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sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23979: Notas de leitura (1542): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Muito se tem discutido os resultados da Operação Tridente, os ensinamentos que trouxe para responder em termos de contra-guerrilha, etc. É facto que Spínola entendeu que o destacamento do Cachil para nada servia, mas observando a evolução da guerra, a região do Como tinha perdido pertinência, através da República da Guiné encontraram-se corredores e, mais tarde, o Senegal passou a autorizar a passagem de pessoas e bens por toda a fronteira norte, o PAIGC sabia de antemão que não se podia implantar nos Bijagós. Aqui se descreve o papel da FAP na Operação Tridente, os elementos indicados pelos autores comprovam que os dados historiográficos já existentes são sólidos, o que verdadeiramente permanece na penumbra é como Louro de Sousa, e depois Schulz e mais tarde Spínola entendiam o uso de grandes meios e durante um lapso apreciável de tempo. Recordo que houve uma operação que demorou 12 dias, a Lança Afiada (1969), que visava entrar nas bases criadas pelo PAIGC desde 1963 nas margens do Corubal, abaixo da Ponta do Inglês. Foi um fiasco completo, o uso de tantos meios deu tempo a que o PAIGC transferisse o seu potencial armamentista para a outra margem do rio, levaram a população e os alimentos, as nossas tropas encontraram uns velhinhos e canhangulos. Enfim, tanto barulho para nada.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Percorremos já um longo percurso (esta recensão já abrangeu mais de metade da obra), os investigadores socorrem-se de um processo diacrónico, atravessam toda a cronologia de acontecimentos internacionais e nacionais que se prendem com o fenómeno da descolonização africana e como este afetou a Guiné; depois dão-nos o quadro dos meios aéreos existentes, no início da década de 1960 e a sua evolução até ao desencadear da guerra, a adaptação de infraestruturas (nomeadamente Bissalanca, Cufar e Gabu), o aperfeiçoamento na formação dos pilotos, etc. Estamos exatamente num momento em que os autores abordam os comportamentos militares dos primeiros comandantes-chefes e as aquisições efetuadas, designadamente na Europa Ocidental. E vamos imergir na Operação Tridente e avançar para o primeiro período da governação Schulz.

No que toca à Operação Tridente, a atividade aérea iniciou-se, tal como acordado, em 14 de janeiro, um Auster lançou folhetos sobre a ilha de Como e Caiar, mais tarde, no mesmo dia, os T-6 dispararam foguetes de 37 mm contra canoas perto de Curco, no Como, e em Poilão de Cinza, uma ilha costeira próxima, enquanto os P2V-5 bombardeavam embarcações e a aldeia de Catabão Segundo, destruindo estruturas do PAIGC. Na sequência destas atividades aéreas, iniciou-se a intervenção por grupos, tropa do BCAV n.º 490 e fuzileiros que desembarcaram em Caiar e Como, não encontraram resistência e iniciaram a sua marcha para norte, os desembarques foram progredindo, as forças portuguesas chegaram às aldeias de Caiar e Cauane, estamos já a 16 de janeiro, começou a resistência do PAIGC procurando retardar a progressão das forças portuguesas, um terreno difícil, com uma floresta quase impenetrável, pântanos e tarrafe. Para apoiar esta progressão, entraram em ação os F-86, isto já em 18 de janeiro, metralhando e bombardeando a floresta e a povoação de Cachil no norte do Como; seguiram-se ataques de P2V-5 na noite de 25 de janeiro; a FAP usou napalm pela primeira vez em 29 de janeiro durante um ataque de F-86 contra a Mara de Cassacá e a povoação de S. Nicolau, mas rapidamente se descobriu que o napalm era uma arma inapropriada contra alvos em áreas densamente florestadas, como veio a reconhecer o comandante da ZACVG, Coronel Francisco Delgado, no relatório que elaborou.

Havia uma necessidade imperiosa de continuar a progressão e usar material bélico apropriado. O governador da Guiné, Comandante Vasco Rodrigues, ex-aviador naval, ajudou a conceber uma solução inovadora, os C-47 lançaram cargas de profundidade antissubmarinas, depois dos técnicos terem substituídos os detonadores por cargas de demolição subaquáticas. Em 1 de fevereiro, um C-47 lançou duas bombas de profundidade de 350 quilos sobre o Como e no dia 21, houve novo ataque descarregando bombas em Curco e na mata adjacente. Durante esta segunda missão, o bombardeiro improvisado foi atingido por fogo de superfície, mas regressou a Bissalanca com danos mínimos. O uso destas bombas improvisadas teria causado poucas baixas no PAIGC, mas as suas detonações massivas terão tido certamente um efeito psicológico desmoralizador no inimigo. O mesmo foi dito sobre os P2V-5, que voltaram à ação na noite de 28 de fevereiro bombardeando a Mata de Cassacá e a povoação de Catabão Segundo, seguido de uma incursão de Neptune à luz do dia no dia seguinte. Foram detonações tão fortes que tremeu o chão onde estávamos, como explicou o então comandante de fuzileiros. Apertou-se o cerco ao redor do produto da guerrilha, combinado com o assédio aéreo implacável, e daí a carta escrita por Nino a pedir reforços em termos frenéticos a outros comandantes da guerrilha. Finalmente, a resistência da guerrilha quebrou; à medida que se avançava em março, as forças portuguesas verificavam que havia menos contactos hostis. Quando a Operação Tridente terminou, em 24 de março, o PAIGC tinha retirado a sua última organização, deixando atrás as suas bases destruídas, tinham abandonado a sua estrutura de apoio militar e logístico para aquela região. Os pilotos da FAP registaram 1105 horas de voo em apoio à Operação Tridente. O ritmo das operações aéreas foi mais intenso durantes as fases iniciais da ofensiva. Durante os 71 dias da operação, houve 781 surtidas, transportaram-se cerda 1500 militares, dispararam-se 710 foguetes, lançaram-se 356 bombas e 40 mil cartuchos.

Obviamente que ocorreram importantes gastos, sobretudo nos helicópteros, registaram-se faltas de pneus e munição, a disponibilidade dos F-86 caiu para metade, dois Sabre ficaram parados por falta de peças sobressalentes. A operacionalidade dos meios aéreos foi crucial para apoiar a ofensiva terrestre, não se podiam usar viaturas no terreno e inicialmente o PAIGC tinha controlo nas vias navegáveis dos canais. O abastecimento das nossas tropas teve momentos críticos, houve mesmo aconselhamento de colher arroz nas ilhas e abater o gado local; as tropas também foram obrigadas a cavar poços para beber água, uma água salobra que levou a bastantes militares ficarem incapaz de combater, tiveram de ser evacuados quase um quinto das tropas terrestres. Na hora do balanço, as nossas tropas tiveram 47 feridos, 9 mortos, um total de 6 aeronaves foram atingidas pelo fogo do PAIGC. Embora a propaganda do PAIGC declarasse que tinha abatido 3 aviões portugueses, a única perda ocorreu no dia 23 de janeiro quando um T-6 pilotado pelo Alferes João Manuel Pité foi abatido perto de Cauane; os seus restos mortais carbonizados foram recuperados pelo mesmo pessoal que ele tinha estado a apoiar. Um outro piloto da FAP, Frederico Manuel de Machado Vidal morreu em 24 de fevereiro atingido na cabeça. O seu observador, o Sargento Pinto da Rocha – felizmente ele também aviador – teve que retirar o cadáver do piloto para operar a aeronave até aterrar em Bissalanca.

