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quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18086: (D)o outro lado do combate (16): razões e circunstâncias da prisão e condenação do arcebispo católico de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011), na sequência da Op Mar Verde: de "santo" a "diabo", aos olhos do "guia iluminado", Sékou Touré: o testemunho do mais célebre prisioneiro político do sinistro campo de Boiro (excerto com tradução de Jorge Araújo)


Fotografia prisional: Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011), antigo arcebispo de Conacri (ao tempo da Op Mar Verde, 22/11/1970): o mais célebre prisioneiro do campo de Boiro onde passou 8 anos e meio ... Autor de "Noviciat d'un évêque : huit ans et huit mois de captivité sous Sékou Touré". Paris: Fayard, 1987. 332 p. + ill.



Guiné-Conacri > Conacri > A antiga catedral do arcebispo católico Raymond-Marie Tchidimbo: a pedido do Vaticano, este homem, que simpatizava com a "causa nacionalista" do PAIGC, intercedeu, junto de Amílcar Cabral, em 16/9/1970, com vista a obter notícias do nosso camarada Geraldino Marques Contino, aprisionado pelo PAIGC em 3/2/1968.  (*).


O presidente Sékou Touré assiste à consagração de Raymond-Marie Tchidimbo como arcebispo de Conacri, em 31 de março de 1962.

Preso em 24 de dezembro de 1970, torturado, julgado à revelia, condenado a prisão perpétua um mês depois, em 23 de janeiro de 1971, foi libertado do sinistro campo de Boiro em 7 de agosto de 1970, e  expulso do seu país.  Vai para Roma,  em 13 de agosto de 1979 resigna como arcebispo de Conacri. É feito cardeal em 1992, pelo Papa João Paulo II. Quando jovem padre missionário (, ordenado em 1951), chegou a ser  amigo (e até admirador) de Sekou Touré (1920-1984). Nascido em Conacri, morre em França, em 2011.

Fonte: página Campo Boiro > Memorial > Bibliothèque  (com a devida vénia)




1. Comentário do nosso colaborador permanente, Jorge Araújo, ao poste P10076 (*);
Camaradas,

Na sequência dos comentários produzidos no final da Parte I [P18027] (**)  prometi dar-vos conta, após a publicação desta segunda parte, sobre o porquê da prisão do Arcebispo de Conacri, verificada um mês depois da «Operação Mar Verde», facto que consideramos de relevante valor historiográfico no contexto da guerra, pois essa operação  acabou por influenciar as novas formas de acção e o sentido de cada uma delas ao longo dos tempos que se seguiram, traduzido no reforço da aliança entre Sékou Touré e Amílcar Cabral.

Com efeito, a justificação para o seu cativeiro foi retirada [e traduzida] do livro «Noviciat d’un évêque: huit ans et huit mois de captivité sous Sékou Touré» [«Noviciado de um bispo: oito anos e oito meses de cativeiro sob o regime de Sékou Touré»], Paris: Fayard, 1987. 332 p., obra escrita em francês da autoria de Raymond-Marie Tchidimbo [1920-08-15/2011-03-26] – o prisioneiro.

O texto que seguidamente se apresenta, com tradução da nossa responsabilidade, serve apenas para enquadrar a problemática acima.

TRADUÇÃO

Porque fui preso?

Após a minha libertação em [7 de Agosto de] 1979 [uma semana antes de completar cinquenta e nove anos], deram-me a oportunidade de realizar diversas conferências sobre a experiência de cativeiro na presença de audiências interessadas. Em cada uma delas, punham-me a mesma questão: «porque foi preso?».

Mas em cada uma também, perante esses públicos atónitos, eu respondia, em primeiro lugar, que era uma pergunta que nunca formulei em cativeiro. Porquê? Porque, simplesmente, uma resposta – e a única verdadeira – já havia sido dada nos anos 30, por aquele que me escolheu dois mil anos depois para servir na sua presença. […]

O que nos diferenciou então, entre os meus companheiros prisioneiros e eu, era que eu sabia porque me encontrei com eles nas prisões. Eu sabia-o, inicialmente, no dia da minha ordenação sacerdotal. Eu sabia disso mais precisamente após a expulsão de todos os missionários em 1967; um acto injusto que eu não tinha entendido/ligado e que valeu a irritação do «guia iluminado» da Guiné; como os seus “griots” [indivíduos com a responsabilidade de preservar as tradições, transmitindo histórias, factos históricos e conhecimentos do seu povo] e cortesãos gostavam de chamá-lo.

Eu sabia exactamente, desde 2 de Dezembro de 1970, que seria preso no fim do mês, se não deixasse o território da Guiné antes dessa data fixada por Sékou Touré [1922-1984], ele mesmo.

Dois médicos – um amigo, antigo ministro, e um primo – foram informados da minha prisão por pessoas muito próximas de Sékou Touré. Imediatamente, eles fizeram questão de me informar por prevenção, para evitar qualquer risco. Porque todos sabiam em Conacri que, durante vários meses, os arredores da chancelaria e a residência do arcebispo de Conacri estavam sob vigilância monitorada, e ainda mais, depois de 22 de Novembro de 1970, data do desembarque de opositores guineenses residentes no exterior.

