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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25193: Efemérides (427): José António Paradela (1937-2023): um ano de saudade... ("Sou um ilhéu de nome, um ilhavense, um antigo insular, mas também faço parte de um arquipélago mais vasto, que é afinal o mundo todo, à minha volta")

Ílhavo > Costa Nova do Prado > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Por aqui andava o nosso Zé António,  José Antóno Boia Paradela, de seu nome completo, arquiteto e escritor, amigo de família... "Fez a tropa" na pesca do bacalhau... É membro da nossa Tabanca Grande... Com a sua morte (em 21 de fevereiro de 2023), os seus amigos também morreram um pouco...  Mas agora também eles são todos, um pouco, "ilha...venses" de nome... 


Ílhavo > Costa Nova do Prado > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 >  O anfitrião e amigo, o ilhavense arquitecto José António Boia Paradela (pseudónimo literário, Ábio de Lápara (Ílhavo, 1937- Aveiro, 2023)


Ílhavo > Costa Nova do Prado > Ria de Aveiro > 25 de Agosto de 2008 > Costumávamo passar um dia, no verão, com o Zé António e a Matilde, na sua adorada Costa Nova, antes de seguirmos para as vindimas, para o Norte, para Candoz, nos últimos dias de agosto... Na foto, a Alice e o Zé António atolados no "tarrafo" da ria... De repente, vi-me transplantado para as margens do Geba Estreito, nas proximidades de Mato Cão, quarenta anos atrás...
Fotos (e legendas): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É mais do que um ano de saudade, Zé António… São muitos anos de convívio e de amizade, grande parte, afinal,  das nossas vidas, ao longo do tempo em que os nossos filhos cresceram e se fizeram homens e mulheres…  Continuamos desolados com a tua perda, irreparável.

No ano em que se comemoram também os 50 anos do 25 de Abril, não podemos deixar de evocar o teu exemplo, não apenas como criador, arquiteto e artista de obra feita, mas também como cidadão, justo e livre, e  como homem, bom, afável, culto… 

Sempre foste amigo do teu amigo, estar contigo era um prazer e uma fonte de conhecimento, tu que tocavas tantas teclas do piano da cultura humana, das artes plásticas à música, da literatura às ciências do mar, da história pátria à “epopeia da faina maior”... Tu que adoravas o mar, as Berlengas, a tua ria de Aveiro, as tuas tertúlias, um bom copo,  um bom peixe vivinho da costa, um bom marisquinho,  o ensopada de enguias da tua Costa Nova do Prado … Tu que  sempre quiseste (e lutaste por) o melhor para a tua terra e o teu/nosso  querido país.   

Por tua causa, por "mor de ti (como se diz no Norte, na terra da Alice) somos também um pouco “ilha...venses", o que para ti queria dizer: 

"Sou um ilhéu de nome, un ilhavense, um antigo insular, mas também faço parte de um arquipélago  mais vasto, que é afinal o mundo todo, à minha volta; um ilhéu, mesmo de nome,  quando deixa a sua ilha  ou a sua península, quando embarca para a Terra Nova, na “Faina Maior", ou vai para Lisboa estudar e trabalhar, nunca destrói as pontes, nunca corta o cordão dunar e umbilical que o liga ao passado e ao futuro"...

Eu e a Alice (e seguramente também o João e a Joana) não podíamos deixar de te deixar aqui uma palavrinha de ternura, à procura das peugadas cósmicas que marcam ainda os nossos trilhos em vida... Um palavra que é também de conforto para com os teus (a Matilde, o Marco, o Jorge, a tua neta, a tua nora, os teus amigos mais próximos…).

 Teu "mano" Luís.

PS – Última mensagem do seu “alter ego”, Ábio De Lápara, no Facebook (foto *a esquerda), no dia em que se despediu da Terra da Alegria:

21 de fevereiro de 2023,  14:33

Querido Facebook, o destino levou-me para um local etéreo, onde descanso agora. Como última paragem despeço-me de todos os meus amigos dia 23 na Igreja Matriz de Ílhavo, por onde andei em seu redor descalço durante a minha meninice.

Agora, o início de algo que desconheço. Parti em Paz junto dos que me amam.

Cuida da minha conta,  meu Querido , um até já.

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quinta-feira, 22 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24423: Notas de leitura (1592 ): "Uma ilha no nome: pequena crónica dos dias líquidos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário do meu querido e saudoso amigo, o arquiteto José António Boia Paradela, 1937-2023) (Luís Graça)

Capa do livro, de Ábio de Lápara, "Uma illha no nome:
 pequena crónica dos dias líquidos (Lisboa, edição de autor,
 2007, 77 pp.).

Ílhavo > Costa Nova > Agosto de 2006 > José António Boia Paradela, arquitecto, filho e neto de gente do mar, andou embarcado, até aos 18 anos, na pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra... Uma experiência, de seis meses, que o marcou para sempre... Homem de múltiplos talentos, também ele acabou de escrever um livro, aos 70 anos, - "para os amigos" - Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, que eu tive a honra e o prazer de prefaciar. É membro da nossa Tabanca Grande, tem 25 referências no nosso blogue. 

O concelho de Ílhavo (com cerca de 25 mil habitantes, em 1960, tem hoje perto de 40 mil) teve 10 mortos na guerra do ultramar/ guerra colonial, três dos quais na Guiné, outros três em Angola e os restantes em Moçambique (segundo o portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2006). Todos os direitos reservados. [Edição Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José António Boia Paradela): Biblioteca de Ílhavo, 26/11/ 2017. O autor a autografar o seu último livro, "Santinhas de Apegar: Textos Poéticos" (2017, ed. de autor, 125 pp. + II inumeradas). 

Foto de Etelvina Almeida, cortesia da página do Facebook do autor.


 1. Prefácio de Luís Graça ao livro de Ábio de Lápara, Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos. Lisboa: edição de autor, 2007, 77 pp. (Impressão: Critério - Impressão Gráfica Lda). 

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Boia Paradela, natural de Ílhavo, onde nasceu em 1937. Arquitecto, era o fundador e  sócio-gerente da conceituda empresa PAL - Planeamento e Arquitectura Lda. Morreu recentemente, de cancro, aos 85 anos.


É num cenário pré-apocalíptico, mas perfeitamente verosímil, de destruição da orla costeira devida à progressiva subida das águas do mar, que se desenrola este conto – ou quiçá novela - , sob o título Uma Ilha no Nome… Prefiro simplesmente chamar-lhe narrativa.

Pela temática que lhe está subjacente – a morte, o mal escatológico, o pecado, a condenação – faz-me lembrar romances como A Peste, de Alberto Camus, ou o Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Tem também ressonâncias da tragédia grega e, no mínimo, poderia dar uma belíssima peça do teatro português.

A originalidade (e o talento) do autor (ou não fosse ele arquitecto, de formação e profissão) consistiu em ultrapassar a questão do género ou ter criado um género novo, ao incorporar na sua narrativa o coro dos que se expressam através da palavra muda dos pichadores e grafiteiros das nossas cidades...