Apesar das perdas, a Operação Tridente foi inicialmente considerada um sucesso. O PAIGC teve que se retirar de uma das suas regiões onde estava mais ativo, perdeu 76 combatentes, teve 15 feridos e 9 prisioneiros; a captura de um guerrilheiro permitiu informações valiosas. No longo prazo, a Operação Tridente foi classificada a mais ingrata em toda a guerra colonial, um sacrifício inútil. Instalou-se um destacamento em Cachil, e a partir do verão de 1964, o PAIGC retomou as flagelações. O novo Governador e Comandante-Chefe, Spínola, ordenou a retirada da guarnição portuguesa, deixando aquela região abandonada, e o PAIGC propagandeou-a como zona libertada – transformou uma derrota tática em vitória estratégica.

No auge da batalha do Como, Amílcar Cabral reuniu 60 dos seus dirigentes militares e políticos para uma reunião que rapidamente se transformou em congresso, isto em território continental, em Cassacá, a poucos quilómetros do teatro de operações. Cabral e os outros dirigentes de topo estavam plenamente informados de graves irregularidades cometidas por alguns comandantes militares, havia mesmo fenómenos de tribalismo, foram denunciados crimes abomináveis e fugas de pessoas das zonas libertadas que viviam em estado de terror.

A reunião-congresso de Cassacá durou 7 dias, começou a 13 de fevereiro; foram adotadas medidas de longo alcance para procurar restaurar a unidade e a disciplina do partido; os dissidentes foram drasticamente punidos, entregues a tribunais populares, alguns deles foram executados, assim como aqueles que resistiram à prisão. Cabral impôs a primazia da política sobre as considerações militares, deu-se início à reorganização das Forças Armadas Revolucionárias do Povo – FARP, assente em três pilares, o Exército Popular, a Guerrilha Popular e a Milícia Popular. Criaram-se quadros militares especiais a pensar nas armas pesadas e nos canhões antiaéreos. Para garantir a disciplina política, Cabral fez aprovar uma estrutura de comando duplo, um oficial sénior das FARP exercia o controlo geral das operações de combate enquanto um oficial político assegurava que as atividades militares estavam em concordância com a estratégia delineada pela liderança do PAIGC.

Com a atenção concentrada nas operações do Como, naqueles primeiros três meses de 1965, o PAIGC aproveitou para se implantar no Morés, o que iria complicar as atividades operacionais portuguesas, a área controlava o tráfego rodoviário e fluvial no norte e oeste da Guiné. Não se deu pausa a esta implantação no Morés, a FAP teve presente, houve danos num Alouette II. De 22 a 26 de abril, decorreu a Operação Alvor, uma operação anfíbia na Península de Gampará, a FAP interveio, a operação foi bem-sucedida, limpou-se provisoriamente a península, fizeram-se 13 prisioneiros e estimaram-se 50 baixas. Alvor seria a última operação sob o comando do brigadeiro Louro de Sousa. No dia 21 de maio, o brigadeiro Arnaldo Schulz assumiu as funções de governador e comandante-chefe, considerado a quintessência da linha dura, chegou à Guiné proclamando que vinha vencer a guerra em seis meses, trazia a convicção de que seriam suficientes para tal tarefa mais homens e mais poder de fogo.

Um helicóptero da FAP operando num barco durante a Operação Tridente (Arquivo Histórico da Marinha)
Meios anfíbios usados na Ilha do Como (Arquivo Histórico da Marinha)
Aproximação da Ilha do Como, 15 de janeiro (Arquivo Histórico da Marinha)
Forças portuguesas preparam assalto à tabanca de S. Nicolau (janeiro (Arquivo Histórico da Marinha)
Uma imagem que mostra as dificuldades sentidas na Operação Tridente (Coleção Armor Pires Mota)
Uma imagem do Congresso de Cassacá, à esquerda de Amílcar Cabral está Nino Vieira, o comandante da frente Sul (Coleção Albert Grandolini)
Um destacamento das FARP, equipado com morteiros 60 mm chineses (Coleção Albert Grandolini)
Operações do PAIGC na região do Morés, janeiro-fevereiro de 1964 (Matthew M. Hurley)

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23965: Notas de leitura (1541): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (3) (Mário Beja Santos)

sábado, 10 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23864: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XIII: uma incursão à Ilha do Como, em princípios de 1965, com o Grupo "Fantasmas" a 18 operacionais...


Guiné > Região de Tombali > Catió > Interior do aquartelamento  >
 CCS / BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Victor Condeço (1943-2010), ex-fur mil furriel mecânico de armamento.


Guiné > Região de Tombali > Catió >  CCS / BART 1913 (Catió 1967/69) > Avenida das palmeiras.


Guiné > Região de Tombali > Catió >  CCS / BART 1913 (Catió 1967/69) > Chegada a Catió da lancha vinda do Cachil.  

Fotos (e legendas): © Victor Condeço (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > Cachil > 1966 > Interior do aquartelamento. Foto do álbum de Benito Neves, ex.fur mil,  CCAV 1484, (Nhacra e  Catió,  1965/67) d 

Foto (e legenda): © Benito Neves (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais um excerto das memórias do nosso camarada Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010, autor do livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.).

O Virgínio Briote, nosso coeditor jubilado (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) disponibilizou-nos o manuscrito, em formato digital. Recorde-se que, durante cerca de um ano, com infinita paciência, generosidade, rigor e saber, ele exerceu as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando-o a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos e da sua prodigiosa memória.



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O Virgínio Briote e o Amadu. Foto: LG (2010)



Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A edição de 2010, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretanto, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.

Recorde-se, aqui, o último poste desta série (*): O Grupo de Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG, comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva, nascido em Angola,  faz um incursão de 3 dias nas matas no Oio, com apenas 12 operacionais.





"Vinte dias em Catió, Cachil e Como, no princípio de 1965, com o Grupo de Comandos  "Fantasmas" agora com 18 operacionais ...
(pp. 108/112)

por Amadu Djaló (*)

 
(i) Na toca do lobo, na ilha do Como


João Parreira,
ex-fur mil op esp,  'comando', 
CART 730 / BART 733
e Grupo de Comandos “Fantasmas”,
 
Bissorã e Brá, 1964/66,
membro da Tabanca Grande
desde 3/12/2005


Em resposta ao pedido do alferes Saraiva de voluntários para reforçar o grupo, o QG enviou  alguns militares que se tinham oferecido. Com a chegada a Brá do furriel João Parreira, europeu [em fevereiro de 1965], de um soldado africano, Braima Bá, e de mais quatro praças europeus, o grupo “Fantasmas” ficou com 18 homens operacionais.

A primeira missão com o grupo reforçado foi no Como. Primeiro deslocámo-nos para Catió, onde estivemos três dias.

Depois seguimos de barco, chegámos à tarde ao Cachil e ficámos a fazer tempo para a hora de saída.

Depois de jantarmos pusemo-nos a caminho, rumo ao objectivo. Ia connosco um guia balanta.