Fui informado por um dos meus primos, ao qual, para além disso, lhe digo que informaria imediatamente o Papa Paulo VI; mas que deixaria a Guiné apenas por ordem expressa deste último. Agir de outra forma seria da maior traição: todo o bispo teve que jurar na véspera da sua ordenação episcopal permanecer fiel à sua posição, seja o que for que aconteça. O Papa Paulo VI foi informado por mim em 2 de Dezembro de 1970. E é a alma em paz que aguardava a visita do Senhor.


Em 23 de Dezembro de 1970, ao meio-dia, fui preso em casa, com a dupla acusação de colaboração com a oposição externa e delito de opinião. Fui levado para o campo militar de Alpha Yaya [Diallo], situado [nos arredores do aeroporto internacional] a dez quilómetros de Conacri. E aí, depois de confirmar a minha identidade, fui algemado, e fico trancado num quarto semi-escuro. As «férias grandes» começaram finalmente para mim.

O belo pretexto da minha prisão foi atribuído a Sékou Touré pelo desembarque em Conacri, durante a noite de 21 para 22 de Novembro de 1970 [«Operação Mar Verde»], de militares portugueses que vierem resgatar os seus nacionais detidos numa prisão em Conacri, e que haviam sido presos pelas tropas nacionalistas da Guiné-Bissau. A estes militares portugueses juntaram-se alguns elementos armados da oposição guineense que viviam no exterior.

Este desembarque – bem-sucedido no que diz respeito ao plano dos portugueses, e abortado quanto à acção dos opositores – permitiu que Sékou Touré se livrasse de todas as pessoas que o incomodavam e estabelecer um regime totalitário. […]

Mas, na realidade, Sékou Touré teve razões secretas para me prender: eu o desapontei sobre mais um plano e este «ressentimento» por vocação esperava o momento propício para se vingar.

Desculpo profundamente Sékou Touré! Jovem missionário de regresso à Guiné [-Conacri] em 1952, eu o apoiei e o encorajei na sua acção sindical, para a criação de uma sociedade mais justa e humana, no contexto colonial francês. E, devido a esse apoio de 1952 a 1956, Sékou Touré pensou ter encontrado em mim um aliado incondicional que abraçaria todas as suas ideias, e executaria todos os seus planos e instruções.


Mas eis que: em 1956, as eleições municipais permitiram que o partido de Sékou Touré [RDA - Reunião Democrática Africana] ocupasse todos os lugares dos municípios do território da Guiné Francesa. E esse foi o início da guerra surda contra a Igreja da Guiné. Este deveu-se, neste contexto viciado, para afirmar a sua identidade e a sua autonomia, respeitando as leis mas sem receio, na dignidade superior da sua vocação. Então, Sékou Touré começou a descobrir-me. E aquele que ele pensou ver como um puro revolucionário socialista tornou-se gradualmente aos seus olhos um assustador reaccionário burguês.


Fim.

Para consulta na íntegra ver:

http://www.campboiro.org/bibliotheque/tchidimbo/huit_ans_captivite/tdm.html

Boa semana.

Com um forte abraço,

Jorge Araújo.

[Tradução de JA / Seleção de fotos, legendagem e título do poste: LG]
___________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18027: (D)o outro lado do combate (14): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - Parte I (Jorge Araújo)

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18078: (De) Caras (101): Geraldino Marques Contino, ex-1º cabo op cripto, da CART 1743, ex-prisioneiro de guerra, aqui à conversa com outro camarada do seu tempo, com quem chegou a trabalhar no centro cripto de Tite, o Raul Pica Sinos (CCS / BART 1914, Tite, 1967/69)


S/l > s/d > O Geraldino Marques Contino, à esquerda, com os seus dois filhos, e a esposa Luísa, presumivelmente em férias.


S/l  [Ovar ?] > s/ d [2009 ?] > O Geraldino Marques Contino... Ja há dez anos atrás, o nosso grã-tabanqueiro Henrique Matos perguntava o que era feito destes homens, nossos camaradas, que foram  capa da revista do Expresso, nº 1309, de 29 de novembro de 1997

Fotos (e legendas: © Raul Pica Sinos (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Ainda Bissássema, em conversa com o Contino  

por  Raul Pica Sinos [ex-1º cabo op cripto, CCS/BART 1914, Tite, abril de 1967 / março de 1969; vive em Almada] [foto à esquerda]

[texto redigido em abril de 2009 / revisto em novembro de 2013;
editado por Leandro Guedes > Blogue do BART 1914. Tite, Guiné-Bissau > 17 de novembro de 2013 > Ainda Bissássema, na conversa com o Contino

[Reproduzido aqui com a devida vénia: trata-se de um depoimento excecional, permitindo-nos completar o conhecimento dos factos relacionados com a captura e a condição de prisioneiro de guerra do nosso camarada Geraldino Marques Contino, ex-1º cabo op cripto, da CART 1743, adida ao BART 1914, Tite, 1967/69;  sobre o assunto publicámos recentemente um interessante trabalho do nosso colaborador permanente Jorge Araújo (*);.