Eles funcionam, de algum modo, como o coro da tragédia grega, invectivando os deuses, causticando o poder, contestando a (des)ordem estabelecida… No palimpsesto, mil vezes escrito e reescrito, o narrador vais buscar pérolas e pérolas de sabedoria, que vão pontuando e secundando o discurso dos penitentes, reunidos na Assembleia Final do Tempo: 

  •  A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….
  • We are born to loose everything, everytime and nothing at all;
  • Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente;
  • Mudei a passagem para ir para a outra margem, esperando que o futuro não seja uma miragem…


O que o nosso querido Zé António escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssima e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados…

Além do narrador, há um alter ego – Irineu – ou mais do que um – seguramente, o Ábio – e uma plêiade de personagens que ainda têm ou tiveram carne e osso:

  • O Avô Materno de Ábio, mais conhecido como O Valente, sepultado na Praia da Tijuca; 
  • o Pai de Ábio, marinheiro com 12 anos; 
  • a Avó materna, a mãe Rosa… 

Sem dúvida, o núcleo da sua intimidade, do seu doce lar… Como o pai, sempre ausente e sempre presente, gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Mas há também outros homens e outras mulheres ilhavenses, recriados pelo autor, que fazem parte desta galeria de memórias: 

  • O Mestre Zé, marinheiro; 
  • o Manuel da América; 
  • o Sacerdote Manuel, cego; 
  • o Sant’Ana, merceeiro e chefe dos escuteiros; 
  • o Ismael, o poeta, amigo dos gatos, funileiro, contador de estórias;
  •  o João Bocanegra, mais conhecido entre o povo como o Trampolineiro, homem de muitas falas e poucos saberes; 
  • a Rosa Cravo, a oficiante do Templo de Vénus; 
  • a Joana Paciência, vendedeira de peixe, matriarca, mãe de muitos filhos espalhados pelo mundo….

Criado no matriarcado, cercado de mulheres e das suas recordações, Ábio faz, no entanto, da figura do pai a mais bela evocação da narrativa:

- Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde…

Narrativa, é o termo mais exacto: é uma tocante narrativa que se lê de um ápice e por onde perpassa a memória de um povo, de um colectivo: povo das matas costeiras, gentes da areia, povo das águas, homens do bote, pescadores e marinheiros da Terra Novo… Mas também a memória dos lugares da infância: o Vale Central, a Gândara, o Vale das Padeiras, a Laguna, o Mar, sempre o Mar, atraindo e repelindo as gentes tal como Pátio dos Ressoeiros atraía e repelia os adolescentes…

Não se pense que é uma narrativa passadista ou pessimista… No final, Irineu (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago, e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, ao quilómetro 70, já não precisavas de provar nada, nem muito menos de fazer jus à ironia queirosiana do Zé Fernandes em relação ao seu príncipe, o Jacinto de A Cidade e as Serras (“Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem”…). Os teus amigos já conheciam e apreciavam o teu talento criativo, mas agora tramaste-os, deixando-os com água no bico, à espera da próxima surpresa…

Fica, desde já, marcada na agenda uma próxima paragem ao quilómetro 71. E até lá os meus duplos parabéns, ao jovem escritor e ao veterano corredor de fundo! Escusado será dizer, para mim e para todos nós, quanto é grande o privilégio de te ter como amigo!

Luís Graça

[Fonte: Luís Graça > Blogpoesia > 23 de novembro de 2007 >  (Pré-)Textos (1) - Crónica dos dias líquidos]
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de  2023 > Guiné 61/74 - P24415: Notas de leitura (1591): "História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva; Temas e Debates, 2020 - Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468 (Mário Beja Santos)

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24098: Tabanca Grande (545): Corrigindo um lamentável lapso nosso, o José António Paradela (1937-2023) fica connosco, no lugar nº 872... pelo seu contributo para a memória da "Faina Maior"... Parafraseando o capitão Valdemar Aveiro, podemos perguntar: "daqui a uma geração, quem se vai lembrar disto, a guerra do ultramar / guerra colonial e a outra guerra, a da pesca do bacalhau"?!

 

Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Ao centro, eu e o Zé António Paradela, arquiteto; e à nossa esquerda, a Alice Carneiro e a Matilde Henriques (esposa do Zé António); à nossa direita, o Jorge Picado e o Jorge Paradela, o caçula do casal Zé António & Matilde. A foto foi tirada pelo filho mais velho, o Marco Henriques Paradela, que na altura andava na "tropa do bacalhau", sob as ordens do capitão Valdemar Aveiro, seu padrinho,  o "último dos lobos do mar", escritor, com dez livros sobre a frota branca e a pesca na Terra Nova. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): arquitecto e escritor

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Fotos do álbum de Ábio de Lápara (José Paradela), página pessoal no Facebook (com a devida vénia...)


Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José António Boia Paradela): Biblioteca de Ílhavo, 26/11/ 2017. O autor a autografar o seu último livro, "Santinhas de Apegar: Textos Poéticos" (2017, ed. de autor, 125 pp. + II inumeradas). Foto de Etelvina Almeida, cortesia da página do Facebook do autor.

1. Por uma razão que não consigo descortinar, mas que só pode ser "por falha técnica ou erro humano" (como se diz quando cai um avião ou descarrila um comboio), o meu querido amigo José António Paradela (1937-2023) não foi formalmente registado como membro da Tabanca Grande, logo em 2007, como devia ter sido.  Sempre o considerei como tal, ao longo dos muitos anos de existência que já leva o nosso blogue, mas a verdade é  que o seu nome não conta(va) na lista alfabética dos membros da nossa tertúlia...   

O concelho de Ílhavo (com cerca de 25 mil habitantes, em 1960, tem hoje perto de 40 mil) teve 10 mortos na guerra do ultramar/ guerra colonial, três dos quais na Guiné, outros três em Angola e os restantes em Moçambique (segundo o portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar). 

Não era, em rigor, uma terra de "infantes", mas sim de marinheiros, pescadores e capitães (da frota de pesca e da marinha mercante). Mas há exceções, como o Jorge Picado, que lá foi parar à Guiné, aos 32 anos,  já como capitão miliciano de artilharia (*)... 

Não sabemos quantos mancebos de Ílhavo, aptos para o serviço militar, seguiram a opção da pesca do bacalhau ou se alistaram na marinha de guerra, no período em que decorreu a guerra do ultramar / guerra colonal (1961 / 74)..

O nosso Zé António andou embarcado, como "moço, na "frota branca" (**) e depois cumpriu o serviço militar na Marinha, sem ter passado pelo ultramar. A guerra em Angola começou em 1961 e ele ingressou logo n0 ano letivo de 1960/61, na Escola Superior de Belas Artes onde fez o seu curso de arquitetura (concluído em 1967, com um a bolsa de cinco anos da Fundação Calouste Gulbenkian).

Justifica-se a sua entrada na Tabanca Grande pela sua partilha de memórias da pesca do bacalhau que eu considero o "outro lado da guerra" (**)... Tenho pena de não dado conta do lapso, com ele ainda em vida, faço agora a  necessária correçao, dois dias depois do corpo do eu amigo descer à terra, no cemitério da sua terra natal... A título póstumo, fica na lugar nº 872, à sombra do nosso simbólico, fraterno e sagrado poilão (***).