O Como é uma ilha com mata muito densa nalguns locais. A mata é cercada por uma clareira toda à volta, que, segundo as informações que nos deram, a guerrilha tinha cavado abrigos onde sentinelas espaçadas, se vissem tropa a aproximar-se, chamavam gente para defender a posição.

O alferes, antes de sairmos, explicou como íamos fazer. O pessoal da companhia ia servir de isco, preparavam-se como se fossem fazer uma operação e de forma que fossem vistos pelas sentinelas do PAIGC. Nós que iríamos andar toda a noite, o mais silenciosamente possível, quando os guerrilheiros fossem chamados pelas sentinelas, cairíamos então em cima deles. Esta era a ideia do alferes.

Mas as coisas não correram desta forma.

À meia-noite e qualquer coisa, encontrámos os abrigos ocupados pelos seus donos. Quando progredíamos no máximo silêncio,  ouvimos murmúrios, o alferes mandou parar e parámos todos, ninguém piou. Mandou-nos avançar com toda a precaução, novas conversas chegaram aos nossos ouvidos e parámos novamente. Como deixámos de ouvir, continuámos, sempre com o máximo cuidado. Só que um companheiro meteu um pé num daqueles buracos e vimos logo duas pessoas a correr. Quando nos apercebemos,  era um grande barulho de pessoal a abandonar os abrigos.

Não tínhamos alternativa, retirámo-nos cautelosamente e entrámos no capim, que era mais alto que nós, e deitámo-nos. De repente, uma granada rebentou tão perto de mim, que fiquei surdo. A seguir uma rajada e outras se seguiram para cima do local onde estávamos deitados. O barulho dos tiros ecoava na minha cabeça como se fosse muito longe, a quilómetros.

Levantámo-nos e, aos ziguezagues,  começamos a correr em direcção às palmeiras, para nos podermos abrigar melhor. Sempre acompanhados pelas chicotadas dos tiros, atingimos o quartel do Cachil.

No porto do Cachil, embarcámos no mesmo barco que nos tinha trazido de Catió e que transportava géneros e regressámos nele a Catió, onde chegámos quase ao meio-dia.

Aproveitámos para descansar uns dias,  para depois partimos para fazer uma emboscada na picada para Cufar. Num dia desses aproveitei para ir às rolas com uma espingarda de pressão. Não correu muito bem a caçada. Quando foi preciso que disparasse, a espingarda não disparou, depois, quando eu estava a tentar ver porque não tinha disparado, disparou e acertou-me, de raspão, num dedo do pé direito.

O alferes disse que eu me tinha ferido de propósito, para não ir. E eu respondi, mas eu vou, custe o que custar. E o alferes a dizer não vais!... Senti-me tão mal comigo que até chorei.

O grupo saiu, emboscou-se na picada, e um grupo da guerrilha caiu na emboscada, perderam homens e quatro armas automáticas. O grupo entrou em Catió, sem baixas e com as armas.

Tivemos mais dois dias de descanso, enquanto o alferes preparava um golpe de mão a um acampamento na zona de Cufar.

Deixámos o quartel aí pelas 20h00 e andámos sempre sem problemas até às 02h00 da madrugada, quando chegámos à mata de Cufar. Tínhamos quatro horas, mais ou menos à nossa frente, para podermos atacar durante a noite.

A mata era tão cerrada como escura era a noite. Agarrámo-nos uns aos outros pelo cinto, para não nos perdermos. A progressão foi difícil e muito lenta. Aí pelas 07h00, com o sol já alto, fomos dar a um carreiro que levava ao acampamento. Vimos que estava bem utilizado.

O alferes entrou em contacto rádio com o capitão Lacerda da companhia que nos dava apoio e segurança  
CCav 703 / BCAV 705, Bissau, 1964/66, comandada pelo cap cav Fernando Manuel dos Santos Barrigas Lacerda]. 

 Entretanto, nós continuámos a andar até que,  ao ver, a pouca distância, ramos de uma árvore a mexer, disparei um tiro. Logo uma pessoa saltou a correr e desapareceu no mato. Corri para o sítio e apanhei a arma que ele não teve tempo de levar.

Regressámos ao encontro da companhia do capitão Lacerda e tomámos juntos o caminho para Cufar. Aqui a companhia ficou e nós prosseguimos para Catió. No caminho ainda encontrámos uma vaca e uma vitela, que uma secção de milícias que ia connosco, aproveitou para tomar conta delas.

Entrámos em Catió de manhã e, naquele dia, jantámos vitela. No dia seguinte apanhámos o barco para Bissau.


(ii) Com uma noiva no barco, de regresso a Bissau

Na lancha ia uma noiva e a comitiva, três raparigas e três mulheres. A mais velha dava-se mais ao respeito, as restantes, incluindo a noiva, iam numa grande brincadeira. A noiva ia vestida com roupa branca e queria manter-se séria.

Na zona de Bolama, apanhámos tempestade e o barco balançava muito. Ficámos todos mal dispostos e, como é costume, alguns vomitaram. Rapazes, raparigas, senhoras, a noiva até, tudo começou a vomitar. Nenhum de nós conseguia ficar de pé com o temporal. O Braima Bá pediu-me para dizer ao irmão dele que o Braima não tinha morrido na guerra, mas tinha morrido no barco. 

A viagem não foi nada para graças, chegámos a ter dúvidas se chegaríamos a Bissau. Mas chegámos, quase à meia-noite, ao cais onde as nossas viaturas nos aguardavam.

Esta estadia em Catió durou 20 dias.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]

(Continua)
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Nota do editor:

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

Guiné > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > LDM desembarcando as NT. Foi a maior ou uma das maiores operações realizadas no TO da Guiné, durante toda a guerra (1963/74). Segundo o Mário Dias, as baixas de um lado e doutro foram as seguinte: das NT, 8 Mortos, 15 Feridos; do PAIGC: 76 Mortos (confirmados), 29 Feridos, 9 Prisioneiros... 

Erradamente, ao que parece, demos a seguinte informação no poste P2406, de 4 de janeiro de 2008 (*): "Na batalha do Como, morreu um dos primeiros heróis do PAIGC, o comandante Pansau Na Isna, cuja história poucos jovens guineenses de hoje devem conhecer, apesar de ter dado o nome a uma das principais avenidas de Bissau". 

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > PAIGC > A Libertação do Komo. In: O Nosso Primeiro Livro de Leitura, p. 31. Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC, 1966 (1). 

Foto: © A. Marques Lopes  / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007) 


Infografia: © Mário Dias / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)

4. Quem foi Pansau Na Isna?  Sabemos pouco da sua vida, é um dos heróis nacionais da Guiné-Bissau, que tem nome de avenida no centro histórico da velha Bissau colonial. 

A Av Pansau Na Isna (antiga Av Alm Américo Tomás) é, a par da Av Domingos Ramos (antiga Av Governador Carvalho Viegas), uma das paralelas à Av Amílcar Cabral (a antiga Avenida da República). Os seus restos mortais repousam no Mausoléu Amílcar Cabral e dos Antigos Combatentes da Liberdade da Pátria, na Fortaleza de Amura.

Já vimos algumas versões sobre quem foi este homem, que para os guineenses é sobretudo o "herói do Como" (tinha 26 anos quando comandou os 300 guerrilheiros que os portugueses enfrentaram no decurso da Op Tridente). Para os portugueses (ou os "tugas") que o combateram, tende a ser visto como um valente combatente balanta e sobretudo como uma figura  "excêntrica", do qual se sabia pouco, no nosso tempo (anos 60/70),  oscilando "entre o mito e a realidade" (**).