Tanto o Geraldino Marques Contino como o Raul Pica Sinos, ficam desde já convidados para nos darem a honra de se sentarem à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande; temos  ainda  poucas referências  tanto ao BART 1914 como à CART 1743.

Sobre a "batalha de Bissássema" o Raul Pica Sinos tem diversos postes publicados no blogue do BART 1914. Recorde-se que na noite de 3 de fevereiro de 1968:

(i) desapareceram em combate o fur mil Manuel Nunes Reis Cardoso, do Pel Mort 1208, e o soldado Milícia Manga Colubali, da CMIL 7;

(ii) foram capturados pelo IN três militares da CART 1743: alf mil António Júlio Rosa; 1º. cabo op cripto Geraldino Marques Contino; e sold Victor Manuel Jesus Capítulo.

O blogue do BART 1914, que existe desde 2008, é mantido por 3 antigos operadores cripto, se não erro, o Leandro Guedes, o Pica Sinos e o José Justo; aqui fica também o nosso reconhecimento público pelo extraordinário trabalho que estes camaradas do BART 1914 estão a fazer, recolhendo e partilhando memórias da sua unidade e subunidades adidas.

Estes camaradas estão também ativos no Facebook.]


... AS MÃES SÃO IGUAIS EM TODO O MUNDO... 

Na pequena, mas importante, vila do concelho de Almada que, dá pelo nome de Trafaria, localizada na margem esquerda do rio Tejo, a cerca de 3 quilómetros da foz, vila onde estava situado o antigo quartel do BRT (Batalhão de Reconhecimento das Transmissões) que incorporava o Centro de Informações e Segurança Militar com vistas à formação, entre outras, da especialidade em Operadores de Cripto, especialidade comum à época aos protagonistas deste apontamento, foi o local escolhido para o almoço/encontro de confraternização entre a minha pessoa (entre outros) e o ex-1.º Cabo Geraldino Marques Contino.

Há anos que procurava este acontecimento, não só para matar saudades, mas também para satisfazer curiosidades não só da minha pessoa, como de muitos que viveram o drama, aquando da captura do entrevistado em Bissássema, na região de Tite, em Guiné-Bissau,  e nas prisões em Conacry. (**)

Recordo-me, em Tite, no Centro de Cripto, nos dias que trabalhei com o nosso convidado, era comum vê-lo transportar um livro debaixo do braço. Nos pequenos momentos de descanso, não deixava escapar duas ou três linhas de leitura. 

Havia dias que também gostava, como os demais, de se vestir de forma despreocupada. Ainda hoje confessa que não sabe a razão porque foi “brindado”, pelo ex-capitão miliciano Paraíso Pinto, com 5 dias de detenção, justificados porque… o chapéu de palha e os sapatos de pala que trajava (naquele dia), não conjugavam com o trono nu e com os calções do fardamento...

O ponto “quente” da nossa longa conversa, foi a sua captura e a dos demais 2 companheiros (o Rosa e o Capitulo), em 2 de Fevereiro de 1968, na operação que, dava, creio, pelo nome de “Velha Guarda”.

A Companhia de Artilharia [CART] 1743 a que pertenciam, encetou a operação, em 31 de Janeiro de 1968, integrando num dos 3 destacamentos constituídos (um deles elementos da CCS), uma Companhia de Milícias. O objectivo, era, na região de Bissássema, banhada pelo rio Geba, (na sua frente a cidade de Bissau), aniquilar o IN, anulando o constante saque do arroz e, o recrutamento dos jovens e das mulheres. Os primeiros para ingresso nas suas fileiras e as segundas para servirem de carregadoras e cozinheiras dos produtos pilhados. Consequentemente fixar elementos das NT na zona, não só com vistas a proteger as populações, como conservá-las afectas.

Segundo conta o Contino, 2 dias após a chegada ao terreno, pouco minutos a faltarem para a meia-noite, mais precisamente no dia 2 de Fevereiro de 1968, (sexta-feira), um numeroso grupo IN, investiu em direcção ao extenso e mal programado perímetro das nossas tropas, pelo lado do pelotão das milícias. Estes não aguentando o ímpeto do ataque, acabaram por abandonar os seus postos, permitindo abrir brechas na defesa do terreno e possibilitar o cerco ao improvisado posto de comando.

A confusão surpreende as NT e, permite a captura dos europeus [o Geraldino Marques Contino, o António Rosa e o Vitor Capítulo]

Acrescenta o meu convidado:
…nem mesmo a sua tentativa de se esconder de entre a manada das vacas resultou…

Foram longos os dias e a distância efectuada a pé pelo mato.

Quando pelas tabancas passavam para descansarem ou pernoitarem, eram sempre bem recebidos, em especial pelas “mulheres grandes” e mães, que, ao vê-los feitos prisioneiros, não deixaram de lançar o seu olhar misericordioso e de grande lamento, imaginando como seria o sofrimento das mães brancas ao saberem que os seus filhos foram feitos prisioneiros.

…"As mães são iguais em todo o mundo!", remata o camarada.

