama, a ternura daqueles momentos via-se escorrer ao acariciar o rosto do D. E eu, romântico contumaz, nunca fui capaz de proibir aquelas manifestações de um amor impossível, dadas as circunstâncias.
E, durante cerca de quatro meses, aquele amor entre os dois encheu de ternura quantos viam o D e a Mariama no seu enlevo casto e puro ao arame farpado.”

Vieram os comentários libidinosos, nosso capitão não estava ali para os ajustes, lembrou a Mariama aquela evidência de que qualquer dia o D se ia embora sem consequências, era melhor que ela se protegesse para o futuro, e o final deste episódio é mesmo inesquecível:
“Olhou-me com um certo ar de desafio como quem sabe muito bem o que fazer e enquanto uma lágrima teimosa lhe corria pela cara abaixo respondeu-me, fitando-me nos olhos com o seu quê de desafio:
- Hora di D bai, nó na dita i n’bai faziu sabi toc i D cá esquíci Mariama (quando o D se for embora, vamo-nos deitar e fá-lo-emos e o D nunca esquecerá a Mariama).
Foi assim?
Só eles o saberão.”


Prepare-se o leitor para muito mais.

Aquartelamento de Mejo, imagem de Alberto Pires, com a devida vénia
Outra imagem de Mejo, também de Alberto Pires

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23909: Notas de leitura (1535): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21702: (De)Caras (167): o ten inf Esteves Pinto (1934-2020), que foi instrutor de alguns de nós no CISMI, em Tavira, e que morreu no passado dia 18, com o posto de cor inf ref



Tavira > CISMI > Parada > Outubro de 1968 > Atiradores de infantaria > 6º Pelotão, 3ª Companhia  > Da esquerda para a direita, de pé: Eduardo Estrela (, futuro fur mil. CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71), Fonseca, Pereira, João, Torres, Chichorro (já falecido)  e Joaquim Fernandes (, futuro fur mil, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Na primeira fila, tambémda esquerda para a direita: Santos, Chora, Salas, Paulo , Loureiro e Saramago.

Foto (e legenda): © Eduardo Francisco Estrela (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Tavira > Quartel da Atalaia > Antigo CISMI, hoje RI 1 > 1 de fevereiro de 2014 > Belo exemplar da nossa arquitetura militar, fica situado na Rua Isidoro Pais. Imóvel classificado como de interesse público, segundo o excelente síio da Câmara Municipald e Tavira

 O Quartel da Atalaia, um dos mais antigos do país, foi começado a construir em 1795, sob o reinado de D. Maria I. Mas a sja construção foi entretanto interrompia e só retomada em 1856 devido á conjuntura nacional desfavorável (ida da corte para o Brasil, invasões napoleónicas, revolução liberal de 1820, guerra civuil de 1828-1834, etc.). Com a extinção das Ordens Religiosas, é entregue ao exército o antigo Convento de Nossa Senhora da Graça, que alguns de nós também conheceram. O Quartel da Atalaia, ainda por concluir, serviu ainda de hospital das vítimas de peste de cólera que se abateu sobre a cidade (e grande parte do país, a começar pela capital) em 1833, em plena guerra civil. Em boa verdade o edifício só ficará concluído  nos primeiros anos do século XX, sendo  então para lá transferida a guarnição de Tavira. Sofreu alguns alterações funcionais em 1950, 1954 e 1970.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Tavira > CISMI > Julho de 1968 >   A chegada ao quartel da Atalaia dos novos instruendos do 1º Ciclo do CSM, vindos de todo o país.  Fila do pessoal para receber fardamento, Foto do Fernando Hipólito, gentilmente cedida ao César Dias e ao nosso blogue.

Esta rapaziada de finais da década de 1960 já tem um outro "look", a começar pelo vestuário... Presume-se que as belas cabeleiras, à moda dos "Beatles", já tinham ficado ingloriamente no chão do barbearia lá da terra ou de Tavira... Muitos fotam tosquiados à máquina zero, suprema humilhação para um jovem da época!... Não, já não é a mesma malta que parte, de caqui amarelo e mauser, para defender as Índias & as Angolas, uns anos antes ... O velho Portugal onde tínhamos nascido,  estava a mudar, lenta mas inexoravelmente.  E a nossa geração já não estava disposta a suportar os mesmos sacrifícios dos seus pais.


Foto (e legenda).  © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: logue Luís Graça & Camaradas da Guiné]]

 


1. Através do nosso leitor e camarada cor inf ref Manuel Bernardo tivemos a triste notícia  do falecimento do cor inf António Rebordão Esteves Pinto, instrutor no CISMI, em Tavira, no tempo em que alguns de nós, membros da Tabanca Grande, lá fizemos a recruta e/ou a especialidade. (Estou-me a lembrar de camaradas como o César Dias, o António Levezinho, o Humberti Reis, o Eduardo Estrela, o Joaquim Fernanses, o José Fernando Almeida, o Manuel  Carvalho, o Carlos Silva, u próprio e tantos outros.)