Vejamos agora o que se diz "do outro lado de lá"... É a versão (no mínimo, romantizada),  de alguém, da mesma etnia, balanta, que na década de 80 do século passado, primeiro com 10 anos e depois com 16, já adolescente, ouviu e registou, na sua memória, as conversas tidas com o seu tio, N'tchaagn, antigo companheiro de Pansau Na Isna, tendo com ele resistido à ofensiva desencadeada pelas NT (Op Tridente, 14 de janeiro / 24 de março de 1964). 

Saibamos também ouvir as "histórias do outro lado", o que nem sempre é fácil, entre antigos combatentes...  Nem todos, de um lado e do outro, souberam "fazer as paees"... Mas, por favor, leia-se ou releia-se, a seguir,  o nosso querido amigo Mário Dias (***) que, esse, também lá esteve, na ilha do Como, tal como o tio N'tchaagn... 

E faço minhas as palavras deste srgt 'comando' reformado,  um histórico da nossa Tabanca Grande, um homem sábio e um grande amante daquela "terra verde rubra" (onde viveu na sua juventude e onde combateu), justamente a propósito do balanço final da Op Tridente (***):

(...) "Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e... sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados." (...)

 
Blogue "Intelectuais Balantas na Diáspora" > 20 de janeiro de 2018 > Homenagem a Herói Kpänsau Na Ysna,  conhecido como Pansau Na Isna  > Artigo de opinião do dr. M'bana N'tchiga

[Seleção de excertos / resumo / condensação / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos / itálicos: da responsabilidade do editor do nosso blogue, para efeitos de publicação neste poste... 

Os itálicos   correspondem ao texto, adaptado,  do autor, M'bana N'tchiga ou Na Tchiga, nascido por volta de 1970; os itálicos a negrito são  citação de excertos do  discurso direto atribuído ao tio do autor, antigo guerrilheiro, combatente na Ilha do Como, N'tchaagn; chama-se a atenção para a extrema dificuldade de, para os lusófonos, grafar corretamente os vocábulos da língua balanta (ou brasa), a começar por topónimos e antropónimos; o artigo em causa está, além disso, escrito em mau português... 

Não sabemos onde o autor se licenciou, mas não deve ter sido em Portugal, talvez no Brasil (a avaliar pela construção das frases, pelo uso de termos como "flagrar" ou "codinome", etc.); de qualquer achamos interessante o seu depoimento sobre Pansau Na Isna, mesmo que ele não o tenha conhecido: estava a nascer, em 1970, quando o seu herói Pansau Na Isna morreu, ao que parece em Nhacra... Mas, pelo menos, teve o mérito de  passar ao papel as memórias do seu tio, o que é raríssimo  na Guiné-Bissau, entre os antigos combatentes, que estiveram de um lado ou do outro da barricada... 

Se ele o dr. M'bana N'tchiga nos ler, queremos que saiba que lhe estamos gratos por ter realizado essa tarefa ou missão... 

Com a devida vénia, vamos então reproduzir aqui uma "condensação" do seu artigo, esperando que ela seja amigável para todos e que, no essencial, não traia o sentido das palavras do autor... LG]


Kpänsau Na Ysna (na língua brasa ou balanta) (****), mais conhecido por Pansau Na Isna, nasceu em 1938 e morreu em combate em 1970, aos 32 anos, em Nhacra. 

Era oriundo de uma família balanta (brasa), do sul da Guiné. Era um homem alto, de pescoço saliente e cabeleira farta. Destacou-se pela sua audácia e coragem na batalha do Como (em crioulo,  Köm), com apenas 26 anos. Era o comandante da Baraka Garandi, o quartel-general das tropas do PAIGC, cujos abrigos ficavam a 7 km da praia.

Como quase todos os nomes Braasa, Kpänsau, também tem significado...  
Na língua balanta (brasa), Kpänsau quer dizer literalmente morança ou tabanca acabou, desmoronou-se... Em sentido figurado, pode significar o fim ou aniquilação da geração, do clã, da comunidade...

O "Na" equivale à preposição preposição "de", "do", "da"... E neste caso indica, não a filiação, mas a pertença ao clã, à morança, à tabança (Ysna). 

Os Braasa raramente carregam apelidos dos pais junto aos seus nomes. Daí que se deve entender a horizontalidade e a democracia deste grupo. O filho é do clã e não do pai...

Aos dez anos, em 1980, o autor, M'bana N'tchiga,  ouviu, hipnotizado,  o seu tio, N'tchaagn, antigo guerrilheiro e companheiro do Pansau Na Isna na Ilha do Como, durante a Op Tridente (que decorreu 
de 14 de janeiro a 24 de março de 1964).

 Com sotaque Braasa,  ele disse: 

− Köm... Köm e Kation... Como você não sabe ainda, mas Köm é um dos setores de Kation, ou seja, Catió. De porto de Köm até aos nossos esconderijos distavam 7 km apenas.

Durante os combates, alguns portugueses descreveram-na como a ilha maldita. Para outros, era a ilha que deixava os cabelos de qualquer um em pé.

  De Kation até à ilha eu não sei, mas imagino que seja uma distância de 15, 20, no máximo 30 km. E, como os portugueses  estavam aquartelados em Catió, não podiam  tolerar a presença de terroristas, o termo  com que se referiam a nós, os  de PAIGC, naquela época. Daí o seu interesse em nos expulsar do Como,  definitivamente,  para legitimar e assegurar a sua hegemonia.

E o autor acrescenta, da sua lavra, que um comerciante português, de seu nome Brandão, tinha na ilha um comércio florescente, praticamente sem concorrência. Não havia libaneses na ilha. Noutras partes da Guiné, eram eles, os libaneses, que dominavam o comércio.

 E tio N’tchaagn fez uma pausa  e tomou um gole de seu vinho de cíbi (palma):
 
− O comandante Kpänsau Na Ysna sabia disso. Pois além da gente  que nos informava sobre a manobra e a intenção de tugas na ilha, ele próprio, Kpänsau, era um homem inteligente, um estratega de guerra, um guerreiro nato, corajoso como poucos que conheci. E intransigente, quando a questão era defender a nossa posição. Não gostava de perder. Eu, N’tchaagn, nunca conheci igual. Cada um dos nossos comandantes tem as suas características próprias de comandar, mas Kpänsau continua a ser uma  lenda na minha mente até hoje. 

Pansau Na Isna não estaria na ilha do Como aquando do início  da Op Tridente. 

− Estava em missão fora da ilha. Não sei muito bem, estava lá para os lados de M’brüi (Caboxanque), Tchüm-Kpáss (Cadique) ou Yembrém (Jemberém)...

Ao saber que a ilha do Como ia ser atacada pelo exército português, apressou o seu regresso, andando na maioria das vezes à noite e  atravessando Tchüm-Kpáss (Cadique), Flágck-N’ñandy (Ilhéu de N’fandá), Kybíl, Katün, atravessando pântanos e bolanhas, até chegar ao interior do Como.

A guerra já tinha começado antes, no dia 14 de janeiro de 1964. Era uma  terça-feira. Dois outros comandantes, Guádn Na Ndamy e  Biotchá  Na M’batcha [seguramente não Biohctá, deve ser gralha] já estavam na ilha.  

Pansau Na Isna  misteriosamente caiu enfermo. As pernas incharam e não conseguiu andar durante duas semanas".  Mas ninguém podia saber, muito menos os tugas... 

 Só Biotchá Na M’batcha e mais outros comandantes, sabiam que o lendário (sic) estava doente. Perguntaram-lhe se não seria melhor evacuá-lo para fora do Como  por estar doente. Logo esbraceejou, e com voz determinante disse: 'N’keia yânta. Bitën luza. Bbürtikìz tën luza. Köm ka wínbu'. (Não saio daqui. Têm que ir embora. Os Portugueses é que têm que ir embora. O Como é nosso)....

Mas, prossegue o tio falando para o sobrinho:  

− Não foi  só o Kpänsau  quem fez tudo. Para além dele,  foram o  Guádn Na Ndamy e Biotchá Na M’bátcha. Bravos camaradas que estavam sempre por perto,  obedecendo ou contestando o que convinha ou não, pronunciado por Kpänsau. Contudo, as decisões partiam sempre dele, como comandante em chefe. Ao entardecer, com o  crepúsculo,  chamava Biotchá Na M’batcha para tomar vinho de palma e aliviar a tensão do dia trabalhoso, analisar a ação que já tinha sido desencadeada até então e preparar o amanhã. 

O  tio N’tchaagn parou e me pediu para levar vinho de cíbi ao seu primo na varanda da outra casa ao lado. Fui e voltei rápido. Já tinha feito os  16 anos quando esta história reaparece para mim através dele. Mas o combatente N’tchaagn, como contador de histórias nato, lembrava-se  com detalhe dos episódios da batalha que Kpänsau dirigiu. Continuando, disse: 

− O exército português batizou a guerra contra o Köm de 'Operação Tridente'. Nas suas imaginações recuperaria não só Köm, mas, também, Katugn, Cayar (...) e, se instalaram também em Kônghan. (...) Estrategicamente instalaram no porto de Köm, Katchil, N’komny, Kônghan (onde se instalou general português que dirigiu a operação). Mas, nada que intimidasse o lendário, pois os portugueses desconheciam ou ainda subestimavam o poderio da força e do grau de organização de Kpänsau Na Yisna com seus homens, que já se encontravam bem instalados. Sobretudo ao nível dá tática móvel que ele sabia usar muito bem.

Passava já das 23 horas da noite e tio N’tchaagn já  ansado e tomado por força da embriaguez pediu para parar (...) E parámos. Fui dormir, empurrei a porta e a minha mãe perguntou: 'Você ainda não está a dormir, M’bana?'...  Não respondi,  com medo de ela me dar um par de açoites,  enfiei-me, silencioso, no quarto.

Passaram-se dois dias, após o que o tio N’tchaagn me pede para lhe relatar o que eu havia ouvido por ele sobre Kpänsau. Eu repeti tudo. O que ele aprovou e disse: 

− Ótimo, bom menino, guarde bem para ninguém te falsear com outra história que não seja essa. 

E prosseguiu. 

 Kpänsau organizou os seus homens em dois grupos diferentes. Em primeiro lugar,  um grupo armado de guerrilheiros em área territorial fixa. Esse grupo encarregava-se de defender o espaço aéreo de Köm, instalando a defesa antiaérea e hospitais debaixo do chão. O grupo detinha armamentos sofisticados que os tugas não imaginavam que tivesse. 

Ao todo, nós homens de Kpänsau, éramos 300 guerrilheiros armados contra 800 ou mais da força dos tugas. Eram forças desproporcionadas e, claro, com vantagem para os tugas. Uma vez que, para além de 800 homens, os tugas tinham armas em quantidade e em qualidade superior às que tínhamos. Tinham ainda aviões, navios e outras embarcações menores para se deslocarem à vontade. Eram facilidades que nós não tínhamos. Nós já tínhamos armas que começavam a igualar-se  a algumas das deles. Mas a distância entre nós e as armas que ficavam na fronteira de Conakry era imensa. Transportá-las até nós era uma enorme dificuldade. O único transporte que havia eram as pessoas dispostas ou obrigadas a ir a pé para buscar armas e munições na fronteira com Guiné-Conakry.

A viagem para ir buscar munições durava 4 a 5 dias. Isto é, se o grupo não se se encontrasse com os tugas no caminho. O percurso era saindo de Köm: WedëKaya ou Kantônaz, Ndin-Welgglè, Kandjóla, Kan, Kangnha-Ley, Katché, Kambíl, N’gháfu, N’thâne, Banta-Silla, N’dala-Yèll, Sambassa, Linga-Yèll, N’tchintchedaré, Yeng até fronteira de Conakry.

Essa distância em linha reta era de 160 a 200 km, aproximadamente. Mas a pé  tinham que dar muitas voltas, imagino que fossem 200 a 230 km. Imagina,  M’bana, percorrer essa distância com munições pesadas, à cabeça?! Às vezes com fome, apenas bebendo açúcar cubano misturada com água.

Não posso ser injusto em relação ao Kidèlé Na Arítchn, não o mencionando. Devo falar dele  um pouco,  para ti, nessa história das munições... Quando as munições chegavam ao porto, para serem introduzidos na ilha, era mais difícil de que a própria luta. Tuga estava ao longo de todo o perímetro da ilha. E vigiando o tempo todo para ver como é que iríamos receber reforços. Literalmente não havia ninguém que se atrevesse a desafiar os tugas atravessando o mar para o Köm. É aí que surge um único, chamado Kidèlé Na Arítchn que enche de munições uma B’sahë Në Braasa (canoa Brasa/Balanta) e põe-se a remar atravessando um mar perigoso vigiado dia e noite pela tropa inimigas.

Assim Kidèlé Na Arítchn abasteceu-nos de  munições,  atravessando o mar várias vezes sem que os  tugas alguma vez o apanhassem em flagrante. A pergunta que não tem resposta até hoje, é:  Como é que ele nunca se encontrou com os tugas? Será que podemos acreditar em milagres..? Coincidência ou não, não é à toa que os seus pais lhe puseram esse nome de Kidèlé (que na língua brasa quer dizer literalmente... Milagre). Aconteceu um verdadeiro milagre no abastecimento, feito por esse homem, aos guerrilheiros da ilha. 

Pkänsau sabia da força do inimigo e soube admitir a sua fragilidade antes de encarar a guerra. Mas soube também desafiar os tugas provocando-os para, com isso, causar o desgaste físico, de munições e de seus aparatos bélicos. Até mesmo contra  umas simples silhuetas de soldados falsos montados na escuridão da noite os tugas gastavam munições. 

Conseguiu colocar muitos combatentes inimigos fora de combate com apenas dois e ou três guerrilheiros. (...) Era capaz de enganar os fuzileiros dos tugas, "obrigando-os" a desembarcar no lodo que dificultava a sua progressão. Ou a seguir num caminho estreito na mata densa através de alarmes falsos. E quando os tugas caíam nessa armadilha era a altura de nós, os homens de Kpänsau, tirarmos vantagem (...) Daí a expressão: “tuga ka pudi anda na lama.” (Tugas não sabem andar no lodo). (...)

Kpänsau conhecia os espaços que nos eram favoráveis. Por isso não admitia que a marinha portuguesa chegasse por perto e controlasse esses locais. Atraíamos os tugas sempre para o lado de lodo, mangue, ourique e para clareira, seguido de mato fechado onde os homens de Kpänsau estavam fortemente armados. A sua firme postura na luta de Köm encorajou até as mulheres a disparem contra barcos portugueses que se atreviam a subir nos rios, floresta adentro.

O céu da ilha estava coberto de fumaça devida  aos disparos de canhões a partir de Kayar, Kônghan e Kambontõ contra nós em Köm. E, por terra,  homens, mulheres, jovens, crianças e, claro, 300 guerrilheiros liderados por lendário Pänsau Na Ysna não arredavam pé de onde estavam. 

A população de Köm sofreu. As mães com crianças de colo, a amamentar,  sofreram e perderam a vida com seus bebés que,  quando choravam, a resposta da força portuguesa, sem pena não se fazia esperar: , metralhavam, disparavam morteiro ou bombas de napalm contra o local de onde vinha o choro da criança,  matando populações civis indiscriminadamente. 

 O povo de Köm viveu situação desumana durante  75 dias. 'Djigân' (bicho de pé) e as lêndeas de piolhos infestaram pés e cabelos de pessoas. Muitos abandonaram a ilha, desmoralizados, chamando a Kpänsau  'Balanta teimoso', que não vai vencer a guerra contra brancos. 

Chegavam relatos dizendo que Amílcar Cabral pedira que Kpänsau e nós, guerrilheiros em Köm, abandonássemos a guerra para poupar massacre que tropas colonial praticavam contra populações civis, mas Kpänsau intransigente meneou a cabeça, dizendo: 'Wisaguë Kanã' (Não acredito nisso). Ignorou essa ordem e prosseguiu o seu trabalho. Certo de que a vitória estava próxima. 

Como se não bastasse, M’bana, um dos nossos soldados recebeu informação triste, no dia 19 de fevereiro, quarta-feira, de 1964, de que os tugas estavam a queimar o arroz dos Brasa,  deliberadamente,  como forma de impedir a persistência dos guerrilheiros de PAIGC na luta. Pois sabiam que nós Brasa (Balanta), além de constituirmos mais de 90% da guerrilha do PAIGC,  éram0s produtores de arroz e que os nossos excedentes alimentavam os guerrilheiros. 

O que eu, N’tchaagn,  esbravecei com lamento: 'Hack N’ghala, biotë bìg impanpan ni Bifilá, Biafadá kinë a binalú... bë thëd malu ni Braasa tida. hack, Bëbábm match bu. Weñan miin yá ki Braasa a bi ka hera0. (Meu Deus; ignoraram impanpan [?]  de Fulas, Biafadas de Quínara e de Tombali..., só queimam arroz dos Brasa. Então, tuga nos detesta..? Já está claro que declararam guerra a nós, Brasa!) 

Isto era o que dizia N’tchaagn, horrorizado, ao lembrar aquele episódio. 

No dia 20 de março, numa sexta-feira, de 1964, quatro dias antes de terminar a guerra, recebemos mais informações, de que agora tugas estavam a matar bois e vacas em Katün, a tiro, deliberadamente, sem levar a carne. Era a  destruição pura e simples,  com a intenção clara provocar mais danos ao nosso povo. 

Sempre as vacas e os bois de Braasa serviram de carne para eles ao longo da guerra. Sempre que invadiam terras Brasas pilhavam, saqueavam,  matavam e escolhiam  as melhores cabeças, de entre bois e vacas,  para comer nos seus quartéis. Agora que estavam a perder a guerra,  estavam a  matar sem levar. N’tchaagn contava para mim, horrorizado.

  Nunca foram às tabancas desses grupos étnicos para queimar os cereais deles. Por representarem pouco valor em termos de abastecimento aos guerrilheiros do PAIGC. Mas num só dia, M’bana, antes de tu mesmo nasceres, o exército português queimou,  nesse ano de 1964,  o arroz das tabancas de Kablôn, M’brüi, N’ñaaé Thúe/Tchuguê, Kátche, Kângha-lei, Kibumbän, Kambyl, N’thäny, SaráckDjaty, Saráck-Cull, Sambassa, Botche-Thãntä, N’dala-Yièll... Ou sejam, 14 aldeias dos Brasas sofreram perdas do seu arroz. Por serem realmente tabancas que abrigavam armazéns de povo e que produziam arroz em larga escala para abastecer o PAIGC

Isso chegou aos ouvidos de Kpänsau que ficou em silêncio, por uns segundos,  perante o informante. Para depois responder; 'Wìì biotte Bin hera ki bo? Wil wólo kei bo tchóhg-na sifá kë sif-bu. Be mada thedá, bë kite thët, wetè kher ka herë kantë be-fida buidn ya bitën lusa ka botchi-bu'. (Por que não vêm combater-nos?... Nada vai nos fazer desistir do nosso trabalho. Que queimem arroz da nossa população, mas a guerra vai prosseguir até que entendam que tem que sair da nossa terra.) 

Os abusos que as tropas coloniais cometiam, matando  civis,  doía muito a Kpänsau. Mas ele sabia que era guerra psicológica que os homens de Salazar estavam fazendo para intimidá-lo e levá-lo a  abandonar as armas. 

Kpänsau não se abateu e manteve-se firme na luta para libertar esse povo. Deslocava-se  pessoalmente à  linha de frente para ver cada desatamento e como é que as coisas estavam a acontecer.  Não era um comandante para dar ordens e ficar no seu QG. Ao chegar à linha de frente, via alguns famintos sem comer durante dias que apenas misturavam açúcar cubano com água e bebiam para continuar entrincheirados. Encorajava-os com palavras tais como: ' Herá, botche-bo win' (Lutemos, a terra é nossa!) 

O dia começava, para Kpänsau,  a partir das 05h00 / 6h00. Nesse horário, toda a movimentação para mais um dia sangrento começava  a ser cronometrada. Instalado na Baraka Garandi (comando central de PAIGC, seu quartel-general) elaborava e decretava ordens para uma missão quase impossível. 

Em matéria de crenças, Kpänsau era animista. Na sua fé religiosa, reuniu anciãos, anciãs, sacerdotes e sacerdotisas na Baraka Garandi para pedir proteção e vitória. No centro de adoração (Baloba, guardiã da ilha de Köm) separou anciãos e sacerdotes das anciãs e sacerdotisas. Sem se misturar, os  sacerdotes faziam sacrifícios e consultavam a Baloba, a guardiã. A sacerdotisa-mãe, ladeada pela sua gente, murmurava palavras inaudíveis pedindo proteção para o  comandante Kpänsau e  os  guerrilheiros que estavam combatendo os tugas ferozmente. 

As árvores,  M’bana, testemunharam durante 75 dias tudo que estava a acontecer e que hoje te conto. Assim foram estes dias, de  14 de janeiro (terça-feira) a 24 de março (terça-feira) do ano de 1964 na ilha de Köm.

PS - O autor, M'bana N'tchiga (sobre o qual não temos mais qualquer informação adicional) quis sobretudo fazer uma homenagem a um herói guineense, Pansau Na Isna, e por tabela ao seu próprio tio e aos demais combatentes do PAIGC que lutram no Como. Mas faz uma prevenção, reveladora da sua boa fé e honestidade intelectual: "Com todo o respeito aos meus leitores, eu não sou dono da verdade"... Sujeita-se, pois, ao contraditório. 

E diz isto nomeadamente em relação à questão de se saber qual foi o papel do 'Nino' Vieira na batalha do Como. Contrariando outras versões, ele defende o ponto de vista de que o 'Nino' Vieira não participou na batalha do Como, pela simples razão de que estaria em Conacri, e ao que parece "doente". O seu tio confirmou-lhe que nunca viu o 'Nino' Vieira em nenhum dos combates que se desenrolaram ao longo de 75 dias. Sabia-se (ou constava) que ele estava em Conacri, e talvez em tratamento por doença.

A ser verdade (que o 'Nino' Vieira não pôs os pês na Ilha do Como, durante a Op Tridente) pode ser apócrifa a mensagem que lhe é atribuida, e que, segundo o Màrio Dias, estava "em poder de um prisioneiro por nós capturado":

(...) “Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças… camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “ (...).

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23611: Efemérides (372): No dia 21 de Abril 2021 fez 58 anos que os 1.º e 2.º Pelotões da CCAÇ 414 estiveram em sérios apuros na Ilha do Como (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enf)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 414, Catió (1963/64) e Cabo Verde (1964/65), com data de 11 de Abril de 2021, que não foi publicada na devida altura. Por este atraso pedimos desculpa.

Há 58 anos, dia 21 de Abril, dia de Pascoela, os 1.º e 2.º pelotões, da Companhia de Caçadores 414, reforçados com uma metralhadora Breda, um morteiro de 60mm, uma bazuca, o furriel enfermeiro (eu) e um maqueiro, auxiliados e guiados pelo grupo de cipaios do cébebre “João Baker Jaló” mais tarde integrado no exército português e que atingiu o posto de “capitão de 2.ª linha,” encontravam-se, em sérios apuros na Ilha do Como.

Estes ainda maçaricos que haviam chegado a Bissau a 27 de Março e a Catió a 1 de Abril, foram a primeira tropa a pisar “Como e Caiar”. Imagine-se, com tanta inexperiência enfrentar pela primeira vez o, então, inimigo, que mal o barco atracou os recebeu com grande foguetório, que se prolongou até à chegada o resto da companhia, que ao chegar a Catió e, não sabendo da nossa situação, à revelia do comando, tomou um barco de abastecimento de géneros que lá se encontrava e partiu à nossa procura.

O encontro foi uma festa, ou melhor, um alívio.

Manuel Barros Castro
Tabanqueiro n.º 793

Digitalização da pág. 316 do 7.º Volume - Fichas das Unidades - Tomo II - Guiné - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) - Publicação do Estado-Maior do Exército (CECA), com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23361: Efemérides (371): 17 de junho de 2022, Dia da Consciência, em memória de Aristides de Sousa Mendes (João Crisóstomo, Eslovénia)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21670: Notas de leitura (1330): A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos, 

Nesta preocupação de juntar todas as peças inerentes ao conflito guineense, encontrei esta reportagem da Felícia Cabrita na revista do Expresso comemorativa dos vinte anos da publicação. 

É impossível não ficar estupefacto não só pelo tom da escrita, é o desmazelo pela verdade histórica disfarçado nessa ilusão de ouvir uns e os outros, esboça-se uma atmosfera apocalíptica e insinua-se permanentemente que houve para ali uma derrota, tinha que acontecer o que aconteceu, já que o decisor político só queria é que desaparecesse da cena internacional a atoarda de que o PAIGC possuía território que indiciava a independência. Operação caríssima e escola de aprendizagem - para quem tinha a honestidade de tirar lições de uma guerra de guerrilha, tal como o Como provou. 

Não sei exatamente para que servem estas reportagens, se para provar que a repórter esteve lá e cá ouviu gente, mas seguramente que não fica um quadro idóneo das etapas essenciais da operação. E, como sempre, tudo aparece inscrito em sede militar, como se de facto a Operação Tridente não tivesse sido, do princípio ao fim, uma decisão de Lisboa, que temeu a atoarda da república independente e que achou demasiado tempo, aqueles mais de 70 dias, que durou a operação, deve-se ter tido receio de que estava para ali um Vietname. 

O que verdadeiramente aconteceu ainda pode ser contado por muito boa gente que seguramente não se revê nesta enxurrada de delírio que saiu do punho de Felícia Cabrita.

Um abraço do
Mário


A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem

Mário Beja Santos

A Revista Expresso comemorativa dos 20 anos do jornal foi um acontecimento editorial, ainda hoje é um documento de consulta. O número especial incluía uma reportagem de Felícia Cabrita sobre a Operação Tridente, profusamente ilustrada, imagens cedidas da operação propriamente dita e testemunhos do presente. 

Trinta anos depois, aquela que é considerada a operação de maior envergadura de toda a guerra colonial merecia um tratamento mais digno, menos hipóteses e presunções e uma redação menos pesporrente e chocarreira. A jornalista achou que era conveniente dar um toque à Norman Mailer ou Hemingway, e dá-nos logo um parágrafo em tom épico: 

“Os soldados tinham abandonado a metrópole de alma limpa, sem saberem muito bem o que era a guerra, estavam até ufanos por se livrarem da açorda e da azeitona no pão e dos míseros testões da jorna. E trocaram sem regatear enxada e martelo por arma. Com as primeiras baixas, depressa se esqueceram que não era de bem matar e entregaram-se ao mister da guerra, ganharam expediente em cortar orelhas e dedos e a torturar gente indefesa. Ainda não tinham passado pela hora da verdade quando os segredos se revelaram, a valentia a impropério. 

Em 1964, mil e tal homens partiram para ocupar uma ilha que era já lenda. Levaram no bolso as suas santas, multiplicaram devoções, mas Deus da sua morada não olha para outros caminhos. Eles tornaram-se farrapos, durante dois meses e meio intérpretes de uma missão falhada. Os habitantes da ilha tenebrosa ficaram de pé até ao fim, muitos morreram, mas a morte o que é senão incerteza? Os que ficaram mantiveram-se insurretos, contentes com o mundo e as suas leis, entregaram-se à dança e à festa, fizeram galas de sangue que ofertaram ao Irã…”.

A repórter esqueceu-se de dizer que o governo de Lisboa estava muito incomodado com a propaganda que o PAIGC destilava em meios internacionais de que possuía território dentro da colónia, decretou aos comandos em Bissau a erradicação de tal presença, organizou-se operação, veio mesmo o Ministro da Defesa, Gomes de Araújo. 

Essa mesma propaganda do PAIGC irá fazer constar anos a fio que houve derrota das tropas portuguesas, que as populações afetas ao PAIGC e as suas milícias não arredaram pé, alimentaram o mito com o mais completo despudor. Acontece que a Operação Tridente está bem repertoriada, e até se inclui na documentação capturada uma carta de Nino Vieira a pedir apoio a outros camaradas da região Sul, quando o coronel Fernando Cavaleiro percorrer a ilha no fim da operação as populações e milícias tinham atravessado o canal, à cautela, e regressaram quando as tropas portuguesas ficaram circunscritas, no extremo da ilha, ao destacamento de Cachil. 

A importância do Como, avisadamente os investigadores têm-no dito, cedo desapareceu, e não só aprendeu quem não quis, o Como tem como significado o bate-e-foge, um dos cânones da guerrilha.

Mas isso não tinha importância para o tom megalómano da reportagem. Corriam rumores sobre os efetivos posicionados no Como: que era uma base central, que tinha abrigos antiaéreos, hospital, búnqueres, centenas de guerrilheiros, pura fantasia, está historicamente demonstrado que os efetivos do PAIGC ainda dispunham de escasso material, ainda não havia armamento antiaéreo, as minas surgirão pouco depois, a guerrilha ainda está num estado incipiente.

Procura-se dar o lado da guerrilha, a exploração a que Manuel Brandão sujeitava as populações: 

“Os agricultores entregavam arroz e os animais por tuta e meia, ou então recebiam géneros, trapos e aguardente de cana. No fim do ano estavam sempre a contas com a administração portuguesa. O comerciante adiantava os 150 escudos do imposto de cabeça, dinheiro que os indígenas pagavam depois a triplicar ou a trabalhar de borla nas suas plantações. Poucos se atreviam a atropelar as leis de Brandão. Se alguém era apanhado a negociar em Catió, esperava-o o tanque coberto de óleo de palma até ao pescoço, muitos escorregavam na gordura espessa e morriam”

E emerge o lendário Nino, as peripécias da sua fuga, a sua capacidade de subversão chegou ao Como, Brandão foi escorraçado e as lojas saqueadas. No Como, quando se inicia a Operação Tridente estarão escassas duas dezenas de guerrilheiros, há oito armas e quatro granadas, Pansau Ná Isna ausentara-se do Como na véspera da Operação Tridente. E começa o desembarque, precedido de bombardeamento aéreo. 

“O tenente-coronel Fernando Cavaleiro tinha como missão isolar Como das restantes ilhas, para cortar o abastecimento da guerrilha, conquistar a população e garantir que se instalasse posteriormente a autoridade civil”

Adivinha-se um terreno áspero, a ilha tem uma superfície de 210 quilómetros quadrados, mais de metade zona de tarrafe. Há desembarques em paz e outros debaixo de tiroteio. E novamente a jornalista se socorre do tom apocalítico: 

“O médico sente o desespero dos soldados. Havia quem metesse um pé ou um braço fora do abrigo para ser alvejado, e mesmo quem descarregasse a arma no corpo. Outros inventavam doenças e muitos enlouqueciam. Ele estava à beira do esgotamento e pedia ao comandante para o substituir”

Mais adiante, a jornalista pretende dar-nos um quadro de como nasce um herói, o brutamontes irado: 

“Na Guiné, quando viu os primeiros mortos e apanhou um estilhaço no olho, depressa se tornou um selvagem. Uma vez limpo o sarampo a meia dúzia de mulheres, fazia coleção de orelhas, outra vez apeteceu-lhe violar uma velha. Antes desta operação era homem para cortar cabeças se tivesse tido oportunidade, mas depressa da experiência do Como confessa que perdeu a afoiteza. Naquele dia, cercado por todos os lados, só pensava em fugir, esconder-se, escapar ao inferno”.

Os guerrilheiros também não passam de gente desalmada, aos olhos da repórter, têm acesso aos corpos de soldados portugueses, roubam fardas e um anel e até o retrato de uma namorada. A guerrilha resiste, as mulheres têm comportamento heroico, avisam os homens de que dali não saem. O contingente português debilita-se: 

“Passados quinze dias, cavalaria, fuzileiros e paraquedistas estavam reduzidos a 60% dos efetivos. 68 homens tinham sido evacuados e os outros pareciam penitentes bêbados atacados por todas as doenças tropicais”

A repórter fala do fuzileiro José Marques que viu gente morrer ali ao pé, viu mesmo um camarada dar um tiro no pé para se ir embora, tal era o desatino que até pensou em matar o seu comandante, Alpoim Calvão, e confessa à jornalista que a partir desta operação nunca mais bateu bem da cabeça.

Momentos há em que a jornalista aceita a lucidez de descrever a guerra de guerrilhas, tal qual ela é, mas a tentação miserabilista e apocalítica é mais forte, e bumba, temos agora a apatia ou o paroxismo: 

“Em emboscadas viu soldados a cavar buracos para se esconderem. Enfiavam o rosto na terra e disparavam ao acaso. Um alferes que estava meio pirado fazia malabarismos com três laranjas debaixo de fogo. E Jaime Segura, que não tinha queda para batalhas sem glória, aborreceu-se de morte. Infelizmente esqueceu-se de levar os dados de póquer, por isso entretinha-se no rio a pescar com granadas. Enquanto o Bretão, tinha ido para a Guiné por ter contas a ajustar com a PIDE não se lavava num gesto de contestação. Estava tão encardido que passava as tardes a fazer o jogo do galo no peito com um pau de fósforo”.

No meio de todas estas hecatombes, são avançados alguns dados. A operação ficará na História como a batalha mais longa e cara do Exército Português. 

“Gastaram 356 bombas, 719 foguetes, 40944 balas. O vinho correu com fartura, o álcool foi o refrigério para o medo. Os cofres do Estado sofreram um arrombo de 290 mil contos. Em meados de março, passados quase dois meses e meio de terem desembarcado, as chefias militares começam a pressionar Fernando Cavaleiro, que garantia o sucesso da operação”.

Os contingentes retiram a 20 de março. Para a repórter, a sentença da desgraça é inapelável: 

“As derrotas são osso duro de roer, partiam sem ocupar a ilha, sem conquistar a população e sem deixar a autoridade civil. Nove mortos e quarenta e cinco feridos graves era o saldo de uma batalha sem glória (…) Salazar também tirou as suas conclusões, e uns meses depois o governador da Guiné e o responsável militar eram substituídos. Mas, num ponto da ilha, encurralados entre o rio e a mata, ficava, durante dois anos, uma companhia a apodrecer”.

À distância de todos estes anos, interroga-se como foi possível o Expresso publicar esta mistela de dislates.

Atenção, mais tarde, Felícia Cabrita voltará ao Como acompanhada de Nino Vieira e voltaremos a esta mesma toada de loucura, medo e mortandade. Tudo isto para dizer que o melhor é ler a documentação sobre o que foi a Operação Tridente e perceber que não passou de uma escola de aprendizagem. E não vale a pena estar a incriminar militares ou a enxovalhá-los, a decisão da Operação Tridente partiu de Lisboa. 

Quando um dia os investigadores se decidirem a consultar os arquivos dos Ministérios do Ultramar e da Defesa seguramente que serão confrontados com uma revelação que todos teimam em iludir: as grandes decisões militares dos três teatros de operações tinham aval político. O regime não pode sair ileso das decisões que tomou.

Início da reportagem de Felícia Cabrita, título com mais equívoco não podia haver

Desembarque das tropas no início da Operação Tridente

Protagonistas da Operação Tridente, muitos anos depois

Protagonistas da Operação Tridente, do lado do PAIGC

Regresso da Operação Tridente

Às vezes, era possível comer em sossego na Operação Tridente

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Nota do editor

Último poste da série de 14 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21644: Notas de leitura (1329): "Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes; Edições Desassossego, 2020 (Mário Beja Santos)