Julgo, conhecendo-o como o conheci no seu pequeno período de permanência em Tite, a sua forma de estar, era de atitude ou algo diferente na resposta à recepção dos naturais guineenses. Homem habituado aos usos e costumes africanos, onde, desde os 3 anos de idade até aos 17 anos, viveu na cidade de Luanda, em Angola, razão pela qual não se fez rogado em aceitar, por uma ou outra vez, dançar e mesmo consentir o cumprimento dispensado por algumas bajudas (, mulheres em idade de casamento).

Conclui, dizendo que até à fronteira de Conacry  foi sempre, como os seus camaradas, muito bem tratado, em especial pelo seu captor.

Os inimigos nunca souberam das suas especialidades e patentes, inclusive teve o cuidado, durante a “viagem”, sem disso se aperceberem [os seus captores], de comer o pequeno livro de cifra que na ocasião transportava.

Já em Conacry, na prisão estatal, tomava as refeições, como os demais, no refeitório, na presença dos elementos da direcção do PAIGC. Diferente quando mudado para a prisão de prisioneiros de guerra e políticos. Aqui as refeições não primavam pela qualidade, mas comiam exactamente o mesmo que os seus carcereiros.

De tempos a tempos … lá vinha uma manga ou uma papaia… Ofertas de agradecimento dos guardas carcereiros que, sendo analfabetos, lhes pediam para escrever as cartas às famílias e ou suas namoradas.

De resto a maior parte do tempo era passado a jogar às cartas, com baralhos construídos por si, em aproveitamento do papel de que eram feitas as pequenas caixas de fósforos.

O Contino, depois de 30 anos de trabalho, como quadro superior na TAP, já está reformado.

[Revisão / fixação de texto / negritos e realce a amarelo:  o editor do Blogue Luís Graça & Caramadas da Guiné, com um alfabravo fraterno ao Contino e ao Pica Sinos]
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de  11 dezembro de 2017 >  Guiné 61/74 - P18076: (D)o outro lado do combate (15): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - II (e última) Parte (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18030: (De)Caras (101): J. Casimiro Carvalho, ex-fur mil op esp, CCAV 8530 (Guileje, 1972/73) e a "patrulha fantasma", massacrada em Gadamael, em 4/6/1973

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18076: (D)o outro lado do combate (15): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - II (e última) Parte (Jorge Araújo)


Infogravura nº 1: itinerário (a verde) utilizado em território da Guiné-Conacri pelos três militares da CART 1743,  feitos prisioneiros pelo PAIGC, em 3 de Fevereiro de 1968, na Tabanca de Bissássema: o António Rosa, o Vítor Capítulo e o Geraldino Contino.


Guiné > Região de Quínara > Bissássema > Local onde foram aprisionados, em 3 de Fevereiro de 1968, os três militares da CART 1743 (Tite, 1967/69): o António Rosa, o Vítor Capítulo e o Geraldino Contino.

A amarelo e laranja, o percurso realizado pelo trio de prisioneiros evadidos em 3 de Março de 1969 do Forte de Kindia: o António Rosa, o António Lobato e o José Vaz. Seis dias depois foram recapturados e reconduzidos para a prisão de Conacri.

[Infogravura adaptada, retirada do sítio  «http://ultramar.terraweb.biz/06livros_AntonioLobato.htm», com a devida vénia].



1.  INTRODUÇÃO 

A primeira parte deste pequeno trabalho de investigação, partilhada recentemente neste espaço colectivo (*), inicia-se com as consequências do ataque à Tabanca de Bissássema, situada nos arredores de Tite, em 3 de Fevereiro de 1968, que antes já tinha sido uma base IN. 

Guião da CART 1743 (1967/69),
"Os Diabos"
Do ataque da madrugada desse dia, sábado, resultou terem ficado prisioneiros de guerra três militares de um Gr Comb da CART 1743 (1967/69), «Os Diabos», que tinha recebido a missão de aí se instalar e onde decorria já a construção de abrigos enquadrados na organização do seu sistema de defesa.

Corolário desse ataque continuado, intercalado entre maior e menor intensidade, alguns guerrilheiros entraram no aquartelamento, lançando granadas e apanhando à mão o António Rosa, o Victor Capítulo e o Geraldino Contino, os quais foram levados para território da Guiné-Conacri. 

Primeiro atravessando a pé o corredor de Guileje (cerca de 200 km em 6 dias),  seguindo depois até Boké em viatura. Aí chegam à fala com Nino Vieira (1939-2009), e depois dirigem-se a Conacri onde são recebidos por Amílcar Cabral (1924-1973).  Segue-se nova viagem até à “Casa Forte de Kindia”.

Treze meses depois, em 3 de Março de 1969, António Rosa com mais dois prisioneiros de guerra, António Lobato e José Vaz, levam à prática um plano de fuga pensado entre si, sendo recapturados ao fim de seis dias. Na sequência dessa evasão mal sucedida foram transferidos para um novo cativeiro em Conacri [vidé P2095 e P7929]. [Infogravura nº 1, reproduzida acima[,

Após o diálogo estabelecido com os três militares da CART 1743, em Conacri, Amílcar Cabral dá conta em comunicado escrito em francês, datado de 19 de Fevereiro de 1968, da identificação destes novos prisioneiros de guerra.

