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segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18216: Historiografia da presença portuguesa em África (106): a história desconhecida da Guiné dos anos 60-70 do séc. XIX: Alfa Moló e Alfa Mussá, heróis dos fulas-pretos (Armando Tavares da Silva)


Mussá Moló, tendo à sua direita Dembá Dançá, e à sua esquerda Maransará, chefe-de-guerra deste último (in Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate. An Official Handbook, London, 1906)-Cortesia de ATS.


[A vermelho, a atual fronteira da Guiné-Bissau. Cortesia de ATS]


1. Mensagem de 11 do corrente, do nosso grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva:


Assunto - Blogue: Guiné Séc. XIX

Caro Luís Graça,

Para quem se interessar pelos acontecimentos que se foram desenrolando na Guiné no decorrer do tempo, o texto que envio poderá ser útil e esclarecedor.

Há quem se queixe que em meados do século XX nada se sabia sobre aquele teritório. Tal não era também possível, pois não havia escritos que o pudessem permitir. Pouco mais se sabia além de que a Guiné tinha sido descoberta por Nuno Tristão.

Se percorrermos as “Histórias de Portugal”, mesmo, e sobretudo, as mais recentes, nada se encontra. E alguns trabalhos onde sumariamente se referem acções militares, confundem factos e apresentam erros. Acresce ainda que, quando se fala da Guiné, é quase sempre para denegrir. Talvez isto seja consequência do que ainda hoje leva a que se oiça dizer: “Mas aquilo tem algum interesse?”.

Parabéns ao blogue e seus editores, e... vida longa!

Abraço

ATS



2. Em comentário ao Post P18172  de 4-01-2018 (*), relativo à identificação do topónimo Gan Sancó, muito possivelmente um antigo regulado mandinga, Cherno Baldé menciona as contendas em que estiveram envolvidos mandingas e fulas. A menção destas contendas  levou-me a rever o que havia escrito em “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926” [, imagem da capa à esquerda,],  sobre a própria emancipação dos fulas-pretos do domínio de mandingas e beafadas.

O alferes Francisco António Marques Geraldes, que havia sido comandante do presídio de Zeguichor, e que era chefe do presídio de Geba, relatando o que fora acção de Alfá Moló, diz-nos em 1886 que este, fula-preto, era chefe de uma “raça que há muitos anos vergava sob o jugo da escravidão. Beafadas, mandingas, fulas-forros e futa-fulas eram seus senhores e, enquanto estes descansavam das fadigas da guerra a que sempre se dedicaram, os fulas-pretos, largando as armas com que defenderam seus senhores, pegavam nos instrumentos agrícolas e ei-los curvados sobre o solo tirando do seu seio, à custa de trabalhos insanos, o alimento preciso para sustentar as tribos guerreiras de que dependiam.” 

Este estado de escravidão resultava da ausência de um chefe enérgico e audaz que se opusesse ao poder dos mandingas e beafadas. Moló, porém, entendeu fazer um esforço sobre-humano para tentar tal milagre e, à frente de um punhado de fulas, edifica a ocultas uma tabanca em lugar inculto e cheio de denso arvoredo, tabanca pequena e povoada só por homens. À distância de duas léguas existia uma outra de mandingas com suas famílias e haveres. “Os fulas-pretos atacam uma madrugada e de improviso esta tabanca; matam os homens, tomam as mulheres e cavalos; alargam a sua tabanca para assim haver cabimentos para as famílias entradas”.

Marques Geraldes situa em 1864 o começo da emancipação dos fulas-pretos, conseguindo Moló, que lutou até ao último dia da sua vida, destruir quase todo o poder dos beafadas e mandingas nos territórios de Geba até Gâmbia.

