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sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23655: Os bu...rakos onde vivemos (15): O destacamento da Ponta do Inglês que tinha um gerador que nunca funcionou e onde havia um poço a 700 metros do arame farpado, que servia três clientes: as NT, o IN e a população sob o seu controlo (e que, por isso, nunca foi envenenado) (António Vaz, 1936-2015, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)



Guiné > Região de Bafatá > Xime > Ponta do Inglês > O destacamento da Ponta do Inglês, um dos muitos "bu...rakos" onde viveu gente nossa, neste caso de dezembro de 1964 e outubro de 1968. Ilustrações de Vera Vaz (2012).


1. Houve muitos sítios "desgraçados" onde vivemos, ao longo da guerra da Guiné... Temos uma série a que chamámos "Os bu...rakos em que vivemos"... Publicaram-se 14 postes, em março e agosto de 2009. 

Pela amostra (*), vê-se que estamos longe de ter um painel representativo dos nossos aposentos "bunker...izados", sítios onde nem sequer havia geradores nem muito menos "climatizadores de pesadelos"... Muitos outros postes dos já 23 mil e tal que já publicámos, podiam caber nesta série...

Às vezes redescobrimos alguns e achamos que vale a pena "refrescá-los" e pô-los nesta série... Por uma razão ou outra. É o caso do poste P10009 (**), primorisamente escrito pelo nosso saudoso António Vaz (1936-2015) (***) e ilustrado pela sua filha (salvo erro) Vera Vaz. Eze topónimo, "Ponta do Inglês", tem mais de quatro dezenas de referências no nosso blogue.


O destacamento da Ponta do Inglês

por António Vaz (1936-2015) 
(ex-cap mil, CART 1746. Bissorã e Xime, 1967/69)

− Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo… − disse, ao aterrar  [no seu heli] o brigadeiro Spínola. 

−  Saiba V. Exa. que está na Ponta do Inglês − respondeu o alf mil João Mata, da CART 1746,  que usava na ocasião calções, barba, tronco nu e uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal.

[É com este saboroso diálogo, entre o novo "homem grande de Bissau" e um oficial miliciano já completamente "apanhado do clima", que poderei  contar a história ou o resto da história do destacamento da Ponta do Inglês.]  A Cart 1746 saiu de Bissorã a 7 de janeiro de 1968,  seguindo de Bissau para o Xime via Bambadinca,  a bordo da barcaça Bor. Um grupo de combate seguiu directamente para a Ponta do Inglês onde rendeu o pessoal da CCAÇ 1550.

Este pelotão da Cart 1746 era comandado pelo alf mil Gilberto Madail [mais tarde, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, entre outros cargos], e que lá permaneceu [naquele bu...rako,] cerca de 4 meses, sendo substituído por outro, comandado pelo alf Mil João Guerra da Mata que lá esteve até outubro [de 19681], data em que este destacamento foi abandonado,[por ordem de Spínola] .

A Ponta do Inglês foi ocupada e os abrigos construídos em dezembro de 1964 na Op Farol pela CCAÇ 508,  comandada pelo malogrado capitão Torres de Meireles, morto em combate na Ponta Varela.

Não controlavam nada na foz do Corubal e nada podiam fazer em conjunto com o pessoal do Xime para manter aberto o itinerário Ponta do Inglês / Xime porque a Companhia do Xime ocupava também Samba Silate, Taibatá, Demba Taco e Galomaro. Assim o seu isolamento era, foi, praticamente total.

Os géneros só a Marinha os podia levar e o mesmo se pode dizer das munições, correio, tabaco, combustível, etc.

A chegada dos abastecimentos era motivo de alegria geral como se pode ver nas imagens que junto.

Por muito que o pessoal controlasse os gastos, a falta de quase tudo fazia-se sentir. Bem podia o Comando da Companhia pedir insistentemente pela vias normais a satisfação dos pedidos que não conseguíamos nada. Cheguei a tentar meter uma cunha directamente na Marinha, mas as prioridades eram outras. Como alguns géneros recebidos da Companhia que lá tínhamos rendido, estavam deteriorados, a situação ainda foi pior. Esta situação originou, a pedido do alf Madail, o Fado da Fome, que o Manuel Moreira ilustrou nas quadras populares da sua autoria.

O destacamento da Ponta do Inglês era a pequena distância da margem do Rio Corubal e tinha a forma quadrangular. A guarnição era formada por 1 Gr Comb + 1 Esq Pel Mort 1192 e pelo Pel Mil 105.

O destacamento era formado por 4 abrigos principais nos vértices para o pessoal, para a mecânica e rádio. O combustível e as munições ficavam na parte mais perto do rio Corubal; na parte central sob uma árvore frondosa (poilão?) um abrigo mais pequeno onde ficava o alferes, o enfermeiro e, logo ao lado, o forno do pão e uma cozinha, tudo muito rudimentar. Tinha o espaldão do morteiro na parte central. Não tinha, ao contrário do Xime, paliçada e apenas duas fiadas de arame farpado.

Os abrigos eram de troncos de palmeira com as indispensáveis chapas de bidão, terra e não eram enterrados. Uma saída na direcção do rio e outra no lado oposto para as idas à água e à lenha. No destacamento havia um Unimog para estas tarefas.

A água era tirada a balde de um poço existente a cerca de 700 metros do arame farpado que também era utilizado pela população, totalmente controlada pelo IN, e pelo próprio IN, sem nunca este ter aproveitado as nossas idas à água e à lenha para nos incomodar e vice-versa

Diz o Manuel  Moreira  [1945-2014]

O poço era um só,
Estava longe do abrigo,
Dava a água para nós
E também p’ro inimigo.

As noites eram passadas como se calcula, com as sentinelas nos quatro cantos do quadrado e a malta a ver e a ouvir os rebentamentos que vinham da direcção de Jabadá, de Tite, Porto Gole e do Xime, claro. Pode ser sinistro mas não é difícil pensar que muitos diriam.
Este destacamento teve sempre uma triste sina porque não tinha meios senão para... "estar". A dispersão de meios que encontramos no 
[sector] L1 a isso conduzia. Nunca serviu de nada a não ser castigar, sem culpa formada, as guarnições que para lá eram enviadas.