O cor inf ref  Esteves Pinto faleceu no dia 18 do corrente mês. Nunca esteve no TO da Guiné. Mas queremos lembrá-lo aqui, na qualidade de nosso antigo instrutor e comandante de companhia no CISMI, Tavira. À família enlutada a Tabanca Grande apresenta as suas condolências. (****).

De acordo com o seu currículo militar, o cor inf Esteves Pinto:

(i) era natural do Fundão;

(ii)  estudante na Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa,  em 1957, foi  chamado a cumprir o Serviço Militar Obrigatório, tendo assentado praça em Mafra;

(iii) fez uma primeira comissão de serviço (1961/63), em Angola como o posto de alferes miliciano;

(iv) foi condecorado em 1963 com a Cruz de Guerra de 4ª classe, por atos de bravura em combate;

(v) de regresso à Metrópole, foi convidado a frequentar a Academia Militar,. tendo seguido a carreira militar:

(vi) tenente do quadro, foi  colocado, em 1965 (e até 1969), juntamente com o ten Fernando Robles, em Tavira, como instrutor do CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos;

(vii) foi mobilizado, de novo  desta vez para Timor, terra que ficou no seu coração, como comandante da CCAÇ 2682 (1970-1972);

(viii) terminou a sua carreira militar com o posto de coronel, não sem ter passado ainda por Angola, em 1975.

Uma nota biográfica mais detalhada está disponível no portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, 1954-1975.


2. Da notícia do falecimento do cor Esteves Pinto demos conhecimento de alguns camaradas que o conheceram, em Tavira, e que comentaram, em resposta ao meu mail de 26 do corrente:

(i) César Dias (ex-Fur Mil Sapador da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, Maio de 1969 / Março de 1971)

Luis, lembro-me do Esteves Pinto (Tenente), foi o nosso comandante da 2ª companhia, tentava moralizar as tropas, " O militar é a parte válida do povo", daí ter que ser forte, "não há fim de semana para ninguém",,, ,  isto na formatura de 6ª feira após o almoço.

Fiquei com boa impressão dele, embora os nossos caminhos não se tivessem cruzado mais
Presto-lhe homenagem.. Aos seus familiares e amigos manifesto o meu pesar.


(ii) Eduardo Estrela (ex-Fur Mil da CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71)

Morreu o (do nosso tempo no CISMI ) ten Esteves Pinto, que comandava no último trimestre de 1968 a 2ª  Companhia. O homem que, nas marchas finais de Dezembro de 68, perto do Cerro da Cabeça em Quelfes/Moncarapacho , perante o dilúvio que se abateu sobre a zona do acampamento dizia: " o rei manda marchar, não manda chover ".

Á família enlutada os meus pêsames. Que descanse em paz.


3. Algumas referência no nosso blogue ao nosso antigo instrutor ten Esteves Pinto e a outros instrutores do CISMI de Tavira (1965/69), militares que, de uma maneira ou de outra, nos marcaram, tal como nos marcou a passagem por Tavira, na recruta e/ou especialidade. 

Temos meia centena de referências ao CISMI  e sessenta a Tavira


(i) Eduardo Estrela [ fez recruta no CISMI,  e a instrução de especialidade de atirador de infantaria, integrado  no 3º Pelotão da 4ª Companhia, no 2º semestre de 1968; foi fur mil, CCAÇ 14, Cuntina, 1969/71]:

(...) O comandante da 3ª Companhia do CISMI, Tavira, era o cap Eduardo Fernandes, militar íntegro e respeitador.

O ten Madeira era o adjunto e era uma flor sem cheiro. Mau e sádico. Uma vez, levou durante a noite a  
companhia para as salinas (, o capitão estava ausente). Dei-lhe a volta e vim de lá com trampa só até aos joelhos. 

Já tive o privilégio de lhe dizer isso pessoalmente num almoço no CISMI. O homem agora é coronel reformado e mora, como sempre morou, em Castro Marim. (...) (*)

(ii) César Dias:

(...) Concordo com os adjectivos de classificação atribuídos quer ao Capitão Fernandes quer ao seu adjunto nesse terceiro turno de 68, e no caso do Tenente Madeira os adjectivos poderiam ir mais além. 

Também integrei esse grupo nessa noite das salinas,  aproveitando a ausência do Comandante foi uma diversão para ele, já passaram quase 52 anos mas são coisas que não esquecem, apesar de tudo o que se passou na Guiné. 

Já agora digo que era do 7º pelotão do Aspirante Coelho, outro homem integro. (...) (*)

(iii) Eduardo Estrela:

(...) Acabo de ver o comentário do César Dias no blogue, a propósito do agora coronel Madeira e a sua referência ao Aspirante Coelho. O Asp Coelho era realmente um homem íntegro e respeitador. Lembro-me bem dele e da sua já visível falta de cabelo á época. Abraço fraterno a todos. (...) (*)

(iv) Manuel Carvalho (ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf, CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70):

(...) Também andei por Tavira no verão de 67, 3º turno,  Armas Pesadas.

