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terça-feira, 1 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12106: Estórias avulsas (69): Em memória do meu amigo Mamadú, pescador do Xitole, que pescava no Rio Pulom (Jorge Silva, ex-fur mil, CART 2716, Xitole, 1971/72)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) > Forças da CCAÇ 12, a descansar na Ponte dos Fulas (sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal), por ocasião de uma coluna logística Bambadinca - Xitole (Xitole era a unidade de quadrícula, do Setor L1, mais a sul; era a sede da CART 2716, em 1970/72).

Perspetiva: norte-sul, quando se vem de Bambadinca e Mansambo para Xitole e Saltinho.  A ponte, em madeira, de construção ainda relativamente recente e em bom estado, era vital para as ligações de Bambadinca e Mansambo  com o Xitole, o Saltinho e Galomaro... A ponte era defendida por um 1 Gr Comb do Xitole, em permanência, dia e noite... Na foto sãos visíveis, em segundo plano à esquerda, o fortim; em terceiro plano, ao fundo, à direita, as demais instalações do destacamento.

Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom. Perspetiva: sul-norte. A coluna logística, vinda do Xitole, regressa a Bambadinca, deixando atrás o destacamento da Ponte dos Fulas. Foto do álbum de Humberto Reis, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Humbero Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]

1. Mensagem do Jorge Silva  (que entrou para a Tabanca Grande em 23/8/2010; de rendição individual, esteve na Guiné entre 1/5/71 e 24/04/73, tendo passado pela CART 2716 e pelo BENG 447)


Luís Graça,

Um abraço e parabéns pelo óptimo trabalho que tens produzido no blogue que, cada vez mais, agrega ex-combatentes.

Baseado na realidade que vivi no Xitole, produzi um texto cujo tema reputo de interesse e que publiquei, em 28 de setembro último, no blogue da CART 2616.

Se o pretenderes divulgar e te der mais jeito em pdf, anexo-o neste formato.

Jorge Silva
ex-Fur Mil,
CART 2716 (Xitole,1971-72)
e BENG 447 (Bissau 1972/73)





Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Carta do Xime (1955) / Escala 1/50 mil > Subsetor do Xitolke > Posição relativa da Ponte dos Fulas sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal... Ficava na estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho... A oeste, o triângulo Galo Corubal / Satecuta / Seco Braima, controlado pelo PAIGC.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013).


2. Em memória do meu amigo Mamadú, pescador do Xitole

por Jorge Silva

A expressão raças humanas (branca, negra, etc.) resulta de um conceito antropológico antigo e ultrapassado, cada vez mais em desuso, embora o racismo continue a ser uma infeliz e nociva realidade.

Creio que em vez dessa divisão por raças em função da cor da pele devemos considerar, tão só, uma única raça: a raça humana.

Claro que há pessoas com cores de pele branca, negra, amarela e, até, vermelha. Tal como há pessoas que, apesar da cor da pele ser branca, têm olhos azuis, enquanto outros os têm verdes, ou castanhos, ou cinzentos, ou pretos... E há outras que sendo designadas por terem pele branca afinal têm-na muita morena (escura mesmo) e, a par disso, cabelos muito escuros (mesmo pretos), enquanto também as há de pele nitidamente branca e com cabelos loiros.

Hitler foi um verdadeiro e demoníaco “mestre” nestas distinções. E por isso tornou-se o primeiro responsável pelo genocídio de milhares e milhares de seres humanos, para além das nefastas consequências de uma guerra mundial que prejudicou de forma irreparável a humanidade. Hitler não quis ou não foi capaz de perceber que tal diversidade humana é um dom da natureza e uma mais valia da humanidade. E por isso procurou destruir a obra humana, criada pela própria natureza, cuja diversidade os homens se encarregaram de ir enriquecendo ao longo de milhares e milhares de anos.

Ao contrário de Hitler saibamos, pois, aproveitar a riqueza dessa diversidade. E para tal ultrapassemos preconceitos com mais informação válida e mais conhecimento, pois enquanto eles persistirem não seremos capazes de compreender as diversas realidades, costumes e culturas.