− Antes eles do que nós.

Como de costume, depois das tarefas de rotina, quando o calor era menos intenso seguia-se o eterno futebol com bolas dadas pelo MNF, de péssima qualidade, substituídas pelas tradicionais trapeiras. Num dos reabastecimentos que se fizeram, conseguimos levar para, além de gado mais miúdo, algumas vacas, que como sabemos, na Guiné são de pequeno porte. Como o futebol também farta, houve alguém que sugeriu tourear uma das vacas que ainda estava viva para tardios bifes.

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A vaca tísica... Ilustração de Vera Vaz (2012)

Foi uma festa com as peripécias inerentes à Festa Brava e todos os dias “a las cinco en punto de la tarde” soltava-se a vaca e era um corrupio de faenas com cornadas… incompetentes. O tempo foi passando e já só restava um dos pobres animais para animar os fins da tarde.

Como o reabastecimento nunca mais chegava e o atum com arroz já não se podia ver e muito menos comer, o alf Mata teve de decidir entre o partido pró-tourada e o partido pró-bife. Não foi fácil, mas acabou por vencer este último. Convocou-se o soldado condutor J. Viveiro Cabeceiras que também era padeiro, magarefe e pau para toda a obra, que procedeu à matança. Começando a esquartejar a rês, vai ter com o alferes e informa-o que a vaca estava tísica, pulmões quase desfeitos.

− Come-se a vaca... ou não se come a vaca?

Nova discussão e resolveu-se não aproveitar as vísceras e apenas o músculo. Assim se comeu carne assada sem problema de maior. Quando esta acabou voltou-se ao atum aos enlatados, tudo coisas que já escasseavam mas o pessoal andava triste com a falta dos fins de tarde taurinos. Então o Cabeceiras foi ter com o Alferes e disse-lhe:

− Meu alferes, a malta anda tão triste que se quiser e autorizar eu faço de vaca pois guardei os... cornos.

E assim de conseguiram mais uns fins de tarde…

Nunca percebi por que razão se fez o destacamento, afastado do único poço com água potável... Uma proposta de sã convivência? O caso é que resultou.

O que se passou nos tempos infindáveis em que o gerador esteve avariado, assunto já abordado neste Blogue, por quem o foi substituir, depois de aturados pedidos a Bissau sem que se resolvesse em tempo útil, é inenarrável. : [Em comnetário ao poste P7590 (****), o José Nunes, ex-1º cabo mec eletricidade, BENG 447, 1968/70; escreveu:  

(...) "O aquartelamento da Ponta do Inglês estava operacional em abril de 1968, quando aí nos deslocámos pra montar o grupo gerador, ficava junto ao rio e não havia cais, o Unimogue avançou rio dentro até da LDP [Lancha de Desembarque Pequena] de onde se descarregou o gerados a pulso. A iluminação era feita [, até então,] com garrafas de cerveja com uma mecha, cheias de combustível, e as havia a servir de alarme, havia muitos macacos na zona que causavam problemas, ao agarrar o arame farpado da zona de protecção. Foi uma permanência de horas por causa das marés." (...) 

As garrafas de cerveja penduradas no arame farpado, cheias de combustível, tinham que ser continuamente acesas nas noites de chuva forte ou de vento. O risco que a malta corria nessas circunstâncias, sendo a única coisa iluminada na escuridão, tornando-se um alvo fácil, era enorme, embora, que me lembre, nunca tenha havido flagelações nessas alturas.

Flagelações houve muito poucas - seis - sem grandes consequências, a água do poço nunca foi envenenada e, mesmo sabendo que a resistência oferecida pelas NT, aquando dos ataques, fosse de nutrido fogo mantendo o IN em respeito, penso que este nunca empenhou efectivos suficientes e capazes para provocar danos consideráveis. No fundo o IN sabia que enquanto aquele pessoal ali estivesse enquistado, a tropa do Xime, com a dispersão acima referida, estaria muito menos apta a fazer operações complicadas.

As relações entre o pessoal podem considerar-se muito boas, não havendo atitudes condenáveis, que até seriam possíveis num ambiente concentracionário como aquele. A convivência com a milícia logo de início se mostrou muito favorável porque, abastecendo-se de géneros junto das NT, passaram a pagar muito menos do que anteriormente porque os preços eram os mesmos que nos eram debitados sem alcavalas de qualquer espécie.

Não me recordo da existência de familiares a viverem com o pessoal africano, mas, segundo o testemunho do tabanqueiro Manuel Moreira, uma mulher deu à luz na época em que lá esteve e foi o 1.º cabo aux enf Cordeiro Rodrigues, o "Palmela", ajudado por ele, que assistiu ao parto.

Com a falta de géneros tudo se aproveitava incluindo a caça, que se resumia a tiro de rajada para bandos de aves grandes, pernaltas (não sabemos quais) e, se caíam nas redondezas, eram o pitéu desse dia.

Felizmente com a redistribuição das Forças no terreno, iniciada pelo brig Spínola, foi a Ponta do Inglês evacuada sem problemas em 7/8 de Outubro de 1968, pondo-se fim ao disparate da sua existência.

Há uma enorme falta de informação (para mim) sobre a evacuação da Ponta do Inglês; nem na história do BART 1904, nem na da CART 1746, apenas é mencionada a data em que se efectuou. Tenho ideia que, para além do pelotão da 1746, Secção de Morteiros e Milícia, estiveram na Ponta do Inglês pessoal de outras unidades a montar segurança (mas quais?) enquanto o pessoal carregava a barcaça Bor de todo o material e bagagem da rapaziada. Estivemos nas imediações da Ponta Varela a assegurar a passagem da Bor a caminho de Bambadinca. Foi uma operação, para mim sem nome, que envolveu mais meios que não recordo.