Depois da morte de Alfá Moló, será um dos seus filhos –Mussá Moló – possuidor de grande energia e superior inteligência, que chama a si os principais guerreiros jalofes, saracolés e mesmo antigos fidalgos mandingas que foram possuidores daqueles territórios e, devido às suas liberalidades, premiando os mais valentes, dando-lhes cavalos e mulheres, soube criar um tal prestígio que se tornou o ídolo dos fulas-pretos. Assim, Mussá soube vencer aqueles restos dos grandes povos que dominaram na Guiné e, em poucos anos tinha suplantado beafadas e mandingas, ficando possuidor de ambas as margens do rio de Geba desde a sua embocadura.

O território do Forreá povoado por fulas-forros estava igualmente cheio de escravos fulas-pretos. Em 1879, quando Agostinho Coelho inaugurou o governo da província, decorria a luta sangrenta entre os fulas-forros e os fulas-pretos, altura em que o Rio Grande mantinha o seu esplendor, ostentando as suas cinquenta e três feitorias prósperas e ricas, e em que a população de Buba era numerosa. 

Por espírito humanitário Agostinho Coelho, na difícil situação de procura da pacificação entre os povos que se digladiavam, e portanto da pacificação da província, recebeu na sua praça de Buba todos os fulas-pretos que quisessem ser livres, arrostando assim com uma guerra que lhe trouxe o completo definhamento do comércio e agricultura. Vendo-se os fulas-forros repentinamente privados dos seus escravos, não tiveram em mira senão vingar-se, o que deu começo a uma guerra no território de Forreá, que aniquilou o comércio e agricultura em Buba e feitorias do Rio Grande.

Joaquim da Graça Correia e Lança, que fora governador interino entre 1888 e 1890, referindo-se também, em relatório de 1890, aos povos que ocupavam a província, escreve: 

“Toda a região do alto Geba era ocupada pelos fulas-pretos, que se estendiam até ao Forreá, onde dominavam os fulas-forros. Era uma enorme área, outrora ocupada por mandingas e beafadas. Estes estendiam-se pela margem esquerda do rio Geba até à povoação deste nome e ocupavam o território de Bricama, Corubal e o Forreá. Aqueles, estendiam o seu império desde Farim até ao Futa-Djalon”. 

Ora, tanto a grande nação mandinga do interior, como os mandingas de Geba viram entrar no seu território “sem desconfiança os inofensivos pastores fulas que, com os seus rebanhos caminhavam sem cessar na direcção do oceano, apenas pedindo pastagem para os seus gados e sal para as suas comidas”. Vivendo sujeitos aos mandingas e beafadas, os fulas haviam sido objecto de “inúmeras extorsões e violências, vivendo uma vida verdadeiramente servil”, até que, em 1863, se dá um primeiro movimento de revolta, tendo-se verificado o primeiro combate em Cabucussará.

Como aqui se vê, Correia e Lança situa o primeiro combate de emancipação dos fulas-pretos em 1863, em Cabucussará.


Atlas da Guiné (1914): posição relativa de Gam Sancó e Ber[e]colon. Cortesia de ATS

Mas os mandingas também sofreram ataques e pesadas derrotas infligidas por futa-fulas, como se infere do referido comentário de Cherno Baldé ao Post P18172 (*).  Segundo este, a fortaleza mandinga de Berecolon foi destruída pelos almames do Futa-Djalon no início de uma guerra que se iniciara em 1852, e que terminaria com a derrota dos mandingas na batalha de Cansala em 1864. Marques Geraldes diz-nos que fora o almame Ibráhima, denominado o Sory, que maiores vitórias alcançara contra os mandingas, e eu faço notar que em 1882, na praça de Buba, circundada por uma paliçada, existia uma autêntica aldeia mandinga, onde se terão acolhido, provavelmente fugidos dos ataques de futa-fulas.    

Houve, porém, um território – o Oio – onde mandingas soninqueses conseguiram resistir aos avanços fulas. É o governador Júdice Biker que, em 1903, mais demoradamente se vai referir a este facto, começando por notar que por muitos anos durou a luta entre fulas e soninquezes, ficando aqueles vencedores tomando posse do chão dos soninquezes, à excepção da região chamada Oio, ainda hoje pertencente aos soninquezes.