Exactamente seis meses depois do episódio da Tabanca de Bissássema, ou seja, em 3 de Agosto de 1968, Amílcar Cabral faz aos microfones da «Rádio Libertação», a sua emissora, nova referência aos prisioneiros de guerra do PAIGC. Por deferência deste, as palavras do seu secretário-geral foram gravadas em fita magnética, bem como as declarações de oito militares portugueses feitos prisioneiros nos primeiros seis meses desse ano, e retransmitidas em Argel, na rádio «A Voz da Liberdade», emissora da FPLN/Portugal [Frente Patriótica de Libertação Nacional]. O conjunto desses oito depoimentos foram editados no Caderno 1, da responsabilidade da FPLN, com o título “falam os portugueses prisioneiros de guerra” [vidé P16172]. [Infogravura nº 2]



Infogravura nº 2

Citação:

(1968), "Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84394 (2017-10-30)


Nesse caderno 1, na página 20, encontrámos os testemunhos de Geraldino Marques Contino, com respostas dadas a sete perguntas, conforme se reproduz abaixo. De relevar que das sete perguntas duas estão relacionadas com a comunicação com a família, depreendendo-se que seria para lhes dar conta da sua [nova] situação. Por exemplo, a 4.ª, “Você já escreveu à sua família)”; R: “Escrever ainda não escrevi, mas escreverei brevemente”; e a última, “Você vai escrever-lhes [aos pais]?”; R: Vou escrever-lhes, naturalmente”. Como se pode observar, o seu apelido está mal escrito [Contino e n não Coutinho}. [Infogravura nº 3]



Infogravura nº 3


Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares.
Pasta: 04309.007.011.
Título: Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de guerra.
Assunto: Editado pela FPLN/Portugal, em Alger, exemplar 1 de publicação com declarações dos militares portugueses feitos prisioneiros pelo PAIGC. Pretende-se dar conhecimento da verdade às famílias, ao mesmo tempo que se acusa o governo português de os referir como desaparecidos (militares das incorporações de 1966). Este número inclui transcrição de uma comunicação de Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, aos microfones de “A Voz da Liberdade”, dirigida aos prisioneiros portugueses, no dia 3 de Agosto de 1968, com a promessa de fornecer em breve fitas magnéticas com testemunhos dos prisioneiros, bem como o tratamento que lhes é dado, quando feridos e ligação com a Cruz Vermelha Internacional, para o seu repatriamento para junto das suas famílias.
Data: 1968. Observações: Declarações gravadas em fita magnética e difundidas pela Rádio Libertação, pelo PAIGC, que autorizou retransmissão pela emissora da FPLN, a Voz da Liberdade. Fundo: Arquivo Mário Pinto de Andrade.
Tipo Documental: Documentos

[com a devida vénia].

Neste contexto, não é possível confirmar o que quer que seja quanto ao envio de “notícias para a metrópole”, como então se dizia. Só o próprio nos pode/poderá fazê-lo. Certamente que não foi nada fácil dizê-lo, e a existir algum atraso, ele seria perfeitamente compreensível, por necessidade de encontrar as palavras acertadas e estabelecer um fio condutor que não provocasse danos, nos dois sentidos. Por um lado aos destinatários, que nada sabiam acerca da nova realidade, por outro ao próprio remetente que estava “obrigado” e/ou “comprometido” em dizer-lhes a verdade. Mas, ao pensar referi-la, é aceitável que se tenha questionado, muitas vezes, sobre as consequências que esta notícia teria no seu seio? Como é que ela seria recebida? Aumentando a angústia e a dor nos seus pares ou desenvolvendo esforços no sentido de encontrar canais de comunicação alternativos? Provavelmente ambas as situações.


2. A IGREJA NA VIDA DOS PRISIONEIROS DE GUERRA (II) - O CASO DE GERALDINO MARQUES CONTINO


Geraldino Marques Contino, o ex-1.º Cabo Op.Crpt da CART 1743, feito prisioneiro naquele sábado, dia 3 de Fevereiro de 1968, na tabanca de Bissássema, certamente que passou pelas mesmas emoções, angústias, privações e sofrimentos relatados pelos seus camaradas de infortúnio, o António Rosa e o Victor Capítulo, desde que foi capturado, depois na prisão de Kindia, onde cinco dias após aí ter dado entrada completou o seu 23º aniversário (em 15 de Fevereiro) e, por último, na de Conacri.

Como referimos anteriormente, foi na busca de informações sobre a sua vida em cativeiro que tomámos em mãos essa tarefa, existindo uma só fonte onde poderíamos obtê-las, isto é «Do outro lado do combate». E a consulta recaiu, uma vez mais, no espólio da Casa Comum – Fundação Mário Soares, onde encontramos várias referências, umas já publicitadas acima, outras relacionadas com a troca de correspondência entre os responsáveis da Igreja Católica e Amílcar Cabral, na qualidade de secretário-geral do PAIGC.

E a causa/efeito para esse contacto nasce da falta de notícias do Geraldino Contino, o qual deixou de escrever aos seus familiares, em particular para os seus pais, depois do mês de Janeiro de 1970, muito provavelmente por volta do dia em que completava o seu 25º aniversário (o 3.º em cativeiro), data considerada para si e para os seus de muito importante. A ausência de liberdade, o permanente controlo dos seus movimentos, e a cada vez menor motivação para a escrita, levaram-no a cortar com o mundo exterior. Será que foi isso que aconteceu? Ou terão as cartas, também elas, ficado retidas/ prisioneiras?