Guiné > Carta de Fulacunda (1955) > Escala de 1/ 50 mil > Posição relativa da Ponta do Inglês, na maregm direita do Rio Corubal, fente à pensínsula de Gampará.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2012)


Segundo informação de oficiais do BART 1904, o brig Spínola com o respectivo séquito aterrou na Ponta do Inglês, já ia adiantado o carregamento da Bor, mandando evacuar a segurança, depois de se ter armadilhado o que estava determinado, e só depois reparou que já não havia segurança nenhuma e que ele e os outros oficiais que o acompanhavam tinham ficado, como hei-de dizer, abandonados na margem do Corubal com o pessoal do ou dos helis a chamá-los quando se aperceberam da situação.

O pelotão da Cart 1746 chegou ao Xime sem problemas e todos tivemos uma enorme alegria por voltarmos a estar juntos. ...E na verdade o que vos doi... É que não queremos ser heróis (Fausto).

António Vaz, ex cap mil

PS - Esta estória da Ponta do Inglês só foi possível com as recordações do Manuel Moreira (releiam o Fado da Fome), do João Guerra da Mata, o ex-Alferes – último comandante daquele destacamento, e de Vera Vaz nas interpretações desenhadas.

[ Revisão / fixação de texto / parênteses retos,  efeitos de publicação deste poste: LG ]


Leiria > Monte Real > Palace Hotel de Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande >  21 de Abril de 2012> O ex-alf mil João Mata (à esquerda) e o ex-cap mil António Vaz, à direita, ambos da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69). 

O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné.  Julgo que vive em Évora. Infelizmente, não é membro da Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados   [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

 (*) Vd. postes de:

21 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4850: Os bu... rakos em que vivemos (14): O meu abrigo em Mampatá (Zé Teixeira)

3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4632: Os bu... rakos em que vivemos (13): Sare Banda um dos bu…rakos em que morremos! (A. Marques Lopes)

8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4481: Os bu...rakos em que vivemos (12): Cafal Balanta contribui para o desenvolvimento nacional (Manuel Maia)

18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4369: Os bu...rakos em que vivemos (11): Banjara City, capital do Oio (Fernando Chapouto, CCaç 1426, 1965/66)

14 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4346: Os bu...rakos em que vivemos (10): Também havia um em Nova Lamego (Luís Dias)

11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4321: Os Bu...rakos em que vivemos (9): No Mato Cão, com o Ten-Cor Polidoro Monteiro, em finais de 1971 (Paulo Santiago)

11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4317: Os Bu... rakos em que vivemos (8): Estância de férias Mato de Cão, junto ao Rio Geba (J. Mexia Alves)

27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4252: Os Bu... rakos em que vivemos (7): Destacamento de Rio Caium (Luís Borrega)

19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4211: Os Bu...rakos em que vivemos (6): Banjara, CART 1690 (Parte II): Lugar de morte (A. Marques Lopes / Alfredo Reis)

12 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4175: Os Bu...rakos em que vivemos (5): Guileje bem se podia considerar um hotel de 5***** (Manuel Reis)

10 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4168: Os Bu... rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)
7 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4153: Os Bu... rakos em que vivemos (3): Acampamentos de apoio à construção da estrada T.Pinto/Cacheu (Jorge Picado/José Câmara)

5 de Abril de 2009 Guiné 63/74 - P4141: Os Bu... rakos em que vivemos (2): Bula, CCCAÇ 2790 (António Matos)

31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu... rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)

(**) Vd. 7 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10009: Memória dos lugares (185): Saiba V. Excia que está na Ponta do Inglês!, disse o Alf Mil João Mata para o Brig Spínola (António Vaz, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)

(***) Vd. 30 de 20 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15553: In Memoriam (243): António [Gabriel Rodrigues] Vaz (1936-2015), ex-cap mil art, cmdt CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69); nosso saudoso grã-tabanqueiro nº 544, desde 2012

(****) Vd. poste de 11 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7590: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (13): Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16772: (De)Caras (54): Em homenagem ao António Vaz (1936-2015), que nos deixou há um ano na véspera de natal: "os guias e picadores do Xime: Seco Camará 'versus' Mancaman Biai"


Leiria > Monte Real > Hotel Palace Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de abril de 2012 > Da esquerda para a direita, o António José Pereira da Costa, o António Vaz, o Acácio Correia e o Jorge Araújo (ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74). Entre o António Vaz (ex-cap mil art, cmdt CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) e os restantes, graduados da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74), há duas outras subunidades pelo meio, a CART 2520 e a CART 2715...

Como antes da CART 1746, tinha havido a CCAÇ 1550, e como depois veio a CCAÇ 12 render a CART 3494...

Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Leiria > Monte Real > Hotel Palace Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de abril de 2012 >  O ex-alf mil João Mata (à esquerda) e o ex-cap mil António Vaz, à direita, ambos da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69).  O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné, retirado pelas NT em outubro de 1968... 

Conheci ambos, tal como ao Manuel Moreira, no nosso VII Encontro Nacional, em 2012. E a propósito, lembro-me da história que o António Vaz contava do João Guerra da Mata, no dia em que o Spínola, ainda periquito, "aterrou" na Ponta do Inglês:
– Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo… –  disse, ao aterrar, o brigadeiro Spínola.
–  Saiba V. Exa. que está na Ponta do Inglês – respondeu o alf mil João Mata que usava na ocasião calções, barba, tronco nu e uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal.


Foto (e legenda): © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. O António Vaz (19936-2015) já não está entre nós. Morreu vai fazer um ano, na véspera de Natal. (*)

Deixou-nos muitas saudades. Tinha uma grande vontade de viver, e era um belíssimo contador de histórias. Algumas estão connosco no nosso blogue,, infelizmente não tantas quantas ele gostaria ter podido contar.

Penso que a última vez que o vi,  fora numa manife, no Terreiro do Paço, contra a troika e a política de austeridade, em data  que já não posso precisar, talvez em finais de 2013/princípios  de 2014. 