Eu tive a sorte de ter a oportunidade de poder começar a compreender as referidas diferenças a partir de 1971.

Com 22 anos fui para a Guiné (Xitole). Branco, e crescido no meio de brancos, fui conviver com negros. Católico,  fui para o meio de muçulmanos, de etnia Fula.

Tive lá um amigo especial, o pescador do Xitole que, na altura,  teria 40 e tal anos, mas que quando tinha apenas 15 anos foi levado de Dakar pelos franceses até Paris para, mesmo sendo menino, ser incorporado no exército francês e ser forçado a participar na última guerra mundial.

O pescador (que,  se a memória não me falha,  se chamava Mamadú), era um homem maduro, vivido e culto. Quando estive destacado na Ponte dos Fulas, juntamente com o David Guimarães, o pescador acompanhou-nos e, com excepção dos fins de semana, em que ia para junto da família, permaneceu connosco cerca de um mês, para lançar as redes no Rio Pulom e capturar o peixe que nos saciou a fome.

Nas muitas conversas que tive com o Mamadú, um dia perguntei-lhe porque é que os homens do Xitole passavam os dias sentados na aldeia enquanto as mulheres se entregavam à vida dura da agricultura, inclusive com filhos às costas e outros a seu lado. E, soltando o que me ia na mente, perguntei-lhe porque é que tais homens não ajudavam as mulheres nos trabalhos agrícolas e, ainda de forma mais directa, se tal se deveria ao facto de esses homens não gostarem de trabalhar...

O meu amigo pescador captou-me o preconceito e,  com imensa calma, feita de muita sabedoria, o Mamadú perguntou-me se na minha terra (Porto) eu encerava o chão, lavava a louça, lavava a roupa à mão, estendia a roupa para secar, passava a roupa a ferro, etc., etc.

Estávamos em 1972 e, também por preconceitos, tudo isso era, inquestionavelmente, trabalho de mulher. De tal modo que qualquer homem que assumisse a realização dessas tarefas seria alvo de epítetos nada abonatórios nem desejáveis.

Naturalmente respondi-lhe que não, o que correspondia à verdade. Mas mesmo que assim não fosse ter-lhe-ia dito na mesma que não. Com um sorriso amigo e de compreensão ele explicou-me que lá no Xitole as coisas também funcionavam de idêntico modo, pois trabalhar a terra era serviço exclusivo de mulher, pelo que se algum homem fosse ajudar a mulher a trabalhar a terra perderia a consideração e o respeito da aldeia.

E, completando a lição, o Mamadú explicou-me que os Fulas eram comerciantes por natureza, pelo que estavam sentados à espera que a guerra acabasse para, sem correrem perigos, poderem trilhar as matas, de aldeia em aldeia,  com a mercadoria às costas, para comercializarem os seus produtos e sustentarem a família.

Percebi, então, que esses amigos Fulas do Xitole não eram malandros. A guerra é que o era. De tal forma que nem sequer os deixava trabalhar.

Aprendi, então, que não devia avaliar os outros à luz da minha cultura e dos meus valores e muito menos com a mente envenenada por preconceitos. O meu amigo Mamadú, pescador do Xitole, ensinou-me isso e muitas coisas mais. E com isso ajudou-me a crescer e a ser homem.


Há pouco tempo informaram-me que ele já teria falecido, o que muito lamento. Evoco-o deste modo, cumprindo uma obrigação que tinha para com esse amigo, já que deixei passar a oportunidade de, olhos nos olhos, lhe agradecer o quanto me ensinou, com uma paciência, uma maturidade e uma humildade difíceis de igualar, a atestar que tive o ensejo de ter estado diante de um homem culto e bom de pele negra.Obrigado, Mamadú, velho pescador do Xitole. E, apesar de ser católico,  desejo que Alá te guarde.