Uma vez que a ausência de notícias se manteve durante alguns meses, os pais do Geraldino Contino tomam a iniciativa de escrever para o Vaticano, dando conta a Sua Santidade o Papa Paulo VI (1897-1978) da sua angústia por desconhecimento do destino do seu filho, feito prisioneiro pelo PAIGC. O Santo-Padre interessa-se por este caso e remete, em 10 de Setembro de 1970, uma carta dirigida ao Arcebispo de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011), solicitando informações concretas sobre a situação desse jovem militar. Este religioso, por sua vez, cumprindo o superior desejo de Paulo VI, escreve em 16 do mesmo mês uma nova missiva de teor semelhante, enviando-a ao cuidado de Amílcar Cabral, na qualidade de secretário-geral.

Recorda-se que estas duas cartas, escritas em francês, constam da Parte I. (*)

A este contacto formal do Arcebispo de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo, seguiu-se a resposta pronta de Amílcar Cabral, com data de 17 de Setembro, cujo conteúdo daremos a conhecer de seguida, a tradução e o original em francês, por esta ordem.

Tradução [de Jorge Araújo]:

Conacri, 17 de Setembro de 1970

Sua Excelência Monsenhor Raymond-Marie Tchidimbo, Arcebispo de Conacri Monsenhor,
Tenho a honra de acusar a recepção da vossa carta de 16 de Setembro, pela qual teve a gentileza de pedir para o pôr ao corrente sobre o conteúdo de uma carta remetida pela Secretaria de Estado da Cidade do Vaticano, por intermédio de Sua Excelência Monsenhor BENELLI, substituto desse mesmo Ministério.

A direcção nacional do nosso Partido está honrada de poder dar as seguintes informações acerca do prisioneiro de guerra Geraldino Marques Contino de acordo com o interesse de Sua Santidade o Papa Paulo VI.

- Nome: Geraldino Marques Contino
- Filho de Armando Contino e de Olinda Marques
- Nasceu em 15 de Fevereiro de 1945 em Envendos [Mação, Santarém]
- Profissão: estudante
- Situação na arma colonial: 1.º Cabo – RAL5
- N.º mecanográfico: 093526/66
- Feito prisioneiro em 3 de Fevereiro de 1968 em Bissássema (Frente Sul) a 17 quilómetros de Bissau, a capital.

O prisioneiro encontra-se bem, tanto física como moralmente. De acordo com os princípios humanitários da nossa luta, do respeito pela pessoa humana e de nunca confundir colonialismo português e povo de Portugal ou cidadãos portugueses, o melhor tratamento é concedido a este prisioneiro como a todos os outros. Toda a sua correspondência é enviada, no tempo, para o seu destinatário. É possível que o Governo português por necessidade da sua propaganda contra a nossa luta legítima, não quer que as famílias dos prisioneiros sejam informadas da situação na qual se encontram os seus filhos, cônjuges e irmãos.

A carta anexa, escrita pela mão do prisioneiro, e endereçada a seus pais, informará melhor que nós sobre a sua situação, a sua saúde e o seu estado de espírito.

À vossa inteira disposição para todas as informações úteis, por favor aceite, Monsenhor, a expressão dos nossos sentimentos de respeito e fraternal amizade.

Pel’ O Secretariado Político do PAIGC
Amílcar Cabral, Secretário-Geral



Citação:
(1970), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39285 (2017-10-30)

Na volta do correio, o Arcebispo de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo, acusa a recepção das informações enviadas por Amílcar Cabral, em nova carta datada de 19 de Setembro, nos seguintes termos (primeiro a tradução, depois o original constituído por duas folhas dactilografas):

Tradução [de Jorge Araújo]

Senhor Amílcar Cabral
Secretário-Geral do PAIGC
Conacri

Deixe-me dizer obrigado – um obrigado muito simples mas não menos sincero – pela recepção dispensada à minha carta de 16 de Setembro e a resposta, tão rápida e atenciosa, que se dignou trazer.
Gostaria de ser gentil o suficiente por ter sido o interlocutor junto do Secretariado Político do PAIGC para o qual registo aqui a expressão da minha gratidão.

O SANTO-PADRE será em breve informado, por intermédio de Sua Excelência Monsenhor Substituto da Secretaria de Estado da Cidade do Vaticano, - Monsenhor BENELLI – do conteúdo da sua carta; ao mesmo tempo que será transmitida a relação de Geraldino Marques Contino a seus pais.
O seu gesto, Senhor Secretário-Geral, marca uma etapa decisiva da vossa luta para conseguir, finalmente, libertar a sua Pátria de toda a dominação; o Vaticano, singularmente atento às actividades dos Movimentos de Libertação do mundo inteiro, não vai deixar de apreciar o verdadeiro valor das intenções e dos esforços do PAIGC.

Queira aceitar, Senhor Secretário-Geral, com os meus agradecimentos repetidos, a expressão do meu bem fraterno e respeitosa amizade.