Tinha superado um ACV, achei-o combativo e otimista. "Agora vou a todas"!, garantia-me ele, referindo.se às manifes. De vez em quando telefonava-lhe, umas vezes respondia-me, outras não... . Na véspera do Natal de 2015, talvez até no próprio dia em que morreu, tive o pressentimento de o seu telemóvel calara-se de vez... Foi uma estranha premonição. Sabia que ele estava de novo doente, com uma neoplasia,,, 

O António Vaz entrara para a Tabanca Grande em 31/3/2012, e timha cerca de 25 referências no nosso blogue. Era lisboeta e, se não erro, trabalhara na antiga Direção Geral das Alfândegas. Casado, tinha pelo menos uma filha e netos, de quem não temos, infelizmente, nenhum contacto.

Quase um ano depois, apetece-me convocá-lo para as nossas fileiras e para as nossas conversas intermináveis, sob o poilão da Tabanca Garnde, versando a Guiné, o Xime, a guerra, o blogue... Fui repescar um poste antigo em que ele evoca a figura do pequeno Seco Camará, ostracizado pela elite mandinga do Xime, e contrapondo-a à figura, mais ambígua e distante, do Mancaman Biai, filho do chefe da tabanaca. Um e outro disputavam a liderança da equipa de guias e picadores do Xime. É interessante seguir o raciocínio do António Vaz e ver como ele toma partido por um deles, 

Nunca soube ao certo a etnia do Seco Camará... Sempre o considerei mandinga, mas não tenho a certeza, dada a rivalidade com o clã Mancaman Biai. Ele morreu em 26/11/1970 e está sepultado em Nova Lamego. Os mandingas, no início de 1970, estavam longe de ser a maioria da população do regulado do Xime, sob nosso controlo: no que restava daquele martirizado regulado, estavam recenseados 872 habitantes (745 fulas e 127 mandingas), distribuídos por 4 tabancas: Xime: 250; Amedalai: 160; Taibatá, sede de Regulado do Xime: 228; Demba Tacó: 234. Julgo que os mandingas viviam todos os no Xime. (Fonte: História da Unidade - Bart 2917, BambadincA, 1970/72).

Do nosso blogue o António Vaz disse palavras que  nos enchem de orgulho e reforçam a nossa motivação  para continuar a trilhar a difícil picada que é este projeto de partilha de memórias (e de afectos):

Seco Cmará em Mansambo (c. 1969).
Foto de Torcato Mendonça (2007)
"A Tabanca Grande é um fenómeno que eu, que não sou bloguista, me deixa abismado e de certo modo surpreendido, porque,  que eu saiba,  não tem paralelo com outras formas de depoimento escrito sobre outros teatros de operações nem outras actividades. Para todos que erigiram e alimentaram com contribuições várias este blogue presto aqui as minhas merecidas homenagens. (...)


2. Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai (**)

Quando cheguei ao Xime, em janeiro de 1968, na "passagem do testemunho" que a CCAÇ 1550 [1966/67] fez da situação material e do pessoal adstrito (Pel Caç Nat, milícia e picadores), foi-me dito que o picador Seco Camará era o melhor da zona e que, nessa época, já levava 56 minas detectadas, o que para mim, nessa altura, era um número respeitável pois até à data, vindo de Bissorã, não tinha tido contacto frequente com tais engenhos.

Fiquei sabedor e considerei que a chefia do grupo de picadores estava, continuaria, bem entregue. Assim sucedeu durante alguns meses e o Seco era sempre convocado para as operações que pareciam mais complicadas.

Numa delas, em julho de 68, talvez a Op Golpear, com a paragem da coluna veio-me a informação:
 – MINA!!!

Ao chegar-me aos ouvidos, avancei para junto do Seco pois fora ele que a tinha detectado e operava. Aproximei-me dele com o cuidado requerido e fiquei a observar o seu procedimento. (Será que  a adrenalina que se liberta tem cheiro? O mato molhado parecia-me sempre adocicado mas naquela altura tinha mudado.)

Estava o Seco semideitado no chão e com a "pica" fazendo perfurações quase horizontais no terreno pois achava que este estava mais brando que o normal. Os gestos comedidos, o cuidado imenso e a tensão elevada ao máximo contagiaram-me. Tentava perceber se aquela textura do terreno correspondia ao que pensava ser uma "caminha" de mina.

Não mais esqueço a transformação que nele se operou: o seu semblante e a própria cor mudaram; o Seco estava cinzento de tão pálido que estava. Levantou-se,  lentamente dizendo:
– É mesmo mina, capitão!

A minha norma foi sempre "Mina rebenta-se, não se levanta". Arriscava contudo a perca do segredo da progressão mas era assim. Assim se procedeu mas o Seco teve o seu prémio pecuniário.

Vieram mais operações e num delas um alferes nomeado veio dizer-me que havia problema com a escala dos picadores, não queriam que o Seco fosse naquele dia e nos subsequentes porque não o queriam como chefe.
– Grande berbicacho – pensei eu.

As razões que me apresentaram não me convenceram: invocavam que aquele posto – chefe dos picadores –  devia ser desempenhado por alguém superior na hierarquia tribal. Prometi que resolveria o assunto depois daquela operação pois não era altura de estar com mais conversa.

O Seco foi como estava determinado mas com os resmungos dos outros picadores que acalmaram, talvez por eu ir nessa operação. Esta como outras foi "sem contacto, com vestígios" e,  num dos dias seguintes,  falei com o Seco que me disse que ele próprio não estava interessado em viver no Xime e preferia ir para outro lado.

(Eu à época não estava a par de eventuais "trabalhos sujos", já invocados neste blogue, que Seco desempenhara anteriormente. O comandante que me antecedeu [, da CCAÇ 1550,]  nada me referiu, embora quando arrumava as minhas coisas tivesse encontrado, na secretária a mim atribuída, um objecto formado por um cabo de madeira com 40 ou 50 centímetros ao qual estavam presos 3 ou 4 pedaços de arame farpado de idêntico comprimento formando um sinistro chicote. Destruí-o, pois não tinha como conduta torturar prisioneiros e achei que tal objecto prefigurava situações que sempre repudiei por princípio. Nos primeiros meses da comissão, em Bissorã, tive de travar, nem sempre com êxito, atitudes condenáveis por parte de milícias que facilmente se propagavam pelo pessoal da companhia.)