Acrescenta Júdice Biker:

“Depois, os fulas passaram a conquistar o território pertencente aos beafadas, luta que igualmente durou bastantes anos, mas sendo os beafadas expulsos do seu chão que igualmente ficou pertencendo à raça fula, refugiando-se os beafadas em Quinará e Cubissegue, que ainda hoje conservam devido à protecção do governo”.

E continua:

 “Relativamente ao Oio, os fulas empregaram todos os esforços para ocupar aquela região. A tabanca de maior nome do Oio é a de Gussará; cinco vezes foi atacada pelos fulas que foram sempre derrotados sofrendo perdas enormes”. Por isso, “para os fulas o Oio passou a ser considerado como território com feitiço”.

Vai ser na sequência de uma incursão no Oio em 1902, e do “prestígio” de que dela resultara, que Júdice Biker, devidamente autorizado, vai proceder a título provisório à primeira cobrança do imposto de capitação (que antecedeu o imposto de palhota), o que realiza durante uma extensa digressão, entre Fevereiro e Março de 1903, em que percorreu de Buba a Geba 275 quilómetros. (**)
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quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17801: Historiografia da presença portuguesa em África (93): a questão dos missionários católicos na Guiné (Armando Tavares da Silva, historiador)


Foto nº 1


Foto nº 1 A


Foto nº 1 B

Guiné < Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > Meninos cristãos, em dia de primeira comunhão, ao tempo da CCS/BCAÇ 2952 (1968/70). Foto do álbum do ex-fur mil rebastecimentos José Carlos Lopes, grã-tabanqueiro nº 604.

Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. Texto enviado pelo nosso amigo Armando Tavares da Silva, com data de 12 de agosto último

Caro Luís Graça,
Segue um texto sobre Missionários na Guiné para publicação no blogue. Se assim o entender, e para facilidade de publicação, pode dividir o texto em duas partes.
Abraço e bom período de férias
Armando Tavares da Silva



Missionários na Guiné

por Armando Tavares da Silva

[Foto à direita: Armando Tavares da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, autor de “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Porto: Caminhos Romanos, 2016, 972 pp.). ]

Os últimos textos do blogue relativos à recente presença de padres missionários na Guiné (*) levam-me a discorrer um pouco sobre esta questão no período de 1878 a 1926, e como sobre ela se pronunciaram alguns governadores. (**)

Assim, em Outubro de 1879 (portanto no mesmo ano em que a Guiné se separou administrativamente de Cabo Verde), o secretário-geral, que ficara encarregado do governo, enquanto o governador Agostinho Coelho se encontrava em Lisboa, escreve que o arquipélago dos Bijagós mantém “as melhores relações com Bolama onde estes ainda muito selvagens indígenas vêm fazer o seu pequeno comércio”. E acrescenta que nesta parte da Guiné se houvesse “mais alguns missionários, teriam estes em que se ocupar”.

Na mesma altura, em Lisboa, Agostinho Coelho, mencionando as necessidades da província referia, entre outras, a falta de padres e de objectos de culto, e relativamente ao problema da instrução pública, requisitava mil exemplares dos compêndios que serviam nas escolas de instrução elementar do reino. Mais tarde, em Março de 1880, o mesmo governador volta a mencionar a falta de padres, notando que na província só havia três “para uma tão vasta colónia”.

O problema da falta de missionários irá manter-se pois, em Junho de 1891, o secretário-geral Viriato Passalagua, que ficara encarregado do governo depois do governador Rogério dos Santos se ter retirado para Lisboa, no rescaldo dos acontecimentos de Bissau desse ano, escrevia ao ministro renovando a proposta já feita no ano anterior para o aumento na província de padres missionários.

Alguns anos mais tarde, em Janeiro de 1900, um outro governador, Herculano da Cunha, renovando um pedido já feito no ano anterior, pede que na Guiné seja estabelecida uma missão, tendo em acréscimo funções de educação elementar e ensino de ofícios, acrescentando ainda o pedido de envio de três padres para as paróquias de Buba, Geba e Farim.

Júdice Biker, que governara a Guiné entre 1900 a 1903, num relatório de Outubro de 1903 para o ministro, onde se refere novamente ao problema da missionação, e civilização do gentio, menciona que seria de grande alcance o estabelecimento de missões, sobretudo no território da Costa de Baixo, habitada por manjacos, mas acrescentando, “contanto que os missionários fossem bons e portugueses”. Não se sabe o que Biker entendia por um “bom missionário”, mas introduz uma restrição, que era o facto de deverem ser portugueses, levando a pensar que os estrangeiros não satisfariam aquele requisito! Teria tido alguma experiência que o levava a assim pensar?

Júdice Biker excluía daquele propósito o território dos fulas e mandingas, pois seguiam a religião muçulmana, que lhes falava melhor aos sentidos e à sensualidade, e que dificilmente abraçariam a religião cristã que é toda espiritual.

Júdice Biker fora o governador que, devidamente autorizado, pela primeira vez procedera à cobrança do imposto de palhota, numa extensa digressão realizada a cavalo e apenas acompanhado pelo seu ajudante de campo, por um médico, por um padre, e por “uma pequena música formada de garotos e regida pelo padre”. Iniciada a 14 de Janeiro de 1903 em Buba, só terminaria a 2 de Março em Geba, depois de percorridos 275 quilómetros. 

Durante essa digressão, o padre, cuja presença deverá ter sido preciosa, dissera missa todas as manhãs, e procedera à realização de 5 baptizados. Terminada a digressão, Júdice Biker mostrara-se satisfeito pela forma como fora recebido nas várias povoações por onde passara e pernoitara, e pelo modo como as populações reagiram a essa cobrança, De facto, estas sempre tinham pago aos régulos um tributo sob o nome de dacha, mas que o governador considerava ser cobrado irregularmente segundo as simpatias dos régulos, não sendo igual para todos. Isso deixava agora de acontecer, recebendo os régulos 20% do imposto cobrado e os chefes de povoação 15%.

Não obstante a escassez de padres e missionários que os relatos anteriores testemunham, é certo que desde cedo encontramos a sua presença na Guiné. Na segunda expedição de Diogo Gomes, é o chefe mandinga Nomimansa que a seu pedido vem a receber o baptismo em 1458. Fora o mesmo chefe que dois anos antes atacara Diogo Gomes quando este, explorando a costa, procurava subir o rio Jumbas, antes de, rumando a sul, vir a atingir o rio de Gâmbia que percorreu em grande extensão. 

Um outro régulo que viria a receber o baptismo no decorrer de uma missa solene fora o régulo de Bolor, Jogane Angulenhor, em 1867. Este baptismo resultara de o régulo, o seu filho e os seus grandes terem solicitado que o governo lhes mandasse um padre para os baptizar, assim como uma pessoa que os curasse em suas doenças. Ao mesmo tempo pediam para que o governo português os tomasse sobre sua protecção, fizesse ali edificar uma igreja, e lhes “desse também um oficial com soldados para defenderem o seu território em caso de ser atacado pelos gentios limítrofes”. 

Um tal ataque vem efectivamente a acontecer dois anos mais tarde, quando o gentio coligado de Jufunco, Ossor e Egin arrasam Bolor. De notar que o régulo de Jufunco, Ampá-Cabú, assinara, em 13 de Agosto de 1869, um tratado pelo qual era cedido “de hoje para sempre todo o território de Jufunco à nação portuguesa, a quem desde muito reconheciam como legítima senhoria deste território”. Aquele ataque fora consequência de os habitantes de Bolor lhes impedirem o caminho de Cacheu, onde pretendiam ir negociar. Ataque este que iria ocasionar pouco depois o chamado “desastre de Bolor”.

A presença missionária portuguesa, traduzindo-se em boa parte na cristianização de muitos nativos, remonta, como se viu, ao século XV, e manifestar-se-ia sob várias formas daí para a frente, embora com meios insuficientes, do que muitos governadores se queixavam.
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