2. O seu primeiro texto, publicado no nosso blogue, data de 2007 (***). Tratou-se da apresentação, em Aveiro, em setembro de 2007, do livro do capitão Valdemar Aveiro, “Histórias Desconhecidas dos  Grandes Trabalhadores do Mar" (imagem da capa acima,  4ª ed, Âncora Editora, 2016, 228 pp.)


Texto de José António Paradela, arquitecto

“…E dentro de uma geração quem é que se lembrará disto? A menos que fique escrito, tudo se perderá no nada.” (Valdemar Aveiro)

Li novamente o teu livro e gostei ainda mais.

Isto só me acontece com certos livros, mas nem sempre pelos mesmos motivos.
Estava a lê-lo e a recordar-me de Alain Gerbault (À la Porsuite du Soleil), e de Hemingway (O Velho e o Mar), mas sobretudo de Melville (Moby Dick).

O barco de que falas já não é de madeira, nem os cabos são de cânhamo, e a baleia tem agora a dimensão dos labirínticos campos de gelo flutuante.

Mas o alento que te atravessa a alma é da mesma natureza, agora consubstanciado na caça ao cardume viscoso e fugaz sob o gelo.

Contudo esse argumento é para ti um apelo, um desafio à aventura, à vitória da descoberta, granjeada num segundo fôlego, ou mesmo num terceiro, quando os outros já ficavam abaixo da linha do horizonte, confundidos com a névoa.

Descobriste e ensaiaste os mapas do comportamento da manta gelada para evitares o seu abraço fatal. Mobilizaste os marinheiros – os rapazes, como lhe chamas 
 , para o festim opulento corporizado na sacada de peixe de braço dado com o navio, esse saco-prenúncio do pão para os que em terra esperavam.

Não foste, e ainda bem, o capitão Ahab de Melville, ou o Santiago do Hemingway, mas a associação é inevitável. É a vontade em estado puro, de maratonas diariamente repetidas, no afã de levares à terra a mensagem da vitória: Ganhámos!

Como há 2500 anos na Grécia. Os homens mudam pouco!

Estamos perante um livro de prodigioso apelo à memória. À memória do tempo vivido por entre aventuras e histórias que por vezes assume um tom narrativo confessional, para reconstituir um passado feito de retratos minuciosos de seres que existiram (existem) e que marcaram o teu trajecto, quase sempre sobre as águas que do planeta são ainda a parte incógnita. Não falo dos peixes e da sua geografia, mas dos homens que as habitam, estes de quem tu falas.

São histórias assumidas conscientemente como um ajuste de contas contigo mesmo e com aqueles que contigo andaram ou te cruzaram a rota.

O que afirmas na singularidade e sinceridade da tua escrita, é o tempo em que viveste outro tempo, marcado pelos amigos, ou mesmo por aqueles que contigo se confrontaram, e a falta que isso agora te faz.

Paciência, meu amigo, isso é a vida, que faz de cada um de nós uma narrativa única, marcada pela força dos companheiros de aventura e que dentro de nós se arvoram ainda como cínicos que ficaram para nos invectivar e evocar esse tempo de esperanças, amores e desilusões. Um tempo de outrora, mas também de hoje, por dentro de nós.

Este livro é o livro que faltava… Falo do assunto que coloquei como frontispício deste texto.

A história com H grande tem sempre os seus sacerdotes, que vasculham bibliotecas e alinham factos inventando elos de ligação quando necessário. É útil mas insuficiente.

Walter Benjamim, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.

O teu livro, os teus livros, que para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo.

Haverá quem faça a história oficial da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos: Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.

O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo, aos seus instrumentos e às suas palavras. (Podes acrescentar no glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).

A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa muito por aqui: Pelas ligações orgânicas, e pelos copos… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal. Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema não existe, esquecendo que alguém terá de as contar.

E é este acto de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, este incontornável filtro da inteligência e do coração, que constitui a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.

Não contaste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, ou o peixe como Hemingway. Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses.

Ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos, ela não deixa de ser menos verdade. Como dizia um combatente da guerra civil espanhola ao relatar a sua experiência:

“… no sé yo cuanto le puede importar a usted ésto que le estou diciendo, no sé si esto le puede importar a alguièn, porque estas cosas no las cuentan los libros, esto no sale nunca en la historia, pero sabe lo que lo digo? Esta es mi verdad”.

Um abraço do teu mano Zé

(Negritos: editor LG)

3. Comentário do editor LG:

Relembro aqui que o capitão Valdemar Aveiro (que eu voltei a abraçar anteontem, no funeral do nosso  "mano" comum) (****),  é um velho lobo do mar, natural de Ílhavo, terra que tem dado, a Portugal, ao longo da sua história, grandes marinheiros, pescadores e capitães... 

Nascido em 1934, passou 35 anos da sua vida na pesca do arrasto do bacalhau, a bordo, e capitaneando grandes lugres. Hoje (ainda hoje, vai fazer 90 no próximo ano!), está em terra, com funções de gestão em empresa do sector piscatório ao mesmo tempo que vai passando e repassando para o papel as suas memórias... e divulgando os seus livros, o meso é dizer partilhando memórias que pertencem ao nosso património imaterial.

Em 2004 saiu o seu primeiro livro, Figuras e Factos do Passado: Recordações da Pesca do Bacalhau, numa edição infelizmente nada profissional da Câmara Municipal de Aveiro. Quando o conheci, através do Zé António Paradela, ele teve a gentileza de me oferecer um exemplar desse seu primeiro livro, autografado.

Foi uma revelação, para mim, essas histórias - épicas, dramáticas, picarescas, burlescas, mas sempre humaníssimas - dos nossos marinheiros e pescadores da Terra Nova. Fiquei de lhe fazer uma recensão crítica que nunca chegou a aparecer, à luz do dia, no nosso  blogue, do que me penitencio... (mas ainda vamos a tempo).

Por outro lado, sempre me intrigou o facto de, durante a guerra colonial, se poder optar pela dura pesca do bacalhau como alternativa à tropa e à guerra... O capitão Aveiro, como é carinhosa e respeitosamente conhecido,  terá recebido - imagino eu -  alguns pedidos para aceitar a bordo mancebos que se queriam livrar da Guiné, Angola ou Moçambique, admitindo que a pesca  não fosse a sua prineira opção...

Ao repescar esta belíssima apresentação que o seu mano José António Paradela - e meu velho amigo - fez do seu livro, na altura (2007) em 2.ª edição, Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar, estou a homenagear duplamente dois homens de eleição, dois "ílhavos" que muito honram a sua terra.

Pegando na inspiradíssima dica do Zé António, também eu direi que - à semelhança dos nossos velhos lobos do mar que hoje morrem em terra! - compete-nos também a nós, que fizemos a guerra colonial, "escovar a história a contra pêlo"... 

Temos tentado fazê-lo, ao longo destes anos t0d0s, fazendo jus ao lema do nosso blogue, "Camarada, não deixes que sejam os outros a contar a tua história!"... O mesmo é dizer:  é importante que se faça a História com H grande da guerra do ultramar / guerra colonial, mas não menos importante é escrever e salguardar as memórias de quem a fez, de um lado e do outro, afinal a história com h pequeno,,,

O capitão Valdemar Aveiro, como como todos os mareantes, é um execelente contador de histórias. Tem, além do talento, a grande vantagem da vivência e da autenticidade... Que ele e o Zé António  sejam também  exemplos inspiradores para todos nós, amigos e camaradas da Guiné, os antigos combatentes que, enquanto geração, estão a desaparecer todos os dias...  

(Negritos: editor LG)



Alguns dos bravos marinheiros e pescadores que embarcam no "Lousado" em abril de 1955. Na segunda fila, ao centro, o terceiro a contar da esquerda, é o nosso autor, com 17 anos...

Foto (e legenda): © José António Paradela (2015). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


4. Poema "O Verde" (equivalente ao nosso "periquito"):

O Verde (#)

No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: Salta, esquece as mágoas…
Senti, looongo, na garganta um garrote!

Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.

“Senta-te, Zé, e rema enquanto a força durar!
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”

Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.

(#) Pescador bacalhoeiro embarcado pela primeira vez

In: Ábio de Lápara -"Santinhas de Apegar: Textos Poéticos"  (20127, ed. de autor), pág. 75.  
__________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 24 de novembro de  2007 > Guiné 63/74 - P2300: Bibliografia (12): Memórias de outra tropa, de outra guerra, a da pesca do bacalhau: escovar a história a contra pêlo (José António Boia Paradela)

(***) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24082: Tabanca Grande (544): Mário Arada Pinheiro, cor inf ref, que, além de 2º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73), esteve na 2ª Rep, no QG/CCFAG, e foi comandante-geral de milícias, substituindo o major Carlos Fabião... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 871.

(****) Vd. poste de 24 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24093: In Memoriam (472): José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): pequena homenagem póstuma lida ontem, na igreja matriz de Ílhavo (Luís Graça)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24093: In Memoriam (472): José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): pequena homenagem póstuma lida ontem, na igreja matriz de Ílhavo (Luís Graça)

O arquiteto José António Paradela (1937-2023), na sua terra natal, Ílhavo, junto ao monumento aos combatentes da Grande Gerra (mortos em França e África). s/d. Cortesia da Câmara Municipal de Ilhavo. Imagem reeditada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023), com a devida vénia...



Capa do livro de Ábio de Lápara pseudónimo literário de José António Paradela 1937-2023, "Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos", ed. autor, s/l, 2007, 77 pp. (CDU: 821.134.3-3, BN, por). Prefácio de Luís Graça.

Zé António, meu querido amigo do peito, “meu mano”:

Já passaste por este momento doloroso, a perda de alguém muito querido, um pai, um irmão, um amigo… Ficamos sem palavras, tolhidos pelo choque da notícia. E depois, à medida que os primeiros minutos e as primeiras horas passam, há um turbilhão de emoções, antes de começarmos a fazer o processo do luto…

Agora somos todos nós, a tua Matilde, o teu Marco, o teu Jorge, a tua família mais próxima e os amigos, os muitos amigos que tu tinhas,  a encarar de frente a brutal realidade da tua perda, da tua morte física…

É devastador perder alguém que muito se ama… A nossa primeira reação é de denegação: não é possível que o meu amigo do peito, o meu “mano”, tenha partido da Terra da Alegria (para usar uma metáfora do poeta Ruy Belo) sem se despedir de nós…

Infelizmente, a morte é o maior absurdo da vida, mesmo que seja o corolário da vida, mesmo que a vida contenha as sementes da morte desde o primeiro segundo em que vemos a luz do dia, ao nascer… Diz o provérbio que a vida tem uma porta, e a morte cem…Dificilmente podemos encenar a tragédia da nossa própria morte: não sabemos quando nem como ela há-de chegar…

No teu caso, chegou aos 85 anos, e a maldita porta foi a doença de evolução prolongada, que ainda hoje temos, todos nós, pudor ou dificuldade em nomear.

 Por certo, meu irmão, que morreste em paz (se é que um homem pode morrer em paz depois de uma prolongada luta contra a doença que acaba sempre, mais tarde ou mais cedo, por levar a melhor: afinal, morremos todos os dias um bocadinho).

Sim, não tenho dúvidas que quiseste despedir-te de todos nós. Recordo o que escreveste no teu Facebook, no passado dia 6, às 21:34, partilhando 10 anos de memórias:

“Tempos felizes que cabem por inteiro na minha passada ambição. Deixaram sabores doces e tanto me basta.”

Uma frase lapidar, no duplo sentido da palavra, algo de sublime, que só podia ser escrito por um grande ser humano como tu. É um belíssimo poema de despedida da vida, mesmo que tão curto para uma vida que foi grande...É um adeus lúcido, corajoso, sereno... (Bolas, e a gente sempre a queixar-se do que não fez, não viu, não viajou, não usufruiu, não amou, não gozou, , não comprou, não escreveu...ou simplesmente desperdiçou a começar pelo tempo.)

Eras um homem afável, amigo do seu amigo, que adoravas o convívio e a tertúlia.  Amavas os teus, amavas a vida, adoravas o mar, o sol, o sal, o sul, a ria de Aveiro, o rio Tejo, as Berlengas,   a fotografia, o desenho, as viagens... Amavas as coisas boas da vida, e partilhavas com os teus amigos as tuas múltiplas afinidades, talentos, seres, saberes e sabores, desde a boa comida (o peixe, os mariscos)   à  literatura, à música e  à arquitetura, a tua profissão.

Nesta hora, profundamente triste, somos nós que viemos despedirmo-nos de ti. A morte tem várias dimensões: física, simbólica, cultural, social… Morreste, fisicamente, na batalha da vida, a tal em que todos nós, seres finitos, acabamos derrotados.

Para aqueles que te amavam (e te continuam a amar), tu continuas presente entre nós. Porque há uma coisa que a morte não nos pode roubar: as memórias (e os afetos) que partilhámos em vida, a par das nossas geografias emocionais… Mais do que a tua imensa obra como arquiteto e urbanista (e essa falará por si e por ti!), somos nós que não te esquecemos, enquanto por cá ainda andarmos, e tivermos saúde, força e ânimo …

Como não podemos esquecer os livros que, já em fase mais tardia da tua vida, começaste a escrever… Cito um ou dois que me dizem muito: o teu primeiro,  de 2007, “Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos”, a que me deste a honra de prefaciar.

E o outro, de 2015, a "Rua Suspensa dos Olhos": Ah!, quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na tua rua suspensa dos olhos...

Ilhéu, lhavense, filho da terra e do mar,  evocas e descreves com enorme ternura e talento a rua onde nasceste e cresceste. E das figuras humanas   que  marcaram a tua memória e o teu imaginário, não posso deixar de citar o teu pai, marinheiro aos 12 anos, figura de referência na tua vida, sempre ausente e sempre presente, e que gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Tendo tu sido criado no matriarcado, cercado de mulheres e dos seus fantasmas e das suas recordações, fizeste,  no entanto, da figura do teu pai a mais bela evocação na tua narrativa ilhavense:

 “Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde”…

E da recolha que fizeste dos palimpsestos dos muros da tua Ílhavo, deixa-me por fim citar duas ou três frases lapidares dos anónimos pichadores e grafiteiros:

- A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….

- Nascemos para perder absolutamente tudo, sempre, e nada.

- Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente.

Estas três frases, pérolas de uma arqueologia dos seres e dos saberes, dizem muito, afinal, a teu respeito. E não foi por acaso que as anotaste e as resgataste, nesse teu livrinho que é um belíssimo e comovente regresso ao passado, à tua infância, à tua ilha, à tua origem ilhavense… 

É também a redescoberta da tua/nossa insularidade fundamental e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de doença, de morte e de finitude por todos os lados…

Não se pense, todavia, que é uma narrativa passadista e tu um autor pessimista… No final, o teu “alter ego” (re)descobre    que também faz parte de um vasto arquipélago , e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, quando embarca para a Terra Nova, na “Faina Maior" (a pesca do bacalhau), ou vai para Lisboa estudar e trabalhar, nunca destrói as pontes, nunca corta o cordão dunar e umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, para os amores da tua vida, a tua Matilde, os teus filhos e a tua neta, para os teus amigos, para todos aqueles que te amaram e que tu amaste, serás sempre lembrado não só como o arquiteto, um construtor de cidades, como sobretudo um homem de pontes, de memórias, de afetos: as do amor, da amizade, da beleza, da solidariedade, da liberdade…

Aceita, lá na estrelinha  que te coube em sorte na galáxia celestial dos homens bons e sábios, esta minha pequena homenagem póstuma. Recuso-me a dizer “adeus, até sempre”, porque quero/queremos continuar a poder falar contigo.

Luís Graça + os teus amigos e fãs Alice, Joana e João.

Ílhavo, igreja matriz, 23 de fevereiro de 2023


2. Nota do editor LG:

Desloquei-me ontem, à tarde ao funeral do meu amigo Zé António Paradela, arquiteto, membro da Tabanca Grande, um "ílhavo", orgulhoso da sua terra natal onde, de resto, deixa obra. Tive oportunidade de conhecer pessoalmenet ou reencontrar, nas cerimónias fúnebres, alguns dos seus amigos e  conterrâneos tais como:

(i) Jorge Picado, ex-cap mil art, Guiné 1970/72, nosso camarada, membro da Tabanca Grande; dei-lhe um grande abraço, falámos uns escassos minutos; e justificou-se por que é que, com a falta de tempo e os netos, já não vem tantas vezes ao blogue;

(ii) Tito Peixe Cerqueira,  vice-almirante na reforma, com um comissão em Moçambique como guarda-marinha, em 1970/72, na Corveta João Coutinho, o primeiro ilhavense ou "ílhavo" a atingir o topo da hierarquia da marinha de guerra numa terra de capitães de marinha mercante e da frota pesqueira, vários deles também presentes no velório do Zé António Paradela (alguns conhecia-os de vista, de nossos convívios anuais):

(iii)  João Vizinho, especialista em medicina do trabalho, meu velho amigo das lides da saúde pública:

(iv) o capitão Valdemar Aveiro, um dos últimos "lobos do mar", e grande escritor das memórias da "Faina Maior" (a pesca do bacalhau): tem cerca de uma dezena de publicações (e outras tantas referências no nosso blogue):

(v) o historiador e editor Senos da Fonseca, cunhado do nosso Jorge Picado, uma  verdadeira autoridade sobre Ílhavo, a Costa Nova,  as suas gentes e falares, as embarcações  da ria de Aveiro, a pesca do bacalhau, etc.

De Lisboa, tive o prazer de reencontrar os arquitetos Ricardo Santos Pereira e Luís Gravata Filipe, que trabalharam ou ainda trabalham na PAL - Planeamento e Arquitetura Lda, a empresa de prestígio que o Zé António fundou e dirigiu durante dezenas de anos. Reencontrei também a secretária Teresa Martins Gil, competente e incansável colaboradora da PAL.

E ainda outros amigos comuns, que vieram de Lisboa,  como o prof João Salis Gomes (CIES-ISCTE) e familia... e o advogado Manuel Queirós (acompanhado do filho), natural do Marco de Canaveses, colaborador da PAL. Pude confirmar mais uma vez quão estimado era, na sua terra, o Zé António. E que nem sempre é verdade o que diz o provérbio "Ninguém é profeta na sua terra"... O Zé António tinha-se reconciliado há anos com a sua terra natal, que ele muito amava. O município, na sua págima oficial,  deixou, com data de ontem, uma nota de pesar pelo seu falecimento:

(...) Natural de Ílhavo, José António Boia Paradela deixa o seu traço no Município de Ílhavo, tendo assinado obras como o edifício dos Paços do Concelho e o Centro Cultural da Gafanha da Nazaré. Mais recentemente, foi responsável pela modernização do Jardim Henriqueta Maia e a reconversão do antigo edifício dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo, também da sua autoria, no Centro de Religiosidade Marítima. (...)
______________

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24086: In Memoriam (471): José António Paradela (1937-2023), ilhavense, arquiteto, escritor, meu amigo do peito, meu mano: andou na pesca do bacalhau aos 16 anos, e fez o serviço militar na Marinha (Luís Graça)


José António Paradela
Costa Nova, agosto de 2007
Foto: LG
1. Morreu, hoje, no hospital, em Aveiro, de doença de evolução prolongada,  o meu amigo do peito e "mano", o arquiteto José António Paradela. Tinha 85 anos.

O velório e o funeral serão na 5ª feira, dia 23, na sua terra natal, Ílhavo, da parte da tarde.

Estive com ele, pela última vez, na sua casa na Costa Nova, em 11 de janeiro último. Tinha regressado do hospital, mas vinha muito debilitado. Manteve uma conversa curta mas perfeitamemte inteligível e lúcida connosco, eu e a Alice. Já não saía da cama. Ainda lhe telefonámos há uma semana e tal, íamos a caminho do Norte, perto de Aveiro. Tinha regressado ao hospital,desta vez para morrer.

Pela primeira vez, nesse dia, 11 de janeiro,  não veio almoçar connosco,  num dos seus restaurantes 
favoritos (ora na praia da Vagueira, ora na Costa Nova, junto à ria).

Era um homem afável, amigo do seu amigo. Amava os seus, amava a vida, adorava o mar, a ria de Aveiro, o rio Tejo, as Berlenga se,   a fotografia, as viagens... Amava as coisas boas da vida. Tínhamos várias afinidades, desde a boa comida (os mariscos)   à    literatura, à música e  à arquitetura.

Passávamos sempre um dia com ele e a Matilde, no verão, na Costa Nova, antes de rumarmos à Madalena ou a Candoz, mais a norte.  Conhecíamo-lo há mais de 40 anos. Ele e a Matilde, e depois os seus filhos, Marco e Jorge, faziam parte do nosso círculo mais próximo de amigos. 

Era membro da nossa Tabanca Grande, desde 2008, e tem mais de duas dezenas de referências no nosso blogue.

O Zé António, como bom ilhavense, era também ele, filho e neto de gente do mar, tendo passado, aos 16 anos, pela pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra da Guiné... Uma experiência, duríssima, de seis meses, que o marcou para sempre... Fez depois o serviço militar obrigatório ma Marinha na 2ª metade da década de 1950.  

Formou-se, a seguir,   em arquitetura, na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (para onde entrou no ano letivo de 1960/61). Chegou a ter o maior gabinete de arquitetura e planeamento de Lisboa, com mais de 6 dezenas de colaboradores, a empresa PAL - Planeamento e Arquitetura, Lda

Fez os planos urbanísticos de muitas autarquias, em especial na região Autónoma da Madeira. Deixa inúmera obra edificada (hoteis, equipamentos desportivos, etc.) não só na região (ilhas da Madeira e Porto Santo) como por todo o país. Trabalhou no SAAL (1974-76), nomeadamente no Bairro da Curraleira-Embrechados – Arquitectos responsáveis: José António Paradela e Gravata Filipe, experiência de que falava com grande paixão.

Homem de múltiplos talentos e saberes, também desenhava e escrevia em prosa e em verso. Publicou uns cinco ou seis livros, em edição de autor, sempre a pensar nos amigos. A um deles deu o belíssimo título Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, que eu tive a honra e o prazer de prefaciar (**). Usava como pseudónimo literário Ábio de  Lápara.

Também fiz três notas de leitura sobre o seu livro "A Rua Suspensa dos Olhos" (20156) (***).

Deixa viúva a Matilde Henriques, que foi técnica superior do Ministério da Agricultura e Pescas. O casal tem dois filhos, Marco (oficial da marinha mercante) e Jorge (que trabalhava com o pai). E uma neta de tenra idade. O Tibério Paradela (1940-2021), um "lobo mar", natural de Ílhavo, capitão da marinha mercante reformado, e seu irmão mais novo, também era membro da nossa Tabanca Grande. 

Dos nossos amigos comuns, na Costa Nova, ainda há destacar: (i)  o Jorge Picado, também nosso grã-tabanqueiro (**); (ii)  o Valdemar Aveiro, um dos últimos capitães da Faina Maior. e ainda (iii) o dr. João Vizinho, outro ilhavense ilustre com casa na Costa Nova, médico do trabalho, meu velho amigo e companheiro das lutas da saúde ocupacional

À família enlutada, em particular à Matilde, o Marco e o Jorge, deixo pessoalmente um muito carinhoso abraço na dor e na saudade. Os pêsames também da Tabanca Grande.

2. Ábio De Lápara (José Paradela) partihou uma memória dos seus últimos 10 anos, escrevendo, pela última vez, na página do seu Facebook o seguinte:
6 de Fevereiro às 21:34 ·


Tempos felizes que cabem por inteiro na minha passada ambição. Deixaram sabores doces e tanto me basta.



O Zé  António  quando jovem marinheiro ("moço")  a bordo do "Lousado", em 1955


Uma das últimas fotos do nosso amigo, aqui com a sua neta de 3 meses, filha do Marco Henriques.


Foto de cronologia no Facebook... Há uma hora, podia ler-se esta derradeira mensagem na sua págima do Facebook:

(...) Querido Facebook, o destino levou-me para um local etéreo, onde descanso agora. Como última paragem despeço-me de todos os meus amigos dia 23 na Igreja Matriz de Ílhavo, por onde andei em seu redor descalço durante a minha meninice. Agora, o início de algo que desconheço. Parti em Paz junto dos que me amam. Cuida da minha conta, meu Querido, um até já.. (...)
___________


(**) Vd. poste de 30 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10596: Memória dos lugares (194): Ilhavo, Costa Nova... a terra do meu amigo e irmão mais velho e, porque não ?, meu camarada, o arquitecto Zé António Paradela, que hoje celebra 3/4 de século de existência, antigo marinheiro da pesca do bacalhau, último representante de um povo que tem o mar no ADN!... (Luís Graça)

(***)  Vd. postes de:


29 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15551: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: II parte

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22749: In Memoriam (419): Tibério Paradela (1940-2021), capitão da marinha mercante, um "lobo do mar" ilhavense, que nos deixa um notável testemunho da epopeia da pesca do bacalhau, no seu romance "Neste mar é sempre inverno"




Tibério Paradela (1940-2021), um "lobo do mar", natural de  Ílhavo, capitão da marinha mercante, reformado,  irmão mais novo do nosso amigo, o arquiteto António José Paradela, 



1. Acabámos, ontem, ao fim da tarde,  de receber a dolorosa notícia da morte de mais um amigo, o Tibério Paradela. Sofria de doença de evolução prolongada. O funeral é na sexta feira, à tarde. Tinha 81 anos.

Em março passado, talvez premonitoriamente,  já se tinha despedido do seu velho conpanheiro, o mar, conforme carta publicada em "O Ilhavense" (Vd. abaixo a reprodução dessa belíssima "carta de despedida"... ou de reconciliação ?!).

Eis alguns apontamentos sobre a sua vida:

(i) capitão da Marinha Mercante reformado;

(ii)  nascera em Ílhavo, em 1940;

(iii) concluiu o curso de Pilotagem da Escola Náutica em 1960;

(iv) embarcou como praticante de piloto em 1961, no arrastão "Santa Mafalda";

(v) e, no ano seguinte, aso 21 anos, como imediato no navio bacalhoeiro à linha "Novos Mares" , entre 1962 a 1964: esta embarcação foi o  último bacalhoeiro em madeira, construído na Gafanha da Nazaré, fez parte da Frota Branca até 1986, data em que foi abatido à frota por ordem do Secretário de Estado das Pescas. (Em 1991 foi oferecido para se transformar em museu, o que nunca se concretizou; por incúria, deleixo ou crime, acabou por se afundar no porto de Aveiro.)

(vi) trabalhou depois a cabotagem na costa de Moçambique, foi comandante de cargueiro, piloto da barra no Porto da Beira (Moçambique), superintendente duma Companhia de Estiva no Porto da Beira (Moçambique), e comandante de navios mercantes nas linhas do Norte da Europa, Mediterrâneo e Norte de África, Ilhas, Moçambique, Angola, África do Sul, Golfo da Guiné;

 (vii) 
 terminou a carreira profissional no Lobito (Angola) na indústria petrolífera.

(viii) vivia na Costa Nova, concelho de Ílhavo, tal como o nosso camarada Jorge Picado (de quem, de resto, os irmãos Paradela são amigos).

(ix) aproveitando o tempo da reforma, fez parte de diversas tertúlias, dedicou-se a causas socias  e estreou-se também na escrita;

(x) deixa publicado, um romance (ou obra de ficção) que tem como horizonte temporal a campanha da pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlândia, entre abril de 1965 e abril de 1966: "Neste mar é sempre inverno", edição de  autor, Aveiro, 2014, 262 pp.; imagem da capa, à esquerda, da autoria do arquiteto  e nosso amigo, José António Paradela, irmão do autor, e natural de Ílhavo; o livro teve uma 2ª edição em 2016.)

(xi) deixa também, ao que sabemos, vários contos inéditos.


2. Temos 3 postes com notas de leitura do seu livro (**), sobre o qual escrevemos:

(...) Se o livro tivesse sido escrito (e publicado) ainda no tempo do Estado Novo, teria pela certa um título mais prosaico e pitoresco: "Cenas da vida da pesca do bacalhau". Mas não, não de trata de um livro de memórias, muito menos de registo etnográfico das campanhas do bacalhau e da vida a bordo nos últimos barcos da pesca à linha da nossa "frota branca". Não é sequer um simples diário de bordo duma viagem, de seis meses, aos bancos de pesca da Terra Nova e da Groenlândia. O que não quer dizer que o livro não tenha uma grande riqueza de informação etnográfica, recomendando-se a sua leitura também por essa razão adicional.

"Neste mar é sempre inverno" é um título de homenagem aos homens do mar. Na pág. 105, percebe-se melhor a escolha do título. O autor atribui ao filósofo grego Platão a afirmação segundo a qual haveria 3 espécies de homens: "os vivos, os mortos e os homens que andam no mar"...

Mas por que é que os homens do mar teimam em sê-lo pela vida fora, de modo contínuo ? Para Tibério Paradela, há uma razão, "talvez a única", para explicar por que é que o homem do mar o é para toda a vida: seria o "esquecimento". E esclarece o autor:

"Não o varrimento da memória, mas o alijamento das agruras e anmraguras para o sótão das lembranças indesejadas numa sucessão infalível, porque no mar é sempre inverno" (p. 105).

Poderia tresler-se: "neste mar é sempre inferno"... Neste mar, e na frota branca do bacalhau!

É esta epopeia, já esquecida pelos portugueses nascido no pós-25 de abril, que prende o leitor ao longo das mais de 260 páginas do romance. Li e reli o livro e tirei inúmeras notas de leitura, algumas das quais vou aqui partilhar, com todo o gosto, com os leitores do nosso blogue. (...).

3. Deixo aqui a minha homenagem, de apreço e saudade, ao Tibério Paradela, com quem convivi, embora esporadicamente,  nas minhas passagens pela Costa Nova, de visita ao irmão e à Matilde. A esposa, filhos, netos e ao seu mano Zé António Paradela, e demais amigos da Costa Nova, deixo aqui a expressão da nossa solidariedade na dor.

Reproduzo também dois textos da sua autoria, um soneto e uma crónica. 

Toldaram-se-te os olhos, marinheiro,
Quando pra trás olhaste e já não viste
A terra, que deixaste em adeus triste,
Chorado no convés do teu veleiro.

Se és tu do mar o grande caminheiro
Em busca de destinos que cumpriste;
Se o fado teu, ao qual nunca fugistes,
Já fez de ti, no mundo, o Ser primeiro,

Então, enxuga as faces, meu guerreiro,
E volta para a frente o teu olhar.
Não vá esse inimigo traiçoeiro

A quem, por toda a parte, chamam mar,
Revoltar-se e engolir-te por inteiro
Numa onda vilã que vai passar!

In: Paradela,  Tibério - Neste mar é sempre inverno. Edição de autor, Aveiro, 2014, p. 12.  


Carta a um Companheiro

por Tibério Paradela

 O Ilhavense,  10 de Março de 2021


Decidi despedir-me. Despedir-me de ti!

Faço-o por escrito para que fique a constar dos teus vastíssimos arquivos, não caindo, assim, no esquecimento das palavras que o vento leva.

Foste meu companheiro mais de três décadas e isso, só por si, devia ter feito nascer entre nós uma relação forte, impregnada de amizade e admiração mútuos. Porém, quis o teu mau humor tão frequente que, da minha parte, a confiança em ti se esgotasse na passagem do tempo.

Não posso esquecer as tuas ameaças, os repentes dos teus humores, as tuas ciladas. Assim, obriguei-me a aprender a lidar contigo, sempre de prevenção, para não cair nas garras dos teus poderes.

Até que, um dia, decidi encarar-te de frente com a coragem que os fracos também sabem assumir quando as ameaças começam a roê-los por dentro. Curiosamente, a partir daí, a nossa relação melhorou bastante. E foi numa certa indiferença por ti que encontrei a solução final.

Mas, para que as coisas não fiquem assim, companheiro, quero revelar-te que sinto que nem tudo foi mau entre nós! Proporcionaste-me lindos passeios, conheci muitos e lindos países, cidades maravilhosas, gentes as mais diversas. 

Deste-me também a possibilidade de me situar na vida, construir uma carreira, cimentar uma personalidade. Afinal, tu mais que ninguém, viste-me crescer e ensinaste-me a crescer. Sim! Porque trinta e tantos anos não são trinta e tantos dias; porque a dureza das relações nem sempre é perniciosa; e porque no fundo, no fundo, as tuas fúrias são filhas do vento, deixemos para esse maldito vento a expiação dos meus descontentamentos!

Afinal tu, MAR, sempre foste meu amigo! E, se calhar, quando eu te rogava coriscos, estavas tu, nos teus rugidos, a pedir ao vento que te deixasse em paz. Assim, não posso deixar de fazer as pazes contigo e enviar-te aquele abraço salgado com estes pequenos braços humanos que te querem apertar com tanta força quanta aquela que tu tens.

O teu companheiro e amigo,

Tibério


P.S. – MAR! Vou enviar cópia desta carta ao Criador. Ao nosso Criador! E pedir-lhe que prolongue tanto quanto Lhe aprouver o meu crepúsculo para que eu, por muitos, muitos anos, continue a ouvir falar de ti!
Uma crónica de Tibério Paradela

___________

Notas de leitura:

(**) Vd. postes de:

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21313: Agenda cultural (753): Arte urbana: mural, da autoria do artista plástico cabo-verdiano, António Conceição, de homenagem às mulheres da seca do bacalhau, e aos demais ofícios da Faina Maior... Gafanha da Nazaré,Ílhavo, agosto de 2020 (Ana Aveiro / Valdemar Aveiro)








 


 





Ilhavo > Gafanha da Nazaré > Viaduto de acesso ao acesso ao Cais Bacalhoeiro > Agosto de 2020 > Mural do artista de origem cabo-verdiana, natural do Mindelo, António Conceição, 50 anos de idade,  que se licenciou em Belas Artes na Universidade do Porto em 2005. 

Homenagem aos ofícios da Faina Maior, a pesca do bacalhau, e dos seus antigos ofícios, com destaque para as ,mulheres, trabalhadoras da seca do bacalhau, mas também os pescadores, as peixeiras, os marinheiros.... Entre os "lobos" da Terra Nova, destaca-se o nosso amigo Capitão Aveiro, o Valdemar Aveiro, que é uma lenda viva desta epopeia, além de escritor de grande talento .(E continua a trabalhar, no setor,  aos 85 anos, agora na área da gestão!),

Destaque também, no mesmo pilar, para a escritora ribatejana Maria Lamas (Torres Novas, 1893 - Lisboa, 1983), autora de "As Mulheres do Meu País" (1947-1950).

Transcrição de uma das obras do Capitão Aveiro: "A vida dos homens da Pesca do Bacalhau é uma vivência de excessos pela negativa. Vivendo quarentenas prolongadas entre dois desertos infinitos - Céu e Mar - para eles um Oásis é sempr eum Porto e a Mulher é a Miragem suprema".

Fotos: © Ana Aveiro (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 


Valdemar Aveiro, um dos últimos capitães da Faina Maior. 
Justa homenagem do artista António Conceição.


1. O Valdemar Aveiro, ou capitão Aveiro, como é carinhosamente conhecido e tratado na sua terra, é nosso amigo, meu e do arquitecto  José António Paradela. Tem uma dezena de referências no nosso blogue, ligadas à sua atividade como escritor e às suas memórias da pesca do bacalhau. Tem seis livros publicados na Âncora Editora. Acaba de nos mandar estas fotos, tiradas pela neta ou filha Ana Aveiro.

Por sua vez, temos 30 referências, no nosso blogue, à pesca do bacalhau que, para nós, está também associada à guerra colonial. Par muitos jovens  a Faina Maior foi uma não menos dolorosa alernativa à "guerra do ultramar".

De facto, não é demais recordar que  desde 1927, do tempo da Ditadura Militar (que antecedeu o Estafo Novo), havia legislação que veio promulgar medidas de incentivo ao desenvolvimento da pesca do bacalhau, e nomeadamente facilitar (e tornar mais atrativo) o recrutamento do pessoal (vd. Diário do Governo, 1.ª série, Decreto n.º 13441, de 8 de Abril de 1927).

Uma dessas medidas era justamente "a dispensa do serviço militar aos pescadores e marinheiros que tivessem cumprido um mínimo de seis campanhas de pesca consecutivas na frota nacional bacalhoeira". Frota heróica, diga-se de passagem!...A pesca do bacalhau é conhecida também como a Faina Maior.

Havia ainda a possibilidade de os mancebos apurados para o serviço militar beneficiarem de "adiamento até aos 26 anos"... Além disso, "a falta à junta de recrutamento podia ser relevada desde que os faltosos fizessem prova de que estavam embarcados"...

Conclusão; a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlândia, durante todo o Estado Novo, era um verdadeiro "desígnio nacional"...

O que este mural do artista António Conceição nos conta é, citando "O Ilhavense" ["Arte urbana está a ajudar a retratar antigos ofícios ligados à pesca do bacalhau", por Afonso Ré Lau, 30 de abril de 202'] , "um pouco da história não só das trabalhadoras das secas, mas de várias profissões ligadas à pesca do bacalhau" [dos pescadores aos marinheiros, passando pelas peixeiras].

(...) "O desafio de homenagear as mulheres que trabalhavam nas antigas secas partiu do empresário Leonardo Aires, da Frigoríficos da Ermida, empresa da Gafanha da Nazaré que se dedica à transformação e comercialização de bacalhau desfiado. O convite veio no seguimento de outra obra que António levara a cabo na fachada nascente do edifício-sede daquela empresa, mesmo ao lado do local onde surge, agora, este novo mural. " (...)

(...) "o que concerne a este mural de homenagem às mulheres que trabalhavam nas antigas secas de bacalhau, há um ponto prévio que António faz questão de esclarecer: 'Não fiz uma interpretação à luz de grande parte dos relatos que chegaram aos dias de hoje. Este é o meu olhar sobre o passado e é uma tentativa assumida de ‘fazer uma lavagem’ àquilo que parecia ser uma realidade muito triste, uma tentativa de corrigir essa noção de sofrimento e desgaste que nos transmitiram'.  

"Segundo o raciocínio deste criador, 'ao relatar tempos difíceis, o ser humano tem sempre tendência para choramingar e pintar cenários mais dramáticos do que a realidade'. 'Mas imaginem estas mulheres em grupo. Era uma alegria fantástica! Era impossível andarem todas consternadas', repara António. 'Para levarem a vida que levavam, aquelas mulheres tinham de ter muita força. Mas essa não era uma força de sofrimento, mas sim coragem e ânimo', acredita.

"Assim sendo, 'as mulheres aqui retratadas transpiram energia, juventude e até alguma bizarria – umas parece que estão a brincar, outras mais concentradas no trabalho. Quis criar essa combinação expressiva entre elas', conclui." (...)

(...) "Ao recuperar a memória destas mulheres e do seu ofício, António está a retratar um objeto cultural e patrimonial profundamente ligado à história pessoal de muitas das pessoas que por ali passam diariamente. Esta proximidade afetiva com a comunidade faz com que a obra se eleve, adquira um simbolismo especial e estimule uma participação cívica curiosa" (...)

(...) "Já nos anos de 1990, António pintava murais ligados à pesca artesanal, em Cabo Verde. Todavia, esta é a primeira vez que trabalha o tema da faina maior. Para conceber estes retratos, António fez pesquisa no Museu Marítimo, visitou antigas secas, mas também teve em conta a comunidade, as pessoas, os herdeiros diretos desta cultura e tradição. No fim, já não tem dúvidas, o imaginário da pesca do bacalhau 'é fascinante' " (...)

2. Nota biográfica sobre o capitão  Aveiro:

(i) Valdemar Aveiro nasceu em Dezembro de 1934, em Ílhavo, no seio de uma família
de pescadores;

(ii)  aos 15 anos concorreu à Escola Profissional de Pesca, ganhou uma bolsa de estudo que lhe deu acesso ao liceu e, posteriormente, à Escola Náutica, onde concluiu o Curso de Pilotagem;

(iii) embarcou como moço a bordo do lugre-motor Viriato para fazer uma viagem à pesca do bacalhau no sentido de suportar as despesas da sua formação;

(iv) em 1957 embarcou como praticante de piloto no navio Santa Mafalda, da Empresa de Pesca de Aveiro, sendo promovido no ano seguinte a piloto, a bordo do mesmo navio;

(v) pssou a oficial imediato, do navio Santa Joana, em 1960;

(vi) foi emigrante no Canadá, até que  em 1966 voltou à Faina Maior, embarcando no navio São Gonçalinho;

(vii)  no ano seguinte passou para um navio moderno, Santa Isabel, comandado pelo capitão David Calão;

(viii) assumiu, em 1970, o comando do mais velho arrastão português, Santa Joana, e, dois anos depois, foi convidado para comandar o navio Coimbra, então em construção nos Estaleiros de S. Jacinto;

(ix)  retirou-se por doença em 1988;

(x) após a sua recuperação, foi convidado a colaborar com a administração da Empresa de Pescas S. Jacinto, SA, sendo, desde 1991, membro do seu conselho de administração.