Quanto ao Seco, não consegui arrancar-lhe mais explicações e, falando no comando do Batalhão, em Bambadinca [, BCAÇ 2852], consegui arranjar-lhe um sítio para ele morar e que ele seria o "picador do capitão" e que seria convocado de vez em quando,  por mim, coisa que lhe agradou. 

Depois, falando com os picadores, vim a saber que, embora já desconfiasse, o chefe por eles desejado era o filho do chefe da tabanca, o Mancaman Biai, que desempenhou o papel até ao fim da comissão.

O Mancaman foi sempre uma pessoa reservada, discreta, embora entre o pessoal existisse certa desconfiança que me foi transmitida por diversas maneiras. O mesmo se passava com o chefe da tabanca que, na noite do ataque ao Xime, na passagem do ano de 1968 para 1969, que foi o mais forte da minha época, foi trazido para dentro do "quartel" por haver fortes suspeitas a seu respeito (não esquecer que a morte do furriel Dias, o vaguemestre da CART 1746,  e os muitos feridos na emboscada,  passara-se um mês antes). As coisas serenaram mas a desconfiança [manteve-se] com altos e baixos.

No dia da minha retirada, já com a LDG atracada no Xime, veio o Mancaman ter comigo,  se eu não lhe deixava uma recordação:
– Não, Mancaman, não tenho nada para te dar, mas já dei a ti e ao teu pai a possibilidade de não terem sofrido represálias que, numa certe altura, pareciam mais que prováveis.

Compreendia que as populações estavam divididas com a guerra e que era natural que familiares ou antigos amigos seus vivessem naquilo que à época eram bases IN e que isso era agora a realidade.
– Adeus, Mancaman.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de dezembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15553: In Memoriam (243): António [Gabriel Rodrigues] Vaz (1936-2015), ex-cap mil art, cmdt CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69); nosso saudoso grã-tabanqueiro nº 544, desde 2012

(**) Vd. poste de 20 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11429: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai

Vd. também postes de:

26 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16764: Efemérides (241): a Op Abencerragem Candente foi há 46 anos: lembrando os nossos mortos, incluindo o Joaquim Araújo Cunha, e evocando aqui a figura do valoroso guia e picador das NT, Seco Camará (Bambadinca), rival do Mancaman Biai 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15553: In Memoriam (243): António [Gabriel Rodrigues] Vaz (1936-2015), ex-cap mil art, cmdt CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69); nosso saudoso grã-tabanqueiro nº 544, desde 2012






António Gabriel Rodrigues Vaz (1939-2015),
ex-cap mil art, CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69)


1. Dois comentários poste P15552, de ontem (*):


(i) Com respeito ao fazer a prova de vida, há poucos dias ao falar pelo telefoe com um colega da CART 1746, de seu nome Pereira,  ele me disse que o Cap Vaz faleceu há poucos dias.

Paz à sua alma. só  me resta dizer que era um bom amigo.

Ex fur mil Luis Fagundes,  CART 1746 [Bissorã e Xime, 1967/69]


(ii) Camaradas, tive um estranhíssimo pressentimento de que algo estava a acontecer, de muito mau, ao nosso amigo e camarada António Vaz, o cap mil da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69)... Telefonei-lhe, sem querer, na hora da sua morte, na véspera de Natal!... Que macabra coincidência, que trágica premonição!...

Insisti, mas do outro lado ninguém me respondeu... Telefonei mais e outra vez, em vão!... 

Sabia que ele estava doente, tinha tido um AVC, e a seguir, se não erro, uma neoplasia, há dois anos e tal ... Ìamo-nos falando ao telefone, e ele pedia-me que lhe ligasse, sempre que pudesse... Queria agarrar-se à vida e às memórias da Guiné... Tinha um especial carinho e admriração pelo blogue dos camaradas da Guiné...

Hoje, liguei ao Torcato Mendonça, que era seu amigo, veio com ele duas vezes de férias á metrópole, e com ele fez várias operações nos subsetores do Xime, Mansambo e Xitole... Aquilo que eu suspeitava aconteceu, infelizmente: o António Vaz morreu na véspera de Natal, julgo que de 23 para 24, não posso garantir a data... Foi um antigo alferes da companhia que informou o Torcato, talvez o João Mata, se bem percebi,  ou foi o Torcato que apanhou uma mensagem por aí na Net...

Estou chocado!... Vou fazer um poste In Memoriam do nosso capitão... 

Paz à sua alma! Saibamos honrar a sua memória... Era nosso grã-tabanqueiro nº 544, salvo erro... Um homem afável, que comandou uma valente companhia!...

Luís Graça, editor [ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71]

2. O António Vaz nasceu em Lisboa, em 29 de maio de 1936... Teria hoje portanto 79 anos. 

 No seu último aniversário, 29/5/2015, escrevi o seguinte comentário: 

"Não tenho telefonado ao António Vaz. Espero que ele ande mais animado e que a saúde vá melhor. Em dia de aniversário, faço votos para que assim seja. Força!, António". O Torcato Mendonça telefonei-lhe e comentou: "Foi bom ouvir a voz do Capitão Vaz do Xime, O meu abração de Parabéns.Abraço, Capitão, do Torcato"....

No ano anterior tinha-lhe dedicado um poste de aniversário, na minha série Manuscrito(s)

(...) "Antóno Vaz, valoroso capitão de Bissorã e do Xime, comandante da CART 1746... Hoje fazes anos, de acordo com o nosso poste da série "Parabéns a você"... Mas eu tenho estranhado o teu silêncio... Os médicos dizem que o silêncio dos órgãos é sinal de saúde... Na realidade, é mau sinal quando eles começam a "falar"... Mas eu refiro-me ao silêncio... das nossas comunicações bloguísticas. Há mais de um ano que não mandas um ALFBRAVO à gente...  Pergunto; o que é que se passa contigo, comandante ? A última vez que te vi, na Praça do Comércio, tinhas ido à faca...Mas senti-te em boa forma!