Conacri, 19 de Setembro de 1970
Raymond-Marie TCHIDIMBO,
Arcebispo de Conacri




Citação:
(1970), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39286 (2017-10-30)

Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares.
Pasta: 07069.111.023.
Assunto: Agradece a resposta à sua carta, em que dá conta da situação do prisioneiro de guerra Geraldino Marques Contino.
Remetente: Monsenhor Raymond-Marie Tchidimbo, Arcebispo de Conacri.
Destinatário: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC.
Data: Sábado, 19 de Setembro de 1970.
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Relações com a Guiné-Conacri / Senegal 1960-1970.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Correspondência.

[com a devida vénia]

Depois desta data nada mais foi encontrado relacionado com este tema. Desconhece-se, por isso, as consequências destes contactos. O que se sabe é que passados dois meses, naquele domingo, 22 de Novembro de 1970, Geraldino Marques Contino e os restantes vinte e quatro militares portugueses, prisioneiros de guerra em Conacri, às ordens do PAIGC, são libertados na sequência da «Operação Mar Verde», planeada e conduzida pelo Comandante Alpoim Calvão (1937-2014) [vidé postes P3244 e P1967].

Vinte e sete anos depois, numa iniciativa do semanário «Expresso», foi possível reunir em Lisboa, dezasseis desses prisioneiros. Na capa da «Revista do Expresso, n.º 1.309, de 29 de Novembro de 1997, é possível identificar, com a seta amarela, o Geraldino Marques Contino, camarada que esteve no centro deste trabalho de pesquisa [Infogravura nº 4]. O texto da reportagem é da autoria do jornalista José Manuel Saraiva.


Infogravura nº 4


Foto do Geraldino Marques Contino, publicada na Revista do Expresso n.º 1309, de 29 de Novembro de 1997, com a devida vénia.

A escassos dias de completar quarenta e sete anos, em que reconquistaram a liberdade na sequência da audaz «Operação Mar Verde» [Guiné-Conacri, 22 de Novembro de 1970], e a vinte anos da primeira reunião pública em grupo, em Lisboa, por iniciativa do Expresso, este trabalho é, também, a minha homenagem a todos eles, uma aprendizagem pessoal e, ainda, uma lembrança pelas duas efemérides.

Por último, recupero as declarações proferidas à RTP, em 1995, pelo então Presidente da República da Guiné-Conacri, Lansana Conté (1934-2008), elogiando a invasão do seu país pelos portugueses, “vendo-a como uma oportunidade perdida de libertar o país do jugo de [Ahmed] Sékou Touré [1922-1984]. E disse que os militares portugueses fizeram aquilo que é um desejo natural das Forças Armadas de qualquer país: libertar os seus prisioneiros de guerra” [Fórum Armada - página não-oficial da Marinha de Guerra Portuguesa - http://archive.is/CNcHE], com a devida vénia.
Obrigado pela atenção.

Com um forte abraço de amizade… e muita saúde.
Jorge Araújo.
8NOV2017
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Nota do editor:

Último poste da série >  30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18027: (D)o outro lado do combate (14): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - Parte I (Jorge Araújo)

sexta-feira, 11 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7929: Notas de leitura (216): Grande Reportagem, nº de Dezembro de 1993: Desaparecidos em combate, os portugueses que não voltaram da guerra: o caso do Victor Capítulo, da CART 1743, Tite, 3 de Fevereiro de 1968 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2011:


Queridos amigos,

Nas minhas arrumações, encontrei este número da revista Grande Reportagem, tanto quanto me ocorre daquilo que leio diariamente no blogue ainda não se falou desta reportagem e da história do nosso camarada Vitor Capítulo (*), um dos libertados da operação Mar Verde.

Um abraço do  Mário

2. Do lado de cá, julgaram-no morto

por Beja Santos 

A revista Grande Reportagem, no número de Dezembro de 1993 tinha uma capa bem expressiva:
“Desaparecidos em combate, os portugueses que não voltaram da guerra”.

O texto era assinado por Fernanda Pratas, assim apresentado:

“Ficar sem um filho na guerra é uma mágoa que não se pode dizer. Muito menos em números, o mais absurdo dos instrumentos para traduzir a tortura de uma ausência forçada. Mas não é de paixões da alma que tratam as instituições. Para as Forças Armadas portuguesas, há um balanço da guerra colonial: 13 anos de campanhas de África, 8807 mortos, 30 000 deficientes. Os restantes 800 000 voltaram vivos e bem de saúde. Tudo resolvido, portanto. De uns, resta encomendar a alma e oferecer medalhas póstumas às crianças, a lembrar que o pai foi herói ao serviço da Nação. Aos estropiados, ajudas financeiras, a assistência do costume. E os outros? Quais outros? Desaparecidos? Isso não há, garantem. Dos nossos, ninguém ficou sem destino. Muitas famílias nunca viram os seus mortos, não têm mesmo a certeza se morreram. Mas que importa?”.

E sucedem-se algumas histórias. António Dias Neto, primeiro grumete da Armada, da Companhia de Fuzileiros nº 7, desapareceu no Rio Zaire. Não deram com o corpo, nem o dele nem o de dois companheiros. Comunica-se à família enlutada, aliás já em decomposição, os pais vão morrer poucos anos depois. Resta Edite, a irmã. Ainda se lutou pela pensão de sangue, os pais dependiam daquele rapaz de 23 anos. A namorada do desaparecido casou.