Jorge Silva [, foto à esquerda, do tempo da CART 2716, Xitole, 1971/72]




Página do blogue da CART 2716 (Xitole, 1970/72), Amigos do Xitole,  criada e administrada pelo Jorge Silva
________________

Nota do editor:

Último poste da série > 30 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12105: Estórias avulsas (68): Do meu Álbum de Fotos sobre Galomaro 2 (José Ribeiro)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7862: (Ex)citações (133): Obrigadinho, Jorge, salvaste-me a vida!... (David Guimarães, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 2716, Xitole, 1970/72)


Guiné-Bissau > Zona Leste > Saltinho > 2001 > O David Guimarães junto à ponte sobre o Rio Corubal, no Saltinho, um dos sítios paradisíacos da Guiné, onde havia, durante a guerra colonial, um aquartelamento que ficava a 20 Km de Xitole na estrada Bambadinca-Aldeia Formosa (hoje, Quebo). Esta ponte, no nosso tempo (1969/71), chamava-se Craveiro Lopes, e estava interdita...


Foto:  © David Guimarães (2005). Todos os direitos reservados




Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > "No Saltinho, as bajudas continuam lindas, ontem, como hoje", escreveu o José Teixeira, quando lá voltou em Abril de 2005... (E já lá voltou depois mais vezes, e vai voltar em Abril de 2011, desta vez levando os filhos, um deles médico)...  Mas esta é (ou era, no nosso tempo) também uma região... palúdica, devido à existência de rios e charcos de água, acrescenta o nosso David Guimarães, que fez do Xitole, tabanca também ribeirinha do Corubal mas mais a norte, a sua tabanca da Guiné...


Muita malta não sabe que o David Guimarães, filho de de um herói da 1ª Guerra Mundial (!), também foi vítima... do paludismo, como quase todos nós, tanto ou mais do que dos encantos das bajudas fulas... Além de mestre da viola, foi um exímio manipulador de minas e armadilhas... Brincou muitas vezes com o fogo, mas felizmente para ele (e para nós, seus camarigos) teve a sorte do seu lado (o mesmo não se  pode dizer dos infelizes Quaresma, decapitado, e Leones, que ficou cego e sem dedos) (LG) (*) 


Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados




1. Mensagem do  David Guimarães (nosso camarigo, tabanqueiro da primeira hora, Maio de 2005), com comentários ao Poste P7857 (**):

Luis, e restantes camaradas... JORGE:

Esta entrada de Jorge Silva (**) , com seus escritos de memória (na tabanca), se a todos será de boa e interessante leitura,  a mim não me poderá passar ao lado naturalmente. Não tenho comentado muito as situações vividas por todos os companheiros e eu mesmo ali pelas Tabancas de Matosinhos e dos Melros. Enfim,  assinalo pelo menos a minha presença... Nque os escritos valem o que valem e será o ponto que mais nos poderá unir uns aos outros...

Um dia alguém disse (creio que o Mexia Alves)  que todos acabamos por ter uma terra na Guiné, que foi aquela onde estivemos aquartelados... Uns tiveram mais que uma,  caso dele e caso do Jorge...



E então vamos, eu dar os parabéns a um combatente que a esta distância descreve uma operação sem a ajuda de nenhum escrito, sem nenhum apontamento (ontem mesmo o Jorge me confirmou) e com aqueles pormenores, a nível de ser um dilagrama lançado da G3 do nosso camarada de que o Silva fala e que vive para aí em Vila de Azeitão, o Rei, (então,  sim,  é memória de elefante), a parar uma emboscada...

Ao Jorge, num comentário que fiz logo ao Silva,  só lhe corrigi isto: não foi uma avioneta mas sim um helicópetero quem nos guiou... Logo ele corrigiu em documento final,  sendo que eu,  então já documentado,  informei o nome da Operação [...

Nessa operação, que o Jorge tão bem conta, na cena do dilagrama estava eu junto do Rei, assim se chama o nosso ex-camarada e querido amigo... Trocava eu e ele cigarro e lume e eis que as costureirinhas começaram a funcionar... Imediatamente nos deitamos atrás de uma árvore bem fina para abrigar um e eu disparei três tiros de G3,  ainda hoje me pergunto porquê... A tensão era maior claro, e ele disse:

- Calma,  Guimarães ... - E lá foi o bendito engenho que os calou...

Nunca vi um documento tão bem escrito como este do Jorge quanto a precisões e detalhes do que nesse dia se passou, em que não conseguimos entrar em Satecuta porque eles não deixaram...  Que coisa esquisita,  tudo aos tiros e as granadas de morteiro deles a caírem bem entre a nossa companhia, foi o dia em que senti terra a cair por cima de mim, manga de cu pequenino mas, no fim,  disse eu no comentário ao texto dele:

- Que sorte tivemos,  Jorge!...


Nunca mais daríamos com o caminho de volta... e a operação acabou,  como ele disse claro... PONTE DOS FULAS,  XITOLE, com  todos a receber-nos eufóricos de alegria, uma companhia de indivíduos que tinham saído de camuflados muito limpos e regressavam todos sujos, cansados,  mas se a missão não tinha sido cumprida, pelos motivos mais que  evidentes de não termos entrado no aquartelamento/tabanca deles, vínhamos no entanto todos com os dedos a mexer... Aquela água dos bidões limpou-nos por fora e as bazucas  [, cerveja,] como Jorge diz e bem, limpou-nos por dentro e serviu de calmante...´


Assim tenho que evidentemente render homenagem ao Jorge que começou a escrever e bem - e já está a falar da minha terra da Guiné, XITOLE...

Estou á espera - ontem falámos nisso - , de como ele um dia me salvou a vida... Diz-me o Jorge, andávamos nós a desmontar as minas, na sobreposição...

- Olha aí entre os teus pés... - Eram as três hastes da espoleta de uma mina antipessoal m/966 que eu tinha montado no início da Comissão junto ao aquartelamento mas com capim...


Quando fomos levantar,  estávamos no tempo seco, levei o detector de minas para não correr riscos e só aí vi que o risco foi maior ainda: aquele local tinha sido antes uma antiga serração e o chão estava juncado de matéria metálica das serras... Lá se fora o préstimo do detector de minas pois apitava em todo o lado... Como eu tinha a certeza que tinha sido ali, pronto,  foi fácil detectá-la,  olhando só,  que eu quase a calcava... Assim se morre no fim da guerra, mas  ainda bem que o Jorge estava lá pela beira....


OBRIGADINHO, Jorge,  salvaste-me a vida ou partes do corpo...


Colando o Blogue que o Jorge fez dentro do mesmo espírito que o nosso - acho muito giro que seja aproveitado tudo o que ele conta da ponte dos Fulas (e daquele ponto de tiro que ele engendrou em cima do Fortim junto à ponte onde se meteu uma metralhadora - creio... e tantas peripécias que ele sabe tão bem quanto eu durante o tempo que lá andou - antes de ir para "empresário de festas" no BENG em Bissau - após a nossa vinda para a Metrópole, assim era na altura)...

Parabéns,  Jorge,  e agora escreve e vai ler o que digo e é do teu tempo - para ver se pomos ordem na nossa Companhia....

Um abraço,

David Guimarães
Furr Mil 173545368
At Art Minas e Armadilhas

CART 2716,
Xitole,  1970/1972


PS - Continua, Jorge Silva,  conta aquela vez em que eles apontaram pela primeira vez os canhões em recuo para o Xitole e parece que dispararam em rajada - e tu a tomares banho ... Contaste-me ontem... Não contes quando um dia andavam à minha procura e não me encontravam, e,  pronto,  estava eu e o Martins metidos na vala junto ao nosso abrigo, tínhamos bebido um pouquinho a mais só,  e aquele metro e meio de vala era muito alto e a cerveja era pesada para caramba...



____________________


Notas de L.G.:


(*) Vd.  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, I Série, poste de 10 Julho 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: Com minas e armadilhas, só te enganas um vez (David Guimarães)


(**) Vd. poste de 24 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7857: (Ex)citações (132): O glorioso dia zero, 25 de Março de 1972, o mais feliz da vida dos jovens da CART 2716, o da véspera do regresso a casa (Jorge Silva)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7857: (Ex)citações (132): O glorioso dia zero, 25 de Março de 1972, o mais feliz da vida dos jovens da CART 2716, o da véspera do regresso a casa (Jorge Silva)


Guiné > Bissau > 25 de Março de 1972  > Cerimónia de despedida da CART 2716 (Xitole, 1970/72), do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), na presença do Com-Chefe General  Spínola.


Foto: © Jorge Silva  (2010). Todos os direitos reservados (Com a devida vénia...)



1. O nosso camarada Jorge Silva, que vive em Ermesinde, Valongo, tem um blogue, Amigos do Xitole, onde já escreveu duas coisinhas... Gostei  muito da primeira... Acho que merece maior divulgação, até por que, tendo sido  ele de rendição individual, faz aqui uma homenagem aos seus camaradas da CART 2716, que comemoraram o seu dia zero em 25 de Março de 1972 (Ele continuaria no BENG até 1973)... Tomo por isso liberdade de reproduzir esse poste na sua totalidade (com excepção das fotos) (*).



2. Memórias das vésperas do dia mais feliz da CART 2716
por Jorge Silva

A CART 2716, enquanto unidade do BART 2917 (Bambadinca), teve a seu cargo a defesa da zona do Xitole, no leste da Guiné, entre 1970 e 1972.

A CART 2716 era uma companhia quase exclusivamete formada por jovens milicianos (na casa dos 20 a 23 anos), incluindo o Capitão [Miliciano de Artilharia] Espinha de Almeida (comandante) [ de seu nome completo,  Francisco Manuel Espinha de Almeida]  que, de entre eles, era o mais velho, apesar de apenas contabilizar três décadas de vida.

[Legenda da foto, à esquerda, Guiné > Zona Leste > Xitole > CART 2716 >1970: Da esquerda para a direita: O Cap Mil Espinha de Almeida, o Fur Mil Guimarães e o Alf Mil ]


Foto: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reservados


Apenas havia dois elementos do quadro permanente - os sargentos Santos e Pires que, apesar de mais maduros, eram, mesmo assim, homens relativamente jovens, na casa dos quarenta e tal anos.

Como tantos outros da época, no ex-ultramar português os jovens da CART 2716 foram impedidos de viver com normalidade uma fase crucial do seu amadurecimento.  No leste da Guiné, longe de tudo que lembrasse um resquício de civilização, foram prematuramente forçados a trocar:

(i) as convidativas praias estivais pelos perigos do capim e das matas;

(ii) os passeios com as namoradas pelos patrulhamentos e operações na companhia de camaradas de armas;

(iii) o conforto dos lares por toscos abrigos cavados no solo e cobertos de troncos, terra e cascalho, que também serviam de abrigo a cobras e outros répteis;

(iv) a apetecível comida portuguesa por refeições improvisadas à base de arroz, de conservas de cavala e de rações de combate, onde a sobremesa tendia teimosamente a ser goiabada e uma simples refeição com batatas era um luxo festejado;

(v) a promissora (embora amordaçada) rádio portuguesa pelas emissões intencionalmente intimidatórias da rádio PAIGC, enquanto instrumento da vertente psicológica da guerrilha;

(vi) a música melódica e harmoniosa das boites e bares dos anos 70 pelas batidas ruidosas dos morteiros e dos canhões sem recuo, misturadas com solos estridentes das famigeradas e temidas costureirinhas (pistolas metralhadoras);

(vii) a pacata família de origem por uma família de armas adoptiva, onde umas caixas de transporte de bacalhau se transformavam, milagrosamente,  num guarda-fatos, uma lata de coca-cola passava, de repente, a chamar-se copo ou chávena e os objectos que evocavam uma infância ainda bastante próxima tinham sido macabramente substituídos por metralhadoras G3, morteiros, bazucas e granadas;

(viii) os melhores anos e sonhos das suas vidas por um poço sem fundo de incertezas, de incomodidades e de perigos, que alguns nem sequer tiveram o ensejo de evocar no feliz dia do regresso, simplesmente porque a guerra colonial se encarregou de lhes amputar esse elementar direito.

Como tantos outros da época, no ex-ultramar português os jovens da CART 2716 foram impelidos a amadurecer num contexto que, felizmente, nos dias de hoje os seus filhos e netos têm imensas (e compreensíveis) dificuldades em captar e compreender, inclusive nos seus mais simples contornos.

Uma simples rotina da época ajudará, por certo, a ilustrar melhor o que as palavras e as fotografias não conseguem documentar.  Era usual os militares improvisarem uma folha com números inscritos desde 730 até 0, onde cada número ia sendo assinalado (abatido) sempre que passava mais um dia da sua comissão de serviço.

Neste particular, como em tantos outros, os objectivos individuais e colectivos coincidiam com o sonho do glorioso dia zero, o que ajudava a cimentar as relações de camaradagem (e amizade) existentes.

Em 25 de Março de 1972 [, no original, vem 1971, por lapso,] , quando eu ainda apenas assinalava no meu mapa o 401º dia a generalidade dos elementos da CART 2716 marcava, de forma inexorável, merecida e seguramente festiva, o ambicionado dia zero, deixando para trás trilhos que não tinham sido livremente escolhidos para readquirir o direito de passar a procurar os trilhos de reintegração na vida.

As imagens que se seguem (*) ilustram a cerimónia militar (desfile) que decorreu em Bissau, no quartel dos Adidos, antes de a generalidade dos elementos da CART 2716 (e do BART 2917) embarcarem, rumo às terras onde nasceram e aos braços saudosos dos familiares e amigos que emocionadamente os esperavam.

As fotos que figuram adiante são, por isso, uma espécie de hino a um punhado de homens (muito jovens na sua maioria) que se viram privados do direito de amadurecer como é comum os jovens amadurecerem em tempos de paz.

Pela minha parte, sinto a obrigação de, através das fotografias seguintes, lhes prestar esta singela homenagem, inclusive em memória do acolhimento, apoio e camaradagem que deles sempre recebi nos longos meses que partilhámosno Xitole.

Jorge Silva

(ex- Fur Mil At Art.
CART 2716, Xitole 1971/72,
e BENG 447, Bissau 1972/73)

[Revisão / fixação de texto /  título: L.G.] (**)

 ___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. Blogue do Jorge Silva Amigos do Xitole > 4 de Setembro de 2010 > Memórias das vésperas do dia mais feliz da CART 2716

(**) Último poste da série > 12 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7768: (Ex)citações (131): Saudades de quê ?... Será que sou masoquista ?... E por que é que leio o raio deste blogue e até faço comentários ? (C. Martins)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7843: Estórias avulsas (49): Passeio turístico a um acampamento do PAIGC em Satecuta em 1971 (Jorge Silva, ex-Fur Mil Art, CART 2716 / BENG 447, Xitole e Bissau, 1971/73)


1. O nosso Camarada Jorge Silva (ex- Fur Mil At Art da CART 2716, Xitole 1971/72, e BENG 447, Bissau 1972/73) (*), enviou-nos em 21 de Fevereiro de 2011 a seguinte mensagem:

Luís Graça, anexo um relato de uma operação a Satecuta - 1971 - CART 2716, bem como uma foto minha da época. Se tiver interesse para publicação, pode utilizar.

1971 - Passeio turístico a um acampamento do PAIGC em Satecuta...