"Hoje é dia de festa, de aniversário... Eu e o resto da malta estamos contigo para te cantar os 'parabéns a você' debaixo do poilão da Tabanca Grande!... Lembras-te dos poilões do Xime, a última tabanca de que foste o 'régulo'! ? Levaram morteirada e canhoada em cima, mas ainda lá estão, dizem... Pois é isso que a gente te deseja: aguenta, capitão, força, António!(...)

E o Torcato escreveu em comentário, nesse dia 29/5/2014: 

(...)" Estive hoje a falar com o meu amigo Cap Mil do Xime. Está um pouco adoentado, recupera de uma intervenção cirúrgica e de pequenas maleitas, coisas próprias de um rapaz com mais dez anos do que eu, mas sempre igual e quero tanto continuar a senti-lo assim. O melhor para ele é o que desejo.Vai dar certo meu 'velho' amigo, Cap Vaz.

"Foi com ele e com a CART 1746 que aprendemos a estar naquela 'provincia ultramarina', depois, algum tempo depois veio o Poindon, Belel e Sinchã Camisa...muito mais, muito mais pelos anos 68 adiante" (...)

3. Os problemas de saúde do António Vaz remontavam já a 2013, como ele aqui recordava em poste de 12/4/2013

(...) Meus caros Camaradas da Guiné: estive afastado da vida normal dois meses e meio e, sem grandes e escusados pormenores, direi que, tendo saído de casa às 04.00 do dia 17 de Janeiro, INEM passei pelos Hospitais de S. José, Santa Marta e Clínica S. João de Ávila (para recuperação) e só voltei a casa no dia 4 deste mês (faz hoje 6 dias). Tive AVC (cerebelo), enfarte e aguardo cirurgia cardíaca nos próximos meses. Durante estes dois meses e meio não gozei a sombra do Grande Poilão, não tive acesso ao computador e, do Blogue, "nicles". (...)



VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Monte Real > Palace Hotel > 21 de Abril de 2012> O ex-alf mil João Mata (à esquerda) e o ex-cap mil António Vaz, à direita, ambos da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69). 

O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné...(**)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


4. Tinha entrado para a nossa Tabanca Grande um ano antes, em 31/3/2012 (***), mas já acompanhava o nosso blogue desde 2011 (****):

(...) "A Tabanca Grande é um fenómeno que eu , que não sou bloguista, me deixa abismado e de certo modo surpreendido, porque que eu saiba não tem paralelo com outras formas de depoimento escrito sobre outros teatros de operações nem outras actividades. Para todos que erigiram e alimentaram com contribuições várias este blog presto aqui as minhas merecidas homenagens. (...)

Tem um série, com três postes, assinada por si, "Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)"... Em 2012, esteve presente, com o João Mata, no VII Encontro Nacional da Tabanca Grande, em Monte Real.

É um perda pesada para a nossa Tabanca Grande onde relativamente poucos comandantes operacionais (capitães milicianos ou do quadro) dão a cara... Ele honrou-nos com a sua presença, amizade e camaradagem. Façamos um minuto de silêncio em sua homenagem antes das 12 babaladas para a meia noite do fim de ano. (*****)

Lembremo-nos também dos outros dois camaradas da Tabanca Grande que nos deixarem este ano, e de cuja morte tivemos conhecimento: Amadu Bailo Jaló (1940-2015) e Manuel Moreira de Castro (1946-2015).

As nossas sentidas condolências para a família, esposa, filha e netos (Sabemos que tinha, pelo menos, uma filha e netos). Bem como para a "família alargada" da CART 1746, e para todos os amigos e camaradas que tiveram o privilégio de o conhecer.
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15552: (In)citações (80): Amigo/a, camarada, faz a tua prova de vida: Manda-nos um simples "OK! Tudo bom! Vou indo" ! ... E os editores aproveitam para te desejar o melhor ano possível em 2016, apesar das dificuldades, enfermidades, mazelas, contrariedades, problemas, sacanices, minas e armadilhas que enfrentamos, cada vez mais, à medida que o tempo... pula e avança

(**) Vd. poste de  7 de junho de  2012 > Guiné 63/74 - P10009: Memória dos lugares (185): Saiba V. Excia que está na Ponta do Inglês!, disse o Alf Mil João Mata para o Brig Spínola (António Vaz, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)

(**) Vd. poste de 31 de março de  2012 > Guiné 63/74 – P9684: Tabanca Grande (326): António Vaz, ex-cap mil CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69


(...) O meu nome é Antonio Gabriel Rodrigues Vaz, lisboeta, de 75 anos e andei pela Guiné de Julho de 1967 a Julho de 1969 como comandante (cap mil) da Cart 1746. Até Janeiro de 1968 em Bissorã e no Xime até ao fim da comissão ou seja até 14 horas antes de embarcar no Niassa de regresso a Lisboa onde cheguei na véspera do Santo António de 1969.

A Cart 1746 cruzou-se com com algumas unidades de que fazem parte camaradas que frequentam a Tabanca Grande e que estiveram num e noutro sector embora o L1 [, Bambadinca,] seja mais "concorrido" o que se compreende.

Confissão: As minhas recordações da Guiné não têm uma intensidade uniforme. Dizendo melhor, vêm e vão por marés durante estes 45 anos embora nestes últimos tempos tenham vindo como um macaréu que não baixa. Ficam sempre em maré cheia, talvez por culpa da Tabanca Grande.  A idade é também um facto importante e parece que, ao chegar ao fim do caminho (e isto sem dramatismos) aqueles anos tomaram uma relevância que aqui há 20 ou 30 anos não tinham. Andei entretanto por outras "guerras" mas é aquela que vem sempre à tona talvez por ser uma coisa que nada ter tido a ver com a vida profissional, social e civil em que me movimentava.

As circunstâncias excepcionais em que decorreu (nem toda a gente esteve envolvida num conflito armado sem ser militar de carreira) é hoje o motivo que escrevo estas palavras e porque presentemente percorro com frequência a Tabanca Grande da primeira à ultima morança.