Tenho algumas memórias do dia em que fizemos fogo para a ilha de Tavira a partir da costa. O comandante de companhoa era o Cap Madeira,  natural de Cabo Verde,  e de Pelotão era o Alf Chumbinho,  exigente mas que nos tratava com respeito,  por 'senhor instruendo'. 

Quando íamos iniciar o fogo de canhão sem recuo 10,6 vimos que estavam na zona dois barcos pequenos com um pescador cada. o Chumbinho disse que resolvia o problema com uma canhoada e resolveu,  embora um oficial superior que lá estava tivesse dito:  não me arranje problemas".

Ainda hoje me rio com a cena dos dois homens a remar cada um para seu lado e nem a recolha do material fizeram. Na ilha havia um silvado que foi incendiado com uma granada de fósforo e depois apagado com uma normal que atirou areia para cima do lume. Alguém pôs um burnal velho atrás do canhão para vermos o efeito e vimos que não é lugar para se estar.

Também fui dos que escolheram Armas Pesadas a pensar que ficaria mais resguardado mas tinha uma secção distribuída como qualquer Atirador e muitas vezes o Pelotão todo, é a vida. (...)

(v) Luís Graça:
 
 (...) Passei pelo RI 5 (Caldas da Rainha) (15 de Julho de 1968) e CISMI (Tavira) (29 de Setembro de 1968)... 

De quem me lembro, [em Tavira,] foi do Tenente Esteves [Pinto], que era o comandante da minha companhia [, a 2º,]  (estava a tirar a especialidade de Armas Pesadas de Infantaria), e do parvo de um alferes miliciano, lateiro, que nos dava instrução, no campo da feira (adorava, o sádico, pôr-nos a rebolar em cima da bosta de boi, enquanto ele passava o tempo a "namorar" à janela, uma das meninas ou coironas lá da terra....). Era algarvio, com sotaque, nunca pusera os pés em África... Deve ter apodrecido nos CISMI...

 (...) Do Esteves recordo-me apenas a sua lengalenga patrioteira e já gasta, lembrando-nos, a propósito e a despropósito, que "nós éramos a fina flor da nação"... Nós: emendávamos, entre dentes: "a fina flor do entulho"...

E, claro, não posso esquecer o inefável comandante do CISMI que me proibiu, a mim e mais um camarada, a inauguração de um exposição documental sobre a II Guerra Mundial (que estávamos a organizar, na caserna, e estava praticamente pronta...) com o argumento, mesquinho, safado, de que "para guerras já bastava a nossa" (...) 
 (**)

(vi) Mário Fitas (ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67);

(...) Fui para o CISMI em Agosto de 1963 e acabei o curso em Dezembro do mesmo ano. O curso de sargentos milicianos era composto de dois meses de Instrução Básica e mais dois de especialidade.

Não esperava ir parar ao Ultramar, nem tão pouco à Guiné. Pois...só que precisamente em Janeiro de 1964 os cursos passaram a seis meses. Aqui tens como o teu camarada Mário Fitas foi fornicado e ir parar com os costados na Guiné. Fomos os últimos a envergar a célebre farda colonial amarela.

(...) Por curiosidade, o comandante do meu pelotão em Tavira foi o então alferes, hoje coronel Cadete, que esteve em Mejo,  julgo que com o José Brás, já mais tarde em Moçambique o Cadete levou um tiro no ventre. Um dos instrutores de Lamego, o alferes hoje tenente general Rino, que comandou a CCAÇ. 764 em Cumbijã. O mundo é muito pequeno! (,,,)

Hoje em dia o meu amigo coronel Manuel Amaro Bernardo,  dos comandos e escritor, era o comandante da 1ª. Companhia de instrução em Tavira.(...) (**)


(vii) José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)

(...) Aqui, neste terraço de que se avista o quadriculado da antepara, vivi eu uma aventura imoderada.

Sexta-Feira, formutura para saída, o oficial de dia, Ajferes Cadete, olha-me na cara e diz que tenho as botas mal engraxadas. 

Formatura desfeita, volto à caserna e, ainda que sabendo da mentira, ponho as botas a brilhar. Nova formatura e lá vou eu de novo e o gajo olha-me para as botas e diz que tenho a barba mal aparada. De novo na caserna, espero por nova formatura para tentar ir passar o fim de semana na Ilha, de novo entro para a revista e o bicho diz-me: 'você é parvo, não viu já que não sai?'

 A minha vontade era mesmo partir-lhe o focinho e, nessa altura, sendo o que era, juro que o machucaria bem. Contive a raiva e puz-me a estudar a forma de sair dali, aparecendo-me o terraço como a única salvação. Disfarcei, andei por alí, subi as escadas, atrás de mim veio um camarada amedrontado mas desejoso de sair também. Passei para fora da antepara, desci para uma das janelas ainda agarrado acima, ajudei o camarada medroso a descer e saltámos correndo de imediato dali para fora. 

No Domingo, na praia, camaradas que sairam nesse dia,  avisaram-me que o Cadete dera pela minha falta e andara de bicicleta a ver os riscos da borracha das botas na parede, jurando que me esperaria na entrada na Segunda de manhã. De facto, apesar da apreensão, entrei sem problemas e ninguém me perguntou por onde tinha andado. Já antes, eu havia tido uma questão com o Cadete que não era o Comandante do meu Pelotão mas tinha metido o bico numa pega comigo. Acabei por reencontrá-lo quando a minha Companhia saiu de Aldeia Formosa e, por troca com a dele, fomos para Medjo onde ele estava antes. (...) (***)
__________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 30 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6496: Controvérsias (79): Os nossos instrutores militares não tinham experiência de contra-guerrilha (Manuel Joaquim)

 (***) 10 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12703: CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, 1968: Guia do Instruendo (documento, de 21 pp., inumeradas, recolhido por Fernando Hipólito e digitalizado por César Dias) (1) : Parte I (1-6 pp.)

Vd. também:


21 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12750: CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, 1968: Guia do Instruendo (documento, de 21 pp., inumeradas, recolhidi por Fernando Hipólito o digitalizado por César Dias) (3) : Parte III (pp. 13-16)

22 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12759: CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, 1968: Guia do Instruendo (documento, de 21 pp., inumeradas, recolhido por Fernando Hipólito e digitalizado por César Dias) (4) : Parte IV (pp. 16-18): Regime disciplinar; Pretensões, dispensas e licenças


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20638: Em busca de... (300): Alf mil Pereira Gomes, da CCAÇ 1622 (1966/68), que o meu pai conheceu conheceu em Aldeia Formosa (Luísa Lemos, filha do ex-fur mil Álvaro Lemos, São Miguel, RA Açores)

1. Mensagem de Luisa Lemos, nossa leitora, filha de um camarada nosso, açoriano

Data: quinta, 30/01/2020 à(s) 12:13
Assunto: Informações sobre o Alferes Miliciano Pereira Gomes, da Companhia de Caçadores 1622

Bom dia, caros senhores.

Eu sou filha de um antigo combatente que gostava de encontrar o contacto de um senhor que esteve com ele na Guiné. Ele procura o Sr. Alferes Miliciano Pereira Gomes, da Companhia de Caçadores 1622.

O meu pai é o Furriel Miliciano Álvaro Lemos, da ilha de São Miguel,  do arquipélago dos Açores. Ele esteve na Guiné na Aldeia Formosa e diz que era conhecido como o "homem psíco". Terminou a sua missão em 1969.

Se tiverem alguma informação,  por favor disponibilizam-me para dar ao meu pai.

O meu número de telemóvel é 966 227 200, no caso ser necessário.

Um bem haja pelas informações que têm na Internet pois através daí que cheguei aos vossos contactos.

Obrigada,
Luísa Lemos


2. Resposta dos editores:

Luísa, obrigado pela sua gentil mensagem. Um alfabravo (ABraço) para seu pai e nosso camarada, Álvaro Lemos.

Temos mais de 3 dezenas de referências à CCAÇ 1622:

(i) mobilizada pelo RI 2 (Abrantes);

(ii) partiu para a Guiné em 12/11/1966 e regressou a 18/8/1968;

(iii) esteve em Aldeia Formosa,  Mejo, Bolama, Jolmete, Teixeira Pinto e Bissau;

(iv) comandante: cap mil inf António Egídio Fernandes Loja;

(v) pertencia ao BART 1896, a par da CCAÇ 1623 e CCAÇ 1624.


O José Brás, que hoje faz anos [, foto atual, à direita, acima}, é um dos ilustres camaradas do seu pai:

(i) ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68;

(ii) nasceu em Alenquer em 1943;

(iii) trabalhou na TAP como tripulante comercial de 1972 a 1997;

(iv) foi sindicalista e autarca;

(v) mora em Montemor-o-Novo;

(vi) tem mais de 130 referências no nosso blogue;

 (vii)  é autor dos seguintes livros com memórias da guerra colonial na Guine: (a) “Vindimas no Capim”, 2.ª Edição, Lisboa, Publicações Europa América, 1987; (b)  "Lugares de Passagem", Chiado Books, Lisboa, 2010;

(vii) sobre a sua biografia oficiosa, ler aqui mais, na Chiado Books.

Outro notável escritor da CCAÇ 1622 é o António Loja,  madeirense, nascido no Funchal em 1934, ex-cap mil... Infelizmente não temos o contacto dele, não é formalmente membro da nossa Tabanca Grande.

Cara amiga Luísa, vamos  pô-la em contacto com o José Brás, de que o pai se deve lembrar (, era o furriel de transmissões da CCAÇ 1622),  esperando que ele lhe/nos dê notícias, boas, do ex-alf mil  Pereira Gomes, cujo paradeiro infelizmente desconhecemos.

Em boa verdade, só um ou dois camaradas,por companhia, é que aqui aparecem,  nos escrevem, mandam fotos, e vão dando notícias... ou então somos nós que descobrimos algo sobre eles (, é o caso por exemplo do antigo capitão António Loja).

Por outro lado, não temos nenhum crachá, guião ou brasão da CCAÇ 1622, apenas um distintivo do BART 1896, a que a CCAÇ 1622 pertencia, e que reproduzimos acima.

De qualquer modo, o nosso camarada Álvaro Lemos, representado aqui pela filha Luisa Lemos, tem lugar de pleno direito no nosso blogue, na nossa Tabanca Grande: basta que nos mande duas fotografias, uma atual e outra do tempo da Guiné. E que nos diga, em meia dúzia de linhas, quem foi, onde esteve durante a comissão de serviço na Guiné,  e o mais que se lhe oferecer dizer...

Esclareça, em todo o caso, o seguinte, com o seu pai: provavelmente o Álvaro Lemos era de rendição individual, para regressar só em 1969... A CCAÇ 1622 regressou a casa em 18/8/1968 e esteve em vários sítios, para além de Aldeia Formosa e Mejo (que eram no sul, na região de Tombali)...

Pergunte ao seu pai: a que subunidade pertenceu, de facto ? À CCAÇ 1622 (1966/68) ou outra, sediada, até 1969, em Aldeia Formosa?  O alf mil  Pereira Gomes, esse, já percebemos, pertencia à  Companhia de Caçadores 1622, do BART 1896 (Buba e Bissau, 1966/68), comandado pelo ten cor art Celestino da Cunha Rodrigues. (Temos cerca de duas dezenas de referências a este batalhão.)
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Nota do editor:

Últumo poste da série > 21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20264: Em busca de... (299): Camaradas do ex-alf mil António Vieira Abreu, recentemente falecido em Lisboa, e que pode ter pertencido ao BART 1904 (Bissau e Bambadinca, jan 67 / out 69) (João Crisóstomo, Nova Iorque; Manuel Carvalho Gondomar; José Martins, Odivelas)

Guiné 61/74 - P20637: Parabéns a você (1755): José Brás, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1622 (Guiné, 1966/68)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20630: Parabéns a você (1754): Constantino Neves, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2893 (Guiné, 1969/71)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20619: Notas de leitura (1261): Longas Horas do Tempo Africano, por Manuel Barão da Cunha; 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Manuel Barão da Cunha, um caso sério de reincidência na literatura da guerra colonial, um apóstolo da sua difusão organizando tertúlias entre Lisboa e Oeiras, desta vez convoca um elevado número de testemunhos que referenciam o homem e a sua obra.
Tendo começado a escrever ainda no Estado Novo, sobressaiu pelo cuidado posto na exaltação dos seus soldados, na satisfação expressa pela obra feita. Vê-se claramente que tem o seu coração repartido por Angola e pela Guiné. E é admirável este seu trabalho alquímico de mexer e remexer nas coisas do passado, o chamamento que faz de vivos e mortos que pertencem à sua história, participantes de toda a sua vida militar e até civil.
Deve-se a Manuel Barão da Cunha uma enorme gratidão coletiva por ser um porta-bandeira sem rival no dever de memória, trazendo-nos à presença toda e qualquer pessoa que calcorreou o império ou nele combateu. É uma dívida de peso, impagável. Mas ele também não se importa.

Um abraço do
Mário


Longas horas do tempo africano, por Manuel Barão da Cunha

Mário Beja Santos

Num estudo recente sobre as cartas de guerra, uma investigação de Joana Pontes intitulada Sinais de Vida, Tinta-da-China, 2019, esta conhecida investigadora e jornalista observa que a generalidade da correspondência estudada confina-se a um tempo demarcado, o da comissão militar, aos lugares que o combatente percorreu ou onde vive, não há um entendimento do fenómeno da guerra no seu todo, as motivações de fundo, acrescendo que com o passar dos anos, um pouco como o passar dos meses da comissão militar, é percetível o desalento e a vontade de regressar. Serve este preâmbulo para abrir caminho a uma outra consideração: toda a literatura da guerra colonial tem que ser ponderada no tempo em que se publicou, conheceu sucessivas etapas. Não é homogénea, o que se escreve sobre a Guiné tem particularidades, não se encontra na literatura de guerra angolana ou moçambicana. Qualquer relato remete-nos para a localização e a natureza do inimigo. Um exemplo mínimo: quem escreve sobre a Guiné inclui, inevitavelmente, rios e rias, lodo, diferenças de maré, humidade excessiva, calcorrear quinze quilómetros nos emaranhados de uma floresta-galeria provocam uma exaustão sem paralelo; quem escreve sobre Angola e Moçambique fala em longas distâncias, viagens de centenas de quilómetros, operações com montes e vales.

O que se vai espelhar na literatura, consoante o palco e a experiência vivida pelo combatente. Ler Armor Pires Mota, Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Cristóvão de Aguiar, José Brás, Luís Rosa, é perceber como estes homens falam de um tempo, de lugares, de situações distintas, como distintas foram as perceções que eles registaram da guerra que viveram. E o mesmo se pode dizer de escritores como João de Melo ou António Lobo Antunes, em Angola, ou Carlos Vale Ferraz ou António Brito, em Moçambique.

E o fenómeno literário também é irradiante, pois abarca romance e conto, memórias, ensaio, poesia, reportagem, história e diários. Atenda-se que um significativo número de escritores faz uma só “viagem”, memórias ou romance, escreve-se uma vez e não se regressa. Há os reincidentes, caso de Armor Pires Mota e Manuel Barão da Cunha. Curiosamente, ambos escreveram na fase de arranque, sob a forma de epopeia, de gesta, da glorificação da obra do soldado, da exultação da camaradagem e do destemor de gente humilde que apanhou o início das guerras.

Manuel Barão da Cunha 

Manuel Barão da Cunha tem vasta obra, todo começou com um livro memorial, Aquelas Longas Horas, 1968, edição da Mocidade Portuguesa. Combateu em Angola, ali estava em 1961, conheceu ásperos tempos, irá intervir em regiões cruciais, como Nambuangongo, participou na operação Viriato. Estará na Guiné, anos depois, na intervenção direta, fazendo operações em santuários do PAIGC e depois na quadrícula, no Leste, no regulado de Pachana. Em 1972, reciclou o que escrevera, com novos averbamentos, e publicou Tempo Africano. Escreverá posteriormente A Flor e a Guerra, em 1974, na Parceria António Maria Pereira. É um registo distinto, tem pouco de épico ou glorificador, ressalta uma visão amargada, é um homem doente, ferido, seguramente a desiludir-se, se tivermos em conta o que escreveu.

Depois, como um alquimista, passou a torcer, a retorcer e a distorcer as diferentes narrativas de guerra. O essencial das suas memórias tem a ver com a Angola de 1960 a 1962 e a Guiné de 1964 a 1966. Foi um pioneiro desta escrita, faça-se-lhe justiça. Já uma vez escrevi como ele fala dos seus soldados, das obras que deixarão em vários pontos de Angola e da Guiné, segundo um princípio axial: “A obra ficava, o homem partia. A obra ficava para outros homens e o homem partia para outras obras”. Fazendo e refazendo o Tempo Africano foi tratado como farinha espoada, a narrativa passou a compartimentar-se em andamentos, e onde o autor se distanciava de tudo quanto contava, foi-se gerando uma aproximação autobiográfica, com o recurso a um alter-ego, Pedro Cid, que vai dialogando com um jovem, em variadíssimas situações que metem repastos e encontros com outros veteranos de guerra. O jovem, Francisco Adão, pergunta, Pedro Cid responde, ao sabor da cronologia. Tudo começa em Angola, estamos em janeiro de 1960, Pedro é um “dragão”, um jovem alferes que comanda mancebos naturais ou residentes em Angola. E assim chegamos aos acontecimentos de fevereiro de 1961, com os ataques a Luanda e musseques periféricos. Pedro é um observador privilegiado, cabe-lhe ir a Nambuangongo com os seus “dragões”, seguir-se-ão outras dolorosas missões, e mesmo autobiográfico retoma-se a atmosfera de Aquelas longas horas, dando ênfase aos comportamentos militares de exceção. Gente que aparece agora a depor, entre muitíssimos outros depoimentos na obra mais recente de Manuel Barão da Cunha, "Longas Horas do Tempo Africano", 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019.

Pedro regressa a Portugal, estará em Lamego nas Operações Especiais. E em 1964, parte para a Guiné, na CCAV 704. No início, faz parte das forças de intervenção, vai ao Sul e depois ao Morés, volta agora a falar nesta operação Tornado que durou cerca de 80 horas. E depois passa para a quadrícula, estará no Leste, fala em Bajocunda e Copá, vive em Amedalai, sede do regulado da Pachana, deixarão obra. Pedro Cid regressará a Angola entre 1969 e 1971.

O seu novo livro recolhe depoimentos de amigos, de companheiros de estrada, de camaradas que o admiram, alguns deles foram seus militares: o escritor João Aguiar, o General Rocha Vieira, o Engenheiro Anacoreta Correia, o Professor Henrique Coutinho Gouveia, entre tantos outros. A edição é ricamente ilustrada com desenhos do pintor Neves e Sousa. Uma autobiografia num livro de consagração do escritor. Fala-se da sua preparação, o Colégio Militar é uma referência. É meticuloso nas suas referências. Quando fala da operação Viriato, anota: “Durante 36 dias e 36 noites e ao longo de 1419 km deparámo-nos com mais de 20 ações de combate, incluindo emboscadas, muitas das quais não foram registadas por terem sido atingidos militares de outras unidades, num total de 3 mortos e 38 feridos; mais de duas centenas de obstáculos, alguns constituídos por 4 e 5 árvores empilhadas ou embondeiros gigantes, fazendas destruídas, incluindo casas e viaturas; abrigos próximos da picada, para facilitar a emboscada".