Desaparecido é sempre uma situação incómoda: prisioneiros, perdidos, desertores e mais algumas situações exóticas. A lógica militar é bastante linear ou quase: da guerra só resultam sobreviventes e cadáveres. Lidar com a situação de um desaparecido é bastante incómodo, nada comparável com um morto em combate ou um morto por acidente.

O escritor João de Melo, que foi Furriel Enfermeiro entre 1971 e 1973, refere-se a uma missão bem espinhosa que coube à sua Unidade: recuperar o corpo de um homem morto uns sete anos antes, enterrado no mato pelos colegas:

“Havia cartas militares com o lugar assinalado, mas a operação era para durar três dias e durou oito. Andámos perdidos, já sem ração de combate. Depois, lá descobrimos umas marcas em árvores, umas pedras no chão, era como que uma caça ao tesouro. Ao longe, víamos o Zaire e os movimentos da FNLA. Desenterrámos então um monte de ossos, sem botas nem roupas, só os ossos. Trouxemo-los para o nosso aquartelamento em sacos de tenda, lavámo-los e foram metidos dentro de uma urna selada, para a família. Esses casos não eram frequentes, normalmente não se deixavam os cadáveres no mato”.

A reportagem prossegue com o desaparecimento do Capitão Piloto-aviador Hugo Assunção Ventura, desaparecido sobre o rio Rovuma. Houve um patrulhamento no rio Rovuma, o T6 desapareceu, conforme depoimento do Furriel Semedo. Um mês depois do desaparecimento, veio da capital da Tanzânia a notícia de um avião encontrado junto ao rio. Em Fevereiro de 1976, chegou ao aeroporto da Portela uma caixa com o que restaria do cadáver: uma bota, uns ossos indistintos, bocados de tecido da farda e do lenço habitual dos pilotos. Sem crânio, não era possível determinar a identidade.





Victor Capítulo, o desaparecido que voltou

E estamos chegados à história de Victor Manuel de Jesus Capítulo, na altura da reportagem com 48 anos. Cá, foi dado como morto, mas voltou e deslumbrou a família. Antes da tropa era pescador em Sesimbra. Em 1967 viajou no barco Timor até à Guiné. Foi colocado na região de Tite [, na CART 1743]. A sua vida mudou na noite de 3 de Fevereiro de 1968, o seu quartel foi atacado, o Victor não se apercebeu do que estava a acontecer, apareceu-lhe pela frente um guerrilheiro que apontou uma arma aos três militares que estavam junto do aparelho da rádio (ele, o Operador de Cripto e o Comandante do Pelotão) cumprimentou-os e levou-os.

Depois de uma longa viagem foi levado para uma prisão em Kíndia, depois para Conacri, será aqui que Victor Capítulo irá conhecer o então Sargento Piloto-aviador Lobato. Serão todos libertados na Operação Mar Verde. Um oficial foi entregá-lo à família a Sesimbra. A reportagem mostra o Victor Capítulo na Guiné e agora (1993) em Sesimbra. À data da reportagem, o Victor dormia mal e precisava de acompanhamento médico. Não é fácil lidar com uma captura, ser interrogado, não saber o dia de amanhã. O Victor foi aquele desaparecido em combate que voltou e quebrou com uma mágoa que não se podia dizer.

Este número da revista Grande Reportagem passa a pertencer ao blogue. (**)
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Notas de CV:

(*) A captura do Victor e demais camaradas (António Júlio Rosa e  Geraldino Marques Contino)  já aqui foi objecto de "tratamento bloguístico", sob o poste de 12 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2095: PAIGC - Propaganda (3): A guerra dos números (A. Marques Lopes / António Pimentel)

(...) Excerto da notícia da captura do António Júlio Rosa e de mais 2 dos seus camaradas (Jornal Libertação, Fevereiro de 1968, página 3):

(…) Na área de Quínara (Frente Sul), no dia 3 de Fevereiro [de 1968], no decurso de um ataque a uma unidade colonialista que se instalara na tabanca de Bissássema, as nossas forças, comandadas pelos camaradas Fokna Na Santchu e Mamadu Mané, fizeram prisioneiros os seguintes militares portugueses: alferes miliciano de infantaria António Júlio Rosa, 1º cabo nº 093526/66, Geraldino Marques Contino, o soldado nº 034660/66, Victor Manuel de Jesus Capítulo, todos da companhia 1743, estacionada em Tite.

Nesta acção foram ainda postos fora de combate 16 soldados colonialistas. O restante da tropa inimiga fugiu para o campo fortificado de Tite, abandonando no terreno uma importante quantidade de material, entre os quais se contam 6 rádios de campanha de fabricação britânica.

De acordo com as normas do Partido, estes novos prisioneiros portugueses receberão o tratamento humano que lhes é garantido pelas convenções internacionais (...).



(**) Vd. último poste da série de 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7920: Notas de leitura (215): Jardim Botânico, de Luís Naves (2) (Mário Beja Santos)