A Tabanca Grande é um fenómeno que eu , que não sou bloguista, me deixa abismado e de certo modo surpreendido, porque que eu saiba não tem paralelo com outras formas de depoimento escrito sobre outros teatros de operações nem outras actividades. Para todos que erigiram e alimentaram com contribuições várias este blog presto aqui as minhas merecidas homenagens.

Eu e a malta da Cart 1746 partilhámos convosco, na Guiné, toda a sorte de provações, vivendo em más e precárias instalações, com faltas de toda a ordem, atascámo-nos nas mesmas bolanhas, cortámo-nos no mesmo capim verde e fugimos do seco, das abelhas, tivemos a mesma sede, sofremos emboscadas e gramámos ataques ao estacionamento, encharcámo-nos com as mesmas chuvas e tivemos insolações, isto tudo para além dos inevitáveis mortos e feridos que lamentamos e lamentaremos sempre profundamente e que não esquecemos.

É por tudo isto que nos irmanamos no blog Tabanca Grande

Um abraço para todos do António Vaz. (...)


(****) Vd. postes de:

20 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11429: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai

(*****)  Último poste da série > 28 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15547: In Memoriam (242): Senhora D. Georgina de Almeida Alves Araújo [1928-2015], Mãe do nosso camarada Jorge Araújo. Estará em Câmara Ardente a partir das 18 horas de hoje, 2.ª feira, na Igreja de Almada, realizando-se o seu funeral na próxima 3.ª feira, às 13h30, para o Cemitério do Feijó - Almada

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10009: Memória dos lugares (185): Saiba V. Excia que está na Ponta do Inglês!, disse o Alf Mil João Mata para o Brig Spínola (António Vaz, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)


VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > Monte Real > Palace Hotel > 21 de Abril de 2012> O ex-alf mil João Mata e o ex-cap mil António Vaz, da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69). O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné...

Foto: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados



1. Mensagem do nosso camarada António Vaz (ex-Cap Mil da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69), com data de 4 do corrente:

- Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo… - disse, ao aterrar, o Brigadeiro Spínola. 
- Saiba V. Exa. que está na Ponta do Inglês - respondeu o Alf Mil João Mata que usava na ocasião calções, barba, tronco nu e uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal. 


A Ponta do Inglês

A Cart 1746 saiu de Bissorã a 7 de Janeiro de 1968,  seguindo de Bissau para o Xime via Bambadinca,  a bordo da barcaça Bor. Um Grupo de combate seguiu directamente para a Ponta do Inglês onde rendeu o pessoal da CCAÇ 1550.

Este Pelotão da Cart 1746 era comandado pelo Alf Mil Gilberto Madail que lá permaneceu cerca de 4 meses sendo substituído por outro comandado pelo Alf Mil João Guerra da Mata que lá esteve até Outubro data em que este Destacamento foi abandonado.

A Ponta do Inglês foi ocupada e os abrigos construídos em Dezembro de 1964 na Op Farol pela CCAÇ 508,  comandada pelo malogrado Capitão Torres de Meireles, morto em combate na Ponta Varela.

Este destacamento teve sempre uma triste sina porque não tinha meios senão para ESTAR. A dispersão de meios que encontramos no L1 a isso conduzia. Nunca serviu de nada a não ser castigar, sem culpa formada, as guarnições que para lá eram enviadas.

Não controlavam nada na foz do Corubal e nada podiam fazer em conjunto com o pessoal do Xime para manter aberto o itinerário Ponta do Inglês/Xime porque a Companhia do Xime ocupava também Samba Silate, Taibatá, Demba Taco e Galomaro. Assim o seu isolamento era, foi, praticamente total.

Os géneros só a Marinha os podia levar e o mesmo se pode dizer das munições, correio, tabaco, combustível, etc.

A chegada dos abastecimentos era motivo de alegria geral como se pode ver nas imagens que junto.


Por muito que o pessoal controlasse os gastos, a falta de quase tudo fazia-se sentir. Bem podia o Comando da Companhia pedir insistentemente pela vias normais a satisfação dos pedidos que não conseguíamos nada. Cheguei a tentar meter uma cunha directamente na Marinha, mas as prioridades eram outras. Como alguns géneros recebidos da Companhia que lá tínhamos rendido estavam deteriorados, a situação ainda foi pior. Esta situação originou, a pedido do Alf Madail, o Fado da Fome,  que o Manuel Moreira ilustrou nas quadras populares da sua autoria.

O Destacamento da Ponta do Inglês era a pequena distância da margem do Rio Corubal e tinha a forma quadrangular. A guarnição era formada por 1 GComb + 1 Esq/Pel Mort 1192 e pelo Pel Mil 105.


O destacamento era formado por 4 abrigos principais nos vértices para o pessoal, para a mecânica e rádio. O combustível e as munições ficavam na parte mais perto do Corubal; na parte central sob uma árvore frondosa (poilão ?) um abrigo mais pequeno onde ficava o Alferes, o enfermeiro e logo ao lado o forno do pão e uma cozinha, tudo muito rudimentar. Tinha o espaldão do Morteiro na parte central. Não tinha, ao contrário do Xime, paliçada e apenas duas fiadas de arame farpado.


Os abrigos eram de troncos de palmeira com as indispensáveis chapas de bidão, terra e não eram enterrados. Uma saída na direcção do rio e outra no lado oposto para as idas à água e à lenha. No destacamento havia um Unimog para estas tarefas.

A água era tirada a balde de um poço existente a cerca de 700 metros do arame farpado que também era utilizado pela população, totalmente controlada pelo IN, e pelo próprio IN, sem nunca este ter aproveitado as nossas idas à água e à lenha para nos incomodar e vice-versa

Diz o M. Moreira: 

O poço era um só,
Estava longe do abrigo,
Dava a água para nós
E também p’ro Inimigo.

Nunca percebi por que razão se fez o Destacamento,  afastado do único poço com água potável... Uma proposta de sã convivência? O caso é que resultou.