Incluído na CART 2716 (Guiné - Xitole), em 11 de Julho de 1971, integrei a operação Quadrilha Sagaz a Satecuta, onde, depois de termos os dois guias feridos num primeiro confronto, fomos forçados a retirar, sofrendo mais duas emboscadas.
Ao chegarmos às imediações de Satecuta, fizemos uma paragem para aguardar pelo nascer do sol, de forma a podermos desencadear o ataque com a luz do dia. No entanto, uma patrulha de dois elementos do PAIGC aproximou-se da nossa posição.
A escassos cinquenta metros do ponto onde nos encontrávamos, e sob a mira de dezenas de G3, os dois patrulheiros fizeram-nos crer que não nos tinham localizado e, com um sangue frio impressionante, estiveram alguns momentos no local, como se executassem meras rotinas de patrulhamento.
De súbito, os dois guerrilheiros desapareceram no arvoredo, ao mesmo tempo que dispararam na nossa direcção rajadas de costureirinha que, no acampamento do PAICG, soaram como uma estridente sirene de alarme.
A ordem sensata do Cap Mil Espinha de Almeida para que ninguém disparasse, não tinha servido de nada, pois, pelos vistos, a nossa presença já estava há muito denunciada.
Se tivessemos connosco uma bolinha de cristal que nos ajudasse a antever o futuro, aqueles dois ousados guerrilheiros tinham ficado ali mesmo, com os corpos cravejados de balas, pois, entre serem eles ou nós a dar o alerta, teríamos preferido, seguramente, que o som de alarme se assemelhasse ao das rajadas da G3.
Mas, vistas as coisas com os olhos de hoje, ainda bem que assim foi, pois, no mínimo, pouparam-se duas vidas que são bem mais preciosas do que os troféus que naquela altura pudéssemos exibir.
Depois de ficarmos a saber o que nos esperava, não havia outro remédio senão avançarmos rumo a Satecuta, que estava ali tão próxima. Foi o que fizemos, mas como se esperava a marcha foi curta, pois o PAIGC interrompeu-a com uma primeira emboscada, conseguindo a proeza de nos ferir os dois guias guineenses, que tiveram de ser evacuados de helicóptero.
Durante essa primeira emboscada, afigurou-se-nos que vinham rajadas do cimo de uma árvore. O Fur Mil Rei, que adorava dilagramas (granadas disparadas com a G3), disparou um para a copa da árvore suspeita, tendo provocado uma nuvem de folhas. E a sensação de que daí provinham rajadas desapareceu de imediato, embora nunca soubéssemos se alguém do PAIGC foi atingido.
Sem guias ficámos sem rumo. E a solução óbvia foi retirar. Sentimos naturais dificuldades para encontrar o caminho de regresso, pois para quem nasceu e cresceu no meio de vilas e cidades, com ruas e avenidas para poder circular, os pontos de referência no meio do mato são extraordinariamente difíceis de distinguir. No meio do arvoredo, com as tensões ao rubro, ao citadino tudo parece igual!
Sem conhecermos o rumo certo, tivemos a sensação de que tínhamos caminhado em círculos, sem conseguirmos avançar. E, entretanto, para aumentar a sensação de desorientação, sofremos mais duas emboscadas, que, para além do susto e das tensões produzidas, felizmente não tiveram mais consequências. Debaixo de fogo os ponteiros do relógio parecem parar enquanto a adrenalina acelera, o que provoca a sensação amarga de que o ataque dura uma eternidade!
Para identificarmos a direcção correcta do regresso valeu-nos a preciosa ajuda de um helicóptero que, com alguns voos bem direccionados, nos assinalou o sentido contrário ao que seguíamos como sendo o caminho para a Ponte dos Fulas, por onde tínhamos necessariamente de passar para voltarmos, sãos e salvos, ao quartel do Xitole.
Finalmente lá conseguimos chegar incólumes ao Xitole, onde o balão das tensões acumuladas se esvaziou num ápice com a ajuda de umas bazucas (cervejas de meio litro) e a recepção solidária e calorosa que só quem esteve em idênticas circunstâncias tem condições para valorizar.
Como os turistas que fizeram parte dessa excursão se esqueceram de levar máquinas fotográficas ou máquinas de filmar, lamento não ter imagens para documentar o relato. (**)

Um abraço,
Jorge Silva
Fur Mil At Art da CART 2716/BART 2917 e BENG 447
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Nota de M.R.:

(*) Vd. poste de > 23 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6890: Tabanca Grande (237): Jorge Silva, ex-Fur Mil At Art, CART 2716 (Xitole, 1971/72), e BENG 447 (Bissau, 1972/73)

(...) Chamo-me Jorge Silva, ex- Furriel Miliciano, atirador de artilharia. Mobilizado em rendição individual, estive na Guiné entre 01/05/71 e 24/04/73.

De 1971 a 1972 estive no Xitole (CART 2716), juntamente com o David Guimarães, entre muitos outros. Como a CART 2716 regressou em Março de 1972, ingressei (milagrosamente) no Batalhão de Engenharia de Bissau (BENG 447). Depois de aceder ao seu blogue (e a outros que se lhe ligam) resolvi puxar pela memória e escrever algo, à medida que vai saindo.
Em breve terei fotos (minhas) e da época para partilhar. Como não sabia como fazer para utilizar o seu blogue (se tal é possível), resolvi criar um, Amigos do Xitole (http://cart2716.blogspot.com/) onde já publiquei 2 temas. (...)

(**) Vd. o último poste desta série em:

20 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7823: Estórias avulsas (103): Pedaços da vida dum bígamo... (Belmiro Tavares)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6890: Tabanca Grande (237): Jorge Silva, ex-Fur Mil At Art, CART 2716 (Xitole, 1971/72), e BENG 447 (Bissau, 1972/73)



Blogue do Jorge Silva, Amigos do Xitole... O Jorge foi Fur Mil, de rendição individual (1971/73), tendo prestado serviço na CART 2716 (Xitole, 1971/72) e no BENG 447 (Bissau, 1972/73).




Aspecto da passagem de uma coluna de reabastecimentos na estrada Bambadinca-Xitole, antes da Ponte dos Fulas. Vê-se uma viatura militar com tropas nativas (CCAÇ 12) e, de pé, à esquerda, um elemento da CART 2716 que fazia a segurança da estrada.  (JS)


Foto (e legenda): © Jorge Silva (2010). Todos os direitos reservados
1.  Mensagem de Jorge Silva, que vive em Ermesinde, Valongo, enviada no dia 18 do corrente: 

Assunto: Guiné - Xitole

Os meus melhores cumprimentos. Chamo-me Jorge Silva, ex- Furriel Miliciano, atirador de artilharia. Mobilizado em rendição individual, estive na Guiné entre 01/05/71 e 24/04/73.

De 1971 a 1972 estive no Xitole (CART 2716), juntamente com o David Guimarães, entre muitos outros. Como a CART 2716 regressou em Março de 1972, ingressei (milagrosamente) no Batalhão de Engenharia de Bissau (BENG 447). Depois de aceder ao seu blogue (e a outros que se lhe ligam) resolvi puxar pela memória e escrever algo, à medida que vai saindo.

Em breve terei fotos (minhas) e da época para partilhar. Como não sabia como fazer para utilizar o seu blogue (se tal é possível), resolvi criar um, Amigos do Xitole (http://cart2716.blogspot.com/) onde já publiquei 2 temas.

Caso tenham algum interesse,  poderá utilizá-los como bem entender. Não me lembro se nos encontrámos em terras da Guiné, mas creio que sim. Um abraço, Jorge Silva


2. Comentário de L.G.:

Meu caro Jorge (foto à direita):

É mais do que provável termo-nos encontrado, nomeadamente no Xitole (mas também em Bambadinca), na sequência de colunas logísticas da CCAÇ 12 e de operações conjuntas no Sector L1... Atravessei, diversas vezes, a Ponte dos Fulas que tu evocas tão bem no blogue que acabas de criar. Percebo o teu interesse em partilhar connosco as memórias desse tempo e lugar. E louvo a tua iniciativa de criar o teu próprio blogue, com um nome tão sugestivo, Amigos do Xitole: Em nome do passado, o Xitole merece ter futuro... 

É também o nosso lema: a Guiné-Bissau e os nossos amigos e irmãos guineenses merecem ter futuro... 

Vens juntar-te à nossa Tabanca Grande (*), de que o David Guimarães, teu camarada, foi/é um histórico, remontando a sua entrada logo ao início, em Maio de 2005, se não me engano... Conheces as nossas regras do jogo já que acompanhas tanto o nosso blogue como o blogue da Tabanca de Matosinhos... Gostaria, entretanto, que me mandasses uma foto tua actual.  Com a tua entrada, passamos a ter 439 tabanqueiros...

Entretanto, da CART 3492 (que foi substituir a CART 2716) temos muito mais camaradas, como tu sabes, a começar pelo Álvaro Basto, co-fundador e co-administrador do blogue da Tabanca de Matosinhos & Camaradas da Guiné.

Um Alfa Bravo para ti. Luis
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Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série > 20 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6875: Tabanca Grande (236): Bernardino Rodrigues Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846 e CCAÇ 16 (S. Domingos e Bachile, 1971/73)