Livro de uma vida militar, nele acorreu um conclave de diferentes protagonistas de todo este itinerário que depois se prolongou pela vida civil, um trabalho proficiente na Livraria Verney, onde começaram as afamadas tertúlias Fim do Império, que hoje se derramam por diferentes espaços, acolhendo apresentação de obras de múltiplos olhares, tal e tanto é o incansável dever de memória a que Manuel Barão da Cunha se entrega.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20610: Notas de leitura (1260): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (43) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20161: Notas de leitura (1219): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (24) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Era compreensível que os acontecimentos da Ilha do Como merecessem amplo destaque na gesta do bardo. Espero que quem ali combateu naquele terrível penar aqui venha exprimir outros pontos de vista, narrar outros episódios, clarificar situações que ficaram no olvido. A história da Unidade do BCAV 490 é parcimoniosa, como se disse, faz-se referência a um anexo, que não encontrei e se algum dos confrades o possuir bom seria que aqui se referenciasse outros episódios que não couberam na poesia nem nos testemunhos. A imaginação de quem acompanha o bardo saltitou para as belezas da natureza, sempre irresistíveis, a despeito das aflições e sofrimento vivido. Repare-se na descrição que Alpoim Calvão faz de uma missa ao ar livre e o maravilhamento do céu e das águas, a par da comoção dos mortos e da emoção dos vivos.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (24)

Beja Santos

“Temos muita companhia
já com pouco pessoal:
coxos, doentes e feridos
vão indo para o hospital.

Há muito tempo passado
e sempre a mesma labuta.
Há quase dois meses que se luta
e ainda há muito malvado
que tem que ser acabado
o bando que cá existia
é uma patifaria,
que dá cabo da rapaziada,
mas isso não lhes vale nada,
temos muita companhia.

Em duas ocasiões
no meio dos terroristas
morreram dois paraquedistas
deram gritos de aflições.
Fizeram muitas operações
dentro daquele matagal,
mas quase sempre se deram mal
devido a tantos bandidos.
Por isso, os pelotões reduzidos
já com menos pessoal.

Um dia Cauane atacaram
foi atingido Joaquim Augusto,
apanhando um grande susto
quando as granadas rebentaram.
No sacristão também acertaram,
dando grandes gemidos.
Com as mãos e dedos perdidos
Quítalo e o sapador doutra vez,
e em pouco mais de um mês
coxos, doentes e feridos.

Dois paraquedistas se perdiam
longe de S. Nicolau,
o caso esteve bem mau
porque entre os bandidos se viam.
Indicados por um avião saíam
sem perderem o moral.
Será isso o principal
no soldado cheio de heroicidade.
E os feridos com gravidade
vão indo para o hospital”.

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O tom pungente que o bardo usa, vamos encontrá-lo em obras do tempo e posteriores. Contemporâneo, temos os relatos de Armor Pires Mota e Alpoim Calvão. Naquele Sul, de 1963 em diante, andaram Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Luís Rosa, José Brás, António Loja, Idálio Reis, entre outros. O sul de Mejo, Guilege, Gadamael, Cacoca, Sangonhá, Gandembel, Cacine, Catió. Páginas de fraternidade, de lástima pelas perdas, de revolta pela construção de aquartelamentos feitos com tanto de sangue, suor e lágrimas e depois abandonados. E mesmo nessa apoteose de sofrimento ou mágoa há a extraordinário revelação do feitiço africano, a descoberta de uma natureza viva.

E aqui lembro Leonel Olhero e o seu livro “Ultrajes na Guerra Colonial – Reminiscências de furriel de cavalaria”.
Primeiro, uma trovoada tropical:
“Uma trovoada, com carácter primitivo e sagrado, apavorou-nos. Receoso, o Sol estremeceu de inquietação e correu a esconder-se. Numa embriaguez de luzes, relâmpagos cintilaram em ziguezagues de fogo, bateram nas trevas e apanharam relâmpagos em resposta. De alto a baixo, raios riscaram rasgando fundo os céus. Irrequietos, os trovões estalaram implacáveis vibrando de tronco em tronco e em cada folha, assustando aves e ribombando pelos caminhos do céu imenso num estampido ensurdecedor, enquanto que o vento, carregado dos cheiros da terra e do odor da selva, bradou com fúria e em rajadas hirtas e tudo impeliu numa maluca confusão”.

Agora o Furriel de Cavalaria embarca num Sintex, vai a Bula buscar salários, assombra-se com a travessia do rio:
“Para lá das desviadas margens, num sussurro, naquele rio largo como uma promessa via-se água que penetrava na brumosa mata de onde, desafiando nos céus altas fasquias, se erguiam crescidas e seculares árvores. Por causa das investidas da nossa artilharia, com olhos cansados de procurar, vi cepos definhados com galhos despidos e rasgados. Braços vegetais abertos que nos desejariam abraçar e onde poisavam centenas de colónias de coloridos periquitos (…) Na tona da água, bandos de periquitos de rabo de junco rasavam, chispavam à nossa passagem e rabiscavam hieróglifos (…) Inumeráveis abutres repugnantes e agoirentos que poisavam nos poleiros altos da sossegada e densa ramagem, alteavam-se impassíveis, estremecendo penosamente as enormes e aborrecidas asas. Alguns, mais tímidos, alavam para o escuro daquele tão intemporal bosque e ali ficavam à espera, de olhos tristes e adiados”.

Mas vamos descer até ao Como e ouvir o que escreveram os biógrafos de “Alpoim Calvão, Honra e Dever”:
“Uma operação tão longa como a Tridente, que decorria há já cerca de mês e meio, sempre com duros combates e em que os estacionamentos temporários eram desconfortáveis e penosos, tinha necessariamente um impacto negativo no estado físico e anímico do pessoal. Mas o esforço compensava. Era notório que a actividade inimiga esmorecia, a resistência era agora fugaz e em nada se comparava já à bravura dos combates travados no início da operação.
O dispositivo inimigo nas ilhas de Caiar, Como e Catunco estava praticamente desmantelado, o prestígio do PAIGC e dos seus chefes abalado, a sua confiança desaparecera, o respeito e temor pelas autoridades portuguesas era evidente.
Tinha entretanto o Tenente Calvão criado um núcleo de guias guinéus que com os seus camaradas metropolitanos partilhavam as mesmas canseiras e os mesmos perigos. Havia, no entanto, dois homens que o seguiam para todo o lado como sombras e aos quais Calvão ficou eternamente grato pela coragem, desinteresse de si próprios e dedicação que sempre revelaram: um do Bombarral, o José António; e outro um Manjaco do Pecixe, o ‘Touré’. Mais tarde, num jornal, Alpoim Calvão recordou um caso ocorrido durante aquela operação e que tão profundamente o marcou:
‘(…) Os sucessos da guerra tinham causado várias baixas na minha Unidade. Pedi ao Capelão Militar que acompanhava as forças em operação para rezar uma missa pela alma dos mortos. Numa manhã, na praia onde estava localizado o estacionamento, preparou-se a realização da cerimónia. Aliás, tudo o mais simplificado possível: o altar era um caixote que servira para transportar rações de combate e o templo, o ar livre, com o mais maravilhoso dos tectos: um céu azul, incomparável.
Mal barbeados, sujos, com as faces vincadas pelo cansaço e pela tensão da luta, os homens foram-se chegando e a missa começou. Juntaram-se-lhes, por serem católicos, alguns dos carregadores negros que acompanhavam as forças. O profundo silêncio era apenas alterado pela voz do celebrante e pelo barulho do mar, que, em pequeninas ondas, se enovelava na praia.
Uns de joelhos, outros em pé, os homens seguiam, ou melhor, viviam o santo sacrifício. Acabrunhados pela morte de alguns camaradas, sentiam a necessidade daquele diálogo com Deus e muitos deles, pela primeira vez, souberam o que era a Missa.
Eu estava de pé, um pouco apertado, duplamente comovido pela lembrança dos mortos e pela emoção dos vivos.
E num deslumbramento, numa autêntica revelação de ecumenismo, vi, sobre a minha direita, alguns guias muçulmanos que olhavam a cena com muita dignidade e compostura e procuravam participar nela, orando também ao mesmo Deus, pelo descanso das almas dos que tinham caído e pela vitória das armas portuguesas’.”

E os autores chegam ao termo do seu relato:
“Decorridos mais de dois meses sobre o início da Operação Tridente, concluiu-se que militarmente nada mais havia a fazer na zona, pelo que foi decidido o regresso de todas as forças em acção, ficando apenas montado um aquartelamento em Cachil, onde foi instalada uma Companhia do Exército com a missão de controlar as margens do rio Cobade, numa posição estratégica muito importante para o reabastecimento de Catió. Sendo de prever que dentro em breve aquele local voltaria a estar sujeito a uma intensificação dos ataques, tornou-se necessário manter ali uma LDP em permanência, de modo a garantir o regular abastecimento do aquartelamento de água, mantimentos e munições. Às 12h00 do dia 22 de março, o DFE8 embarca no ‘Bor’ rumo a Bissau, onde chega na manhã seguinte. Era o fim da Operação Tridente”.

(continua)

 O bardo a caminho da Ilha do Como

O bardo e camaradas a caminho da Ilha do Como

O bardo faz leituras na Amura, inspira-se junto da velha peça de artilharia.

Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor

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Último poste da série de 16 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)