O que se passou nos tempos infindáveis em que o gerador esteve avariado, assunto já abordado neste Blogue, por quem o foi substituir, depois de aturados pedidos a Bissau sem que se resolvesse em tempo útil,  é inenarrável. 

As garrafas de cerveja penduradas no arame farpado, cheias de combustível,  tinham que ser continuamente acesas nas noites de chuva forte ou de vento. O risco que a “malta” corria nessas circunstâncias, sendo a única coisa iluminada na escuridão, tornando-se um alvo fácil era enorme, embora, que me lembre,  nunca tenha havido flagelações nessas alturas.


Flagelações houve muito poucas - seis - sem grandes consequências, a água do poço nunca foi envenenada e mesmo sabendo que a resistência oferecida pelas NT, aquando dos ataques, fosse de nutrido fogo mantendo o IN em respeito, penso que este nunca empenhou efectivos suficientes e capazes para provocar danos consideráveis. No fundo o IN sabia que enquanto aquele pessoal ali estivesse enquistado, a tropa do Xime, com a dispersão acima referida, estaria muito menos apta a fazer operações complicadas.

As relações entre o pessoal podem considerar-se muito boas,  não havendo atitudes condenáveis, que até seriam possíveis num ambiente concentracionário como aquele. A convivência com a Milícia logo de início se mostrou muito favorável porque, abastecendo-se de géneros junto das NT, passaram a pagar muito menos do que anteriormente porque os preços eram os mesmos que nos eram debitados sem alcavalas de qualquer espécie. Não me recordo da existência de familiares a viverem com o pessoal africano, mas segundo o testemunho do Tabanqueiro Manuel Moreira, uma mulher deu à luz na época em que lá esteve e foi o 1.º Cabo Enf Cordeiro Rodrigues - o Palmela - ajudado por ele que assistiram ao parto.

Com a falta de géneros tudo se aproveitava incluindo a caça, que se resumia a tiro de rajada para bandos de aves grandes, pernaltas (não sabemos quais) e se caiam nas redondezas eram o pitéu desse dia. As noites eram passadas como se calcula, com as sentinelas nos quatro cantos do quadrado e a malta a ver e a ouvir os rebentamentos que vinham da direcção de Jabadá, de Tite, Porto Gole e do Xime, claro. Pode ser sinistro mas não é difícil pensar que muitos diriam: 
- Antes eles do que nós.

Como de costume, depois das tarefas de rotina, quando o calor era menos intenso seguia-se o eterno futebol com bolas dadas pelo MNF, de péssima qualidade, substituídas pelas tradicionais trapeiras. Num dos reabastecimentos que se fizeram conseguimos levar para alem de gado mais miúdo algumas vacas, que como sabemos, na Guiné são de pequeno porte. Como o futebol também farta,  houve alguém que sugeriu tourear uma das vacas que ainda estava viva para tardios bifes.

Foi uma festa com as peripécias inerentes à Festa Brava e todos os dias “a las cinco en punto de la tarde” soltava-se a vaca e era um corrupio de faenas com cornadas… incompetentes. O tempo foi passando e já só restava um dos pobres animais para animar os fins da tarde. 

Como o reabastecimento nunca mais chegava e o atum com arroz já não se podia ver e muito menos comer o Alf Mata teve de decidir entre o partido pró-tourada e o partido pró-bife. Não foi fácil, mas acabou por vencer este último. Convocou-se o Soldado Condutor J. Viveiro Cabeceiras que também era padeiro, magarefe e pau para toda a obra, que procedeu à matança. Começando a esquartejar a rês,  vai ter com o Alferes e informa-o que a vaca estava tísica, pulmões quase desfeitos. 
- Come-se a vaca ou não se come a vaca

Nova discussão e resolveu-se não aproveitar as vísceras e apenas o músculo. Assim se comeu carne assada sem problema de maior. Quando esta acabou voltou-se ao atum aos enlatados,  tudo coisas que já escasseavam mas o pessoal andava triste com a falta dos fins de tarde taurinos. Então o Cabeceiras foi ter com o Alferes e disse-lhe:
- Meu Alferes a malta anda tão triste que se quiser e autorizar eu faço de vaca pois guardei os CORNOS.

E assim de conseguiram mais uns fins de tarde…

Felizmente com a redistribuição das Forças no terreno, iniciada pelo Brig Spínola, foi a Ponta do Inglês evacuada sem problemas em 7/8 de Outubro de 1968, pondo-se fim ao disparate da sua existência. 

Há uma enorme falta de informação (para mim) sobre a evacuação da Ponta do Inglês; nem na história do BART 1904, nem na da CART 1746, apenas é mencionada a data em que se efectuou. Tenho ideia que,  para além do pelotão da 1746, Secção  de Morteiros e Milícia,  estiveram na Ponta do Inglês pessoal de outras unidades a montar segurança (mas quais?) enquanto o pessoal carregava a barcaça Bor de todo o material e bagagem da rapaziada. Estivemos nas imediações da Ponta Varela a assegurar a passagem da Bor a caminho de Bambadinca. Foi uma operação, para mim sem nome, que envolveu mais meios que não recordo.

Segundo informação de oficiais do BART 1904, o Brig Spínola com o respectivo séquito aterrou na Ponta do Inglês, já ia adiantado o carregamento da Bor, mandando evacuar a segurança, depois de se ter armadilhado o que estava determinado, e só depois reparou que já não havia segurança nenhuma e que ele e os outros Oficiais que o acompanhavam tinham ficado, como hei-de dizer, abandonados na margem do Corubal com o pessoal do ou dos helis a chamá-los quando se aperceberam da situação.

O pelotão da Cart 1746 chegou ao Xime sem problemas e todos tivemos uma enorme alegria por voltarmos a estar juntos. ....E na verdade o que vos doi... É que não queremos ser heróis (FAUSTO).

António Vaz, ex Cap Mil

PS - Esta estória da Ponta do Inglês só foi possível com as recordações do Manuel Moreira (releiam o Fado da Fome), do João Guerra da Mata,  o ex-Alferes – último comandante daquele destacamento, e de Vera Vaz nas interpretações desenhadas.
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Nota do editor: